Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…
… em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira
1 – Haverá tema mais transcendente?
Comecemos do início. Ou pelo princípio, como se diz em Portugal.
Não é moderno, sei. Escritores sofisticados preferem contar suas histórias de trás para diante ou aos saltos, indo e voltando. Ou regressando. Uns outros, mais arrojados, escrevem até mesmo livros que não têm nem história nem personagens. Mas eu sou jornalista de profissão e, como todos do meu ofício, pratico o texto claro, legível e cronológico.
Aceito, porém, as críticas que nos fazem. Admito que, em geral, os redatores jornalísticos (em Portugal ainda escrevem redatores com c, embora já não existam mais redatores por lá, apenas jornalistas, ou, vá lá, repórteres) partem sempre de um mesmo princípio: o leitor é uma besta, e a ele se deve facilitar tudo. Concordo quando dizem que enredos óbvios e personagens chapados marcam boa parte da produção literária dos meus coleguinhas.
Não foi, porém, essa a orientação adotada aqui. Acreditamos, desde a primeira linha, que esta obra se destina a um leitor requintado, conhecedor dos clássicos da literatura policial.
Embora comportado no estilo, este livro fornece ao leitor um elevado número de frases rebuscadas – ora irônicas ou irónicas (apesar do famigerado acordo ortográfico, ironicamente certas palavras paroxítonas acentuam-se em Portugal de forma diferente), ora pessimistas – que poderão ser usadas, depois, com grande proveito, em conversações inteligentes.
Os personagens aqui apresentados – seres humanos complexos, de fina inteligência, mas vítimas de incandescentes paixões primitivas – têm profundidade e densidade.
Por fim, a história contada nestas mal traçadas linhas é rocambolesca a ponto de beirar o inverossímil, mas não deixa de ser tocante. Sem me alongar em detalhes, posso anunciar, nesse preâmbulo, que o que se discute aqui é, em última instância, a morte, o termo da vida. Haverá tema mais transcendente?
No entanto, essa matéria nobre é tratada com grande leveza. Deve-se ressaltar, por fim, que este é um livro divertido e movimentado. Assim, o leitor que se delicia com chatices, como o noveau roman francês, pode parar por aqui. E se, lendo, até bem no finzinho, concluir que não lhe agradou, você então será pago com um piparote, que é um peteleco dado pelo fantasma de Machado de Assis na cabeça oca dos que não conseguem ler Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Vamos, pois, à história.
Naquele que foi o dia mais longo que já vivi, acordei por volta das nove horas, me espreguicei e fui ao banheiro. Fiz xixi, lavei o rosto, escovei os dentes, voltei ao quarto, enfiei calça e camisa e saí porta fora.
Sim, o despertar é pleno de verbos.
Como constaram os leitores mais atentos, deixei o apartamento sem comer nada, mas não foi por estar fazendo regime alimentar. Mas fiz xixi, que é coisa pouco vista em romance. Era fim de mês e meu salário havia expirado.
Neste ponto do livro, se fosse dado à análise de questões sociais e políticas, eu provavelmente estaria vociferando contra a exploração dos pobres trabalhadores pelos capitalistas sem coração. Mas não me preocupo com esse tipo de coisa. Segundo meu pai, sou o único pobre neoliberal do universo. Ou o único neoliberal pobre, o que parecendo o mesmo não é.
Mas já que este é um livro sério, devo confessar que minha dispensa não estava totalmente limpa. Eu ainda tinha um pacote de macarrão, dois desodorantes ou desodorizantes (como diria o Cristiano Ronaldo) e três tubos de pasta de dentes.
Minha generosa mãe não se importava muito com comida quando eu era pequeno. Não me empurrava papinhas goela abaixo. Para ela, o mais importante era o asseio pessoal. Eu era um guri magro (ou um miúdo escanzelado, como eu escreveria se tivesse nascido, vá lá, em Santa Comba Dão) como bicicleta, mas isso não lhe tirava o sono. Ela só ia à loucura quando eu tentava enforcar o sagrado banho diário. Então, ela me lavava na marra e, depois, arrematava a sessão com uns golpes de toalha úmida, com ou sem H de acordo com o lado do Atlântico em que se esteja . A mãe achava que nada de ruim poderia acontecer a um indivíduo que tivesse, por mínimo que fosse, um estoque de produtos de higiene. Vista a vida, tinha razão.
2 – A atração que o imbecil sente pela confusão
Eram nove horas e trinta de uma esplendorosa manhã quando passei pelo Multimídia – José de Ribamar, maranhense, zelador do edifício, apanhador de jogo do bicho no horário do almoço, eletricista e encanador nas horas vagas, e lavador de carro nos finais de semana – que me perguntou:
– E aí, doutor, vai começar a mentir mais cedo hoje?
– Assim foi determinado pelo Senhor, que é bom e justo – respondi. – Exige Ele que coloquemos em prática o talento que nos concedeu. No nosso caso, Multimídia, fomos privilegiados porque recebemos o mais valioso dom dos dias atuais: o de enganar os outros. Por falar nisso, a torneira continua pingando e o chuveiro dando choque. Vais ou não vais consertar aquilo lá?
– Vamos esperar o dia do seu pagamento, doutor. Hoje em dia, nem relógio trabalha de graça. Agora, só funciona com bateria.
Nós brincamos disso. Ele finge que conserta minhas tralhas e eu faço de conta que pago a ele. Multimídia vai ao meu apartamento, aperta um ou dois parafusos e estende a mão. Eu, em pagamento, dou-lhe uma moeda. Invariavelmente a de menor valor. Aí, o jogo fica empate, zero a zero.
Era um belo dia de sol, repito. Nesta passagem devo esclarecer que eu estava em Brasília, Brasil, América do Sul. Não havia neve, como num livro russo; nem névoa cinzenta, como em um livro francês. Que fazer? Sigamos com o dia ensolarado, embora reconhecendo que ele não é literariamente sedutor.
Cruzei o estacionamento e caminhei até meu fusca amarelo, ano 1968, vulgarmente conhecido entre os meus amigos como “Revolução de Maio”.
Naquela manhã, o bravo carrinho estava feliz. Tinha o tanque bem abastecido. No dia anterior, havia bebido tudo que me restava do salário.
Comecei a rodar.
Bem, vejamos. A frase acima não está boa. Um português jamais a escreveria. Um lusitano cravaria: comecei a rodar com o meu carro. Não, não. Diria: o automóvel, acionado por mim, saiu a rodar. Não, não! Os portugueses sempre são muito exatos. Diria: dei partida ao motor, depois engrenei a marcha e o veículo pôs-se em movimento. Não, diz-me um gramático de Coimbra, portugueses legítimos usariam um simples: arranquei. Escreveriam: “arranquei” supondo que, arrancando, no sentido de iniciar um movimento ou ação, a inércia faria rodar o seu carro per saecula saeculorum, sem necessitar sequer de mais gasolina.
Enfim, rodando a trinta quilômetros por hora, eu me deliciava com a paisagem humana: vestindo macacões alaranjados, garis faziam de conta que limpavam os gramados; frentistas dos postos de gasolina jogavam porrinha; vendedores de carros usados aguardavam o surgimento de algum otário; policiais militares passeavam pelas calçadas, mãos às costas, com a serenidade dos que sabem que os bandidos dormem pela manhã.
Era, pois, um típico dia brasiliense.
O automóvel rodava e eu olhava invejoso para os prédios onde milhares de funcionários públicos, que ganhavam mais do que eu, passavam os dias lendo jornais e revistas, xerocando livrinhos de sacanagem, inventando combinações para ganhar na loteria, imaginando processos trabalhistas contra o governo, bolinando faxineiras e fazendo planos para gastar o décimo terceiro salário.
Ao contornar a Estação Rodoviária, para seguir até a sede do jornal, percebi que havia algum rolo na plataforma. Era um corre-corre danado, uma zoeira, um auê.
Embiquei o “Revolução de Maio” e estacionei. Ao puxar o freio de mão, ainda pensei: no jornal, certamente vão me passar um sabão por chegar atrasado à reunião.
Desembarquei. Ao bater a porta do carro, lembrei de meu pai, que vivia dizendo:
– Filho, um imbecil não só atrai a confusão. Ele caminha diretamente pra ela, de braços abertos, sempre na hora mais imprópria e no local menos indicado.
Esse imbecil hipotético, ao qual ele se refere, devo ser eu. Afinal, era filho único.
Com passadas largas, avancei para o enrosco. Penetrei na multidão à força de cotoveladas. No Brasil, se você chega cheio de dedos, pedindo por favor ou com licença, os caras te mandam à merda.
Zunzum, peitadas, empurrões, nervosismo, histeria, gritos, pânico, muito sangue e algumas vísceras. Cheguei ao centro da aglomeração. Objetivo alcançado com distinção. Papai teria orgulho de mim. Ou não.
3 – Discurso sobre a morosidade da Justiça brasileira
Era um acidente de trânsito.
Um belo acidente, diga-se de passagem. Do ponto de vista jornalístico, evidentemente. Cerca de dez mortos e vinte feridos.
Para obter detalhes, entrevistei alguns passageiros de um dos ônibus – que em Portugal se chamam autocarros, embora tenham condutor – envolvidos no acidente. Enquanto anotava, eu observava a retirada dos feridos. Os socorristas eram tão estabanados que, num primeiro momento, julguei que estavam tentando quebrar os ossos das vítimas sem ferimentos visíveis. Não há nada tão perigoso para um acidentado quanto a solidariedade afoita de um brasileiro.
De repente, deu-me um estalo. Corri ao telefone público e liguei para a redação:
– Mandem já um fotógrafo. Tá cheio de presunto aqui na Rodô.
Presunto, na castiça linguagem dos jornalistas brasileiros, quer dizer vítima fatal, falecido ou ente querido. Já se estivesse ligando para uma redação portuguesa, meus chefes pensariam que, na Rodô, estaria ocorrendo um desfile de raparigas de coxas robustas!
O desastre foi assim: o motorista de um ônibus vindo de Taguatinga, com cem pessoas a bordo – embora sua capacidade máxima fosse, entre sentados e em pé, de 72 passageiros –, não freou no momento em que se esperava que fizesse isso. Destarte, literalmente entrou com seu veículo para dentro de outro, igualmente superlotado (ou sobrelotado, como diria o Miguel Torga), que manobrava para estacionar.
Esse tipo de batida é conhecido como engavetamento.
Dez minutos depois, quando o fotógrafo do jornal chegou esbaforido havia ainda cinco corpos enfileirados no chão sujo, cobertos por folhas de jornais.
Aquilo rendeu uma bela foto. Para os padrões brasilienses, me apresso em esclarecer. No Rio de Janeiro e em São Paulo, cena como aquela não impressionaria. Certa vez um editor de polícia de um jornal paulista me disse:
– Pra chacina com menos de dez presuntos, meu, nem mando fotógrafo.
Desloquei-me para o local onde os bombeiros estavam tentando, a golpes de machadinha, tirar um ônibus de dentro do outro.
Algumas pessoas ainda agonizavam nas ferragens, para o mal disfarçado gáudio de um repórter de rádio, que estendia para elas o seu ansioso microfone.
Em meio ao cenário dantesco, eu processava mentalmente os depoimentos que havia coletado e já estruturava a minha reportagem.
Os sobreviventes juravam que o motorista do ônibus que saíra de Taguatinga estava de porre; que fizera a viagem a mais de cem por hora, rindo histericamente; que não se detivera numa só parada intermediária; que xingara meio mundo pela janela aberta.
De repente, um homenzinho colocou-se na minha frente:
– Felizmente, o motorista morreu, irmão. Seria uma injustiça divina se o mesmo permanecesse vivo depois de tudo o que nos fez passar…
Como não gostei da cara dele e odeio a expressão o mesmo – tão horrorosa como despoletar, que é o sinônimo de desencadear usado pelos moradores de Freixo de Espada à Cinta -, resmunguei:
– Morreu. Que bom! Está, enfim, descansando junto ao Pai.
– Descansando? Ele tá é fritando no inferno.
– O inferno não tem mais fogo – eu disse. – O Diabo não pagou a conta, cortaram o fornecimento de lenha.
– O negócio é o seguinte, irmão – insistiu o baixinho. – Escreva na sua reportagem que o referido condutor estava embriagado e que, por isso, a gente estamos a fim de reclamar na Justiça uma indenização da empresa de ônibus.
Aquela frase me impressionou.
Olhei bem para ele. Era um cara de uns cinquenta anos, magro, mirradinho dentro de um terno outrora azul marinho. Tinha cara e físico de ascensorista de ministério.
– Acho que podes acionar a empresa – eu disse. – Mas, cá entre nós, estarás vivo quando sair a sentença daqui a uns trinta anos?
– Trinta? – espantou-se ele.
– Ou mais. Essa empresa tem vinte advogados que vão ficar empurrando o processo com a pança, enquanto tu vais cair na mão de um advogado de porta de cadeia que vai te zerar a poupança. Deixa o processo pra lá, não esquenta!
O baixinho escafedeu-se. Não esperava uma opinião tão rude sobre a advocacia brasiliense. Mas eu sou assim mesmo: gosto de sacudir as pessoas. Especialmente se são menores do que eu. E, sobretudo, se aparentam ser mais pobres.
(cont.)
Sobre os autores (actividade literária)
Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.
Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).
A família Stockton é um ícone da alta sociedade nova-iorquina. As suas vidas são pontuadas por celebrações no clube de golfe, acordos pré-nupciais e jantares temáticos, organizados pela matriarca, Tilda. Mas, por detrás do dinheiro antigo e da educação Ivy League, os laços que os unem parecem ser os mesmos que os separam.
Darley, a filha mais velha, sacrifica a herança e a carreira por amor. Uma decisão polémica que a lança em território desconhecido.Georgiana, a filha mais nova, envolve-se num romance proibido que ameaça arruinar todos os seus planos para o futuro.E há Sasha, que entra para a família ao casar com Cord. Independente e obstinada, é a eterna intrusa, e mal consegue compreender as estranhas regras, cultura e rituais que regem o clã.
Uma rota de colisão para três mulheres que desejam ser definidas por algo mais do que a sua relação com o dinheiro. Pois há a que nasceu com ele, a que casou com ele e a que quer, acima de tudo, ver-se livre dele.
Título
A Tília/Aniversário
Autor
César Aira
Editora
Cavalo de Ferro
Sinopse
Volume que reúne duas das mais conhecidas obras de César Aira. Uma porta de entrada para um universo literário único de um autor de culto.
No princípio era o chá de tília que o pai, vítima de insónia, preparava. Rumava de bicicleta até à Praça de Pringles, onde numa fileira destas árvores, cujas florzinhas colhia para o seu chá, se destacava um exemplar, admirável e grandioso, a Tília Monstra. Consigo levava o seu único filho, ainda pequenino, aquele que mais tarde contaria esta e tantas outras histórias para recuperar o seu velho eu e compreender a sua vida: a dos seus pais e do quarto apertado onde todos viviam, a das primeiras amizades e espantos, a da descoberta da vírgula.
Em Aniversário, encontramos a personagem de um célebre escritor que, ao cumprir os cinquenta anos, época de balanços e de recomeços, aproveita a surpreendente descoberta da sua ignorância sobre as fases da Lua para reflectir, com ilimitada fantasia e humor desarmante, acerca de «todas as coisas que julgava saber e que na verdade não sabia».
Título
O caminho do Zen
Autor
Alan Watts
Editora
Albatroz
Sinopse
Se abrirmos os olhos e virmos com clareza, torna-se óbvio que não há outro tempo senão este instante.Esta obra inspiradora apresenta de uma forma abrangente e acessível a filosofia e a prática do budismo zen, explicando os seus principais ensinamentos, enquanto explora as suas implicações mais amplas para a espiritualidade e a existência humanas.
Alan Watts, um pioneiro na divulgação da sabedoria do Oriente no mundo ocidental, convida-o a abraçar um modo de viver plenamente no presente, aceitando o que não se pode mudar e sendo feliz com as coisas como elas são. A prática desta filosofia vai ajudá-lo a alcançar um profundo sentido de libertação e de paz interior.
Sabedoria budista para vencer a ansiedade e alcançar a paz.
Um clássico sobre o pensamento oriental.
Título
Glória
Autora
NoViolet Bulawayo
Editora
Dom Quixote
Sinopse
É uma história contada por um coro de vozes animais, através do qual, nós, humanos, nos vemos com mais clareza.É a história do mundo e da sua frágil e esmagadora beleza.
Há muito tempo, numa terra abundante, os animais viviam felizes… E então chegaram os colonizadores e, com eles, uma sangrenta guerra. Do caos, porém, surgiu uma nova esperança. Um cavalo carismático tomou as rédeas do poder. Governou durante quarenta anos com a ajuda do seu grupo de Eleitos. Até que um dia, enquanto se sentava para tomar um chá Earl Grey e ouvir o seu programa de rádio favorito, chegou um novo líder, um novo regime. E mais uma vez os animais se encheram de esperança.
Glória conta a história de um país fictício, preso num ciclo tão antigo quanto o tempo. No centro do tumulto está Destino, uma jovem cabra que regressa à sua terra natal para testemunhar a revolução. A chegada de Destino desencadeia uma sucessão de acontecimentos que lembra aos habitantes – e a nós – que a glória da tirania só dura enquanto as suas vítimas o permitem. E que essa história pode ser interrompida a qualquer momento.
Finalista do Booker Prize e do Rathbone Folio Prize, e nomeado para o Women’s Prize for Fiction, Glória é o romance da consagração definitiva de NoViolet Bulawyao como pensadora e contadora de histórias.
Título
O povo é imortal
Autor
Vassili Grossman
Editora
Dom Quixote
Sinopse
Vassili Grossman escreveu três romances sobre a Segunda Guerra Mundial, cada um deles oferecendo uma visão distinta do que pode ser um romance de guerra, e cada um deles extraordinário.
Um conjunto comum de personagens liga Stalinegrado e Vida e destino, mas Stalinegrado não é apenas uma história comovente e emocionante sobre a crueldade do totalitarismo, é também um monumental memorial aos inúmeros mortos de guerra. Vida e destino, por outro lado, mais do que um romance é uma obra de filosofia moral e política, e a questão profunda que explora é se é ou não possível comportarmo-nos eticamente perante uma violência avassaladora.
O povo é imortal é algo completamente diferente. Passado durante os catastróficos primeiros meses da invasão alemã da União Soviética, esta é a história de um batalhão do exército enviado para travar o avanço do inimigo a qualquer custo, com o cerco e a aniquilação como fim prometido.
Uma estimulante história de resistência, O povo é imortal é o romance como uma arma na mão.
Título
Shy
Autor
Max Porter
Editora
Elsinore
Sinopse
Shy tem no seu currículo mais de onze chumbos e a expulsão de duas escolas. Agora está a fugir de Last Chance, o lar de acolhimento para «alguns dos mais perturbados e violentos jovens delinquentes» do país, a sua nova casa. Consigo leva apenas uma mochila carregada de pedras e o seu inseparável walkman. É noite funda, o caminho é solitário e assombroso, momento propício para puxar a cassete da sua curta vida para trás e ouvir dentro da sua cabeça as vozes dos seus professores, as súplicas da sua mãe e de todas as pessoas que magoou sem saber porquê.
Título
Autobiografia do doutor Oliveira Salazar
Autor
Carlos Ademar
Editora
Parsifal
Sinopse
Sentindo que o fim da vida se aproxima, perdido entre a lucidez e a perturbação e afastado do poder, um velho ditador dedica os dias que lhe restam a olhar para a história do país que governou com mão de ferro durante décadas, enquanto interpela a consciência sobre a sua pessoa e a justeza da sua conduta.
Que obra social construiu ou em que estado deixa as finanças públicas? Como defendeu o Império num mundo em mudança ou acalmou os militares, sempre ávidos de poder? Como teve de fingir amizades ou moderar uma Igreja sem ofender a Deus? Como combateu os inimigos ou quem poderia ameaçar o seu poder ou o seu prestígio? E qual o lugar que ocupará nos futuros manuais de História?
Resultado de uma exaustiva pesquisa e de um sólido conhecimento da História Contemporânea de Portugal, esta obra sintetiza o século XX e recria, em simultâneo, o mundo psicológico de um governante que durante quarenta anos foi habilmente modelando à sua imagem uma sociedade opressora e anacrónica, marcada por vícios privados e públicas virtudes.
Título
Lisboa maldita
Autor
Sérgio Luís de Carvalho
Editora
Parsifal
Sinopse
Este livro empreende uma viagem de mais de 500 anos ao lado mais desconhecido e trágico da cidade, ao longo da qual ficamos a conhecer os lugares de crimes e as suas formas de execução e desvendamos as histórias das vítimas, dos seus assassinos e dos seus carrascos.
Simultaneamente, analisaremos a evolução da aplicação da Justiça no seu combate contra o crime. Uma luta feita de avanços e de recuos, uma luta na qual a evolução das mentalidades – e da iluminação pública! – tiveram papel de relevo.
As histórias que aqui são contadas fazem parte da memória coletiva de todos nós, desde as derradeiras palavras que Sidónio Pais (certamente nunca) proferiu até aos assassinatos de D. Carlos e do Príncipe Herdeiro ou à conhecida execução do infame conde Andeiro. Afinal, o que há de verdade em muitos destes casos?
Uma longa viagem pelos homicídios mais marcantes da história de Lisboa, que tenta lançar alguma luz e algum esclarecimento em tantos crimes que ainda hoje causam espanto, rejeição e polémica.
Título
A verdadeira guerra – A invasão da Ucrânia e a defesa nacional portuguesa
Autor
Nuno Rogeiro
Editora
Dom Quixote
Sinopse
Uma visão panorâmica da invasão da Ucrânia e uma reflexão profunda sobre as suas consequências na defesa nacional portuguesa. A análise geopolítica, estratégica, tática e de Direito Internacional, a descrição pormenorizada dos aspectos técnicos da guerra, a revelação de factos desconhecidos a partir de documentos e testemunhos até agora confidenciais, o traçar dos cenários de evolução mais plausíveis, e o comentário detalhado sobre protagonistas, visíveis ou discretos
O primeiro livro sobre o conflito que engloba todas as evoluções e subterrâneos recentes.
