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  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    28 – Especulação sobre a existência de um mundo ainda pior

    Enquanto Batota, parecendo magoado com o que eu dissera, fazia beicinho de choro, eu me concentrei na observação do rosto de Miguela de Alcazar y Casas de Bourbon.

    A velha tinha os olhos abertos, como se realmente estivesse lendo. Pareceu-me serena, embora fosse difícil detectar qualquer expressão num rosto com tantas rugas.

    Uma mantilha preta, rendada, cobria-lhe metade da cabeleira incrivelmente negra. Milagre das tinturas modernas.

    Ao observar melhor o pescoço dela meu sangue gelou. Aquilo que me parecera uma minúscula sarda isolada não era uma sarda. Olhando bem de perto, percebi que era vermelha demais para ser sarda. Então me caiu a ficha. Aquilo era uma gotinha de sangue, bem em cima de uma grossa veia azulada. Percebi a seguir que, no meio da gota, havia um furinho quase invisível. Como a polícia não tinha visto aquilo?

    Mil e uma hipóteses explodiram no meu bestunto. Pensei inicialmente em mordida de cobra venenosa. Mas só se fosse cobra desdentada porque as mordidas delas sempre deixam dois furos.

    Pensei depois em uma seringa. Uma injeção de veneno? Mas por que no pescoço e não num braço?

    Mas aquilo poderia ser também uma mordida de mosquito coçada até sangrar…

    Devorei livros policiais em demasia. Como conheço todos os truques, meu cérebro fervilhava. As hipóteses se sucediam na minha mente com a rapidez de bombeiros embarcando em um caminhão de sirena ligada.

    – Que fazemos com o raio deste bilhetinho? – o português cortou-me as reflexões. – Entregamos ao delegado?

    Não quis dar a Batota a minha descoberta.

    – Vamos guardá-lo conosco – eu disse. – Ele funcionará como chamariz para atrair o assassino, se é que houve assassinato. Quando souber que o bilhete está conosco, o matador da espanhola virá para cima de nós, e, aí, nós o pegaremos…

    – Ou ele mata-nos antes – completou Batota, assustado. – Ao descobrir que o bilhete está conosco, poderá mandar-nos desta para melhor.

    – Ou pior – ponderei. – Reconheço que nosso mundo não é dos melhores. Tem guerras, miséria e muita fome. Mas eu, como pessimista fanático, penso que, se existir outro mundo, ele só pode ser bem pior.

    – Deixa-te de filosofices! – atalhou-me o gerente do hotel. – Vou agora deixar que os escritores examinem a cena do crime. Mas ficarei atento. Aquele que olhar a Bíblia com maior interesse passa a ser o suspeito número um, porque, de certeza, estará a procurar o bilhetinho.

    – Cuidado com essas lógicas simples, para não acusar inocentes! – eu o adverti. – O mais provável é que todos se interessem por esta Bíblia, que parece muito antiga e certamente é de uma edição rara…

    Não pude concluir a frase. Tive que correr atrás do português, que, em largas passadas, voltava ao salão.

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    29 – Gaúcho macho limpa lágrima com tapa

    Três dos escritores – Sim et Non, Dax e Foo – estavam à mesa rabiscando. Certamente já esboçavam romances baseados na misteriosa morte de Miguela de Alcazar.

    De cabeças baixas, Águeda Christine e Fedorova caminhavam ambas com as mãos às costas. Ou atrás das costas, como dizem os lusitanos de gema e de clara.

    Com o nariz quase roçando a parede, aparentemente interessado em descobrir falhas na pintura, Bugres recitou:

    – Todos os corredores nos conduzem a um labirinto, onde nos perderemos. Nós e o nosso outro eu. Às vezes morremos nós; às vezes, o outro. Sempre alguém acaba definhando na solidão dos labirintos.

    – Bah, tchê, não se trata só de uísque ruim – gritou Dax Chamber. – O castelhano se faz de louco pra passar bem.

    Dax era grande conhecedor de uísque. Seus olhos permanentemente raiados, sua papada vermelha e seu bafo de tigre eram sinais de sua intimidade com o licor escocês. Segundo notícia que li num tabloide inglês, não se passava um só dia sem que ele secasse duas garrafas. De litro.

    Parado na porta do salão, Batota ergueu a voz:

    – Venha, senhor Dax! Chegou a sua vez de investigar o quarto de dona Miguela.

    O americano levantou-se com esforço. Era gordo do tipo gelatinoso, recoberto por uma larga camada de banha trêmula, mais concentrada na cintura, tinha braços muito finos e compridos, que nasciam de ombros estreitos. Visto de costas, lembrava um losango.

    Apesar de ter escrito mais de cem obras, Dax era famoso especialmente por três livros: Atire antes e pergunte depois, Não abra a porta nem para o carteiro e Chumbo não derrete como gelo.

    – Como é que o senhor aprendeu a falar tão bem o gauchês, seu Dax? – perguntei, quando chegávamos ao apartamento 1313.

    – Foi em Nova Iorque, tchê. Conheci um gaudério de Camaquã que vendia churrasquinho pelas esquinas. Me enturmei com ele. Aprendi a falar até com o jeito de maconheiro de Porto Alegre, mas me amarro mesmo é no sotaque do pessoal de Uruguaiana.

    O americano limpou a garganta com três pigarros e recitou com o carregado sotaque do povo do Pampa:

    Virabosta é preguiçoso,

    Mas velhaco passarinho;

    Pra não fazer seu ninho,

    Se apossa do ninho alheio;

    Este há de, segundo creio,

    Seguir o mesmo caminho.

    – Que diabo é isso? – perguntou o Batota. – Também estará a enlouquecer o senhor Chamber?

    – Ele recitou “Antonio Chimango” expliquei, comovido. – É o mais belo poema da minha terra.

    Uma furtiva lágrima escapou-me do canto do olho para a bochecha. Limpei-a com um gesto viril, um tabefe. Depois, com voz trêmula, dirigi-me ao americano:

    – Sua pronúncia, seu Dax, é louca de especial.

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    30 – Procurando alguém que sinta vertigens

    Largas passadas levaram o americano rapidamente para junto do corpo da espanhola.

    De saída de bola, ele enfiou um par de luvas de borracha, que retirou do bolso da calça. E, sem que perguntássemos, explicou:

    – Uso luvas por questão de segurança. Vocês, cucarachas, não gostam de nós, gringos. Se eu deixasse impressões digitais aqui, vocês se serviriam delas, depois, pra me incriminar. Seria a glória para vocês, se eu fosse preso nesta cidade. Só assim um país de quinta categoria como o Brasil poderia ser citado no New York Times.

    – Temos tradição em incompetência e corrupção, mas não em canalhice! – reagi em voz alta. De vez em quando, como todo imbecil, sofro uns ataques de nacionalismo. – Dizer-me isso na cara não é só paranoico como revela megalomania. Nós, brasileiros, somos chegados a um jeitinho, é verdade. Preferimos a praia ao escritório, sim. Mas não somos, de modo algum, cretinos.

    Indiferente à minha indignação patrioteira, Dax afastou-se do cadáver e foi explorar a vasta janela envidraçada, da qual se avistava o jardim do hotel. Só então notei que havia alguns galhos roçando a vidraça. O americano tentou abrir a janela, mas não conseguiu.

    – A janela está perra por causa da ferrugem – explicou Batota.

    – Entonces o animal não passou por aqui – comentou o escritor, e tomou notas numa cadernetinha.

    – Animal? – perguntou Batota, espantado. – O senhor acredita que um bicho possa ter matado a dona Miguela?

     – Nada disso, tchê – Dax voltou-se para o gerente do hotel. – Animal, na elegante linguagem dos gaúchos, é o mesmo que ser humano, gente. Na verdade, eu me referia ao sujeito que fez a limpeza do apartamento. Se ele tivesse passado por aqui, a janela não estaria emperrada.

    – O que o senhor quer dizer com “sujeito que fez a limpeza”? – perguntei. – O senhor se refere aos empregados do hotel que fazem a faxina do apartamento ou a um possível ladrão que, além matar dona Miguela, teria roubado alguma coisa?

    Intrigado, o americano me olhou de alto a baixo. Ou não entendera a minha pergunta ou a entendera bem demais e ficara impressionado com a minha argúcia.  Não me respondeu. Anotei este detalhe na minha caderneta.

    Indiferente ao que se passava entre Dax e eu, Batota comentou:

    – É preferível mesmo que a janela fique permanentemente trancada, pois o quarto tem ar-condicionado.

    – Buenas, se a janela pudesse ser aberta, a gente teria que encontrar logo uma pessoa que sente vertigens – comentou Dax.

    – Por quê? – indaguei. – Ora, se uma pessoa sente vertigens, é óbvio que ela não se aproximaria da janela.

    – Mas é exatamente por isso, bagual! – explicou-me o americano. – Precisaríamos encontrar essa pessoa para tirar o nome dela da lista dos suspeitos.

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    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    25 – Vergonha é roubar e não poder carregar

    Finda uma muito demorada medição, na lateral, na longitudinal e até na transversal, o “topógrafo” dirigiu-se ao Batota:

    – A perícia está concluída, chefe. O povo que recolhe o corpo vem mais tarde.

    – Quando? – indagou o português.

    – Não posso precisar. É provável que venham ainda hoje…

    – Mas é claro que tem de ser hoje! Não tem outra forma.

    – Essa questão não é com a gente. É com o pessoal do Instituto Médico Legal.

    – E eles costumam demorar assim tanto? – indagou Batota.

    – Não quero assustar o senhor, mas eles sempre demoram – respondeu o agente. – Eles têm dois rabecões, que nunca funcionam ao mesmo tempo. Sempre um está avariado. Quebra uma peça, eles substituem com a do outro carro. Um dia, por milagre, os dois rabecões estavam funcionando. Aí, faltou dinheiro pra gasolina.

    – Mas isso é uma vergonha!

    – Vergonha é roubar e não poder carregar – retrucou o fotógrafo, belicoso.

    O português ia replicar, mas eu lhe fiz um sinal para que ficasse calado. E murmurei, pelo canto da boca:

    – A demora vai ser boa pra nós, seu Manoel. Poderemos investigar o local com calma.

    Depois que os peritos embarcaram no elevador, o lusitano interrogou-me:

    – As perícias nesta cidade são sempre assim, tão malparidas?

    Respondi:

    – Eu, se fosse o senhor, mudaria a pergunta. Indagaria: as perícias aqui em Brasília são sempre assim, tão minuciosas?

    – Mas esses sujeitos não constatariam o assassinato de Mikahilucha mesmo que ela tivesse sido morta por um tiro de canhão – comentou Fedorova. E tomou um gole imenso para repor a saliva gasta naquela frase.

    – Concordo com o jornalista – disse Águeda Christine. – Esses peritos só se esmeraram muito porque a morta é famosa demais da conta.

    – Bah, vou então ser o primeirão a investigar – disse Dax Chamber. – Fui eu que tive a ideia.

    – Sem essa, meu irmão – estrilou Sim Et Non. – Que tal fazer um sorteio?

    – Sorteio? – perguntou Bugres. – Por que não um azareio? A vida dos homens é regida pelo azar e não pela sorte.

     – Que o destino escolha nossos nomes em pedaços de papel! – disse Foo Lee Shi Man e rasgou uma folha. – Vou escrever nossos nomes aqui. Um sorteio decidirá a ordem de entrada no quarto… Bem, somos seis…

    – Sete! – berrei. – Sou o único brasileiro aqui. Exijo que o Brasil seja representado nessa investigação. Basta de colonialismo!