Título
O Monte do Silêncio
Autor
Francisco Camacho
Editora
Dom Quixote
Sinopse
Diogo vive atormentado por duas tragédias, uma na infância e outra na adolescência, numa família da alta burguesia reconstruída por um tio que cultiva o segredo e a mentira. Os traumas do passado empurram-no para uma existência desregrada e sem rumo, em que os problemas de memória e os sentimentos de culpa o afastam cada vez mais da verdade acerca de si próprio e daqueles que o rodeiam.
Até que, numa manhã de setembro em que o sol brilha intensamente mas um horizonte negro anuncia a tempestade, o cadáver de Norma, a afilhada do tio sobre a qual pouco se sabe, é encontrado no cenário majestoso da Praia do Eco. Ao ver-se envolvido na morte de Norma, depois de um telefonema inesperado que o faz recuar aos tempos da juventude, Diogo inicia uma jornada de descoberta que o levará a pôr em causa a sua própria história e a desfazer os equívocos de toda uma vida.
Passado entre a Lisboa dos anos oitenta e os dias de hoje, em ambientes que ilustram um país feito de desigualdades e satirizam uma certa elite portuguesa ciosa das aparências, O Monte do Silêncio é um romance profundamente visual, com uma atmosfera de thriller psicológico e um enredo sinuoso que prende o leitor até à última página.
Título
Gabo e Mercedes: Uma despedida
Autor
Rodrigo García
Editora
Dom Quixote
Sinopse
Em Março de 2014, Gabriel García Márquez, um dos mais aclamados escritores do século XX, já velho e doente, apanhou uma constipação. «Desta não escapamos», disse Mercedes Barcha, a sua esposa de há mais de cinquenta anos, a Rodrigo, um dos seus filhos.
Estas páginas são a crónica mais íntima e honesta dos últimos dias de um génio, escrita com a espantosa precisão e o justo distanciamento de uma testemunha de exceção: o próprio Rodrigo. Vemos assim o lado mais humano de uma personagem universal e da mulher na qual reparou quando eram ainda crianças, que o acompanhou toda a vida e que apenas lhe sobreviveu uns anos, entremeado com recordações de uma vida irrepetível. A mais bela despedida ao filho do telegrafista e à sua esposa.
Agridoce e perspicaz, comovente e poderoso, Gabo e Mercedes – Uma despedida celebra o formidável legado dos pais de Rodrigo, oferecendo um olhar inédito sobre a vida familiar privada de um gigante literário. É, ao mesmo tempo, um presente para os leitores de Gabriel García Márquez e uma grande homenagem de um escritor que o conheceu bem.
Título
O próximo és tu
Autor
Arne Dahl
Editora
Dom Quixote
Sinopse
O terceiro volume da série Berger & Blom, um novo thriller, emocionante e sombrio, do multipremiado escritor sueco Arne Dahl. A vida do ex-inspetor Sam Berger ficou virada do avesso. É suspeito de assassínio e a sua colega Molly Blom, agente dos serviços secretos, encontra-se em coma.
Entretanto, uma ameaça terrorista impende sobre Estocolmo, e um assassino procurado está em liberdade.
Berger foge para o arquipélago de Estocolmo, onde aguarda por ordens do chefe da Unidade de Inteligência da Polícia de Segurança da Suécia.
Mas será ele a solução ou parte do problema?
Título
SAS – Heróis fora da lei
Autor
Ben Macintyre
Editora
Dom Quixote
Sinopse
No verão de 1941, no auge da Segunda Guerra Mundial, em África, no Deserto Ocidental, David Stirling, um jovem oficial aristocrata, entediado e excêntrico, apareceu com um plano radical e inteiramente contrário às regras: uma pequena unidade clandestina capaz de criar o caos na retaguarda das linhas inimigas.
Apesar de uma intensa oposição, Winston Churchill deu pessoalmente autorização a Stirling para recrutar os soldados mais duros, brilhantes e implacáveis que conseguisse encontrar.Assim começou o regimento militar mais celebrado e misterioso do mundo: o SAS.
Só 75 anos mais tarde decidiu o SAS contar a sua assombrosa história. Abriu pela primeira vez os arquivos, concedendo ao aclamado historiador Ben Macintyre acesso total a um valioso acervo de relatórios, memorandos, diários, cartas, mapas e fotografias nunca vistos, bem como carta-branca para entrevistar os envolvidos ainda vivos e aqueles que os conheceram.
O resultado é este livro universalmente aclamado: um relato empolgante de temeridade e heroísmo, ousadia e tragédia. A história de um grupo de renegados que assumiu riscos monumentais.
Título
O navio negreiro
Autor
Marcus Rediker
Editora
Saída de Emergência
Sinopse
Durante três séculos, os navios negreiros transportaram milhões de pessoas das costas de África até à América. Apesar do muito que já se conhece sobre a escravatura, pouco se sabe sobre estas embarcações e os seus passageiros. Através de uma investigação detalhada, Markus Rediker recria com pormenores assustadores a vida, a morte e o terror dos escravos – mas também das tripulações -, bem como o dia a dia nos navios e as doenças, motins e violência.
Apresentando histórias reais – como a do jovem raptado da sua aldeia e vendido como escravo por uma tribo vizinha, ou a do capitão que nutria um prazer sádico em manter o seu inferno particular -, Rediker relata a tragédia e o desespero, mas igualmente a coragem e resiliência de pessoas despojadas das suas vidas e dispostas a tudo pela sua liberdade.
Título
Milionários nazis
Autor
David de Jong
Editora
Saída de Emergência
Sinopse
Em 1946, Günther Quandt — patriarca do mais icónico império industrial da Alemanha — foi detido por colaborar com o regime nazi. Os tribunais absolveram-no, apesar da sua mentira ao afi rmar que teria sido forçado por Goebbels. Durante as gerações seguintes, os herdeiros de Quandt, e de outros milionários nazis, viram as suas fortunas crescer e os seus impérios expandir-se na economia globalizada, enquanto o ajuste de contas com esse passado negro permanece incompleto.
Nesta notável investigação, David de Jong revela a verdadeira história de como as dinastias empresariais mais ricas da Alemanha acumularam incalculável poder ao serem cúmplices nas atrocidades do Terceiro Reich. Utilizando fontes inéditas, o autor mostra como esses magnatas se apropriaram de negócios judeus, utilizaram prisoneiros de campos de concentração nas suas fábricas e produziram armamento para equipar o exército de Hitler enquanto a Europa era destruída ao seu redor. Mais chocante, como o oportunismo político da América permitiu que escapassem impunes dos seus crimes.
Título
50 códigos que mudaram o mundo
Autor
Sinclair McKay
Editora
Saída de Emergência
Sinopse
Desde os tempos mais remotos que os códigos secretos fazem parte das civilizações. Quase em simultâneo com a invenção da escrita, foram igualmente criadas formas dissimuladas de esconder mensagens e de as manter em segredo.
Nesta obra fascinante, Sinclar McKay explora códigos indecifráveis, mensagens ocultas e cifras secretas para narrar uma nova história do mundo. Dos templos da Grécia Antiga à corte de Isabel I, de manuscritos antigos cujos códigos labirínticos contêm profecias de perdição ao campo moderno da mecânica quântica, prepare-se para descobrir como algumas palavras escondidas podem mudar tudo: ajudar a vencer guerras, desencadear revoluções e até transformar a face de nações.
Para além de ser um guia completo sobre o mundo fascinante da criptografia, também lhe dá a oportunidade de testar as suas competências na descodificação de alguns dos enigmas mais complexos alguma vez criados.
Título
Caro idiota
Autora
Virginie Despentes
Editora
Elsinore
Sinopse
Da autora mais provocadora da literatura francesa, um romance atual sobre a violência das relações humanas.
Rebecca tem 50 anos, é uma atriz famosa e, embora se ache mais atraente do que nunca, começa a sentir na sua própria pele a discriminação da indústria cinematográfica. Oscar é um escritor só um pouco mais novo do que ela, cuja vida pessoal e carreira se encontram num caos ao descobrir-se no centro do mais recente escândalo MeToo. Zoé Katana, feminista e bloguista, é a jovem vítima que regressou do passado para finalmente ajustar contas com ele. Os três irão iniciar um diálogo tenso, por meio de chat, e descobrir como uma amizade improvável pode nascer entre pessoas que, à primeira vista, nada têm que ver umas com as outras, e como essa força desconhecida as pode ajudar a lidar melhor com as suas ansiedades, neuroses, vícios, complexos, vergonhas e medos
Regresso aguardado e festejado de Virginie Despentes, Caro idiota é um romance epistolar dos nossos tempos que aborda temas e episódios atuais, um livro de raiva e consolo sobre a violência das relações humanas e sobre as posturas ideológicas às quais estamos agarrados, mesmo quando há muito deixaram de nos fazer compreender não só a realidade mas também a velocidade e irreversibilidade da mudança.
Título
A voz das mulheres
Autora
Miriam Toews
Editora
Alfaguara
Sinopse
Inspirado em factos reais, o livro que deu origem ao filme homónimo, vencedor do Óscar de Melhor Argumento.
Certa noite, oito mulheres menonitas reúnem-se num celeiro para um encontro secreto. Nos últimos anos, mais de uma centena de mulheres pertencentes à mesma comunidade foram repetidamente violadas durante a noite por demónios que as castigavam pelos seus pecados. A terrível verdade, contudo, é que os abusos eram perpetrados a partir de dentro, da sua própria colónia. Depois desta descoberta, decidem proteger-se, e às suas filhas, e pôr fim aos abusos.
Quando os homens se ausentam da colónia, estas mulheres, todas iletradas e incapazes sequer de falar a língua do país onde vivem, terão de fazer a escolha mais difícil: permanecer no único mundo que conhecem ou arriscar a fuga para o desconhecido e a liberdade.
Miriam Toews, baseando-se num episódio verídico, conta-nos uma história plena de aspereza e comoção: uma fortíssima experiência de superação e fraternidade, de combate pelo poder de decidir o próprio destino e de afirmação do lugar próprio das mulheres.
Título
Zuckerman libertado
Autor
Philip Roth
Editora
Dom Quixote
Sinopse
O segundo romance da trilogia e epílogo, Zuckerman acorrentado, quatro narrativas distintas – O Escritor Fantasma, Zuckerman libertado, A lição de anatomia e a orgia de Praga – ligadas por um fio condutor: o escritor Nathan Zuckerman.
Em Zuckerman libertado, Nathan Zuckerman, um pretenso eremita apesar da sua fama recentemente conquistada como escritor de sucesso, afasta-se dos seus amigos mais antigos, rompe o seu casamento com uma mulher virtuosa e compromete, de forma talvez irreparável, a sua afetuosa relação com o irmão mais novo… e tudo isto por causa da sua grande sorte.
Título
Cidade da Vitória
Autor
Salman Rushdie
Editora
Dom Quixote
Sinopse
Na sequência de uma batalha menor entre dois reinos do Sul da Índia do século XIV, há muito esquecidos, uma rapariga de nove anos tem um encontro divino que irá alterar o curso da história. Depois de assistir à morte da mãe, Pampa Kampana, torna-se o veículo de uma deusa, que começa a falar pela boca da rapariga. Concedendo-lhe poderes que estão para lá da compreensão de Pampa Kampana, a deusa diz-lhe que ela será determinante no surgimento de uma grande cidade chamada Bisnaga – a cidade da vitória -, a maravilha do mundo.
Ao longo dos 250 anos subsequentes, a vida de Pampa Kampana virá a estar profundamente interligada à de Bisnaga. Conferindo existência a Bisnaga e aos seus cidadãos por meio de sussurros, Pampa Kampana tenta levar a cabo a tarefa que a deusa lhe confiou: dar igual representação às mulheres num mundo patriarcal. Mas todas as histórias têm tendência para fugir ao seu criador, e Bisnaga não é exceção.
À medida que os anos passam, que os governantes surgem e desaparecem, que as batalhas são perdidas e ganhas e as fidelidades mudam, o próprio tecido de Bisnaga torna-se uma tapeçaria cada vez mais complexa, com Pampa Kampana no centro.
Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores
CLARA PINTO CORREIA traz-nos, em directo de ESTREMOZ
O DERRADEIRO EPISÓDIO DE UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO
Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira
“O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano
Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,
in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)
“Porque enfim, fossem francos: que tinha ela? Não queria dizer mal da pobre senhora,mas a verdade é que não era uma amante chique; andava emtipóias de praça; usava meias de tear; casara com um reles indivíduo de secretaria; vivia numacasinhola, não possuía relações decentes; jogava naturalmente o quino, e andava por casa desapatos de ourelo; não tinha espírito, não tinha toalete… que diabo! Era um trambolho!”
Eça de Queirós
O PRIMO BASÍLIO
1878
Entretanto, muito longe das emoções funéreas que sacudiram o País Profundo, Alexandre Noronha esteve dois meses em Paris que fizeram dele um homem novo. Passou-os, por via de financiamentos mal explicados[1], em animada confraternização com Marine LePen. Estudaram juntos as estratégias publicitárias que podem realmente funcionar para que a extrema-direita consiga chegar ao poder com uma maioria digna desse nome[2]. De vez em quando, como que por acaso, André Ventura passa pelo Centro de Trabalho do RASSEMBLEMENT NATIONAL[3] para se obterem imagens que mostrarão como estes dois grandes partidos, representantes dos insatisfeitos que querem mudar qualquer coisa mas não querem nem saber como é que se muda o quê, têm comportamentos e valores semelhantes, sem que nenhum deles precise de fazer qualquer esforço nesse sentido[4]. Passam os três vários dias e noites juntos, cimentando as raízes de uma verdadeira amizade[5]. Como o tempo requerido por este tipo de operações é indefinido por natureza, ninguém sabe quando regressarão a Lisboa, nem no Partido nem lá em casa. Quando, finalmente, os dois homens se instalam confortavelmente na Executiva para a viagem de regresso a Lisboa, Alexandre considera as vantagens desta indefinição e tem uma inspiração súbita.
“Ó Ventura”
“Hm?”
“Já estavas a dormir?”
“Eu sou como Deus, palerma. Não durmo.”
“Mas sentes-te tão estafado como eu?”
“É possível.”
“E saturado de tanta alta política?”
“Isso podes crer.”
“Então faço-te uma proposta indecente?”
“Força.”
“Estás a ver aquela minha amante incrível que vive em Estremoz, a Bloody Mary?”
“Só me falta mesmo é vê-la em pessoa, homem. Passaste este tempo todo a falar dela. Até contaste algumas histórias picantezitas à Marine, não te lembras? Uma imprudência, eu bem te avisei, porque em princípio devemos defender o matrimónio.”
“Olha que história, ela também só tem de defender o matrimónio em princípio. É muito diferente de defender seja o que for em actos, e mesmo em omissões”
“Está bem, lá a missa a metade tu sabes. Agora, com a Marine… grande mulher, heh? Uma verdadeira figura de estilo… com a Marine, dizia eu, por acaso tivemos sorte. Mas não te esqueças que foi por acaso.”
“Olha olha, não foste tu que defendeste publicamente o casamento gay?”
“Não me lixes, eu apenas disse que ser homossexual não desvaloriza ninguém em nada, incluindo a capacidade de combate político, e que havia gays talvez até entre os nossos dirigentes e certamente entre os nossos apoiantes. E mais acrescentei que queria que tudo continuasse a ser assim, e que, se tivesse um filho homossexual, respeitaria sempre isso.”
“Ah pois. E era isso mesmo é que eu queria ver.”
“Pois, mas tudo isso era, mesmo, uma questão de princípios. A Comunicação Social é que fez um circo excessivo com tudo o que eu disse, que aliás é o que eles fazem sempre. E que façam, porque somos sempre nós quem ganha com isso.”
“Não é só a Marine. A tua retórica também há de ser lembrada nos manuais de figuras de estilo.”
“Há maneiras bastante piores de se ser lembrado.”
“Pois é, a tua lata também não será esquecida.”
“Olha meu filho, e a tua proposta indecente, já agora? Se não queres que seja esquecida, explicas-me de que consta?”
“Ah, então ouve-me esta com atenção. Não temos ninguém à nossa espera, certo?”
“Certo. Em princípio, pelo menos.”
“Então vamos tirar partido disso.”
“Que género de partido, se ninguém consegue sequer perceber o que é que quer oCHEGA?
“Homem, desliga. A minha proposta é mesmo essa, desligarmos. Assim que chegarmos alugamos um belo Volvo preto, dos automáticos, logo ali na Hertz, que eu ofereço, ouviste? Tenho um cartão de descontos. Arrumamos todas as nossas coisas na caixa de forma a não serem vistas de todo. A seguir, despimos os blasers, enrolamos as mangas das camisas, e afrouxamos o nó da gravata, porque seguimos logo para Estremoz. Hm? Que te parece? Hás de ver bem a lasca que eu ando a comer, e de caminho apresento-te as tais estilistas de Badajoz com quem andei a tomar banho todo nu nas piscinas das pedreiras.”
“Mas essa lasca que tu andas a comer não é casada?”
“Pois, coitada, é casada com uma corrente de ar. Um reles indivíduo de secretaria que foi para a Europa por um ano inteiro fazer uma Comissão de Serviço de tradução simultânea. Só lá está uma sopeira velha, tão indignada com o comportamento do marido que se pôs incondicionalmente do lado da mulher.”
“Então e as espanholas? Nem um namorado, nem coisa nenhuma?”
“Nada que eu tenha visto, pelo menos deste lado da fronteira. E eu não disse nada sobre irmos a Badajoz.”
“Mas são duas.”
“Homem de sorte. Podes ficar só com uma, ou então curtirem todos juntos! Que barbaridade!, estas espanholas quando soltam as feras e caem na dança! E depois havemos de parar todos juntos no caminho, no sopé do Castelo, porque o dono desse tasco é um grande simpatizante nosso chamado Bruno[6], que faz as melhores bifanas deste mundo. Mas o melhor no Bruno, melhor até que as bifanas, ainda são os passarinhos na chapa… assim, naquela esplanada enorme, com aquela vista das muralhas ao fim do dia… vêm para a mesa com batata frita, salada, pickles, vinho verde gelado daquele bem seco… não há lá nenhum requinte, mas aqueles passarinhos… com umas fatias de queijos do cardo duras como cornos… e umas azeitonas…[7]”
“Pára. Pára, pelo amor de Deus. Vais comer isso tudo, e depois ainda vais comer a tua Maria Alice, que tu não páras de dizer que é uma verdadeira serpente na cama, e a seguir vais o quê, vais achar que não houve nada que justificasse o teu AVC?”
“Então, amigo. Dramático e rústico, como na Assembleia? Eu não sou a Assembleia, boa? Eu, por mim, devoro a rapariga assim que ela me aparecer no corredor, com aquelas suas roupas transparentes e o cabelo solto ao vento[8]. Estremoz é muito ventoso, já te disse[9]?”
“Então e eu? Vou para a retrete ler o POLE POSITION[10] e babar-me todo com aquelas garotas em fio dental que estão sentadas em cima dos novos Fórmula Um?”
“Não, que eu sou solidário. Exponho o teu caso ao Bruno, e, ao fim de dez minutos, ele já vem apresentar-te las hermanitas de sangre. Queres mais?”
“Não,” responde André Ventura. “Mas quero é isso tudo já[11], pela tua rica saúde.”
Algumas horas mais tarde, a casa de Maria Alice aparece ao fundo das duas fileiras frondosas do laranjal que se estende ao longo da rua, linda, majestosa, frutuosa como a melhor das promessas. O carro da beldade escaldante de que Ventura tanto ouviu falar não se encontra mal estacionado em cima do passeio fronteiro ao edifício, o que parece indicar que foi devidamente guardado na garagem – o que, por seu turno, sugere desde logo que a grande amante está mesmo em casa. Animados e expectantes, os dois amigos já vão quase a chegar à entrada quando Josefa lhes aparece pela frente. E, desta vez, não traz minimamente um sorriso deliciado no rosto. Muito pelo contrário, barra-lhes a passagem de enxada na mão, furiosa, indignada e justiceira, saída num rompante colérico da porta da cozinha, que bate atrás de si com estrondo.
“Sai-me daqui, ordinário!”, grita ela, fora de si, para Alexandre Noronha. “E de futuro pára de tratar as mulheres todas como se fossem umas putas, que ao menos às putas vocês têm de pagar!”
“Ó minha queridaJosefa, Santo Deus, porque é que estás a tratar-me assim?”” pergunta Alexandre Noronha, estarrecido tanto por aqueles modos inusitados da velha senhora como por toda a cena decorrer mesmo à frente do seu líder espiritual. “E a Maria Alice? Onde está a Maria Alice? Assim que aterrámos em Lisboa viemos a correr ter com a Maria Alice.”
“Então olha,” responde a velha serviçal, com o rosto rubro de cólera, roída de saudade e de remorso, e ainda amargurada com o desaparecimento súbito dos vinte mil paus que ia embolsar graças à sua manobra brilhante de chantagem. “Vai a correr ter com o Diabo que Te Carregue, que a nossa querida menina já foi para o Céu, onde vomecê, ó Noronha, vomecê nunca há de entrar, sua besta. Foi vomecê quem lhe deu cabo do coração. Tanto amor, tanto amor, e depois chegas cá e baldas-te que nem uma porra de um paneleiro de um cabresto[12].”
“Então afinal tu não andaste a comer a gaja?”, sussurra André Ventura, interdito.
“A velhota é doida,” sussurra Alexandre Noronha de volta. “Deixa-me falar com ela. Josefa, ó Josefa, sabes, eu digo-te a verdade,é que eu estava muito nervoso com o discurso que ia bombar a seguir num encontro do CHEGA aqui perto…”
“Olha lá, também não era assim tão perto como isso,” corrige André Ventura em mais um sussurro, sentindo-se agora deveras confuso.