    – E os peritos, uai? – perguntou Águeda Christine. – Por acaso, eram suecos?

    – Eram funcionários públicos – contra-argumentei. – Funcionários públicos não contam para nada, em nenhum país do mundo. E acho que o Brasil ainda faz parte do mundo. Ou não?

    Para minha surpresa, um longo e generalizado silêncio, recheado de cabeças que assentiam, patenteou a aceitação da minha tese.

    – Vamos logo, tchê – disse Dax a Foo. – Estou mais nervoso que galinha agarrada pelo rabo. Hoje mesmo começo a trabalhar duro num livro sobre a morte de Miguela de Alcazar.

    – Deixe de ser bobo, sô – ralhou Águeda Christine. – No Brasil, o único trabalho duro que essa gente faz com gosto é comer rapadura.

    Por incrível que pareça, fui o primeiro a ser sorteado. Pela ordem, vieram depois os papéis com os nomes de Dax, Fedorova, Águeda Christine, Sim et Non, Foo e Bugres. Parecia cena de um roteiro de filme. Ou de um guião, como dizem os torcedores do Benfica.

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    26 – Recordando a aula sobre a beleza do crime

    Depois da surpresa, o pânico. De repente, tremi na base.

    Representar dignamente meu país naquela investigação, diante de tão destacados concorrentes, mais do que um desafio, seria um dever patriótico indeclinável.

    Bem, confesso que não sou dos mais patriotas. Cheguei a torcer pela seleção argentina de futebol num jogo contra a nossa. Sei que muita gente morreu por menos que isso. Mas o jogo foi no auge da nossa ditadura militar e eu acreditava que o regime cairia se a seleção brasileira fosse massacrada. E tem mais: o nosso treinador era antipático.

    Tendo então resolvido pedir ajuda ao gerente, peguei-o pelo braço:

    – Seu Manoel, nós dois, que falamos a língua do divino bardo que escreveu Os Lusíadas, precisamos juntar forças. Que tal unirmos a esperteza portuguesa à inteligência brasileira!

    – Não seria melhor unirmos a esperteza brasileira à inteligência portuguesa? – reagiu ele.

    – Seja como for! – respondi entusiasmado. – Imagine se conseguimos desvendar a morte de Miguela de Alcazar antes desses gênios da criminalística! Seria a glória para a comunidade das nações lusófonas.

    – Não sei se é isso uma boa ideia, pá – o português vacilou.

    – Mas o senhor me deu aquela magnífica aula sobre a beleza do crime perfeito!

    – Era aula teórica. Na prática, a coisa muda de figura. Não percebo nada de crimes. Desconfio até dos mortos.

    – O senhor é muito modesto! – empurrei-o para dentro do 1313. – Entre!

    Entramos, ou entrámos, como falam do outro lado do Atlântico. Como já disse, a cena proporcionaria um belo quadro a Velázquez. A velhota estava recostada na poltrona a mirar com olhos vagos um exemplar da Bíblia que sustentava, aberto, nas mãos. Lembrei de Medalhão lendo o Eclesiastes.

    Aproximei-me da morta e lancei um olhar ao livro, que estava aberto na última página, de número 1313. O fim do Apocalipse.

    – Isto é coincidência demais pra ser apenas coincidência – murmurei.

    – Qual coincidência? – quis saber Batota.

    – A Bíblia está aberta na página 1313, que é o mesmo número deste apartamento.

    – Minha Nossa Senhora de Fátima! – o português persignou-se. – Já não estou a gostar da brincadeira. Isto é sobrenatural, com certeza. Até fico com os cabelinhos do sovaco em pé.

    Inclinando-me sobre a defunta, percebi que havia uma pequena tira de papel solta na página 1313. Discretamente, peguei-a.

    – É um bilhete! – excitado pela descoberta, passei-o a Batota. – Vamos ler! Leia!

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    27 – Há lugar para todos na lista de suspeitos

    O tal bilhete estava escrito em português, em letras de forma, tremidas como se rabiscadas por alguém muito velho ou nervoso.

    Batota o leu em voz baixa para que ninguém – além de mim, é óbvio – o escutasse:

    Durante o Congresso, eu te desmascararei, Miguela. Apontarei os trechos dos vários livros que plagiaste ao escrever O touro maltês.

    A assinatura era uma só letra: S.

    – Raios! Não há dúvida! Este bilhetinho é a prova que dona Miguela foi assassinada! – concluiu logo o português.

    – Não prova nada – retruquei. – Mostra apenas que ela corria o risco de ser desmascarada por alguém. Ou que alguém a queria chantagear.

    – E quem será esse misterioso S? – perguntou ele.

    – Poderia ser o S de Shi, ou de Sim et Non.

    – Sem dúvida!

    – Mas poderia ser também o S de Strandford – acrescentei. – É o sobrenome de solteira de Águeda Christine.

    – Que loucura! – exclamou Batota. – Assim, só ficam de fora o argentino e o americano.

    – O americano, não! – estrilei. – Ele é conhecido no seu país como Dax “Speedy” Chamber. Em português, seria: Dax “Ligeirinho” Chamber.

    – Então, só fica de fora o argentino – concluiu o portuga.

    – Esse não! – gritei. – Ele estará em qualquer lista de suspeitos que eu fizer porque tem dois esses perdidos no meio do seu nome.

    – Mas também valem agora os esses espalhados pelo nome? – indagou Batota, olhando-me pelo canto de olho. – Nesse caso, Campestre de Campos, tu entras também para a relação dos suspeitos. Só eu, Manoel Joaquim Batota, estou livre dessa letra fatídica.