“Não houve nenhum encontro do CHEGA aqui perto naquela altura, ó seu tratante”, atalha Josefa, confirmando sem sequer dar por isso o murmúrio de Ventura. “E, mesmo que houvesse, a Menina nunca iria lá contigo. Aquela mulher não estava à venda, seu maricas. Não estava nem podia estar, porque não tinha preço. E tu, sim tu, foste tu que a mataste, quando fugiste daqui sem chegares sequer a entrar em casa. Nem um duche tomaste, ó procalhão[13]. Chinga tu madre, perro desgraciado[14]!”
“Mas então, espera aí. Tu bazaste sem comer a gaja, foi?”, volta a sussurrar André Ventura.
“A velha não bate bem, já te disse. Sei lá que história é esta. Espera aí que eu vou falar-lhe ao sentimento. Josefa, ó Josefa…Josefa, pelo amor de Deus, entende-me! Eu queria levar a Maria Alice ao nosso Encontro sem ela saber para onde íamos, queria que ela sentisse imenso orgulho em mim. Mas depois, quando já estávamos na praia, eu quanto mais pensava nisso tudo mais me enervava…”
“Mas se dessa vez bazaste sem chegar a comê-la como é que depois andaste a comê-la?”, insiste Ventura, ávido de esclarecimentos[15].
“Ainda por cima,” continua Noronha, firme no seu posto, “mesmo em cima da hora, a minha mulher decide que vai mandar a nossa filha arranjar-se como uma pessoa normal, e que vão as duas ter comigo à festa! Diz lá, tu não fugias, se tudo isto se passasse contigo?”
“Mas a Gi sempre esteve no alinhamento para falar nesse Encontro, não foi aquele sobre tirar os ovários, que…?”, recomeça a murmurar André Ventura, ainda honestamente incapaz perceber ao certo o que é que se passa[16]. E, virando-se para a pequena multidão que se vai juntando para gozar bem o espectáculo, ainda acrescenta,
“Como talvez saibam, eu, por mim, sempre disse que, eticamente, compreendo e sou contra o aborto, mas que não vou propor a sua criminalização, porque isso não funciona, e não resolve nada. Compreendo que a maioria no partido ache que o aborto deva ser crime, assim como o Alexandre e a Gi acham, por exemplo. Mas, pessoalmente, essa postura choca-me enquanto jurista e político.”
Nem consegue palestrar todas as declarações que tem a fazer até ao fim, porque assim que Josefa escuta as palavras “tu e a Gi”, seguidamente consubstanciadas por um “o Alexandre e a Gi” destinado à geral, explode numa fúria ainda maior, que a faz agitar ainda mais a enxada mesmo em frente do rubor que alastra nas faces de Alexandre Noronha.
“Tu e Gi! TU E A GI! Com que então! E entretanto dizias à Menina que eras divorciado, ou se calhar não dizias, grande invertido?”
“Íamos divorciar-nos, Josefa, por favor, acredita em mim…”
“Mas tu e a Gi não foram falar juntos àquele Encontro das Famílias, para se apresentarem oficialmente contra o divór…”
“Aaah!”, grita de súbito André Ventura ao mesmo tempo que bate com a mão na testa, extremamente aliviado por ter, finalmente, compreendido o estranho enredo que se desenrolava à sua frente. E, já sem se preocupar sequer com a minudência de baixar a voz, mede Alexandre Noronha de alto a baixo como se estivesse a vê-lo pela primeira vez, dá-lhe uma palmada nas costas, e felicita-o com entusiasmo.
“Grande tanguista, pá. Bravo. Bravo! Olha que nem eu sei se era capaz.”
“Não sou tanguista!”, protesta Alexandre, que se sente cada vez mais compenetrado do papel que atribuiu a si próprio, assim como se sente cada vez mais desconfortável com a proximidade da enxada de Josefa. “Fui fraco, Josefa, fui muito fraco, sim, confesso –[17] mas a minha fraqueza não faz de mim um tanguista. Paniquei e fugi[18]. Pronto. Fugi de Estremoz para Faro, e depois de Faro para Paris. E, por sorte, aqui o meu grande amigo André Ventura estava no mesmo avião que eu[19], de maneira que assim que chegámos ele apresentou-me à Menina Le Pen[20], e olha, a verdade é que ao fim de quinze dias ela até já me falava em casamento, e por isso eu enquanto lá estava não podia…”
“Cala-te, cigano, e a tua mulher que te ature! A Menina a sonhar com o vosso dia na praia, e tu achavas o quê, achavas mesmo que ias arrastá-la para festivais populistas? Cigano! Grande cigano! Sai daqui, cigano!”
“Festivais populistas” não é de tradução fácil para toda a gente. Mas, ao chamar cigano a um dirigente do CHEGA, Josefa atinge tais píncaros de inspiração que a assistência, cada vez mais numerosa, grita, ri, bate palmas, e, ainda insatisfeita, incita a velha senhora a subir mais a fasquia com expressões de encorajamento tais como o várias vezes repetido,
Ao mesmo tempo, e com a participação da PSP que entretanto alguém chamou à cena dos acontecimentos, inicia-se um debate inconclusivo sobre se aquele bacano que está ali ao lado do panasca é ou não é o André Ventura propriamente dito. Não é por maldade, e muito menos por ignorância – é mesmo que esse senhor é a cara chapada de largas centenas de outros senhores, todos eles vestidos da mesma forma para aumentar a confusão.
Perante todas estas circunstâncias totalmente inesperadas, mas potencialmente hostis, o André Ventura propriamente dito percebe logo, e antes de mais nada, que se arrisca a ser chamado à esquadra para prestar declarações. Toma, portanto, as suas medidas preventivas habituais. Tira do bolso de trás das calças dois comprimidos de Diazepam de 10mg, que põe a derreter debaixo da língua[22]. A rapidez do gesto fala por si. É evidente que, depois de ter aprendido o truque com o Ricardo Salgado em pessoa[23], o líder do CHEGA já passou muitos anos a virar frangos no domínio de exorcizar pânicos em particular e controlar emoções adversas em geral. Alexandre Noronha, que registou a manobra pelo canto do olho, percebe logo a que é que aqueles comprimidos se destinam, agarra velozmente noutros dois, e engole-os com tanta pressa que quase se engasga[24]. Entretanto Josefa continua a bradar em altas vozes, atraindo cada vez mais vizinhança.
“Desaparece, assassino. Agarra no teu amigo, voltem por donde vieram, e nunca mais se atrevam a cruzar sequer o portão da minha horta. Esta casa está amaldiçoada, toda a gente anda de luto, ninguém come nem dorme, o cãozinho da Menina uiva todo o dia e toda a noite, e na Lua Cheia as teclas do computador dela mexem-se sozinhas, porque o seu pobre espírito ainda está a tentar escrever-te mais uma carta, maldito excomungado que hás de arder no Inferno para toda a Eternidade. JÚNIOR! Ó JÚNIOR, vem cá, anda. Anda, que temos aqui dois melgas daqueles mesmo bons para tu pores na rua.”
Bem treinado e sempre obediente, e sobretudo muito satisfeito por ter alguma coisa vistosa para fazer[25], Júnior entra subitamente em cena com dois ou três saltos pneumáticos, pára, deixa pender a língua entre os dentes destituídos de simpatia, e começa a rosnar num tom puxado do fundo de uma caverna assustadora. Por fim eriça o ridgeback, agita a cauda rente ao chão exactamente como um leão faria, deixa pingar as primeiras gotas de saliva, e crava os olhos nos dois visitantes. A seguir começa a aproximar-se lentamente, com pequenos passos felinos.
Um segundo mais tarde os dois amigos já estão no carro, a fazer marcha-atrás para sair dali depressa.
“Santo Deus,” suspira André Ventura, tentando recompôr a roupa, que ficou toda em desalinho. “Mas que mulherão, pá. O cão é capaz de ser jogo a mais, mas a velha aproveita-se já. Aquela é que ficava bem na segurança dos nossos comícios. Ou podíamos usá-la para um debate. Com voz do povo e tudo. Não achas?”
“Hm,” responde Alexandre, de olhos cravados na estrada.
Nessa altura Ventura contempla-o, compreensivo.
“Então… pelos vistos, agora… eh pá, de modo que estás sem mulher[26], não é?”
Noronha até puxa o travão de mão[27], e acto contínuo deixa o carro ir-se abaixo, para poder gesticular mais e dar melhor vazão à sua fúria justiceira.
“Pois estou,” brada ele aos quatro ventos. “Estou completamente sem mulher, só me lembrei agora que as estilistas espanholas são menores de idade, e apetece-me fazer tudo menos ir para casa.Mas que ferro, menino, que ferro. Deixei as bases cobertas por mais uma semana para conseguir espairecer. E agora? Se vinha directamente de Paris, ao menos trazia a Alphonsine.[28]”
Fica momentaneamente em silêncio, dá dois ou três murros no volante, e ainda repete mais uma vez, com a entoação de quem põe o ponto final numa história,
[1] É quase uma redundância, mas vale pelo seu alerta pedagógico. Vivemos num tempo em que quase todos os financiamentos tendem a ser mal explicados.
[2] Para seguidamente abolir o direito de voto, como pareceria evidente a quem porventura pensasse nisso.
[3] Ai não sabiam? Pois fiquem a saber. Como parte da “des-demonização da Frente Nacional“, com o objectivo de suavizar a sua imagem, a herdeira da dinastia Le Pen mudou o nome do partido de Front National para Rassemblement National. Até que ponto Alexandre Noronha foi influente nestas precauções é matéria ainda hoje imperscrutável.
[4] Não esqueçamos que foi André Ventura quem defendeu, lapidarmente, ser a orientação do CHEGA “uma lógica antissistema, que é uma classificação mais adequada do que extrema-direita, extrema-esquerda, esquerda, direita”.
[6] Limpe-se finalmente a honra do Bruno, que o homem não é simpatizante do CHEGA coisíssima nenhuma. Segredava histórias desconcertantes ao ouvido da Maria Alice apenas para a picar enquanto dançavam juntos, e ela deixava-se picar com todo o gosto. O telemóvel dele até faz soar a GRÂNDOLA sempre que toca. E toca bastante. Como já vimos anteriormente, o Bruno é uma pessoa muito solicitada.
[7] Claro que Alexandre Noronha não sabe nada disto por experiência pessoal. Sabe o que Maria Alice lhe descreveu com grande felicidade nas suas cartas de amor, e tanto basta.
[8] Mera conversa de homem. Não tem absolutamente nada a ver com a forma como Noronha fugiu da Praia dos Montejuntos, disse que tinha que ir para Lisboa, e desapareceu numa grande nuvem de poeira. Imaginem que, em vez de se remeter ao silêncio, ele dizia para a amante que ainda não o era: “E agora, querida, espera por mim até às cinco da manhã porque eu vou para a praia fazer o grande discurso da festa-comício do CHEGA, onde a minha mulher e a minha filha se juntarão a mim, portanto não posso levar-te.” Enfim, esta versão podia até ser verdadeira, mas claro que era muitíssimo mais difícil de engolir. Para os dois.
[9] Até a grande ventania de Estremoz é matéria que Noronha só conhece por ouvir-dizer, dado que no dia de má memória em que foi e veio não corria uma única aragem sob o céu escaldante do mês de Agosto, tal como é próprio do dito mês.
[10] Tanto quanto se sabe, esta revista não existe a não ser na imaginação de André Ventura. E não é nada má ideia, esta das miúdas em fato de banho todas pausadas por cima do dernier cri da Fórmula Um.
[11] Concordância não propositada. Claro que este personagem ignora os slogans mais imorredoiros do Mai 68. Aliás, Mai 68? Que merda é essa, Mai 68? Eu já nasci depois da morte do Salazar, se é isso que querem saber.
[12] Qualquer coisa “de um cabresto”: partícula enfática regional de simbolismo e métrica extremamente úteis no que toca a trocar galhardetes.
[13] Ao contrário de Bruno e Maria Alice nas suas animadas brincadeiras de antanho, Josefa faz uso do termo procalhão sem intentar surtir qualquer efeito cómico. Intentar foi bem escolhido, ou foi impressão minha?
[14] Já vimos que o amor nos oferece dotes de oratória que de outra forma não teríamos. Além disso, numa cidade quase encostada a Badajoz, é normal que toda a gente fale espanhol, sobretudo no que se refere a insultos e palavrões.
[15] Note-se que esclarecimentos deste teor podem sempre vir a ser de grande utilidade na vida de um gajo. E nunca se sabe quando, portanto convém, de facto, pedir imediatamente o esclarecimento em questão.
[17] Travessão aqui atribuído, após uma longa ausência, ao seu legítimo utente.
[18] Já alguém conheceu algum homem que, mais cedo ou mais tarde, não tenha recorrido à expressão “paniquei” – como se isso justificasse alguma coisa? Este foi um bom travessão.
[19] André Ventura começa, instintivamente, a dizer que sim com a cabeça.
[20] André Ventura estuda esta narrativa surpreendente sempre a dizer que sim com a cabeça, maravilhado.
[21] “TU FAZES OITOS”: forma sintética da expressão “fazer oitos com pernas de noves”, destinada a ter maior acutilância, no sentido de encorajar as loucuras de quem está a fazer os oitos em causa. A mim disseram-me isto pela primeira vez quando, aos dezoito anos acabadinhos de fazer, logicamente ainda sem carta, guiei um camião de uma ponta à outra de Aljustrel e desta forma expus diversos inocentes a sérios perigos. Os meus amigos da minha idade, que me tinham incitado a guiar o dito camião, deliraram com o espectáculo. Repisando o que já se discutiu antes, quando não há nada mais interessante para fazer…
[22] Estes fármacos controladores do pânico são geralmente inseridos pelos poderosos no bolso interior do blaser, mas recorde-se que os dois amigos optaram por comparecer em Estremoz sem blaser, e com as mangas das camisas enroladas.
[23] O recurso do Banqueiro ao truque do Diazepan, ou do Alprazolan, conforme a medicação disponível lá em casa, já era vox populi entre os seus pares da Banca antes do fim do Milénio. Naquele tempo, pelo menos, andavam todos com dosagens maiores ou menores de XANAX, ou de VALIUM, ou mesmo de VITAN, dentro do bolso da camisa. Os genéricos ainda não existiam, pelo que o expediente se disfarçava com maior dificuldade. A repetição constante da prática, no entanto, costumava tornar a manobra virtualmente invisível. Esta invisibilidade pela repetição, pelo menos, ainda hoje se mantém.
Apreciem bem as coisas que eu sei.
[24] Ao contrário de André Ventura, este seu subalterno é um principiante.
[25] Mudar de lado da casa de manhã para a tarde, procurando a sombra no Verão e o sol no Inverno, assim como jazer no corredor e por junto bater com a cauda no chão se alguém se aproxima, não são actividades vistosas. E muito menos para um Leão da Rodésia.
[26] Parafraseando o final de O PRIMO BASÍLIO, de Eça de Queiroz.
[27] Não estava nenhum Volvo preto automático disponível na Hertz do aeroporto.
[28] Parafraseando a última frase de Basílio ao saber que Luisinha morreu, em O PRIMO BASÍLIO, de Eça de Queizoz.
[29] Frase final deste folhetim e, originalmente, do romance O PRIMO BASÍLIO, de Eça de Queiroz.
Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores
CLARA PINTO CORREIA continua a trazer-nos, em directo de ESTREMOZ
UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO
Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira
“O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano
Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,
in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)
Estamos nas Urgências do Hospital de Évora, onde uma jovem noviça solitária contempla, enlevada, a imagem quase sacra de serenidade que emana do rosto inconsciente de Maria Alice. E acrescente-se, desde já, que não é só esta noviça quem tem os olhos presos naquela doce visão. Quem quer que esteja na Sala de Espera das Urgências do Hospital de Évora pode olhar para Maria Alice todo o tempo que quiser, com toda a atenção que sentir, e seja por que razões for. Os bombeiros encostaram a maca à parede, registaram a entrada e os sintomas da bonequinha[1], bateram no ombro do Bruno à despedida, e o Chefe até lhe disse “bon courage”. E depois, cumprida a sua missão, foram salvar vidas para outro lado[2]. Maria Alice está de pulseira vermelha, mas isso parece não impressionar minimamente a burocracia que rege as Urgências. A sua respiração começou a ficar de tal forma entrecortada que Bruno teve que salvá-la duas vezes por boca-a-boca. Como neste momento já toda a gente viu demasiada televisão, os restantes doentes ali aquarteladosà espera de vez, partem do princípio de que estão a ser figurantes inadvertidos de um reality show de hospitais, pelo que observam as manobras todas em silêncio, tentando apenas compor mentalmente o protesto com que aproveitarão para espernear contra a destruição do Serviço Nacional de Saúde quando aparecerem as câmaras, os microfones, os megafones, as marcas de take, e a miúda gira, muito mamalhuda, que costuma apresentar aquelas coisas.Mas, por muito que o tempo passe, a verdade é que nunca aparece ninguém.
Quem finalmente parece ter registado a ocorrência, saindo da porta de um dos gabinetes mais ao fundo do corredor, é uma jovem médica que parece estar antes a sair de um sonho, de longos cabelos quase negros e muito lisos, lindíssima e cansadíssima, que indica com o queixo aos auxiliares de serviço qual é a maca que deve entrar pela sua porta, confirma se Bruno é mesmo o companheiro da paciente[3], depois do que o segura pelo cotovelo e o conduz, também ele, para dentro do gabinete. Este é um espaço minúsculo, que fica imediatamente sobrelotado[4]. Uma das duas meninas que ali estão a estagiar corre a fechar a porta à chave, enquanto a outra consulta o relógio e indica à médica de sonho que são duas e trinta e cinco da manhã.
A médica insere vários dados no seu PC.
“Bruno,” diz-lhe ela, carinhosamente. “Nada é disto é fácil, seja para quem for. No entanto, já percebi que o Bruno é um homem muito corajoso e sólido como um rochedo, portanto, por favor, ajude-nos a fazer tudo bem.Não teremos muito mais do que quinze minutos para registarmos a certidão de óbito da sua companheira.”
Certidão de óbito.
Agora é Bruno quem gagueja, treme, e se desfaz em suores frios. A estagiária mais roliça, muito bronzeada e com o cabelo cheio de tererés, com todo o ar de quem acaba de chegar de umas merecidas férias na Meia Praia, abraça-o por trás para lhe dar coragem. Sendo verdade que há alturas para tudo, Bruno nem sequer equaciona a possibilidade de engatá-la assim que a ocasião se proporcione[5].
“Mas ó doutora… A certidão de óbito… Isso não é só quando a pessoa morre?”
“A sua companheira morreu ali no corredor, Bruno.”
“Mas ó doutora… Não pode ser… Uma rosa brava que não tem medo de nada e vende saúde… Doutora, por favor… a Maria Alice morreu de quê?”
A médica linda nem hesita. As estagiárias confirmam tudo acenando com a cabeça. Nenhuma delas está, sequer, a protestar. Estão todas, apenas, completamente esgotadas. Esgotadas de não dormirem, esgotadas de não conseguirem sequer ir a casa, esgotadas de tentarem tudo o que está ao seu alcance para salvar as pessoas numa guerra de nervos em que a grande tendência é para perderem batalha atrás de batalha. Ontem foi um puto de catorze anos com uma fractura exposta do fémur que já estava demasiado infectada para retaliar. Hoje é Maria Alice, que no entanto vendia saúde. Amanhã não sabem quem será nem como, mas já sabem que voltará a ser um destes desastres, que são completamente demolidores porque era muito fácil evitá-los.
“Doutora… por favor, ao menos explique-me o que foi que aconteceu. A Maria Alice… ela morreu de quê?”
“A Maria Alice morreu de estar demasiado tempo à espera, Bruno. Deixaram-na morrer, se quer que eu seja franca. Não há enfermarias, não há quartos, não há camas, as pessoas estão a fazer cirurgias com anestesia local deitadas em macas logo ali na Urgência, portanto sabe o que é que eu acho?”
As duas estagiariazinhas frescas e mimosas perfilam-se por trás da cadeira da médica, trocam um sorriso entre si, depois do que ambas sorriem ao Bruno, e a seguir dizem, muito bem coordenadas,
“A doutora Mafalda acha que a administração faz os possíveis para que todos os dias morra gente que está de pulseira vermelha na sala de espera, porque assim sempre se ganha mais espaço e se dispõe de mais equipamento.”
Bruno sente-se a única pessoa normal num mundo de doidos.
Foi exactamente isto o que aconteceu à outra Alice, a princezinha britânica do País das Maravilhas, a partir do momento em que caiu no buraco do coelho. É interessante verificarmos que um gajo espadaúdo das bifanas como o Bruno partilha aqui este mesmo sentimento, porque, em geral, quem está sempre a sentir-se a única pessoa normal num mundo de doidos são as mulheres, sobretudo quando ainda não conseguiram contar a outra mulher o que foi que lhes aconteceu. Os homens tendem antes a andar para aí a empatar o trânsito, a ocupar o espaço, e a gastar o Oxigénio, porque estão sempre a sentir-se como autênticos monarcas destronados. Sendo assim, a comparação que melhor se lhes aplica é com o que aconteceu ao Hamlet.
Mas, neste momento, um homem como o Bruno até já está a começar a ver o sorriso perverso do Gato de Cheschire.
“Mas a doutora, desculpe, eu não sei –[6] mas não podia mesmo ter ido tratar dela ao corredor?”
Mafalda encolhe os ombros, e sorri um sorriso triste.
“Olhe Bruno, e para que conste: ainda na semana passada fomos as três expulsas do corredor porque tentávamos fazer isso mesmo diante de toda a gente. Não há vontade política, entende? Não há vontade política para nada que não seja deixar morrer as pessoas e depois passar-lhes uma certidão de óbito toda maravilhosamente floreada. Compreende bem o que eu estou a tentar dizer-lhe? É que eu, neste momento, e por esta causa, até já estou disposta a dar a cara.”
“Ó filha,” pensa o cérebro rápido de Bruno, pelo meio do terrível desgosto que vai no seu coração. “Eu cá, se tivesse uma carinha laroca como a tua, estava sempre disposto a dá-la que era um gosto.”
“É que teria sido muito fácil desinfectar a ferida e dar-lhe uma transfusão de sangue para irmos ganhando tempo, mas nós…”
Roda os braços elegantes para mostrar a Bruno o equipamento velho, o pó sobre todos os papéis, a caliça a desfazer-se nas paredes, o som do caruncho na madeira – [8]e, finalmente, conclui,
“… nós já quase não conseguimos atender ninguém. Fazemos turnos de dezoito horas, mas só recebemos metade do ordenado, porque sabe como é, não há nenhuma alocação planeada das verbas, não há nenhuma distribuição generalizada de custos e ganhos, não há… olhe, muitas vezes não há sangue, e nestes últimos dias nem sequer houve morfina. A sorte da sua companheira foi estar inconsciente, senão teria morrido com dores horríveis. Não chore, Bruno. Por favor, não chore. Eu vou consigo ao gabinete da Servilusa, para ter a certeza de que eles lhe oferecem condições verdadeiramente camaradas. Ai, Bruno, um homem tão bonito, com tantos músculos, tantas tatuagens, esse piercing que lhe fica a matar… Ande lá, homem, dê cá a mão e venha comigo.”
“Vou consigo o caraças, doutora, que a doutora é muito simpática e tal, mas o que eu mais quero é que a sua Servilusa vá morrer longe.”
O cérebro de Bruno parece registar, por fim, que há realmente naquelas Urgências muita miúda gira à espera de ser engatada[9]. Ao mesmo tempo, dá também alguns sinais inquietantes de depreender que, pelo menos em teoria, a Doutora Mafalda recebe uma comissãozita da Servilusa por cada defunto que lhe passa para as mãos. E, talvez pior ainda, nota ele logo a seguir –[10]como é possível que uma agência funerária opere dentro do espaço físico de um hospital? Mas enfim, a pessoa não precisa de ter lido O CAPITAL com imensa atenção para saber que estes são os benefícios da Economia de Mercado[11] para com as Grandes Multinacionais. E, à semelhança de todos os outros portugueses, o nosso herói das bifanas já viu o exemplo da corrupção e do desvio de fundos manifestar-se vindo de cima vezes demais para ainda conseguir indignar-se. É portanto quase com apatia que, em vez de ir à Servilusa, aproveita o tempo que lhe resta para continuar a escutar a Doutora. Que se lixe, para todos os efeitos a miúda é realmente bonita, além de que é boa como o milho, dentro daquela aparência muito enganosa de tábua de engomar que tanto o entusiasmava em Maria Alice.
Três dias mais tarde, os sinos da Igreja de São Francisco dobram a Finados durante toda a manhã. O céu muito cinzento parece prometer chuva[12]. A cidade enlutada comparece em peso à missa de corpo presente da mulher de António José, enquanto o viúvo emborca copos atrás de copos das traçadinhas que o Crispim que lhe vai preparando, e jura que tudo aquilo é um castigo de Deus pela sua longa negligência matrimonial durante os vinte anos do período canadiano do casalinho que foi para o Québec cheio de sonhos e ilusões – “e passa aí mais outra traçadinha, ó Pacaças.”
António José e Crispim Raposo[13] fizeram juntos uma comissão de serviço em Angola durante o período da limpeza das minas antipessoais, o que lhes proporcionou da mais fortuita das formas[14] o prestígio quase inacreditável, que nem sequer era à época oficialmente não documentável[15] de terem ambos apertado a mão à Lady Di poucos dias antes da morte trágica da Princesa do Povo[16]. Cimentaram assim, na vida da tropa, uma daquelas amizades para toda a vida que os homens só conseguem fazer se estiverem mesmo com um camuflado vestido, pelos verdadeiros motivos que levaram à invenção dos camuflados. Nessa altura, aquele borracho de fazer parar o trânsito, que agora faz antes ginjinhas e compotas na encosta Sul da Serra d’Ossa[17], ganhou a glória dúbia deste seu petit nom[18] por ter conseguido fazer uma manada enorme de pacaças sair-lhes do caminho com um simples “xó-xó-xó-grandes-galinhas”, por sinal em tom bastante amaricado[19]. Agora, ao acorrer a Estremoz com quatro grades de garrafas de litro de ginjinha, Crispim Raposo pensa apenas que vem confortar o amigo pela perda, que ele próprio sente de forma quase insuportável, da mulher mais linda, e com mais talento para rebolar no feno, de todo o Alto Alentejo[20].
Bruno senta-se em silêncio ao lado de António José, para poder ampará-lo caso ele perca o equilíbrio. Crispim senta-se do outro lado do viúvo, não vá ele precisar de pedir mais traçadinhas ao Pacaças
Há certos momentos que são demasiado tristes para as suas próprias descrições.
No entanto, a visita de Crispim Raposo acaba por provocar à multidão enlutada de Estremoz uma tragicomédia ao melhor estilo gilvicentino revisitado, que não foi iniciativa sua, nem do Bruno, nem do viúvo, mas que se manifesta com tamanha contundência que faz rir o próprio prior, até então tão combalido como todos os ademais presentes[21].
Este espectáculo é proporcionado pela Prima Rikita, ali presente a título de nova namorada atitrée do Crispim Raposo[22]. Rikita é uma autêntica princesa de conto de fadas, de feições extremamente finas, com a pele muito branca, e com os olhos muito azuis por baixo das suas belas pestanas encaracoladas. É magra e flexível como um junco, de cabelo muito comprido e costas muito direitas, com todo o ar de quem jamais conseguiria dormir com uma ervilha escondida debaixo de vinte colchões[23]. Esta menina já fez cinquenta anos, mas ninguém lhe daria mais de vinte e cinco. É advogada, e a esse título funcionária das Dívidas ao Estado em Lisboa, mas raramente lá vai porque habitualmente está de baixa do psiquiatra[24]. Deve-se esta situação ao facto de possuir um temperamento sem planícies nem calmarias, só com grandes montanhas, fossas abissais oceânicas, embates de meteoritos, e a explosão ocasional de um ou outro vulcão que já há muito que se considerava extinto, geralmente provocada por ciúmes desabridos, a bem dizer patológicos. Há quem diga que a culpa desta instabilidade é dela, porque nunca toma os medicamentos como os médicos lhe indicam, além de que se enfrasca, literalmente, nos seus preferidos – [25] e aqui entraria uma longa lista de party drugs, crystal meths, anfetaminas para cavalos de corrida, e ainda todos os tipos de opióides acessíveis nas nossas Farmácias[26], ingeridos de um só trago com a ajuda da maravilhosa traçadinha de ginjinha e medronho que faz os velhotes estalarem com a língua[27]. Também há quem diga que a culpa é do psiquiatra, positivamente enfatuado[28] com aquela beleza irreal, que a faz andar drogada o mais que pode para que ela nunca consiga deixar de lá voltar. Mas, não sendo nós a coluna dos mexericos, nada disto nos interessa.
Interessa-nos é que ninguém naquele funeral conhecera previamente a prima deslumbrante, nem ninguém tinha ainda ouvido o Crispim Raposo repetir a sua frase preferida do momento, “e cheguei eu aos sessenta anos para ter que aturar isto.” Assim sendo, torna-se-nos evidente que nenhum dos presentes conseguiria prever fenómenos como os que ocorreram nesse dia ainda dentro da própria igreja, e que ficaram para sempre guardados no imaginário local[29].
No final da missa, Crispim Raposo vem segurar por alguns minutos a mão de Maria Alice, contemplando em sincera consternação o seu rosto, tranquilo, que irradia singular beleza[30]. Quando a namorada o surpreende nestes preparos, perde por completo a paciência para tanto passado[31], e arma-lhe uma espantosa cena de ciúmes perante Estremoz em peso, mais todas as visitas lacrimosas vindas de perto e de longe. Atira-se-lhe à cara com as suas temíveis unhas de gel. Esgatanha-o todo. Tira os seus sapatos de salto-agulha para conseguir furar-lhe os olhos. Como devora as séries que passam nos inúmeros canais da FOX TV, o vocabulário sai-lhe por acréscimo: you cocksucker, you bastard, you motherfucker, eat shit and die you Infamous Green Great Hulk[32], e outros anglicismos que tais amplamente popularizados pela TVCabo. E assim acaba o funeral de Maria Alice, com o povo de Estremoz entretanto entregue a considerações apaixonadas sobre o ataque da Branca de Neve ao Green Great Hulk. Atrás da multidão fica apenas, aguardando ainda a carreta, o fétero com os despojos mortais da defunta[33]. Esta, coitada, ainda agora morreu; mas, perante a fúria de Rikita que segue o seu curso no átrio, já começou a ficar um pouco esquecida. O que aliás é normal, porque começar rapidamente a cair no esquecimento é o destino costumeiro de todos os defuntos[34].
Seguem-se semanas de grande silêncio.
Incapaz de aceitar que agora, de repente, ninguém lhe ligue nenhuma nem o leve a passear à trela pelas zonas mais concorridas da cidade, Júnior rói todas as roupas elegantes, sapatos de verdadeira classe, e lingeries delicadas da dona que apanha a jeito. Josefa passa horas esquecidas na cozinha, a digerir em silêncio, com digno sofrimento, a certeza que já nunca meterá ao bolso aquelas tão antecipadas vinte mil mocas que quase conseguiu arrancar à Menina com a sua chantagem. António José, diagnosticado com uma depressão profunda logo ali no Centro de Saúde, recusa-se a sair de casa, pede ajuda ao Pacaças, e fica para antes o dia inteiro a encharcar-se em traçadinhas, porque é absolutamente contra tomar comprimidos[35].
Entretanto, Bruno anda quase sempre desaparecido.
Concluída e assinada a certidão de óbito no gabinetezinho esconso do Hospital de Évora, a Doutora Mafalda passara-lhe para a mão um cartão de visita.
“Olhe, Bruno,” dissera ela em voz calma, pausada, francamente hipnótica. “Eu por acaso não costumo ser assim tão leviana, sabe, mas já não aguento mais, não aguento mesmo. Estão aí todos os meus contactos. Assim que puder, e se vier a propósito, passe-os à Comunicação Social. Eles que vão ter comigo à Glória, e eu conto-lhes das boas sobre o estado impraticável do nosso Serviço Nacional de Saúde nos tempos que correm. As minhas estagiárias também podem contar mais histórias. E, no fim, se o Bruno estiver cansado, pode ficar a dormir em minha casa.”
A Aldeia da Glória.
Bruno sabe muito bem do que se trata.
Foi na Glória que vários actores das novelas e sobreviventes de reality shows compraram as suas casas e restauraram os seus montes. Alguns só lá vão de férias, mas outros optaram por viver mesmo lá, reencontrando a paz e o equilíbrio emocional com a generosidade da Natureza e a intervenção de coaches, yoggis, mestres de Reiki, treinadores de Artes Marciais, malucos, crianças, e pessoas de Coimbra. Ou seja, o gajo das bifanas, que lá por ter feito duas Comissões de Serviço na República Centro-Africana não deixou nunca de ser o jovem moço romântico[36] que se escapulia com a jovem Maria Alice para juntos fazerem o amor[37] no HOTEL ALENTEJANO de outros tempos, acaba de descobrir que a Doutora Mafalda vive no Olimpo.
E acaba de convidá-lo para ficar uns dias em sua casa.
“Fique o tempo que quiser,” acrescenta ela. “O que aquela casa tem de especial, além de um casal de rafeiros alentejanos, são umas janelas enormes e um espaço que nunca mais acaba. Vá, vamos a isto para que a Maria Alice não tenha morrido em vão. Vamos arrastar esta porcaria toda à nossa frente e criar um hospital novo.”
Claro que nada disto acontece. Enfim, consta que será construído um novo hospital na periferia de Évora, libertando o excesso de doentes e outros aflitos que acorrem àquela construção vetusta situada em pleno centro da cidade. No entanto, também consta que esse hospital se destinaria antes a permitir o encerramento do já existente, que entretanto será transformado num hotel, transacção que até já se encontra fechada. Respondem os mais timoratos que uma coisa não impede a outra, porque o hospital a construir será muito maior e claro, muito menos vetusto. A verdade é que ninguém sabe nada ao certo.
O que sabemos de ciência segura é que, de facto, e tanto quanto o gajo das bifanas vem ao caso, Maria Alice não morre em vão. Com a sua morte ali mesmo nas Urgências, e perante a revolta da Doutora Mafalda, Bruno recebe a benesse de meter temporariamente as suas gémeas[38], ainda de férias, a trabalhar na das bifanas[39], para ir ele passar algumas temporadas extremamente interessantes na Glória[40], onde é agora chamado a consertar ou remodelar as Harleys dos actores[41]. Ao mesmo tempo, digamos que a tensão sexual nascente logo ali no Hospital não se limitou à Doutora Mafalda, e, num fim de semana particularmente inspirado, às suas duas jovens estagiárias: inevitavelmente, Bruno começa também a ser chamado, com alguma frequência e sob todo o tipo de pretextos, a socorrer a libido de toda a gente de libido meio náufraga que por ali anda. E é precisamente nesse desvairado e ardente sexo sem amor que, depois da morte de Maria Alice, o nosso herói local afoga todo o seu enorme desgosto[42].
Passadas algumas semanas farta-se de frivolidades e regressa às bifanas.
Aqui as opiniões dividem-se.
Ou este regresso ocorre porque Bruno se fartou realmente, ou ocorre antes porque, mesmo não estando em Estremoz, conseguiu detectar o rumor segundo o qual a sua brasileira se encontrava em vias de ficar novamente grávida de quatro meses e meio, se é que não estava já nesse estado interessante.
Dirão os levianos: e então, ele não ficava muito melhor servido com a bela[43] Mafalda?
A resposta que a experiência nos ensina é muito simples: e então, e as filhas? O homem tatuou o nome de cada uma delas em cada um dos braços. Se porventura aparecem miúdas nas Bifanas que já estão a cair de bêbedas antes da meia noite, porque é Carnaval ou por qualquer outra desculpa assim[44], e lhe pedem ainda mais uns copos seja do que for, ele manda-as sair dali, indignado. Contra o facto “mas serviram-nos vodka no não-sei-quê”, ele usa sempre o argumento “tenho duas filhas lindas lá em casa e não quero vê-las no estado em que vocês estão.” O nosso Bruno é tão homem de família como qualquer outro, e, desse ponto de vista, está bastante satisfeito com a sua instalação. Note-se que ainda nunca ninguém saiu em defesa da dama, mas convém acrescentar que a sua brasileira, por muito que carregue excessivamente no bâton vermelho-memória-Azteca dos lábios e na tinta preta-asa-de-corvo do cabelo, qualifica acima da média da amostragem local generalizada. Larguem o osso. Acabou-se a conversa.
Servem todos estes episódios para demonstrar como, no País Profundo, e preferencialmente longe das garras da Servilusa, um verdadeiro velório, seguido de um verdadeiro funeral, ainda são verdadeiras funções sociais, tão dignas de glamour e pitoresco como qualquer outra. É um daqueles momentos em que as pessoas vão ao cabeleireiro e estreiam roupa nova. Representa, por assim dizer, um tempo e um espaço tão apropriados como qualquer outro para se fazerem publicamente uns belos de uns oitos com pernas de noves[45], como aqueles que toda a gente testemunhou aquando do acidente que envolveu o imponente Raposo e a sua belíssima namorada ciumenta que poderia ter sentido uma ervilha debaixo de vinte colchões[46]. Depois, e como em todas as outras funções sociais, estando a festividade concluída, e estando os participantes de consciência tranquila porque sabem que perdurarão sempre algumas histórias a seu respeito que os anos se encarregarão de empolar, é forçoso que a vida continue até ao ritual seguinte.
Recorde-se que é necessário, desde já, preparar tudo para assegurar uma festa rija no São Mateus.
A vizinha dali da porta do lado até já foi a Elvas desenhar as sobrancelhas com aquele laser que há agora.
Dizem as más-línguas que quem foi feito numa carroça de feno há de ficar com palha na roupa para a vida inteira[47], pelo que esta operação das sobrancelhas não surtiu qualquer efeito, pelo menos para melhor. Mas nada disso nos interessa. Só prova que as pessoas são más, como toda a gente já sabia.
Às vezes alguém passa pela rua das laranjeiras, recorda a horta e a beldade seminua no chuveiro, e, por um instante, interroga-se,
“Que será agora da menina Alicinha, que era tão boa moça?”
A PRINCESA E A ERVILHA
Conto tradicional de origem perdida nas brumas do tempo
Era uma vez uma Princesa que foi passear sozinha e se perdeu completamente na floresta. Andou, andou, andou, mas nunca encontrou vivalma – só o sopro do vento no arvoredo, subidas a pique e descidas íngremes, rios secos cheios de lama, o uivo dos lobos à distância, o grunhido dos ursos bastante mais perto, e, por toda a parte, o grasnar trocista dos patos e dos gansos, debaixo de um céu de chumbo que por vezes se desfazia em farrapos de chuva. E foi depois de tudo isto, já completamente esfarrapada, descalça, e cheia de medo, que avistou ao longe um castelo bem alumiado. Foi lá bater à porta, e explicou à Rainha que veio ao postigo que era uma Princesa de um reino contíguo, que viera passear sozinha pela floresta e acabara por perder-se. A Rainha contemplou-a de alto a baixo, esfrangalhada e descabelada, e meritória do grau de Princesa apenas pelas suas mãos muito bem tratadas, pelas suas maneiras muito finas, e pela sua forma muito requintada de falar. Na dúvida, decidiu usar um truque para verificar se aquela criança assustada era ou não quem dizia ser: enquanto os seus lacaios serviam à pobre menina esfomeada toda a sorte de iguarias deliciosas, foi preparar-lhe um quarto de dormir onde colocou vinte colchões por cima da cama. E, por baixo desses vinte colchões, sem que ninguém suspeitasse de nada, colocou uma ervilha.
Nessa noite a jovem Princesa bem tentou dormir, mas foi-lhe impossível.
Na manhã seguinte pediu à Rainha que lhe perdoasse aquelas olheiras tão fundas e aquele seu ar estremunhado: foi que, explicou ela, alguma coisa enorme, por baixo dos colchões, rolava de um lado para o outro, impedindo a chegada de Morfeu.
Então a Rainha ficou muito feliz, abraçou-a com ternura, e tratou-a como sua filha. Sabia perfeitamente que só uma autêntica Princesa tem a pele suficientemente delicada para sentir uma ervilha por baixo de vinte colchões.
[1] Bruno deu por eles a usarem este nome quando se referiam a ela, na altura em que tiravam a maca da ambulância. Não foi aos cornos de ninguém para não atrasar ainda mais o internamento. Escalonamento de prioridades também aprendido nas suas duas comissões de serviço na República Centro-Africana.
[2] Não esquecer que ainda há que entregar o gatinho ao vizinho anónimo que se chegou à frente para o criar.
[3] Ao contrário dos populares do episódio anterior, que continuavam a dizer “doente” como sempre se disse, quem está a falar agora é uma médica. Por isso mesmo, com toda a devida compostura, utiliza-se antes o termo “paciente”.
[4] Senão, vejamos: a maca com Maria Alice, Bruno, a Médica Linda e as Duas Estagiárias Roliças. São cinco pessoas e uma maca num espaço previsto só para dois utentes.
[5] Aliás, é evidente que nem precisaria de engatá-la. A miúda já está a abraçá-lo, caraças. Ai é “para lhe dar coragem”? Ó filha. Vai mas é para a bicha, como toda a gente.
[7] Ora nem mais, e em homenagem à nossa defunta Maria Alice: ex-pla-na-ção.
[8] Ena pá. Outro travessão perfeitamente justificado.
[9] Este registo confere com a experiência pessoal.
[10] Isto está bom, está. A culpa de tanto travessão é toda do Bruno. Até parece um fungo que, em vida, infectou todos os homens que mais se aproximaram de Maria Alice.
[11] Ou, como dizem os americanos, que nestas coisas são muito mais dados do que nós a ir directo ao assunto, “o Capitalismo.”
[12] Mas isto é o Alentejo, pelo que nunca choverá que chegue, nem na altura certa, nem sequer na forma certa – no outro dia apanhámos aqui com uma saraivada brutal de granizo que deitou imensas azeitonas ao chão. O aquecimento global complica ainda mais um equilíbrio que já era extremamente precário, devido, entre outros factores, às grandes Campanhas do Trigo do Doutor Salazar. End of speech. E desculpem o travessão.
[13] O tal Crispim Raposo do cerejal na encosta Sul da Serra d’Ossa! Um gajo rico, e francamente de cair para o lado, ainda por cima! Estão a ver como o homem voltou a atacar?
[14] Tão fortuita, de facto, que a maior parte dos seus conterrâneos não acredita neles.
[15] Vejam bem, ainda nem existia o hábito popularizado do smartphone, as autoridades eram rígidas, e portanto, ainda por cima não há nem uma foto. Vocês acreditavam neles, se estivessem tranquilamente sentados numa das inúmeras esplanadas de Estremoz? Eu não sei, não.
[16] A Di comia o Raposo com os olhos. A logística da situação provou, no entanto, ser absolutamente impossível. Os dirigentes da Operação Limpeza das Minas eram generais escandinavos representantes da União Europeia.
[17] Tudo bem, confesso, sei lá se faz compotas. Agora ginjinhas… acho que nunca vi o Crispim Raposo sem uma garrafa de ginjinha na mão, e sem acabar sempre por dizer qualquer coisa relativa às suas cerejas. Mas esta imagem pode não ser mais que um mero erro estatístico, dado que, infelizmente, não vi o Crispim Raposo assim tantas vezes como isso. Ah, mas o que já vi é que já ninguém me tira.