    – Justamente por isso, por ser o único aqui que não tem a tal letra no nome, o senhor é suspeitíssimo.

    – Era o que faltava! Disponho de várias testemunhas a meu favor! Tenho um bom álibi. Desde o início desta manhã, não estive um só momento sozinho.

    – Também tenho um álibi – retruquei. – Desde que entrei neste hotel, estou ao seu lado. Ou seja, estamos juntos desde quando o senhor ameaçou me matar…

    – Esquece aquilo. Foi uma brincadeirinha. Porém, vi que, quando chegaste ao hotel, antes de entrares no prédio, foste ao jardim. Durante esse tempo, poderias ter escalado a parede, entrado no apartamento de dona…

    Aquela afirmação me indignou. Eu tinha ficado um só minutinho no pátio. E exercendo uma tarefa romântica: curtir o aroma da terra molhada pela chuva!

    – E o que fazia o senhor antes de chegar à portaria do hotel, onde tentou arrancar-me o braço?

    – Ora essa! Eu estava no meu escritório, mais precisamente no quarto de banho do meu escritório.

    – Num local onde nunca há testemunhas, não é?

    – Tu és paranoico, pá! Do gênero dos que veem pentelhos até em bolas de bilhar.

    – Se ocorre uma morte num congresso de escritores policiais – retruquei –, até mesmo um pacato português tem de virar suspeito.

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    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

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    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    22 – Turistas estrangeiros têm o péssimo hábito de morrer no Brasil

    Jerônimo Aroeira lançou um olhar de desprezo aos escritores, e depois voltou a encarar a falecida.

    – Vi milhares de mortos ao longo da minha carreira – disse o delegado. – Os que se vão naturalmente desta vida têm no rosto um ar de triunfo. Veja esta cara enrugada! Parece estar dizendo: bem-feito pra vocês, que ficaram aí nesse vale de lágrimas.

    – É verdade – concordou Batota. – Dona Miguela devia estar muito feliz na hora da morte.

    – Já os assassinados têm sempre uma expressão de contrariedade – o delegado se pôs a andar pelo quarto. – Ninguém gosta de ser despachado às pressas deste mundo.

     – Sem dúvida – admitiu Batota. – Ser empurrado para fora da vida é algo muito irritante.

    – Bem, mesmo estando certo da morte natural. Enviarei pra cá os homens da Perícia Criminal – acrescentou Jerônimo Aroeira. – Afinal, não é todo dia que eles têm um cadáver de alta categoria pra autopsiar.

    – Precisamos provar que dona Miguela teve morte natural – insinuou em voz baixa o gerente. – Se alguém levantar suspeitas de um homicídio, a imagem do hotel fica beliscada.

    – Devíamos proibir a entrada de estrangeiros no Brasil – filosofou Aroeira. – Morrem por qualquer coisinha, às tantas até de resfriado. Turistas estrangeiros só nos dão dor de cabeça. Gastam pouco dinheiro aqui, e depois ainda costumam ter o hábito de morrer atropelados por motoristas bêbados ou então fuzilados por assaltantes. Isso quando não se metem na frente de balas perdidas.

    – Sim, temos de passar a aceitar apenas turistas imortais – palpitei. – Porque, mesmo quando eles morrem de causas naturais, os jornais do exterior sempre arranjam um jeito de atacar este pobre  nosso país, tão pacífico e seguro.

    – Você continua metido a engraçadinho, gaúcho? – indagou o policial.

    – Ganho pouco, delegado. Preciso me divertir de vez em quando.

    – Não há divertimento melhor do que lambuzar a bunda de mel e sentar-se sobre um formigueiro – recomendou-me Aroeira. E, voltando-se para Batota, indagou: – Quer dizer que toda essa velharia que está aqui no corredor escreve livros policiais?

    – Sim. Vieram de todos os cantos do mundo, de propósito para um congresso aqui em Brasília. Desejavam conversar sobre novas tramas para os seus livros policiais, as modernas técnicas de assassinato e como criar personagens marcantes.

    – Se visse esse povo na rua, diria que são fugitivos de uma clínica geriátrica ou de um hospício – comentou o delegado enquanto se encaminhava para o corredor, seguido pelos seus auxiliares.

    Os agentes de Aroeira ostentavam grossas correntes de ouro nos pulsos e no pescoço. Meganha sem corrente ou pulseira de ouro é como criança pobre sem vermes, dizia meu pai.

    Da porta do elevador, o delegado ainda gritou: – Seu gerente, não deixe que ninguém entre no quarto antes dos peritos! Depois, se for constatado que a velha foi assassinada, eu volto!

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    23 – Preferência pelos assassinatos em série

    Pouco depois da saída de Jerônimo Aroeira, já reunidos em torno da grande mesa redonda, destinada inicialmente ao debate das mais altas questões literárias, os romancistas decidiram investigar o caso.

    Quem começou a conversa foi Águeda Christine:

    – Gente, se todos os policiais brasileiros forem do nível desse delegado, o índice de esclarecimento de crimes não deve ser dos mais altos. Ele acha que Miguela morreu de velha. Esse moço parece não ter um espírito científico muito forte.

    – Discordo – disse Sim Et Non, sorrindo cinicamente. – Ele está tão preocupado com os aspectos científicos que, inclusive, mandará vir a Perícia. Cada macaco no seu galho.

    – Sim, deve pertencer à elite dos investigadores brasileiros – constatou Fedorova ao mesmo tempo em que olhava a garrafa contra a luz para ver o tanto de bebida que ainda havia dentro dela. – Ele até me lembrou bastante o chefe da Polícia de Moscou, Frascóvio Ilitch Botelhowhisky, que inventou uma técnica porreta de investigação. Antes do interrogatório, ele pega o suspeito pelo gogó, dá-lhe uns tapas na cara e diz: “Ô cabra, ou tu bebe uma garrafa de vodca todinha ou te espremo os bagos”. Quase sempre o sujeito prefere preservar os colhões, mas fica totalmente bebum e confessa o crime, mesmo não o tendo praticado.