[18] A pacaça é um búfalo angolano de pelagem parda, enorme, pesado, enfim – bruto como cornos e feio como a noite dos trovões. O travessão embelezou bastante a frase.
[19] Amaricado de propósito, evidentemente. Ou, pelo menos, foi o que o Crispim Raposo disse aos camaradas do jipe.
[20] Mas não virá só fazer isso, como o tom misterioso da frase nos indica.
[22] De quem é prima, ao certo, não sabemos. Francamente, é assunto de conversa que não interessa a ninguém.
[23] Referência ao conto tradicional A PRINCESA E A ERVILHA. Caixa de texto adicionada em serviço dos ignorantes nestas matérias, que, como todos sabemos, vão sendo cada vez mais.
[24] Ou, pelo menos, a situação verdadeira é mais ou menos esta. E a danada da miúda é mesmo, mesmo, mesmo muito bonita. Utente dedicada de dezenas de cremes, perfumes, e outros segredos femininos guardados com incrível zelo. Capaz de reconhecer o aroma da mulher que passa por ela numa fracção de segundo e sempre sem erro. Eu até me arrepiei toda quando a conheci, lhe dei um beijinho, e a primeira coisa que ela me disse foi “L’IMPÉRATRICE”. Um verdadeiro talento desperdiçado.
[25] Não. Nunca. Está decidido, muito bem pensado, seriamente jurado. A Autora nunca mais na puta da vida voltará a usar um único travessão que seja.
[26] Concerteza, concerteza, podemos defender a rapariga recordando que também é verdade que a pessoa tem que experimentar um pouco de tudo para não morrer estúpida.
[27] Crispim Raposo adora esta notazinha de rodapé. “E os velhotes até estalam com a língua”; “havias de ver como os velhotes dão estalos com a língua” – “se lá fores vais ver que, nas tascas…”. Etc.
[28] ENFATUADO! Belo e redondo vocábulo. Favor não confundir com ENFADADO, que é o oposto preciso do primeiro termo.
[29] Pronto, vá: não só de Estremoz e Elvas e aldeias pelo meio incluindo a Orada, mas também de todo o “triângulo verde” Portalegre – Marvão – Castelo de Vide.
[30] Nem mais. “Irradia singular beleza.” Isto é um folhetim, malta.
[31] As outras mulheres não estavam mortas, mas sim, é verdade: como não tem grande coisa para fazer, Crispim Raposo fez para si próprio um grande passado dentro do género “mulheres”.
[32] Foi importante Rikita frisar que o Hulk a que se referia era o verde, uma vez que também existe um Hulk cinzento.
[33] “Os despojos mortais da defunta,” ainda por cima “no fétero”. Não é horrível?
[34] “Adelino Amaro da Costa? Sei lá quem foi o Adelino Amaro da Costa! E aliás, como é que eu havia de saber”
[35] Mais tarde fará um programa de desintoxicação, onde começarão a florir os seus novos amores com uma das enfermeiras de serviço. Mas esse é, também, ainda um outro folhetim.
[36] “Moço romântico” era o que ele dizia, evidentemente.
[38] Não, a brasileira não fez batota. As miúdas, que mal se distinguem uma da outra, são a cara chapada do pai. Cheguem essa intrigalhada para lá.
[39] “A das bifanas”: a esplanada das bifanas. “Meter lá as suas gémeas”: passar às meninas, que querem fazer o curso de gestão no Politécnico de Beja, a responsabilidade pelos bons frutos do estabelecimento.
[40] Pelo menos parecem interessantes. Sobretudo de início.
[41]Cela va sans dire, não é? Claro que um naco de carne como o Bruno gosta de consertar motos, sobretudo se forem Harleys. Tal como gosta de dar seguimento a algumas fantasias sexuais. Mas só algumas, por favor.
[43] Vá, “e rica”. Pelo menos, supõe-se que mais rica do que a brasileira que já estava grávida de quatro meses e meio e era de gémeas.
[44] Nomeadamente o já mencionado não-haver-nada-para-fazer. Para uma miúda, sobretudo, é bastante mais simples estar bêbeda do que estar grávida. E o que não falta aí é quem lhes venda fiado.
[45]OITOS COM PERNAS DE NOVES! Alguém poderia exigir uma expressão regional melhor do que esta?
[46] A sério que não conhecem o conto tradicional da Princesa e da Ervilha? Inacreditável. Ao que nós chegámos. Consulte-se, sendo assim, o resumo apresentado na CAIXA DE TEXTO.
[47] Expressão regional de outras paragens, mas que assenta aqui que nem uma luva.
Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores
CLARA PINTO CORREIA continua a trazer-nos, em directo de ESTREMOZ
UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO
Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira
“O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano
Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,
in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)
Do lado de fora das portas do novo escritório da PANGEIA, ouvem-se os ruídos característicos da chegada a casa de António José. Duas malas enormes LOUIS VUITTON, cheias em igual medida de propaganda informática e de roupa suja[1], caem ao chão com estrondo. A pasta estofada da GUESS que comporta três PCs e três telemóveis 5G voa para cima da poltrona da entrada com um vibrante “saia mas é já do meu ombro, sua esclavagista”. Ouvem-se ainda dois sapatos de camurça italiana a atingir o focinho do Júnior, que está tão impaciente por entrar na cozinha que se limita a soltar um único latido de advertência, para que o marido de Maria Alice, acabado de chegar a casa a morrer de saudades, tenha cuidado com o que pode acontecer-lhe por incomodar um Leão da Rodésia. Finalmente, agora indiscutivelmente barrigudo e quase careca, o homem que viu a luz assim que saiu do Canadá entra pelo escritório dentro de braços abertos, a prometer à esposa um futuro pecaminosamente feliz.
E logo a seguir, ao ver o que ali se passa, estaca, deixa cair os braços, e fica a abrir e a fechar a boca como uma criancinha pequenina que está prestes a desatar a chorar –[2] mas que, dadas as circunstâncias, não tem nada a certeza de que essa seja a melhor das estratégias para chamar a si as atenções.
Josefa está toda salpicada de sangue, a torcer as mãos de desespero, e a tremer tanto que é incapaz de usar sequer o telemóvel. Bruno está agora sentado, com Maria Alice ainda desmaiada nos seus braços, mas a mancha de sangue na camisa branca que entendeu por bem envergar para todo este magnífico reencontro não pára de crescer. Tudo indica que, tão cedo, não lhe será possível rebolar outra vez no feno com a sua adversária dos concursos de salto, que lhe piscava sempre o olho com um sorriso matreiro antes de se fazer ao circuito.
“Liga para o 112, meu!”, grita ele para António José mal o vê entrar no escritório. “A Josefa está que nem consegue marcar três dígitos seguidos no telemóvel dela. E, quanto mais o tempo passa, mais a tua mulher se vai esvaindo em sangue. Acorda, ó gordo. Caraças, pá, acorda. Eles que venham já a correr para aqui, ou então ela morre.”
Sublinhando devidamente o horror desta última frase, o Júnior põe-se na sua melhor pose de puro pânico, com o ridgeback todo em pé e a cauda enfiada entre as pernas, e desata a uivar à janela.
“O meu filhinho não é gordo,” choraminga Josefa, aproveitando distracção geral causada pela manifestação de agonia do pobre animal.
Como é evidente, afligidos por tantos gritos e prantos, e agora, ainda por cima, aterrorizados pelo uivo aflitivo de um Leão da Rodésia[3], os vizinhos não se fazem tardar. Completamente aturdido, como já chamou o 112 e por enquanto não pode fazer mais nada, António José recruta, no tom irrecusável de um filho pródigo[4], a ajuda preciosa da Josefa. Perdido por cem, perdido por mil[5], diz-lhe ele. Ao menos, a gente que ofereça aos visitantes o melhor que um marido desesperado pode oferecer. E então a Josefa traz de lá dos fundos da casa iguarias de fazer crescer a água na boca, tais como pão caseiro fresquinho em grande abundância, manteiga e queijo do cardo muito duro juntamente com um Queijo de Serpa que se desfaz na boca, e ainda um paio enguitado daqueles que se fazem todos os anos no fumeiro lá de casa cortado em fatias fininhas. Tudo isto vem acompanhado por uma profusão de caixas de Instinto tinto e branco, mais outras tantas litrosas, mais um festival de destilados em que alguns são magias da empregada. É assim que aparece na sala uma aguardente de medronho tremenda que a Josefa prepara todos os anos em Novembro, celebrando a chegada do doce Verão de São Martinho e obrigando a serviçal a diálogos que nunca mudam muito, tais como,
“Isso já se prova, ó prima Josefa?” – “Sai-me mas é daqui, grande moinante, e de caminho vai chamar prima à tua mulher, e ela que te ature que é o que para isso que as mulheres servem.” – “Mas a prima Josefa hoje está tão mimosa… como é que quer que eu hoje não venha o dia inteiro ver de si?” – “Ora adeus, vais-te-me embora[6]!Queres que eu chame o Cão, é isso que queres?” – “Pronto, priminha, eu se quer chamar o Cão vou mas é já tirar a certidão, para depois poder casar-me consigo e experimentar o seu medronho deste ano antes dos outros homens todos de Estremoz.” – “JÚNIOR! JÚNIOR, ataca.” [7]
Outros destes produtos alquímicos podem ser trazidos de fora, que nem isso lhes tira o mérito de terem vindo ali parar trazidos directamente da origem. Este é, por exemplo, o caso da ginginha trazida da adega do Crispim Raposo, amigo do António José desde que ambos estiveram nas brigadas anti-minas de Angola e feliz herdeiro de alguns terrenos na encosta Sul da Serra d’Ossa que lhe permitem não precisar de trabalhar grande coisa. Quando traçada com o medronho da Josefa, a ginjinha do Crispim Raposo produz uma aguardente de tal qualidade[8] que até faz os velhotes darem estalos sonoros com a língua, como se, de facto, tudo aquilo que ali se passa fosse a festa mais animada de que há memória em Estremoz.
Para já, não conheceremos melhor o Crispim Raposo.
Aliás, neste ajuntamento específico o Crispim Raposo nem sequer se encontra presente. Apesar de todas as acelerações do tempo criadas pela internet, as notícias de Estremoz ainda demoram um certo tempo a subir a Serra, depois a espraiar-se pela encosta Sul, e depois, finalmente, a fazer um eco assustador nas centenas de hectares de cerejal que o Crispim herdou do pai.
Mas talvez este sexagenário de grande presença tão ainda venha a aparecer mais tarde.
Sim, claro. Aceite-se desde já que, se aparecer, será pelos motivos que já se vão tornando óbvios, uma vez que se revelam, cada vez mais, parte de uma rotina deveras estimulante.
Não é por nada, mas consta ali a toda a volta que também este Crispim teve uma paixão mal escondida pela menina dos raids que era então a namoradinha oficial do Conde da Orada, assim como consta que essa atracção foi mútua. Aliás, consta até que o parzinho[9] ainda teve a lata de fazer rolar algum feno na estrebaria onde o aristocrata guardava os seus preciosos Lusitanos de tourear[10]. Ah, meus ricos vinte anos.
O que é que querem? Para todos os efeitos, isto é uma ocasião social. Por conseguinte, chega-se lá e põe-se a escrita em dia.
Entretanto, e como é evidente, toda a gente dá os seus palpites sobre o que fazer para reanimar Maria Alice. Mas Bruno, que fez duas Comissões de Serviço na República Centro-Africana para ganhar uns cobres quando decidiu assentar e constituir família, não deixa ninguém tocar-lhe. Vem em todos os manuais: não se toca no ferido até chegarem os bombeiros.
“Ó vizinha, mas que conversa foi esta, agora assim sem mais nem menos? Assentar e constituir família? Ele não teve mas foi outro remédio senão casar, coitado do moço, que a brasileira já estava grávida de quatro meses e meio, e mais, era das gémeas.”
“Essas brasileiras sabem muito,.”
A camisa branca do Bruno está agora completamente ensopada em sangue.
“Então e a que vem esse sangue todo, ó vizinho?”, pergunta-lhe em voz sinuosa[11] a mulher cheia de madeixas californianas que é de facto vizinha do Bruno, motivo mais que necessário e suficiente para já terem ido várias vezes juntos tratar de assuntos privados ao palheiro, queixando-se os dois à saída que a puta de agulha é mesmo impossível de encontrar[12].
“A nossa Alicinha teve uma daquelas suas crises de hipoglicemia e desmaiou,” responde-lhe o Bruno numa vez tão grave que faria do grande Johnny Cash um verdadeiro menino do coro[13]. “Ainda tentei agarrá-la, mas aconteceu tudo tão depressa que não cheguei a tempo. Bateu com a base posterior do crânio, mesmo onde o cérebro se liga à espinal medula, aí nessa maldita esquina de ferro dessa puta dessa secretária. Estou que fracturou mesmo o osso[14], e que, pior ainda, um dos fragmentos desse cabrão desse osso lhe fez um corte na jugular. Está com o pulso cada vez mais fraco, e já há uns bons vinte minutos que não dá acordo de si[15]. E aqueles cabrões do INEM…”
Ergue-se uma grande chilreada de vozes desgarradas, cada uma contando os seus desaires particulares com o INEM, quase todos culminados por um inacreditável final trágico. A este propósito erguem-se mais taças e bebem-se mais traçadinhas, ao mesmo tempo que se acomoda tudo com o paio e o queijo.
Passados mais outros bons vinte minutos de comes e bebes, do lado de fora do escritório, na estradinha de macadame que leva ao lago do jardim, ouvem-se, finalmente, as sirenes da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Estremoz. A agitação é tal que o chefe das operações, um homem rijo que esteve até há poucos anos em França, onde aprendeu tudo o que sabe sobre salvar as vidas dos outros, dispara imediatamente dois tiros para o ar. A sua voz, vibrante e cheia, está sem dúvida habituada a dar ordens de comando desde há tempos imemoriais.
“C’est les Pompiers,” grita ele, para grande gáudio do Júnior, que pára finalmente de uivar e vem juntar-se à festa agitando a cauda. “Allez, allez, allez, tout le monde recule et personne ne bouge!”
Antes de mais nada, tal como ninguém é obrigado a tocar piano, também ninguém é obrigado a falar francês, mas enfim. Os que não compreendem a língua compreendem facilmente a intenção. O pior é que a vizinhança é pródiga em emigrantes regressados de França, pelo que, infelizmente, a maioria dos presentes compreende, de facto, o que diz o Chefe. E, assim sendo, entre a ordem para recuar e a ordem para ninguém se mexer gera-se, inevitavelmente, uma enorme confusão. Esta confusão, no entanto, joga directamente a favor dos Bombeiros Voluntários de Estremoz. Com todo o pessoal distraído pelo imbróglio linguístico em causa, ficam com mais margem de manobra para estancar a hemorragia, utilizando a camisa que Bruno põe logo à disposição para produzirem um garrote feito tão depressa, e com tal perícia, que ninguém saberia dizer de onde veio. Concluída mais esta manobra, e agora com toda a assembleia dos vizinhos a observar de olhos tensos, como quem assiste a um 007 numa sala de cinema[16], o Chefe e o seu Primeiro Auxiliar corrigem com suavidade o posicionamento do corpo, transferindo-o de seguida para uma maca com um cuidado absolutamente crítico. Esta maca, por seu turno, é prontamente despachada para dentro da ambulância, que aguarda a sua tripulação de motor ligado e faróis acesos.
“Ó Regadinho! Vocês despachem-se que ela está a perder o pulso, ouviste? Eu já lá vou ter convosco” grita-lhes Bruno, também ele muito bom nisto das vozes de comando desde que fez as tais Comissões de Serviço.
“E aquela chinesa, sempre a engataste?”, pergunta-lhe o dito Regadinho enquanto prende a maca com mil cuidados ao interior da ambulância[17].
“Quero lá saber da chinesa!”, berra-lhe Bruno de cabeça perdida, embora não esteja a dizer a verdade. “Eu queria era que vocês não tivessem aparecido com quarenta minutos de atraso!”
“Estávamos a salvar um gatinho que caiu por uma sarjeta,” esclarece prontamente o condutor da ambulância. “E, de cada vez que o tirávamos da sarjeta, o cabrão do gatinho desatava a miar e voltava a enfiar-se lá dentro[18]. Ah, cum caraças. Puta de noite, é ou não é?”
“Um gatinho?”, gritam algumas vozes da vizinhança[19], indignadas e incrédulas. “Vão deixar morrer a senhora por causa de um gatinho?”
“Então, mas primeiro chamaram-nos por causa do gatinho. E depois a gente fazíamos o quê, com todo o pessoal das esplanadas a ver? E depois queriam que deixássemos lá o gatinho? E depois eles iam queixar-se à dos Animais, e depois...”
“Lá isso é verdade, ó amigo, esses dos Animais são comunas e têm as costas quentes e então abusam sempre que podem, e se querem saber eu digo-vos já, é por essas e por outras que eu voto no CHEGA.[20]”
“Pois claro, vizinho, então aqui em Estremoz há mais ciganos do que pessoas e os cães têm que andar à trela mas os ciganos…[21]”
Neste ponto preciso[22], quando as vozes anónimas já começam a descambar com grande velocidade, o Chefe acha por bem pôr termo às trocas de galhardetes com mais dois disparos para o ar. Seguidamente, aperta com firmeza a mão do Bruno, enquanto lhe fala de homem para homem.
“Ó jeune homme, vomecê é que é o Marido? Vamos levar imediatamente a senhora para as Urgências de Évora e avisamos que o senhor… o…?”
“Bruno. A menina é a Maria Alice, e eu sou o Bruno. Digam que é o Bruno das sandes de carne assada, eles sabem logo quem é.”
“Ó Chefe! Venha depressa que alguém tem que massajar aqui o coração da nossa Alicinha![24]”
“Ai vocês conhecem-se? Que grande sorte a tua, ó mabeco.”
“Ah! O chefe não me diga que também é de Angola[25]!”
“Né à Nova Lisboa, antes daquelas bêtes noires…[26]”
Foi só o Chefe distrair-se por um segundo com os mabecos e as suas origens angolanas que todos os presentes, bem comidos e melhor bebidos aquando da chegada dos Soldados da Paz, recomeçam a trocar galhardetes.
“Mas de quem era o gatinho?”
“É um gatinho vadio, meu. Porquê, queres adoptá-lo?”
“Dá cá que eu ponho o bicho em minha casa para dar sorte à Alicinha.”
“Calma aí, mocinhos. Isto há papeladas a preencher para podermos transferir uma vítima da nossa ambulância…”
“Mas está tudo maluco? Agora transferem o gatinho com a senhora a esvair-se em sangue?”
“Tecnicamente, mon cher, a senhora já não está a esvair-se…”
“Ó Chefe! Mas que caraças, ó Chefe! Venha depressa que a menina vai mesmo apagar-se!”
Sentado no sofá do canto, com a cabeça encostada ao ombro da Josefa que entretanto abraçou o filho com todo o seu imenso amor de mãe[27], António José treme, chora, engasga-se, bebe todas as traçadinhas de medronho com ginja que os velhotes lhe passam para as mãos, e é evidente que não está em estado de ir para o Hospital de Évora, a menos que queira ser imediatamente internado na Psiquiatria. Em tronco nu, despenteado, ensanguentado, Bruno salta sem hesitações para dentro do seu velho camião, colado ao recuo da ambulância.
A ambulância pára.
“O que é que foi agora?;” berra Bruno da janela.
“Está um caralho de um jipe estacionado atrás de nós, foda-se!”, berra o Regadinho de volta. “Mas quem é que… ah, olá, muito boa noite… e a menina quem é?”
“Anabela Farto, CMTV,” responde prontamente a jovem jornalista. E prossegue, virando-se para a câmara: “Estamos aqui em directo devido ao trágico acidente…”
“Ó que caralho, mas vocês tirem-me já daí essa puta gorda com as pernas tortas!”, berra Bruno da janela para quem o queira ouvir.
“Fez-lhe a ficha num segundo,” comentam entre si os velhotes, orgulhosos da sua progenia, enquanto engolem mais traçadinhas e dão mais estalos apreciativos com a língua.
A jornalista vai averiguar quem foi o ordinário que a descreveu de forma tão eloquente, seguida pelo jipe da CMTV, com o operador de câmara a filmar tudo sentado na janela, com o torso todo virado para o exterior. Estas imagens, no entanto, virão a demonstrar-se inaproveitáveis uma vez que a equipa estava perdida de riso com a eloquência do alentejano desconhecido. De qualquer maneira, a manobra do jipe que se apresentou ali tão prontamente ao serviço da Verdade tem a vantagem de desimpedir a estrada e permitir à ambulância seguir caminho. Bruno seguiria de bom grado colado ao pára-choques dos Bombeiros, se não fosse a obstinação da jovem jornalista em obter declarações daquele jovem galante, com imagens que o mostrem bem, assim todo lindo, másculo, descamisado, e ainda por cima ensanguentado, numa sequência de 007 cada vez melhor.
“Se a minha mulher morrer por vossa culpa eu hei de perseguir-vos até ao Inferno para vos torcer o pipo aos quatro,” declara Bruno para a câmara, depois do que arranca como louco na senda da ambulância e comete tudo o que é grave infracção rodoviária para chegar a Évora mesmo atrás dos bombeiros. É interrompido à entrada por estar sem camisa, o que levanta logo protestos de todas as miúdas, mulheres, putéfias, senhoras, brasileiras, gays e LGTBs que aguardam há horas infindas que alguém os tire daquela maldita sala de espera e faça alguma coisa por eles.
“Parece a Nossa Senhora,” comenta uma jovem noviça que também aguarda a sua vez, olhando sonhadoramente para o rosto sereno de Maria Alice.
[1] Toda a gente ali à volta conhece essas malas, assim como conhece o conteúdo que elas costumam transportar de cada vez que o antigo Cabo dos Forcados chega a casa. Foi a Josefa que estava tão farta de arrumar aquela tralha toda que certa noite de Verão, quando todos se sentam à soleira das suas portas, desabafou com a vizinha da casa do lado. Até falou dos slips ABANDERADO que vinham tão sujos, tão sujos, mas verdadeiramente tão sujos, que ela os agarrou com a pinça do barbecue e os pôs de saponária três dias, até já não ter nojo de lhes mexer. Claro que, no dia seguinte, esta história já fazia parte do património cultural do bairro. E sim, é verdade: do bairro à cidade basta um passo de criança.
[2] Travessão! Logo a abrir! E se o carácter infecto-contagioso desta pontuação infame servisse para prevenir os nossos leitores de que, mais cedo ou mais tarde, Alexandre Noronha há de voltar a enfiar-se nalgum veículo bem-parecido para reaparecer em Estremoz, triunfante e vitorioso como no fim de uma produção multiplex? Ná. É mais provável que, nesta fase dos acontecimentos, já nenhum travessão queira dizer nada, a não ser que a Autora ficou seriamente afectada pelo seu uso.
[3] Caíram mesmo nesta? Seus totós. Não se percebe logo que este som é o som de um uivo igual ao uivo de qualquer outro cão? A imagem do Leão da Rodésia a uivar, com o ar enorme e feroz de sempre e a crista castanha do ridgeback toda em pé, essa sim: é uma verdadeira imagem de filme de terror, com a grande vantagem de se ter mantido inédita até hoje. Usem à vontade, youtubers. Nós aqui no PÁGIINA UM não acreditamos em direitos de autor. E que acreditássemos. Não nos serviria de grande coisa.
[4] Isto não nos esclarece quanto a ele saber ou não a verdade no que respeita às verdadeiras circunstâncias do seu nascimento.
[5] Ressalve-se que este provérbio é português em geral, e não uma deliciosa expressão regional. O seu a seu dono.
[6] Enprego de um dos melhores coloquialismos locais.
[7] E tanto basta para, por uns tempos, manchar a reputação da Josefa, seja quem fôr o engraçadinho que se insinuou na adega. Historinha de proveito e exemplo sobre o destino subalterno das mulheres, muito embora estejamos, de facto, em pleno século XXI. Inserida aqui a talho de foice por causa das idiossincrasias da Autora.
[8] Caso porventura subsistam dúvidas: onde se lê “de tal qualidade” leia-se “de tamanho teor alcoólico.”
[9] Na altura dizia-se mesmo “a parelha”, mas nós agora somos politicamente correctos.
[10] Já foi aqui mencionado o rumor que consta em Estremoz à boca pequena segundo o qual o Conde é um péssimo ganadeiro porque cria toiros bravos demais para poderem entrar numa tourada. Mas toiros é uma coisa e cavalos é outra, além de que os amores de Crispim Raposo e Maria Alice datam do tempo em que o Conde era o pai do presente Conde e as coisas eram todas muito diferentes. Se é que tais amores existiram mesmo, é claro. Espalhar boatos é como fazer o amor: reveste-se de grande importância nos sítios onde não há nada para fazer.
[11] Em voz sinuosa. Toda às curvas entre o divertido e o preocupado, a subir e descer conforme os comentários daqueles que a rodeiam. Belíssima imagem. É um desperdício o Bruno ter a Maria Alice a sangrar-lhe nos braços, mas atrás do tempo tempo vem, como toda a gente sabe. E já agora, este provérbio também é português em geral, e não uma deliciosa expressão regional.
[12] Lamentamos o carácter repetitivo destes pequenos detalhes. Acontece, apenas, que quanto menos houver para fazer mais as pessoas se interessam por palheiros.
[13] Referimo-nos aos coros, por regra religiosos ou patrióticos, em que os rapazes ainda têm a chamada voz branca. Esta voz, cujo encanto se perde depressa e foi a razão de ser por trás da emasculação destinada a criar castrati, faz soar a polifonia dos rapazinhos como um canto das meninas, ou das sereias, ou das deusas e semideusas e ninfas, ou ainda como o de qualquer outra mulher encantada incapaz de desafinar.
[14] “Estou que fracturou mesmo o osso”: as expressões regionais são para usar em toda e qualquer conversa, mesmo que ninguém ali esteja a rir.
[15] Como toda a gente sabe, o amor faz milagres. No caso vertente, até consegue pôr o gajo das bifanas, treinado na República Centro-Africana, a falar num jargão médico perfeitamente credível.
[16] Não confundir com a televisão, e muito menos com o telemóvel. Os vizinhos sentem-se mesmo a assistir ao DIE ANOTHER DAY em sensaround sound.
[17] Lá está: onde não houver grande coisa para fazer…
[18] História absolutamente verdadeira, ocorrida há cerca de ano e meio para grande gáudio da maioria dos presentes (os outros eram os dos Animais). Apenas não sabemos que destino levou realmente o gatinho, porque, na vida real, os Bombeiros acabaram por desistir de tirá-lo da sargeta e foram salvar vidas para outro lado.
[20] Mau sinal: começam a fazer-se ouvir as primeiras vozes anónimas.
[21] Não sou eu que escuto atrás das portas. Eram os senhores que estavam a falar muito alto, a propósito de um cão branco e peludo, com todo o ar de ser roubado, que dois miúdos exibiam à trela com uma corda. A frase é aqui transcrita exactamente tal como ouvida na vida real.
[22] Mesmo a tempo. As vozes anónimas já começavam a descambar com grande velocidade.
[25] Voz anónima, mas ao menos levantando uma questão interessante. Os mabecos são os cães selvagens da savana, que tanto podem ser predadores como necrófagos, e formam matilhas temíveis difíceis de enfrentar. Chegam a competir com leões isolados para lhes roubarem carcaças de gazelas, e são até capazes de atacar as próprias hienas, também elas ferozes e organizadas em bandos. Devido à sua necessidade de territórios muito vastos para os machos conseguirem manter a fertilidade, a espécie encontra-se neste momento ameaçada de extinção. Proteger os mabecos é um dever de todos nós, mas trata-se de um dever tão pouco estimulante como o dever de votar na Hillary Clinton contra o Donald Trump: os mabecos são feios como o diabo, o seu latido traz à ideia um sanatório cheio de tuberculosos, adoram deitar-se no meio da estrada para não deixar ninguém passar, e são desnecessariamente agressivos. O mês passado, um dos meus melhores amigos, também ele de Angola, teve a lata de chamar mabeco ao meu Sebastião. O cãozinho anda deprimido desde essa altura.
[26] Temos pena, mas cabe-nos esclarecer: não, o Chefe não está a fazer um daqueles trocadilhos de que os homens tanto gostam. Está mesmo só a dizer “aquelas bestas daqueles pretos” no mais requintado francês desde que morreu o Stendhal.
[27] Sim. Josefa é a verdadeira mãe de António José. Foi um dos vários shockers do episódio anterior, tantos e tão assombrosos que acabaram por levar ao desmaio da jovem. Note-se que, hoje em dia, aos quarenta anos as mulheres aparentam a juventude que anteriormente só possuíam aos vinte. Daí – por exemplo – a forma como os Bombeiros de Estremoz lhe chamam indiscriminadamente senhora ou menina, e certamente vários outros nomes que não se repetem em voz alta. Note-se, também, que a Autora voltou a cair na armadilha do travessão.
Então, por volta das três horas da tarde, Jesus bradou em voz alta: “Elohi, Elohi! Lemá sabachtháni?”, que traduzido quer dizer: “Meu Deus, meu Deus! Por que me abandonaste?”
Marcos 15,34
Eu, o Narrador, vos digo:
Olhai a grande cidade obscena sob o sol luminoso. Encurralados entre o mar e as altas montanhas de pedra, milhares de edifícios. Apertados uns contra os outros, parecem assustados, mas não têm para onde fugir. O sol no alto do céu azul está a vigiá-los.
Atentai bem:
A boca negra da estação do metrô incessantemente vomita pessoas cabisbaixas e apressadas que provavelmente têm coisas urgentes para fazer. Mas o mundo passaria bem sem elas e sem as coisas que pretendem fazer. O sol não se importa com elas, quer apenas fustigá-las.
Todas as histórias se parecem:
De quando em quando corre um rápido sopro de ar pelo meio das ruas escaldantes. É como um suspiro que escapasse do peito da grande cidade de concreto. Nada mais que uma breve lufada que dobra a esquina e segue. E, logo, as ruas voltam ao ranço de todos os dias: misto de mijo velho e chope azedo.
As cidades não se diferenciam muito:
Quem consegue vencer o labirinto das ruelas estreitas, pode ver o mar que se estende preguiçoso e verde sob o céu sem nuvens. Na branca areia da praia, meninos e meninas andrajosos dormem amontoados. Por toda a longa noite cataram moedas no asfalto. Agora repousam. Sujos e ainda famintos. Quando acordarem, já levantarão com a mão estendida. Pedindo. Mas também ameaçando.
A gente é sempre a mesma:
Entre as altas palmeiras, homens amarram grandes fardos de latas amassadas de cerveja. Milhares de latas. É a fruta que mais dá por ali, seja nos regadios do asfalto preto seja no latifúndio da areia infértil. Dá coco também. Ocos cocos vazios que nada valem.
Mesmo pesaroso, devo informar-vos que:
Homens e mulheres passeiam pela grande calçada que separa a branca areia da barreira de edifícios. Aos milhares, velhos quase todos, azafamados. Nada têm a fazer, porém estão sempre apressados. Incessantemente, vão velozes de uma ponta à outra da longa praia. Parecem seguros de que, com essas caminhadas, enganarão a morte.
Eu, fiscal de ninharias, vos asseguro que:
A grande cidade movimenta-se também no interior dos edifícios. Pessoas vão de uma peça a outra realizando pequenas tarefas. Falar ao telefone, por exemplo. Preparar um café. Assistir televisão. Estão vivas e é isso que se espera de pessoas vivas: que andem de um lado a outro fazendo pequenas coisas.
Eu vos alerto, porém, para um detalhe:
Naquele meio-dia algo viria para sacudir o ramerrão.
Escutai o meu relato:
Um homem negro, de uns quarenta anos, nem alto nem magro, estava deitado numa daquelas calçadas sujas. Não era um homem decente derrubado por um mal súbito, como pode ocorrer às vezes. Não! Via-se pelas roupas rasgadas que era um nenhum. Tinha uns poucos fios de cabelos brancos nas têmporas. Ostentava os pés inchados e os calcanhares rasgados dos bêbados. Era, portanto, um dos tantos milhares que dormem naquelas calçadas e nos poucos desvãos onde os síndicos de edifícios ainda não colocaram ferros pontiagudos.
Eu, auditor de insignificâncias, preciso insistir:
Havia um homem preto de uns quarenta anos deitado numa calçada sob o sol amarelo. Daria um belo quadro, se ainda existissem pintores. O sereno rosto quase azul, a rala barba, o corpo ossudo por baixo dos trapos. Parecia estar dormindo. Mas, não, ele não estava dormindo. Isso as pessoas só perceberam depois.
Eu, praticante da esquecida arte dos contadores de histórias curtas, asseguro-vos que:
Os que deixavam apressados a boca da estação do metrô tinham que desviar do homem estirado sobre as lajes rachadas do largo. Os que chegavam para pegar o trem também contornavam aquele corpo estendido no chão. Se estivesse morto, certamente alguma alma caridosa se encarregaria de jogar uma folha de jornal sobre ele. Mas o homem estava vivo.
Como sabeis, meu dever consiste em ajuntar minúcias ridículas:
O braço esquerdo dobrado é o travesseiro. O braço direito, ligeiramente flexionado, está estendido diante do corpo. Um movimento muito leve, carinhoso, percorre a mão desse braço direito.
Sim, reconheço que vós não precisais desta parábola:
Muitos contornam o corpo sem lançar um só olhar para ele porque sabem que, hoje em dia, o que mais há são corpos caídos pelas ruas desta cidade.
Ouvi, porém, o que tenho a declarar:
Mas também existe gente curiosa. Uns velhos bem velhos e uns meninos bem meninos que olham o corpo estirado e percebem logo o lento movimento daquela mão. Uns riem abertamente. Outros sorriem. Outros, subitamente chocados, viram o rosto.
Prestai atenção neste irrelevante pormenor:
Naquela rua, havia um gato dormindo dentro de uma vitrina vazia.
Digo-vos mais:
O homem caído tem os olhos fechados e uma expressão quase beatífica. Seus lábios estão ligeiramente entreabertos de modo que todos podem ver uns belos dentes brancos e, entre eles, a ponta lúbrica de uma língua vermelha. É manso, quase imperceptível, o movimento daquela mão de grossos dedos que vai e vem empolgando o cilindro de carne quente.
Sim, admito que aqui ninguém precisa de fábulas, no entanto:
O homem do negro rosto azulado está fazendo amor consigo mesmo. Certamente pensa numa mulher porque seu rosto está como que suavizado por um sorriso. Uma mulher distante no tempo. Uma jovem mulher. E lentamente ele se afaga. Indiferente ao sol e aos edifícios. Sempre pensando numa fêmea. Em certos trechos do corpo dessa mulher. A bunda. Os seios. A racha úmida. A catinga boa que elas exalam quando estão excitadas.
Concluirei, sim:
Indiferente às pessoas apressadas – e estamos todos apressados –, o homem continua a se acariciar. Indiferente a tudo, o preto de cabelos ligeiramente grisalhos nas têmporas permanece deitado no largo da estação executando um movimento muito suave com a mão direita. A mão que acaricia uma parte daquele mesmo corpo. Um movimento muito suave sob o sol inclemente, na calçada, na clareira entre os altos edifícios.
Eis, filhos de Deus, a moral desta alegoria:
Muitos se reconheceram naquele movimento triste de mão solitária: o amor que se fabrica a si mesmo, o amor possível.
Lourenço Cazarré vive em Brasília e é jornalista e escritor, sendo autor, entre outros, dos romances Kzar Alexander, o louco de Pelotas e A longa migração do temível tubarão branco
Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores
CLARA PINTO CORREIA continua a trazer-nos, em directo de ESTREMOZ
UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO
Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira
“O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano
Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,
in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)
“Ao menos diz-me,” pede-lhe ela procurando manter a calma, no silêncio de cortar à faca que reina subitamente dentro do carro. “Agradeço-te as correcções… o TOUTS que passou a TOUS… os Citroens DS que eram todos de quatro lugares… Mas, afinal, como foi? Gostaste do conto? Ou não?”
O seu grande amante que nunca o será deita-lhe um olhar de morrer de tristeza.
“Bloody Mary,” diz ele, “eu não leio. Não tenho tempo para conseguir ler.”
Então este homem tinha mesmo um Cyrano de Bergerac que escrevia por ele.
Meu Deus. Quantos mais defeitos ocultos terá?
Quando Alexandre Noronha despeja Maria Alice à porta da sua casa, Josefa vem a correr toda cúmplice e sorridente, abrir-lhe os braços para a apertar contra si com toda a força.
Mas, para seu grande espanto, a velha e dedicada serviçal vê o BM prateado arrancar com os pneus a chiarem, estonteantes. Sábia e – por vezes – minimal, abraça a sua menina, acaricia-lhe o cabelo, sussurra aos seus ouvidos palavras de conforto, e vai tentar murmurar qualquer coisa doce quando Maria Alice, de nervos em franja, lhe pede que pare com isso e que vá mas é buscar-lhe um café muito grande à cozinha. Depois, procurando libertar-se dos vestígios de Alexandre Noronha, passa tudo a pente fino e descobre o nécessaire dele esquecido na casa de banho. Logo a seguir, incrédula, vê que ele deixou por baixo da cama uma mala grande e dura, de rodinhas, ainda por trancar. Ao puxá-la para fora e abri-la, espalham-se por todo o chão do quarto centenas de cartazes do CHEGA.
Bem, pensa ela, desfazendo-se em suores frios, mas há que aceitar que ser do CHEGA não é nenhum pecado.
Então e o Ruizinho da Farmácia, tão simpático, com um pernão tão gostoso?
Então e o rapaz do café da esquina, que está sempre a tratar-me por prima com um grande sorriso?
Então e o Bruno, o meu querido Bruno, aquele amigo do António José que o assistia nas pegas de cernelha? Um rapaz tão lindo, de olhos tão verdes, que, quando éramos jovenzinhos e ambos competíamos nas provas de salto, ainda fez amor comigo tão apaixonamente num daqueles quartos do antigo HOTEL ALENTEJANO que nem sequer tinham casa de banho… ah, Bruno.
Bruno, Bruno, eu sei que te lembras de tudo. O que nós suámos, e o que nós nos beijámos, e o que nós gememos e, quando tu me fazias vir e eu me torcia toda, toda molhada, toda suada…
É do CHEGA, o Bruno, lá isso é. Eu sei, porque agora, sempre que posso, passo as noites de festa a dançar com ele sob o olhar atento da mulher e das filhas, e o Bruno aperta-me toda contra si e não pára de dizer-me ao ouvido,
“Eu sou militante do CHEGA, ouviste, ó pintassilga, eu não gosto dos ciganos, tu estiveste foi muito tempo no Canadá, queres que eu te arraste para o primeiro quarto do ALENTEJANO que estiverlivre e volte a fazer de ti uma mulher inteligente, queres, queres, queres que eu te faça tudo o que te fazia dantes, florzinha, a ver se ganhas juízo?”
E, nestas alturas, eu rio, rio, rio.
E tenho mais imensos amigos aqui em Estremoz que são do CHEGA por causa da abundância profusa[1] dos ciganos. Eu chamo palhaço ao André Ventura, chamo-lhe até bobo da corte, mas a verdade é que sou mesmo amiga de muita gente da CHEGA, portanto deixa para lá que isso não conta. Vou mas é ao Facebook do Alexandre, onde nunca fui porque entre nós nunca se trocaram imagens, e deixo-lhe lá uma mensagem, bem legível e melhor ilustrada, com aquelas fotos de nós dois que a Josefa tirou cá em casa, a dizer,
ALEX MEU QUERIDO O TEU NÉCESSAIRE FICOU CÁ EM CASA, QUERES QUE O GUARDE PARA A TUA PRÓXIMA VISITA? Ou que to envie para onde, pois que nem sequer sei onde vives desde que te divorciaste da Gi?
Ora, ele está divorciado, não faz mal, pois não? É só uma brincadeira de quem tem bom perder.
Maria Alice demora algum tempo a encontrar o Face de Alexandre, uma vez que não sabe todos os seus nomes. Por vezes apetece-lhe desistir, mas a raiva dá-lhe asas. Mas, quando finalmente o encontra…
… com imagens em tempo real, aparentemente filmadas pela tal filha menina-mulher que vai fazendo um relato em voz alta de tudo o que se passa…
Santo Deus.
Aí está porque é que teve que sair da praia a correr.
Alexandre Noronha está neste preciso momento a falar num comício do CHEGA em Beja[2], abraçado a Gi Medeiros, a sua linda mulher muito loira, que, vista nas imagens, parece uma modelo. E, uma vez mais, está a defender que as mulheres que fizeram abortos devem ser obrigadas a tirar os ovários.
Do lado de fora da porta, Josefa bate insistentemente. Maria Alice ainda hesita, mas depois resolve oferecer-lhe o nécessaire para ela oferecer a algum gajo no Natal e abre assim mesmo – despenteada, de olhos vermelhos e com olheiras profundas, só de shorts e T-shirt, a própria imagem da despodência[3].
Está alguém por trás da Josefa.
Quando, finalmente, a porta é empurrada para o lado com toda a delicadeza, verifica-se tratar-se do próprio Bruno, o feliz proprietário da CASA DAS BIFANAS DE ESTREMOZ, com quem Maria Alice fez tantas maldades aos vinte anos. Maria Alice nunca mais o viu a não ser nas noites em que dançaram nas festas locais. Agora, na luz do dia ainda intensa, faz mesmo vibrar o coração desabrigado da pobre esposa do amigo António José. É ele, mais maduro. É mesmo ele, como aos vinte anos mas de olhos ainda mais verdes, ainda com mais sardas, ainda mais destacadas contra a pele ainda mais morena. Assim que aperta Maria Alice contra o coração, Josefa desata num dos seus falajares.
“Ai, menina. O menino seu marido voltou um mês mais cedo de fazer de tradução simultânea em Bruxelas. Meteu licença sem vencimento, sabe o que isso é? Eu também não sabia, mas ele contou-me tudo, é assim uma coisa como o que dá nos pobrezinhos, e nos doentinhos, e depois nós temos de ajudá-los. E eu estava maravilhada, porque ele só dizia coisas lindas. Diz que tem saudades da sua linda terra, diz que tem saudades da sua linda casa, diz que tem saudades de viver na cidade mais luminosa do mundo… e, sobretudo, diz que tem saudades da sua linda mulher de olhos cor de mel. Diz que foi o Canadá que lhe estragou o amor pela menina que saltava melhor de que todos os homens de Estremoz…”
“Ahahah!”, interrompe Bruno, e Maria Alice quase desfalece ao escutar de novo, sem ser ao ouvido, aquela voz que a deixava sempre sem fôlego. “Francamente, ó Josefa. Diz lá se, nos concursos, eu também não parecia um milagre a voar pelas nuvens, e a encher o lago depois dos três obstáculos de repuxos contra o sol já a descer, todo vermelho.”