    – A gente podia adaptar essa técnica para o Brasil – palpitei. – É só trocar a vodca por cachaça.

    – É, de fato, um método bom e barato – ajuntou Fedorova. – O chefe de polícia anterior ao Frascóvio costumava meter a porrada nos amarelos, mas a posterior internação deles em hospital saía muito cara.

    – Bah, que coisa mais ignorante! – meteu-se Dax Chamber. – Nos Estados Unidos dominamos as melhores técnicas de investigação. Ficámos um país rico porque nosso povo tem espírito científico. Somos pragmáticos e eficientes. Se me derem cinco minutos, descubro o que levou Miguela ao outro mundo. Americanos fazem tudo mais rápido e gastando menos dinheiro.

    – Em se tratando de morte, ninguém parece ser mais eficiente que os americanos – concordou Bugres. – Bons atiradores, eles matam dezenas de pessoas todos os dias em variadas chacinas nas escolas, estacionamentos ou supermercados. Mas, vejamos, na literatura, a eficiência não é atributo relevante. Embora os serial killers dos Estados Unidos matem mais gente em menos tempo, eu prefiro os assassinatos em série praticados na Inglaterra. Têm mais apelo literário.

    – Que conversa furada, mano! – chiou Foo Lee Shi Men, entediado. – Quem sabe apostamos pra ver quem descobre primeiro o motivo que levou dona Miguela à morte?

    Dax colocou a mão no ombro de Batota:

    – Seu gerente, será que a gente não podia ficar uns minutinhos na cena do crime, depois da Perícia. Só pra fazer uma investigaçãozinha. – Está bem – concordou o português. – Mas tenho de convencer os peritos para vos deixarem entrar no quarto. Não vos dou grandes esperanças, porque eles vão sentir-se ofendidos. Os brasileiros não gostam muito de trabalhar, mas ficam furiosos se alguém lhes propõe fazer de maneira eficiente aquilo que eles costumam fazer de má vontade.

    Criminologist

    24 – Debate sobre a secreta natureza dos defuntos

    Para nossa grande surpresa, até pelas últimas palavras de Batota, os agentes da Perícia Criminal – um fotógrafo e um agente –  não demoraram a chegar.

     E mais rápidos foram no trabalho. O retratista encerrou seu trabalho em um segundo: fez uma foto da morta e cruzou os braços.

    – O senhor não gostaria de fazer mais fotografias? – indagou Batota, cordial. – Dona Miguela era muito famosa. Certamente, no futuro, jornalistas e historiadores virão a Brasília para examinar o laudo policial. Seria assim melhor se houvesse…

    – É uma foto por defunto, meu chapa – bocejou o fotógrafo. – Ordem da chefia da poupar. Aqui, em Brasília, matam doze figuras por dia. Dá um filme certinho. Quando matam mais de doze, os últimos ficam sem o retratinho póstumo, entendeu?

    – Claro, mas no caso…

    – Para mim, morto é todo igual – o retratista bocejou de novo. – Olhe essa velha! Nem com maquiagem pesada a cara dela melhora.

    Quando o gerente do hotel lançou um olhar desalentado na nossa direção, resolvi apoiá-lo. Gritei então para o fotógrafo:

    – Amizade, o negócio é o seguinte: essa morta é famosa pra cacete no mundo inteiro. As agências de notícias pagarão o que tu quiseres pelas fotos. Com essa grana, depois, poderás até trocar de bicicleta.

    A minha informação chegou rapidamente ao cérebro do indivíduo. Mesmo dando ares de contrariado, ele sacou a máquina e desembestou a flashar dona Miguela de tudo quanto era ângulo.

    Igualmente sacudido pelas minhas palavras, o outro agente, de posse de uma trena, começou a mostrar serviço, medindo furiosamente o apartamento. Verificou a distância da morta à cama, à janela, ao armário, à porta. Depois, anotou a distância entre os diversos móveis. Tudo o que antes não fizera.

    – Estou agora comovido com a dedicação do “topógrafo”, meu – murmurou Foo Lee Shi Men. – Será que ele desvenda muitos crimes com aquela trena?

    – Ele não é pago pra desvendar nada – meti minha colher torta. – O coitado ganha um salário tão mixuruca que o máximo que exigem dele é que faça relatórios legíveis. No caso, com números legíveis.

    silhouette of two birds on top of building during sunset

    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    19 – O risco que se corre ao beber uísque do país errado

    Os escritores, Batota, o garçom e eu formávamos um bolo compacto de gente ansiosa. Nossos olhos comiam cada centímetro de abertura, corriam para cima e para baixo, varriam o carpete e as paredes do quarto de Miguela de Alcazar.

    – O que os olhos não vêem o coração não sente – disse Bugres, com forte entonação de desprezo.

    Então, por fim, vimos Miguela de Alcazar y Casas de Bourbon a cinco metros de nós, sentada numa confortável poltrona, junto à janela, lendo.

    Respirei mais aliviado.

    Naquela hora, pensei que, se quisesse retratar a paz, um artista bem que poderia pintar aquela cena: a empertigada mulherinha lendo, tranquila e concentrada.

    O português sussurrou:

    – Está tão entretida que se esqueceu do compromisso. Olhem que serenidade!

    – Está pra lá de serena, meu – disse Foo Lee Shi Man. – Eu diria mais: está assustadoramente tranquila. Não, mano, eu diria: está mortalmente em paz.

    As palavras do escritor chinês – autor de livros famosos como Guerra na Praça da Paz Celestial e Arroz envenenado – caíram como uma ducha de água fria sobre nós.