“Pois sim,” responde-lhe Maria Alice, que só de ver o Bruno recuperou o orgulho e se encheu de brios. “Tu bem podias saltar para te admirarem, mas era só assim, mesmo, com o sol a pôr-se, de maneira a ninguém ver bem os teus saltos. E depois todas as mulheres gritavam – OLÉ! – e tu ficavas tão orgulhoso, mas tão orgulhoso…”
E continua, desta vez para a empregada:
“E tu pára-me já com isso, ó Josefa Eufémia, que eu não quero lembrar-me nem mais de uma vez dos pobrezinhos sempre com o nariz a pingar que vinham cá a casa, todos esfarrapados, com as vozes muito roucas, a pedir ajuda ao gordo com que eu me casei. Bruno, queres vir comigo ver a sala de redacção da PANGEIA?” O convite faz com que se desloquem os dois para a ala da casa pejada de máquinas, telexes, televisões nas notícias internacionais cada uma ligada a seu canal com impressoras, e, no canto mais longínquo, resmas de papel, cartuchos, secretárias, estantes, e prateleiras. Mas se julgavam que podiam estar sozinhos bem podem é mas é[4] tirar daí o sentido, porque Josefa continua a bradar à porta.
“Bem, e, dito isto, nós-as-mulheres-do-povo nunca o achámos assim tão gordo como isso. Era gorducho, talvez, e com umas entradas mas muito pequenas, para homem talvez usasse perfume a mais, mas é porventura[5] de uma grande elegância, com piada, diga-se já, aquelas piadas como a que sempre foi um homem tão à frente que comprou o carro da AUTOPERNAS[6] logo em 1658 porque mesmo naquela altura era evidente que, mais cedo ou mais tarde, ia ser preciso tirar a carta, e as do século XVII eram mais baratas, já se sabe[7]. Olhe, minha menina, o seu gorducho não era parvo, ai isso antes pelo contrário, era charmoso e divertido, e tinha aquelas maneiras bonitas de quem não descura enquanto não beijar a moça mais bonita do baile.”
E é distraindo ambos com estas conversas que Josefa consegue insinuar-se[8] dentro do escritório.
Vendo-a entrar, compreendendo que nunca na vida terá privacidade, Maria Alice começa a deslizar, estonteada, pela espreguiçadeira de lona riscada de azul com uma inscrição oval que diz por trás WONDERWOMAN. Josefa, que conhece bem os efeitos devastadores da sua hipoglicémia, põe-lhe logo à frente uma caixa de chocolates. Depois regressa, sozinha, para os lados da cozinha. E é aqui que, subitamente, os ouve gritar lá de dentro,
“E cala-te, que só a tua própria voz me faz mal[10]! Queres que eu te atire com um agrafador à cabeça?”
“Ai eu agora tenho é que apanhar com um agrafador na cabeça? E desde quando é que isso passou a ser um agrafador, já agora, ó pintassilga?”
Maria Alice passou vinte anos sem ver Alexandre, passou vinte anos sem ver Bruno, sente-se condenada a continuar a ver António José, e sente-se muito mal. Fecha-se no escritório, Fecha as portadas. Não sabemos se, durante todo o dia seguinte, esta mulher se manteve consciente ou – nem ela seria capaz de o dizer. Quase não tem voz. Sente frio. Tem horror ao frio. Um verdadeiro horror cego. Em pequenina, por causa de tratamentos bárbaros da pele, feitos com azoto líquido, tremeu e tremeu horas a fio, até que a tiraram de lá de dentro com a face e das orelhas e os dentes todos a baterem. Depois a vida espetou com ela no Canadá.
Já chega, pensa Maria Alice, e é só o que pensa. Já chega.
Mas claro, custa-lhe muito pensar “CHEGA”. E, por isso, começa a sentir-se cada vez pior.
Finalmente, agora que já não se ouve nada, Bruno encosta um olho ao buraco negro da fechadura. Maria Alice está viva, acordada, e, a avaliar por todos os seus sinais de choro silencioso, está até mais do que consciente.
Josefa vem trazer-lhe um grande copo de água com algum açúcar e pingos de limão. Depois, enquanto a segura e segura o copo, vai falando com calma à sua doentinha, ao mesmo tempo que Bruno, sentado do outro lado da cama, lhe acaricia a mão com gentileza.
“Agora a menina só tem é que tratar bem o seu maridinho querido,” diz-lhe Josefa, enquanto Bruno lhe pisca o olho cheio de malandrice. “Eu chamo já as outras mulheres e limpamos-lhe todas a casa num instante. Ele está mesmo aí a chegar, e já me disse que vai convidar o Bruno, para depois irem os três para a… para a naite, pois, já se sabe. E então ele deixou-me um recado expressamente a pedir que a menina lhe faça aquele seu guizadinho de javali de que eles os dois gostam tanto, e pediu-me a mim que lhe faça aquelas lamparinas com rodelas de violetas e de cravinas vermelhas escuras, pode ser menina? Eu também posso fazer-vos a salada de beldroegas, com cebola e salsa picadinhas, e dou um dos ossos maiores do Valali ao Júnior para que ele não se sinta excluído.”
Bruno interrompe-a com uma gargalhada sadia.
“Para que o cão não se sinta excluído, Josefa? É aqui a minha pintassilga que anda a ensinar-te essas palavras finas?”
“Ora adeus vais-te-me embora[11], moinante,” rosna-lhe Josefa com todos os seus pudores linguísticos ofendidos. “Ou julgas que eu não sei o que é que tu e a chinesa da loja, enfim, cala-te boca? Ande, menina, anime-se. Vamos para o jardim lá de trás com os candeeiros amarelos nas hastes do laranjal, pomos a loiça do cavalinho, e olhe, pergunte ao Bruno o que é que ele acha, a menina vista aquele vestido azul-celeste todo flutuante e já sabe como é, este aqui também andou apaixonado por si desde novo e nunca se esqueceu do seu perfume e olhe que…”
Bruno interrompe-a outra vez, com mais uma gargalhada sadia.
“Então o que é isso, Josefa, agora vais divulgar todos os segredos de Estremoz? Vê lá se também contas à Alicinha de quem é que o António José é mesmo filho, anda lá!”
“Pois muito bem, menina Mariazinha, então fique sabendo que o menino António José é meu filho!”, responde-lhe Josefa de queixo erguido. “O bebé da Senhora nasceu morto, e então eu, que também tive o meu nessa mesma altura, dei-lho. Foi por amor, para ele poder viver melhor, compreende, menina Mariazinha? Nós éramos muito pobres e eu nem nunca fui casada.”
“Claro,” sussurra o Bruno para a Maria Alice. “E enfim, deste-lhes o puto é como quem diz. Aqueles dez mil euros que eles tiveram de pagar pela criança pobrezinha ainda ajudaram mais a Josefa a não ser pobre. Devias ter pedido vinte mil, ó Josefa.”
“Sim, ó menina,” concorda Josefa. “Passe-me aí vinte mil mocas para as mãos e eu não mostro a ninguém as suas fotos com o olho azul de Lisboa, nem o filme de vocês a dançarem, nem as cartas de amor que a menina deitou no lixo sem sequer rasgar, nem falo de nada, e depois somos todos felizes.”
Maria Alice está agora quase a desmaiar de vertigens.
Nessa altura ouve-se, vinda do portão, o tom inequívoco da voz festiva de António José. Incapaz de aguentar mais tanto stress, Maria Alice desmaia nos braços de Bruno.
[1] “Abundância profusa”, Maria Alice? Ora, deixem lá as redundâncias da miúda em paz, seus voyeurs. Não é a melhor altura para exigências estilísticas.
[2] Consta que em Beja ainda há mais ciganos do que em Estremoz. Mas será possível?
[3] Bravo, Maria Alice. Despodência. É assim mesmo.
[4] “Bem podem é mas é.” Isto sim, é carinho pelo português.
[5] Pronto, pronto, pronto, hey, a malta rende-se, este “porventura” saiu mal à pobre Josefa. Mas qualquer pessoa precisa de começar por qualquer lado.
[6] Do Lino Pernas. Foi recentemente trespassada, mas ainda não se percebeu a quem.
[7] Piada genuinamnente alentejana, aprendida em Novembro último com um dos maqueiros das urgências do Hospital de Évora.
[9] “Procalhão”, foi mesmo o que ela disse. Memórias das brincadeiras de antanho, quando a ambos puxava muito o pé para a chinela naquelas alturas.
[10] Também brincadeira de outros tempos. Inspirada na inesquecível canção MULHER FATAL, de Toy, em que a rima do refrão declara que “só o teu próprio olhar me faz mal”.
[11] De todas as expressões locais, este “Ora adeus vais-te-me embora” está quase no cimo do TOP 10. Expressão local vencedora no último episódio.
Seios e óvulos traça um retrato da feminilidade e maternidade contemporâneas no Japão, contando as viagens íntimas de mulheres que enfrentam os costumes opressivos e as suas próprias incertezas no percurso para encontrar a paz e um futuro a que possam chamar verdadeiramente seu.
Seguimos a história de três mulheres: Natsu, de trinta anos, a sua irmã mais velha, Makiko, e a filha desta, Midoriko. Makiko viaja para Tóquio em busca de uma operação de preço acessível para aumentar os seios. É acompanhada por Midoriko, uma adolescente cada vez mais calada por se sentir incapaz de expressar as pressões vagas, mas esmagadoras, associadas ao crescimento.
O seu silêncio revela-se um catalisador para que cada mulher enfrente os seus medos e frustrações. Num dia quente de verão, dez anos mais tarde, Natsu, numa viagem de regresso à sua cidade natal, debate-se com a sua própria identidade indeterminada, enquanto enfrenta ansiedades sobre envelhecer sozinha e sem filhos.
Desafiando todos os preconceitos sobre narrativa e estilo de prosa, misturando humor irónico com uma profundidade emocional fascinante, Kawakami é hoje uma das mais importantes e mais lidas escritoras do Japão. Começou por se destacar na esfera cultural como música, depois como poeta e blogger de sucesso, sendo agora uma romancista premiada.
Título
Noite
Autor
Elie Wiesel
Editora
Dom Quixote
Sinopse
Nascido no seio de uma família judia na Roménia, Elie Wiesel era adolescente quando, juntamente com a família, foi empurrado para um vagão de carga e transportado primeiro para Auschwitz e, depois, para Buchenwald.
Este é o aterrador e íntimo relato do autor sobre os horrores que passou, a morte dos pais e da irmã de apenas oito anos, e da perda da inocência a mãos bárbaras.
Descrevendo com grande eloquência o assassínio de um povo, do ponto de vista de um sobrevivente, Noite faz parte dos mais pessoais e comovedores relatos sobre o Holocausto, e oferece uma perspetiva rara do lado mais negro da natureza humana.
Título
Mil grous
Autor
Yasunari Kawabata
Editora
Dom Quixote
Sinopse
Com uma contenção que mal disfarça a ferocidade das paixões das suas personagens, um dos grandes romancistas japoneses do pós-guerra criou uma luminosa história de desejo e arrependimento, e da saudade quase sensual que liga os vivos aos mortos.
Quando Kikuji é convidado para uma cerimónia do chá organizada por uma antiga amante do falecido pai, não está à espera de se ver envolvido com a rival e sucessora desta, a senhora Ota. Nem suspeita do sofrimento profundo que nascerá dessa relação. Mas, na cerimónia do chá, cada gesto tem um significado. E, em Mil grous, até o toque mais fugaz ou o comentário mais casual têm o poder de iluminar vidas inteiras… por vezes no mesmo instante em que as destroem.
Título
O retrato de Dorian Gray
Autor
Oscar Wilde
Editora
Fábula
Sinopse
Belíssima tradução do único romance escrito por Oscar Wilde, que chegou a ser censurado, e hoje ocupa um lugar consagrado na História da Literatura.
Basil Hallward, um artista famoso, pinta o retrato de Dorian Gray. Ele está fascinado com este jovem elegante e educado que encanta a sociedade londrina do final do século XIX. É através deste pintor que Dorian conhece Henry Wotton, um homem rico, cínico e hedonista, por quem se vai deixar influenciar. Convencido da sua boa aparência e de que procurar o prazer e beleza são as coisas para as quais vale a pena viver, Dorian comenta com os dois homens que faria tudo para permanecer eternamente belo e jovem.
É então que começa a dar-se um estranho fenómeno: a imagem do quadro vai mudando com o tempo e o retratado não. Apesar do declínio moral e dos anos que passam por Dorian, ele permanece sempre com a mesma aparência juvenil e agradável. Porém, no quadro o seu retrato vai mostrando todas as marcas do tempo e da sua vida cheia de vícios. Durante anos, Dorian consegue esconder o quadro do olhar de todos, fechando-o à chave. Mas há um dia em que o estranho mistério vai finalmente ter fim.
Tradução de Carla Maia de AlmeidaIntrodução de Afonso Cruz
«O romance faz uso de um tema recorrente nas artes — especialmente na literatura e no cinema —, o duplo, que é muitas vezes desenvolvido numa perspetiva maniqueia, em que o mal conduzido a um limite extremo e grotesco, criando uma tensão espelhada entre a personagem original e a metamorfose a que se vai assistindo.» In Prefácio de Afonso Cruz
Título
Portugal: Porquê o país do salário abaixo de mil euros?
Autoria
Luís Valadares Tavares e João César das Neves
Editora
Dom Quixote
Sinopse
Em Portugal: Porquê o país do salário abaixo de mil euros?, Luís Valadares Tavares e João César das Neves conversam sobre a evolução do país nas últimas décadas e os grandes bloqueios que impedem a realização das reformas indispensáveis ao progresso e ao crescimento económico. Prefaciado por Luís Marques Mendes e concluído com uma entrevista conduzida por Nicolau Santos aos dois autores, este livro é «um sobressalto cívico indispensável e uma importante pedrada no charco». Uma obra de grande atualidade.
«Quase 50 anos depois do 25 de Abril, mudámos muito mas podíamos e devíamos ter mudado muito mais; tivemos ciclos relevantes de transformação e mobilização da sociedade, mas desde o início deste século que andamos sistematicamente a baixar de divisão na Europa; a maior e mais preocupante consequência prática deste nivelamento por baixo está nos salários médios de mil euros que este livro cruelmente recorda e que atormenta milhões de portugueses.»Luís Marques Mendes
Título
Guia de filosofia para pessoas inteligentes
Autor
Roger Scruton
Editora
Guerra & Paz
Sinopse
Este livro mostra-nos como a filosofia é decisiva para a nossa vida moderna: o que é ser humano, o que é ser consciente, o que é a vida, o que é a liberdade?
Este livro é um pequeno tesouro. Para todos os leitores e não só para estudiosos de filosofia. Este Guia mergulha-nos nos mais controversos temas contemporâneos, do sexo a Deus, da moral à música, do tempo ao conceito de pessoa, da liberdade à história: Roger Scruton, um filósofo admirável, apresenta-nos esses temas e traça um quadro com possíveis soluções, sendo deliciosa, em particular, a sua discussão do sexo e da música.
Scruton mostra como a filosofia nos ajuda, hoje, na busca pela verdade e como pode ser um remédio para as nossa dúvidas e confusões actuais, guiando os leitores numa aventura que contempla toda a subtileza e todas as nuances de uma experiência humana autêntica. De uma forma simples e clara, percebemos com as grandes questões dos nossos dias se ligam à tradição filosófica de Platão a Wittgenstein.
Título
A vida de Beethoven
Autor
Romain Rolland
Editora
Guerra & Paz
Sinopse
Nesta biografia crítica, Romain Rolland, escritor laureado com o Prémio Nobel da Literatura de 1915, homenageia, com a sua escrita intimista e intemporal, outro grande nome, desta vez da música: Ludwig van Beethoven.
A vida de Beethoven é o retrato de um génio da música, que também era «um infeliz, pobre, inválido, solitário, a personificação da dor, a quem o mundo recusa a alegria», mas que, no sopro do seu heroísmo, «cria ele próprio a Alegria para a dar ao mundo.», diz-nos Romain Rolland numa descrição da vida e obra do pianista com uma elegância romântica de quem admirava o talento e a empatia do grande compositor alemão.
Esta obra, escrita a partir de fontes originais (especialmente de testemunhos dos amigos do músico), é complementada por uma selecção da correspondência de Beethoven e por algumas das suas citações mais famosas.
Haverá melhor forma de convidar os leitores a descobrir, ou redescobrir, Beethoven e as suas obras?
Título
O segredo da Ordem de Cristo
Autor
Emílio Miranda
Editora
Saída de Emergência
Sinopse
Uma intriga com sete séculos eliminou os Templários.Mas terão eles desaparecido?
Em 1307, Filipe, o Belo, rei de França, põe em marcha um plano para eliminar os Templários. Em Portugal, D. Dinis conspira no sentido oposto: pretende salvá-los de um fim que parece já ter sido ditado. Ao criar uma nova Ordem de Cristo, herdeira dos Templários e com sede em Castro Marim – o mais longe possível dos olhares da Europa cristã -, D. Dinis funda também a Ordem que, um século mais tarde, viria a ser a precursora dos Descobrimentos Portugueses.
De que modo se projetam nos nossos dias esses acontecimentos tão distantes? Isso mesmo é o que irá descobrir Júlio Pomar, um jovem arqueólogo, desde sempre apaixonado pela temática templária, ao ver-se enredado numa perigosa intriga que começa na Idade Média e envolve os enigmáticos Guardiões Templários. Mas quem são eles? E qual o seu papel no lendário tesouro escondido dos Templários?
Título
Os meninos de Palhavã – As vidas atribuladas dos bastardos de D. João V
Autora
Isabel Lencastre
Editora
Oficina do Livro
Sinopse
As vidas atribuladas dos bastardos de D. João V. «O rei D. João V foi homem de muitas mulheres e, ao que se diz, pai de muitos filhos», escreve Isabel Lencastre nas linhas iniciais deste livro. O monarca teve seis descendentes legítimos do seu casamento com a rainha D. Maria Ana de Áustria, mas terá deixado vários bastardos. Destes, apenas reconheceu a paternidade de três rapazes. Os eleitos ficaram conhecidos como os Meninos de Palhavã.
Os três irmãos tiveram uma vida que raramente lhes sorriu, ainda que Gaspar tenha chegado a arcebispo primaz de Braga e usufruído desse estatuto. Já António e José sofreram humilhações públicas e foram alvo de punições severas, como aquela que os empurrou para um exílio de 16 penosos anos no Buçaco, depois de acusados pelo Marquês de Pombal de graves crimes contra a majestade do seu irmão, o rei D. José I. Foram libertados do degredo depois da morte do monarca, mas nem o reinado da sobrinha, D. Maria I, lhes serviria para verem as suas aspirações atendidas.
Rica em intrigas, traições e injustiças, que desfilam ao sabor de uma linguagem refinada e subtil, a história dos desafortunados Meninos de Palhavã é resgatada do esquecimento e contada pela primeira vez nestas páginas por Isabel Lencastre (autora do também imperdível Bastardos Reais) depois de uma aturada investigação.
Título
Helena ou o mar do Verão
Autor
Julián Ayesta
Editora
Dom Quixote
Sinopse
Um livro intemporal sobre a transformação da inocência em desejo… com aquela cadência que só a descoberta do primeiro amor traz.
Na Espanha católica dos anos cinquenta, um rapaz aguarda, ansioso, a chegada do verão e dos primos, principalmente Helena. Mas, de um verão para outro, Helena transformou-se. Pode a inocência tornar-se subitamente desejo? E pode o que se sente… ser pecado?
Este é um livro absolutamente maravilhoso sobre a transição da infância para a adolescência. Tão simples que é impossível não nos revermos nele.
Quando apareceu, em 1952, Helena ou o mar do Verão foi considerado por um grupo de leitores entusiastas uma das obras mais extraordinárias da narrativa espanhola do pós-guerra. Passados tantos anos, permanece intacto o seu poder de sugestão e o lirismo da escrita de Julián Ayesta.
Título
A sociedade industrial e o seu futuro
Autor
Theodore Kaczynski
Editora
Libertária
Sinopse
Theodore Kaczynski licenciou-se na conceituada Universidade de Harvard em 1962, integrando de seguida o corpo docente da Universidade de Michigan onde obteve o seu mestrado (1964) e o seu doutoramento (1967) em Matemáticas, sendo-lhe atribuído o Galardão Myers Para Melhor Dissertação do Ano.
Entre 1967 e 1969 transita a professor assistente na Universidade da Califórnia, demitindo-se para surpresa dos seus pares e mudando-se para uma cabana no Montana, onde aprende técnicas de sobrevivência e vive de modo primitivo e autossuficiente como agricultor biológico, caçador e recolector.
Nesta cabana começa a redigir A sociedade industrial e o seu futuro e, entre 1978 e 1995, a construir bombas artesanais que envia a administradores de empresas de tecnologia bem como a académicos que estudam avanços científicos e tecnológicos, prometendo dar por terminados os seus atentados caso algum órgão de comunicação social de massas publique a sua obra, que ficará conhecida como O Manifesto do Unabomber e que inspiraria séries como “Manhunt: Unabomber” (2017) e a longa metragem “Ted K” (2021).
Theodore Kaczynski considerou que o modo mais eficaz de mandar abaixo o actual sistema tecno-industrial seria pela violência, e em pouco mais de uma década as bombas do Clube da Liberdade, organização fictícia que assinava os comunicados do Unabomber, feriram 23 pessoas e causaram a morte de outras três.
Os seus métodos violentos são veementemente repudiados por todo o espectro político e académico, mas o seu pensamento tem sido alvo de estudo tanto pela parte de cientistas como Bill Joy (fundador da Sun Microsystems), filósofos anarquistas como John Zerzan (autor de Futuro primitivo) e até de psiquiatras como Andrew Solomon (que o cita na sua obra mestra, O demónio da depressão). Na era da distopia dos algoritmos e do Metaverso, nunca um ensaio foi tão pertinente!
Título
Ainda não sabiam que eram fascistas
Autor
João Bernardo
Editora
Libertária
Sinopse
O génio de Corradini consistiu em, a partir da direita, ter entendido a necessidade de renová-la politicamente, usando para isto o proletariado. Residiu aqui a substância mesma do fascismo na senda de Sorel e tantos outros promotores do sindicalismo revolucionário, em França como na Itália, que foram pioneiros do fascismo. Os sindicalistas revolucionários transportaram para a extrema-direita um radicalismo de actuação e uma audácia de pensamento que até então lhe haviam faltado, e em troca reforçaram o seu próprio elitismo vanguardista.