    – Valha-me, Deus! – murmurou Batota e avançou pelo quarto.

    Deteve-se a um metro da poltrona e, espichando o tronco, observou atentamente o rosto de dona Miguela. Por fim, voltou-se para nós e sussurrou:

    – Parece não respirar.

    – Caraca, malandro! – chiou Sim Et Non. – Na França, pessoa que não respira quase sempre está morta.

    – A morte esteve por aqui – acrescentou Bugres. – Sinto seu cheiro no ar. Exala um odor pestilencial. A traiçoeira morte caminha silenciosamente como os tigres. Conheço-a há muitos anos, mas tenho conseguido enganá-la até hoje. Espero dar de cara com ela só depois que embolsar os dólares do Prêmio Nobel, se é que serei laureado. Com aquele dinheiro talvez consiga corrompê-la. Na América Latina até mesmo a morte é subornável. 

    Concluída a frase, o argentino rompeu a gargalhar como um possesso.

    – Bah, não tem nem dúvida – disse Dax Chamber. – A espanhola bateu com a alcatra na terra ingrata, deu com o rabo na cerca, defunteou-se, ou seja, passará a comer capim pela raiz.

    – Cacete, mermão! – voltou Sim Et Non. – Este congresso não vai ser apenas teórico. Será prático também porque já temos uma morte pra desvendar.

    – Bah, me deixem examinar a defunta – disse Dax Chandler, e saiu do meio do bolo em que estávamos imprensados. – Pode ser que essa velhusca esteja se fazendo de morta só pra gozar das nossas fuças.

    – Nada disso! – berrou Batota e, metendo a mão no peito do americano, o empurrou para fora do quarto. – Eu bem sei que o Brasil não é um país sério. E por isso sei também que os brasileiros conhecem bem as leis, mas só para as contornar melhor. Porém, lembrem-se: somos estrangeiros e o melhor é chamar a Polícia. Afinal, o país é deles.

    – Chamar a Polícia brasileira? – perguntou Foo Lee Shi Man. – Pra matar quem, meu?

    – Calai-vos, por favor! Basta de piadas! – urrou o português e, depois de empurrar-nos a todos para o corredor, fechou a porta do 1313. – Ninguém entra neste quarto, e ponto final! Vossas senhorias deixariam marcas por todos os lados, só atrapalhariam a investigação dos peritos…

    – Aprecio demais da conta o seu humor finíssimo – disse Águeda Christine, sorrindo pelo canto da boca, dirigindo-se ao luso. – Muito bem, ocê vai chamar peritos em quê? Em samba? Maracutaias? Ziriguiduns?

    – Os espelhos não conseguem refletir o escaveirado rosto da morte – disse o poeta argentino e bateu a bengala no chão. – A eternidade foi aprisionada nos livros. O tempo não passa de uma execrável metáfora escrita nas listras de uma zebra. Não acredito na dupla imortalidade: ou morrerei eu ou morrerá o Outro, o Impostor.

    – Nénada disso, sô – disse a escritora inglesa, encarando Bugres. – O seu uísque, meu véio, é que foi produzido no país errado. É por isso que ele lhe fez tanto mal. É por modo desse uísque qu’ocê está tendo essas visões.

    – Caluda! – berrou Batota. – É extraordinária a vossa falta de humanidade! A mais famosa escritora espanhola morreu no meu hotel, e os senhores e as senhoras não param de dizer disparates. Silêncio, por favor! Vou ligar já para a Polícia!

    clear drinking glass on brown wooden table

    20 – Quando a matéria-prima é a tragédia

    Mesmo durante o discurso do Batota os escritores não se calaram, é claro. Continuaram a entrecruzar diálogos nervosos enquanto Batota no telefone do corredor disparava ligações em busca de uma autoridade policial que se dispusesse a dar uma olhada na falecida.

    Encostado na parede, fazendo cara de sonso, eu observava atentamente o que ocorria diante de mim: os olhares, gestos, tiques e cacoetes de todos os escritores. E, com o uso do gravador, registrava todas as frases pronunciadas ali. Frases que, se bem analisadas, teriam outro significado além daquele que o mero alinhamento das palavras parecia indicar. Frases que eu deveria escutar novamente, com atenção ainda maior, mais tarde.

    Naquele momento eu me senti realmente um verdadeiro profissional do jornalismo em ação. Subitamente, minha reportagem ganhara intensidade, densidade e profundidade. Na minha cabeça já era uma reportagem que simplesmente se iniciava com a morte de uma das mais famosas escritoras de livros policiais do mundo. Era sorte demais! Do ponto de vista jornalístico, claro. O que posso fazer se a mais preciosa matéria-prima da minha profissão é a tragédia?

    De repente, uma ideia penetrou na minha cachola com a fulguração e a contundência de um raio. Eu, Campestre de Campos Campelo, jovem e modesto repórter do Correio de Brasília, estava ali e era simplesmente o único jornalista de toda a vasta terra a presenciar um acontecimento histórico: a morte de Miguela de Alcazar na abertura de um congresso de escritores policiais.

    Um tremor nervoso me sacudiu dos pés ao cabelo.

    Imaginei então, naquele já distante fevereiro de 1978, que, no dia seguinte, as primeiras páginas de todos os jornais de todo o mundo exibiriam a minha assinatura. By Campestre de Campos Campelo, from Brasília. Pour Campestre de Campos Campelo, en direct de Brasília. E em outras línguas mais esdrúxulas e que desprezam as vogais. E abaixo das manchetes garrafais, meu texto. Nervoso, ágil e irônico. Vívido. Envolvente. Uma obra-prima de concisão e ironia, segundo o The New York Times. Só receava que, ao registrarem meu nome, errassem a grafia.  Por exemplo: que esquecem o P do último sobrenome.