Na visão de uma classe trabalhadora privada de estrutura interna, a incitação ao heroísmo nacional podia ser tão satisfatória para os sindicalistas revolucionários como a mobilização do dinamismo operário, o «socialismo nacional» apresentou-se como a emancipação óbvia da «nação proletária».
Título
O primeiro de Maio
Autor
Sebastião de Magalhães Lima
Editora
Libertária
Sinopse
«A obra que prefaciamos resulta de um desafio do mestre Benoît Malon a Magalhães Lima de colocar no papel as suas impressões no âmbito da participação do português no 3.º congresso da II Internacional, que aconteceu em Zurique, entre 6 e 9 de Agosto de 1893. Magalhães Lima dedicou o trabalho ao socialista francês, em cumprimento da promessa que fizera quando o visitou, já doente, no seu leito, em Paris, dias depois do congresso. Foi a última vez que Magalhães Lima o veria. Benoît acabou por falecer em Setembro desse ano.
O título da obra está directamente ligado a uma das resoluções tomadas naquele congresso, a confirmação da resolução do congresso de Bruxelas (1886) para a realização de manifestações do 1.º de Maio pelos trabalhadores. Deste ponto de partida, aborda o desenvolvimento das ideias socialistas na Europa, os seus teóricos e respectivos programas, e as várias especificidades que definem o seu pensamento, entre as quais o federalismo, a arbitragem internacional, o pacifismo e o feminismo.»
Gabriel de Oliveira Feitor
Título
Beleza: uma muito breve introdução
Autor
Roger Scruton
Editora
Guerra & Paz
Sinopse
Será a beleza subjectiva? Como poderemos julgá-la quando os nossos gostos diferem tanto? Poderá a beleza ser perturbadora? Será sempre inspiradora? O que torna uma pintura, uma sinfonia ou uma paisagem belas?
Dos prados às pessoas e de Safo ao canto das aves, a beleza tem seduzido e desorientado a Humanidade. Platão viu a beleza como o objecto do desejo e uma porta de entrada no transcendental. S. Tomás de Aquino viu-a como uma dádiva de Deus. Mas a beleza também pode ser perigosa, perturbante ou até imoral.
O que queremos dizer exactamente com «beleza» e que lugar deverá ela ocupar nas nossas vidas? Nesta brevíssima introdução, o filósofo Roger Scruton explora o conceito de beleza, questiona o que torna algo belo – na arte, na natureza ou na forma humana – e defende que a beleza desempenha um papel indispensável na configuração do nosso mundo.
Título
Uma noite descansada – Dez contos tradicionais politicamente correctos
Autor
Mário Carneiro
Editora
Guerra & Paz
Sinopse
Uma noite descansada revisita histórias contadas a crianças desde tempos imemoriais e actualiza-as e purificando-as de tudo o que nelas podia ofender, discriminar ou marginalizar aqueles que eram classificados e rotulados por serem «gigantes» ou «anões» ou «maus» ou «estúpidos».
Quando os revisores do politicamente correcto chegarem aos contos infantis vão ter de começar por higienizar a linguagem desta versão de dez clássicos que agora podem ser lidos e partilhados sem que se perpetuem estigmas a que nunca foi prestada atenção. Será que o lobo é «mau» por opção? E as irmãs da Cinderela? A história da Carochinha é um grito de libertação em relação à masculinidade tóxica?
E será que A caucasiana e os sete reféns da gravidade e A jovem menina do cabelo tipo 3A com abundante feomelanina e a família de ursos terão um final feliz? Poderá O jovem pato que enfrentava desafios estéticos por causa dos juízos dos outros superar os seus traumas? Conseguirá A narcoléptica esteticamente diferenciada encontrar quem a veja por quem ela é?
Nestes contos politicamente correctos nada será como dantes.
Título
A americana que queria ser rainha de Portugal
Autoria
Ana Anjos Mântua
Editora
Manuscrito
Sinopse
Nevada Hayes não foi consensual: nascida no seio de uma família humilde no Ohio, nos Estados Unidos da América, desde cedo fez todos os esforços para ascender socialmente. Pode dizer-se que obteve tudo aquilo com que sonhou – até casar com um príncipe.
Arrogante e calculista, não raras vezes obsessiva e mal-educada, a americana decidiu que um dia seria rainha de Portugal. Antes disso, abandonou um filho, divorciou-se várias vezes e foi protagonista de diversos escândalos. Quando conseguiu casar com D. Afonso, príncipe real, apropriou-se do tão ambicionado título de duquesa do Porto e também de princesa de Bragança.
Mas nem por isso se livrou de polémicas. Após a morte do marido, aquela que ficou conhecida como a viúva dos dez milhões herdou e levou do país muitos bens da família real. Nunca foram recuperados.
Após uma cuidadosa investigação, Ana Anjos Mântua, historiadora e coordenadora da Casa-Museu Fernando de Castro, apresenta-nos agora a incrível história de Nevada Hayes. Escrito na primeira pessoa, este romance histórico empolgante e envolvente revela-nos uma mulher astuta e egoísta, mas não menos humana, inteligente e apaixonada. Afinal, todos nós somos muitas coisas… e raramente uma coisa só.
Título
Os três nomes de Ludka
Autora
Gisela Pou
Editora
Casa das Letras
Sinopse
Romance baseado numa história verídica da II Guerra Mundial.
Em 1946, Ludka Nowak, uma criança de nove anos, chega a Barcelona acompanhada por uma centena de órfãos polacos. Muitos deles tinham sido raptados pelos nazis alemães e sujeitos a um intenso processo de germanização durante a Segunda Guerra Mundial.
A Cruz Vermelha Internacional e o Consulado Polaco permitem que as crianças sejam acolhidas na cidade, onde é fundada a primeira escola polaca. Enquanto as autoridades procuram as suas famílias, as crianças recuperam a língua e a cultura que lhes tinham sido roubadas.
Graças à amizade com Emma, uma menina da sua idade, Ludka, sujeita ao mais absoluto desenraizamento, conseguirá recordar episódios do seu passado e recuperar o seu verdadeiro nome.
Os três nomes de Ludka é uma história contada a três vozes: a de Ludka, a de Emma e a de Isabel, que se entrelaçam para nos levar a uma epopeia de sobreviventes forçados a viver numa época de tirania e opressão. Apesar disso, conseguem encontrar o seu lugar no mundo e aprender a viver e a lutar por aquilo que querem.
Título
Os flamingos também sonham
Autor
Miguel Jesus
Editora
Casa das Letras
Sinopse
Depois de um fenómeno natural ter destruído o castelo e a estrada para o Lago Ness, Dunlochry procura por melhores dias. Eis senão quando corre a notícia de que dois boletins com um autêntico jackpot foram registados justamente na pacata vila escocesa. O acontecimento ganha especial dimensão quando os dias passam e ninguém aparece para reclamar o prémio.
Só Dylan – um irlandês esmagado pela imagem opressora do pai e dono do estabelecimento que vendeu a sorte grande – sabe quem ganhou, mas a ética impede-o de partilhar a informação, mesmo com Elena Gilbert, a conhecida jornalista de televisão a quem pediram que fizesse a reportagem e por quem Dylan se apaixonou.
Porém, à medida que a ansiedade dos habitantes se vai transformando em violência e pressão – e que Elena regressa a Londres -, Dylan, que, tal como um flamingo, teme perder a cor se abandonar o seu habitat, só pode contar com Arthur Hilliard, um velho escritor que apareceu misteriosamente em Dunlochry e se tornou um dos seus melhores clientes. Só que Arthur já carrega o peso dos próprios segredos…
Com um ritmo trepidante e muito cinematográfico, mantendo o suspense até à última página, Os flamingos também sonham vem confirmar Miguel Jesus como um ficcionista extremamente dotado e original.
Título
Breve história da Guerra Civil de Espanha
Autora
Helen Graham
Editora
Tinta da China
Sinopse
Nova edição, em formato de bolso, de um livro incontornável sobre um dos temas mais abordados e inesgotáveis da história da humanidade: a Guerra Civil de Espanha.
A Guerra Civil de Espanha é um dos temas mais abordados da história da humanidade e permanece até aos nossos dias alvo de debate inesgotável. Entre outros sintomas do interesse gerado pelo conflito, contam‑se os cerca de quinze mil títulos já publicados, um acervo bibliográfico que rivaliza com o da Segunda Guerra Mundial.
Nesta «breve história», Helen Graham, internacionalmente reconhecida como uma das principais especialistas sobre a Guerra Civil de Espanha, debruça-se sobre a forma como esta afectou as vidas dos soldados e dos civis e como moldou o curso da política, da sociedade e da cultura, não só em Espanha como além-fronteiras.
Aos leitores, a autora proporciona a compreensão global do conflito, desde as suas origens até às últimas consequências da vitória franquista. Mas proporciona também, numa perturbadora análise final, que se interroguem sobre o significado e as implicações da Guerra Civil para o século XXI.
Título
Como observar e fotografar aves
Autoria
Gonçalo Elias e José Frade
Editora
Arena
Sinopse
O segundo livro dos autores do Guia Aves de Portugal Continental, um sucesso de vendas.
São cada vez mais os que se interessam pela observação e pela fotografia de aves selvagens. Este interesse possibilita, só por si, beneficiar de vários aspectos positivos:
– Permite conhecer melhor o mundo natural que nos rodeia e as muitas espécies que existem;
– O contacto com a natureza e o ar livre contribui para um estilo de vida mais saudável;
– Quanto mais pessoas partilharem as suas observações e fotografias, mais ficamos a saber sobre aves selvagens. Observar aves é uma actividade acessível a todos.
Qualquer pessoa pode fazê-lo, independentemente da sua idade, formação escolar ou académica, local de residência ou possibilidades económicas. Pode ser realizada a custo reduzido, pois para começar basta adquirir um pequeno binóculo que permita ver as aves com algum detalhe. Claro que, mais tarde, poderá considerar adquirir um equipamento melhor e visitar locais mais distantes. Mas para já, e com este livro na mão, está pronto para avançar.
Com 40 graus à sombra e luz de dia até às 22 horas
Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores
CLARA PINTO CORREIA traz-nos, em directo de ESTREMOZ
UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO
Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira
“O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano
Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,
in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)
Já na praia, depois de muitos mojitos, depois de muitos mergulhos na água fria, depois de muitos cigarros que Maria Alice partilha com ele, Alexandre não faz nenhum dos números físicos risqués dentro de água, ou na areia molhada, que descreveu por carta a Maria Alice com tão bela eloquência[1], em resposta à forma subtil como ela previamente o avisara, também numa das suas cartas, de que tem por hábito fazer topless na praia – assim como tem por hábito não usar sutiã – e não se sabe de onde veio este travessão. Mas enfim, pelo menos Alexandre começou a ter uma conversa mais pessoal. A tónica em que ainda não parou de bater mais vezes, no entanto, não foi a do seu divórcio recente da Gi Medeiros[2], nem a da sua relação agora mais complicada com a Margarida, a linda filha adolescente de ambos, já toda tão menina-mulher.[3] Claro que, levando todo este sofrimento silencioso em linha de conta[4], talvez fizesse sentido não esperar que Alexandre Noronha lhe falasse já dos sonhos que ambos tiveram vinte anos antes. O problema é a única coisa que ele lhe diz, uma vez e mais outra e mais outra, é que na realidade anda sempre stressado porque na sua empresa trabalham 1200 pessoas. “E isto quer dizer que há 1200 pessoas que dependem de mim, e eu penso nisso todos os dias.”
Para não dizer “vai ao psiquiatra tratar da tua ansiedade” porque sabe que os homens não toleram ouvir “psiquiatra”, Maria Alice, toda esplendorosa no seu novo topless (comprado de propósito para o glamour do momento), diz antes “então aproveita agora, que estás aqui comigo para namorar, não é para trabalhar, e ambos fizémos o pacto de mantermos os nossos telemóveis desligados.”
Palavras não são ditas, e o telemóvel de Alexandre desata a tocar – aos berros.
Ele olha para a chamada, fica vagamente pálido, vagamente trémulo, diz “epá desculpa, mas esta eu tenho mesmo que atender,” levanta-se num pulo e vai atender para longe. A chamada é tão longa que Maria Alice tem tempo de ir tomar banho. Quando regressa, Alexandre está a enfiar a sua tralha toda para dentro do seu saco de praia, e a murmurar, numa aflição, “tenho que ir já para Lisboa… tenho que ir já para Lisboa… 1200 pessoas que dependem de mim, tenho que ir já para Lisboa…”
[1] É verdade que foi ela quem deu o mote. Mas ele agarrou-o logo no ar, e nas suas cartas seguintes deu-lhe logo umas voltas de tal forma brilhantes, que Maria Alice, sendo culta e tendo sido obrigada a estudar francês durante vinte anos, neste momento já começa a pensar o seguinte: “Isto parece a história do Cyrano de Bergerac… o gajo escrevia tão bem… e vinha desconfiado de que alguém escrevia por mim… ai que horror… será que era outra pessoa quem escrevia por ele?”
[2] “Ah – mas eu agora – agora, Bloody Mary, eu não – eu não consigo – eu não consigo nem falar-te – da Gi – foi tudo tão duro – e – e – e – e tão – sabes – tão recente,” repete ele, enquanto ela tenta perceber se o seu amante que ainda não o foi – e agora parece ensaiar-se já para nem o ser – mas eu por enquanto não quero pensar nisto – enfim, pronto, eu por mim só gostava de saber se ele está a gaguejar ou a usar travessões.
[3]Menina-mulher é deveras piroso, mas neste ponto vamos todos continuar a disfarçar para quê? Já todos percebemos que Alexandre Noronha, a quem é atribuída estúltima expressão, possui um discurso que resvala facilmente para o piroso. Note-se que deveras também não é flor que se cheire, e que do recurso a estúltima quanto menos se falar melhor, e no entanto ambos os termos existem na língua portuguesa. Enfim, pertencendo a frase em causa ao discurso indirecto, façam como eu e culpem o narrador. Ou é um autor ladino do século XIX determinado a não se deixar apagar pela História, ou é uma Autora dos nossos dias de tal forma ressabiada que deixa minas e armadilhas de estilo duvidoso em toda e qualquer passagem potencialmente conotável com o masculino (e concedam, já agora, que este “potencialmente conotável com o masculino” não saiu nada mal à criatura que hoje vos escreve daqui desta secretária suja e desengonçada, cheia de trabalho e morta de calor, hm?).
[4]Silencioso homenageia agora o masculino, sem nós por enquanto sabermos se é para melhor ou para pior. Só sabemos é que se uma mulher travasse por carta a correspondência ardente das semanas anteriores, e depois aparecesse ali a falar de trabalho, já tinha levado um par de estalos. Das amigas (“o masculino” local nunca saberia de nada), dos leitores, e de quem quer fosse que a seguir ainda que tivesse o mau gosto de vir para aqui contar a sua história.
Prezado chefe, conforme combinado segue relatório de minha investigação:
Tendo chegado a este Planeta Terra, mais especificamente a uma cidade chamada Brasília, nos últimos dias do mês de Seu Júlio, de 2023, vi surgir logo uma oportunidade de fazer o levantamento sobre os terráqueos ordenado por Vossa Excelência.
Foi quando um senhor, cujo sobrenome seria em nossa linguagem marciana algo como Casa dos Fundos, acessou o Google e lançou naquele sistema de busca duas palavras: Preciso sósia. E acrescentou uma fotografia dele.
O diálogo
Assumindo o aspecto daquele cidadão, apresentei-me a ele e travamos o seguinte diálogo:
– Para que o senhor precisa de um sósia? – perguntei.
– Para me representar numa festa.
– Festa?
– Sim, amigos reuniram-se e, depois de muito refletirem, resolveram me dar um inusitado presente no dia do meu septuagésimo aniversário: uma festa.
– Pessoas carinhosas, presumo.
– Sim, e extremamente criativas.
– Qual será o meu trabalho?
– Representar-me na tal festa.
– O que terei de fazer?
– Circular entre pessoas sentadas ao redor de mesas e sorrir para elas.
– Mas o que devo dizer a elas?
– Nada. Pessoas que vão a festas de aniversário não querem ouvir nada. Preferem falar muito e em voz alta. E beber loucamente.
– Portanto, posso imaginar que por lá encontrarei alguns chatos.
– Vários. Diga a eles duas ou três frases banais e complete: preciso circular entre meus convidados.
– Mas eles, pelo lado deles, não ficarão chateados?
– Não. Logo pegarão outra vítima.
– Por que o senhor não vai à festa?
– Porque me sentiria ridículo!
– Foi então que resolveu me contratar?
– Sim, porque seria ainda mais ridículo uma festa sem o homenageado. Seria, como diria Mário Quintana, um velório sem defunto.
Os retardatários
No dia seguinte, na hora aprazada, seis da tarde, apresentei-me no local indicado. Permaneci por lá até às três da madrugada, quando a dona da casa, literalmente, varreu para fora os retardatários.
Os jornalistas
Pelo que pude depreender, tratava-se de uma festa de pessoas que exerceram um ofício hoje inexistente chamado jornalismo impresso.
Jornalistas eram pessoas inteligentíssimas, que ganhavam pouco, trabalhavam muito e divertiam-se ainda mais. Produziam diariamente algo que era como um livro, só que de folhas imensas.
Os jornalistas dividiam-se em duas categorias: os repórteres, que escreviam inverdades sobre políticos honestos; e os redatores, cuja função era deturpar ainda mais aquelas torpes acusações.
Para executar sua missão, eles se utilizavam de aparelhos chamados máquinas de escrever. Um senhor idoso disse que recentemente levou uma dessas máquinas a uma neta que vive nos Estados Unidos e que a menina ficou realmente espantada:
– Puxa, vô! Ela até imprime.
Os patrões
Jornalistas eram comandados por patrões, pessoas que eles costumavam roubar quando prestavam conta de suas viagens de trabalho.
Dou dois exemplos:
Um jornalista que foi a Manaus e por lá comeu um peixinho de 30 reais num boteco fuleiro apresentou a seu patrão uma nota de 300 reais na qual constava: Bacalhau à Lagareiro.
Um fotógrafo bastante robusto foi a Buenos Aires e lá comprou dois galos de prata numa loja de artesanato. Quando apresentou a nota, salgadíssima, na qual constavam “dos pollos”, o patrão reagiu:
– Mas você comeu dois frangos numa só refeição?
– Veja o meu porte!
Detalhe sórdido e líquido: Na foto acima está a bebida servida à sorrelfa, à socapa, por trás do balcão, só para os mais chegados ao aniversariante, contratante e tratante.
Os bêbados
Quando reunidos, jornalistas preferem contar anedotas sobre seus companheiros de profissão que não tinham controle pleno sobre o ato de ingerir bebidas alcóolicas, pessoas que carinhosamente tratam por “bêbados”.
Célebre é o caso de um deles que foi a Florianópolis e lá caiu no sono em local inapropriado. Ao despertar, viu diante de seus olhos grossas barras de ferro. E exclamou: “Que merda fiz ontem para estar preso?” Ao levantar-se, percebeu que estava dormindo sobre uma calçada da Avenida Beira Mar Norte e que a grade pertencia a um edifício, que com ela, a grade, procurava livrar-se dos mendigos.
A piscina
A festa foi realizada à beira de algo que chamam piscina, uma escavação que contém água, recoberta por uma grade de proteção feita com fios de nylon trançados.
Durante a festa, curiosamente, caíram apenas duas pessoas (ambas abstêmias!) na tal piscina. Um desatento jornalista esportivo cruzou-a rapidamente, em ângulo oblíquo, tropicando sobre a grade de proteção. Teve ali, disse ele depois, a ideia para uma nova competição olímpica.
O outro jornalista não chegou a atravessar a piscina. Deu apenas meia dúzia de delicados saltos acrobáticos, de rara beleza plástica, sobre a tela de proteção, mal molhando os sapatos.
As bebidas
Jornalistas, aparentemente, gostam muito de beber. Os mais idosos, que eram numerosos, davam preferência a uma bebida insípida, incolor e inodora chamada “água”. A maioria, porém, inclinava-se por um suco escuro servido em taças bojudas. A minoria dedicava-se a um líquido amarelado que era retirado de garrafas vermelhas. Essa última espécie me pareceu a mais sedenta.
Os pelotenses
A mesa que mais me chamou a atenção era aquela na qual estavam pessoas que se consideravam realmente especiais, mais cultas e civilizadas. Eram oriundos todos de um lugar chamado Pelotas.
Havia um chamado Karl Edward, que se apresentava como Príncipe da Pomerânia, e outro que se dizia Kzar de Leningrado, Serguei Narigovitch. Um outro era plebeu, porém milionário, chamado Joseph Cross, o Lorde das Cidades Satélites. Nessa mesa havia um cidadão que não quis me declinar seu nome. Disse-me apenas: “Sou O Empresário Paulista”. O mais jovem daquela mesa sussurrou: “Não, eu não sou, como andam dizendo por aí, O Novo Tubarão Branco”.
Lourenço Cazarré vive em Brasília e é jornalista e escritor, sendo autor, entre outros, dos romances Kzar Alexander, o louco de Pelotas e A longa migração do temível tubarão branco
Nota do autor:
Embora não seja comum o autor dizer de onde tirou a ideia de escrever uma crônica (na minha época, em Pelotas, dizia-se: quem explica é porteiro de boate), resolvi dar aqui um breve esclarecimento:
Odeio aniversários, em especial os meus. Sabendo disso, meus filhos resolveram comemorar o septuagésimo. Chamaram inclusive pessoas de lugares distantes. Quando soube, fiquei furioso. No tal dia, quase não fui à festa. Mas acabei cedendo ao choro da minha mulher. Lá o vinho tratou de acalmar-me. Como a maioria dos convidados era jornalistas com os quais trabalhei nos anos 1970 e 1980, resolvi vingar-me deles.