    Suspirei fundo para me livrar daquele delírio.

    Perguntei-me em silêncio: de que terá morrido a maior escritora espanhola de todos os tempos?

    Uma banal morte por velhice empobreceria o meu relato, mas um assassinato…

    Eu queria travar os pensamentos que me acossavam, para me concentrar no que estava vendo, mas a minha excitação era muito grande. A reportagem que eu escrevesse a respeito daquela morte, morrida ou matada, fosse como fosse, seria vendida para o mundo inteiro e desviaria rios de dinheiro para o meu bolso. Em dois ou três dias, eu seria famoso mundialmente. E rico. Logo, minha reportagem seria editada em livro e adaptada para o cinema. Depois, o Nobel de Literatura e o Oscar. Adeus, miséria!

    Suspirei outra vez mais, mais fundo ainda, para me limpar mesmo deste delírio.

    – Vou dizer uma coisa pra vocês, macacada – anunciou Sim et Non, entre duas cachimbadas. – Miguela era uma figura muito venenosa. Tão venenosa que, se mordesse a língua, morreria por causa de sua própria peçonha. Portanto, por mim, está decidido.

     – A quenga era mesmo safada! – concordou Fedorova. E, depois de um grande gole bebido diretamente no gargalo da garrafa, acrescentou: – Ela não se contentava só em falar mal duma pessoa, tratava logo de humilhar também.

    – Mas não será o esnobismo maledicente uma característica comum a todos os escritores ocidentais? – perguntou Foo Lee Shi Man, fingindo-se de tolo.

     – Bah, estamos mais parados que água de poço – lamentou-se Dax Chamber. – Ou a gente começa logo esse congresso ou investiga a morte de Miguela. Se ficarmos neste lero-lero, vou pro meu quarto escrever porque americanos estão sempre ocupados…

    – Verdade! – comentou Águeda Christine. – Ocês estão sempre muito ocupados com batata frita e Coca Cola.

    – Muié, tu qué insinuar que os americanos são todos barrigudos? – perguntou Fedorova.

    – Nada disso, uai – reagiu a inglesa. – Americano é gordo por inteiro, da canela ao pescoço. Tudinho obeso. Pançudo a gente acha mais nos países pobres. É verme, minha fia.

    – Quem trabalha duro, mano, são os chineses – comentou Foo Lee Shi Man. – Eu escrevo quinze horas por dia, seis dias e meio por semana. Aproveito as tardes de domingo pra ler jornais, pingar colírio nos olhos e aparar as unhas.

    – O que é um jornal? – perguntou Jorge Luís Bugres, assim de repente. E ele mesmo respondeu: – Um museu de minúcias efêmeras.

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    21 – Morta mesmo antes de falecer

    Aproveitei a deixa do argentino

    – Por falar em jornalistas, senhor Bugres, eu lhe pergunto: o que pensa sobre a morte de dona Miguela?

    – Respondo com outra pergunta: terá ela se defrontado com sua própria morte, pessoal e intransferível; ou terá sido alcançada por morte que lhe foi imposta por outrem?

    Era uma frase forte demais para que eu não insistisse:

    – O senhor acredita que dona Miguela possa ter sido assassinada?

    Todos os escritores voltaram-se para o poeta argentino.

    – Jornalistas! – exclamou Bugres. – Não posso vê-los, mas posso senti-los. Sempre afoitos, preocupados com insignificâncias… Mesmo assim, respondo com um poema esloveno, do século VII antes de Cristo.

    Bugres limpou a garganta e recitou:

    Apagou-se a mulher como uma vela

    Seu coração era uma ardente chama

    Azeitada de ódio, brilhante de rancor,

    Que o Diabo para si reclama

    Estávamos a deglutir as misteriosas palavras do poeta quando saltaram do elevador os policiais chamados por Batota.

    Eram quatro. À frente, vinha a figura inconfundível do delegado Jerônimo Aroeira, titular da Primeira Delegacia, meu velho conhecido. Vestia-se de preto, com exceção da gravata borboleta, multicolorida. Por trás dele, estavam três policiais típicos: barrigudos, pescoçudos e mal-encarados.

    – Quem é o responsável pelo hotel? – perguntou o delegado.

    – Manoel Joaquim Batota, aqui estou às vossas ordens e para os vossos pedidos – o português estendeu a mão ao policial.

    – Onde está a presumida vítima? – Aroeira fingiu não ter visto a mão do português.

    Naquele dia, o delegado trazia duas cartucheiras cruzadas no peito, um fuzil no ombro e três granadas no cinto.

    – O senhor parece estar preparado pra guerra, delegado – comentei.

    – Eu estava numa guerra, gaúcho. Foi numa agência bancária no Setor Comercial Sul. Evitamos um assalto. De cara, matamos quatro, mas os bandidos sobreviventes fizeram alguns reféns. Lançamos granadas de gás lacrimogêneo e três outros criminosos se renderam logo. Dois deles resistiram e nós fomos obrigados a picotá-los a tiro. Mas, como sabe, só recorremos à violência em última instância.

    – A polícia brasileira é competente demais da conta – comentou Águeda Christine em voz baixa. – Proteja-nos Nossa Senhora!

    – Mal botei o ponto final na operação, recebi ordem do secretário de Segurança pra vir imediatamente até aqui – continuou Aroeira. – Parece que temos aqui um óbito de qualidade internacional…

    – Era uma famosíssima escritora espanhola – explicou Batota. – Das maiores do mundo.

    – Onde está o corpo?

    – Aqui dentro – o português abriu a porta do apartamento 1313.

    – Esse bagulho aí? – o policial avançou na direção do cadáver. – Aposto meu pescoço que já estava morta antes mesmo de falecer. Com que idade estava?

    – Noventa e seis anos, que eu saiba – respondeu Batota.

    – Morreu em boa hora, que Deus a tenha – Aroeira benzeu-se e, apontando para os escritores, indagou de Batota: – Você desconfia de algum dos integrantes desse clube da terceira idade?

    – Fale baixo – sibilou o português. – São estrangeiros, mas falam todos a nossa língua. E também são famosíssimos escritores de livros policiais.

    Black Cat Walking on Road

    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    16 – Propensão para traçar tribufus, mocreias e jaburus

    A russa interrompeu a falação no exato momento em que entrava na sala um terceiro escritor: o famosíssimo Georges Sim Et Non, criador do casmurro detetive Jales Maigrot.

    Parei de respirar, à beira de um ataque de nervos. Nunca pensei que Medalhão falava a sério quando me mandou para o tal congresso de autores de livros de suspenses.

    Como disse, simplesmente parei de respirar. E não me lembrei de recomeçar.

    O francês Sim et Non é um dos meus autores favoritos. Tenho mais de trezentos dos romances que escreveu. Reli inúmeras vezes seus livros mais importantes: O homem que via passar o bonde, Sangue na névoa e O cachorro verde-amarelo.

    Pequeno, magro, ligeiramente encurvado, ele chegou com as mãos enfiadas nos bolsos da capa de gabardina, que estava com a gola levantada. Segurava entre os dentes a haste de um cachimbo fumegante. Com passinhos miúdos e rápidos, dirigiu-se ao estrado. Parou por trás da cadeira que lhe cabia, segurando o recosto.

    Seus olhos claros, de um verde esmaecido, giraram gelados em volta da mesa até que se detiveram em mim, que estava agonizando, quase morto de falta de ar. Com o choque daquele olhar, recomecei a respirar.

    O francês sentou-se e em voz alta e forte, com acentuado sotaque carioca, cheio de xis inexistentes e de erres arrastados, dirigiu-se ao Batota:

    – Meu irrmão, me diga um negócio: vamuix ou não vamuix ter recepcionixtaix neixte Congresso? Falo de garotaix, claro.

    Havia desapontamento na voz dele. Era do conhecimento geral que Sim Et Non apreciava mulheres jovens e bonitas, especialmente se desfrutáveis. Mas também era famosa sua propensão para, na falta daquelas, traçar tribufus, mocreias e jaburus. Papava o que pintasse. Sua fama de mulherengo empedernido e de amante frenético corria o mundo.

    – Não, mestre! – disse Batota, tão vergado que parecia decidido a lamber o chão. 

    – Putisgrila! Já que estamos nos trópicos, pensei que teríamos aqui tradutoras, estenógrafas e massagistas – disse o francês, e passou a língua pelos beiços para recolher a saliva. – Enfim, os mais variados exemplares da variada população feminina nativa.

    – Ficou combinado que, além dos senhores escritores, apenas eu e este jornalista permaneceremos nesta sala – explicou o português.

    – É homem demais pro meu gosto – lamentou Sim Et Non. E, depois de lançar um rápido olhar a Fedorova e Águeda Christine, perguntou: – E escritoras? Teremos outras? Mais jovens?

    – Só está faltando aqui dona Miguela de Alcazar y Casas de Bourbon – disse Batota.

    – A bruxa espanhola? – o rosto do francês franziu-se num esgar de desprezo. – Pensei que já estivesse no inferno dando trabalho ao Diabo.

    – Ela vai entrar agora – disse o gerente do hotel consultando um papelucho que tinha na mão. – Pelo sorteio, é a quarta pessoa a adentrar esta sala. Ou seja, neste exato momento…

    Com um rápido giro de pescoço, todos – escritores, Batota e eu – voltamo-nos para a porta. Foi um movimento uniforme, bonito mesmo, como se orquestrado, aquele que nasceu das palavras do português.

    Estávamos certos de que veríamos enquadrar-se na moldura o vulto magro e rosto seco e enrugado da velha escritora espanhola. Mas passaram-se muitos preciosos segundos, um minuto, dois minutos, e nada de Miguela de Alcazar aparecer.

    – Vixe santa, o que estará a fazer a megera? – perguntou lá pelas tantas Águeda Christine. – Espanhóis não costumam se atrasar.

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    17 – Morte é sempre a primeira hipótese

    Passados dois minutos, três minutos, o que apareceu na porta foi a cara de lua de Dax Chamber, o mais famoso autor americano de livros e de roteiros policiais. Após observar-nos com atenção, um por um, ele perguntou:

    – Mas, bah, tchê, adonde está a Miguelita?

    Eu já não tinha mais espanto para gastar. Acabava de ver em questão de minutos quatro dos meus maiores ídolos literários, todos falando em português brasileiro, cada um com um sotaque diferente. Para culminar, ali estava Dax Chamber falando com o sotaque peculiar da minha terra. Se quisesse ter uma emoção à altura, eu precisaria cair vítima de uma síncope, sucumbir, falecer. Para depois ressuscitar feliz.

    Notei que o americano empalidecia rapidamente. O sangue que lhe alimentava as veiazinhas da face – conferindo-lhe um tom róseo – fugia-lhe às pressas do rosto.

    – Adonde anda a piguancha baixinha? – insistiu ele. – Ela não deveria ter entrado antes de mim?

    Todos os outros escritores se movimentaram, inquietos, nas cadeiras. Fedorova tossiu e a caneta que estava diante dela rolou até o centro da mesa.

    – Ora, por certo estará a ajeitar-se no quarto – disse Batota, sem muita convicção. – Atrasou-se um pouquinho, apenas isso.

    – Miguela é pontualíssima – comentou Águeda Cristine. – Sempre chega na hora marcada que é pra poder aborrecer por mais tempo a paciência dos outros.

    – Mas, bah, viventes, me digam uma coisa: adonde é que se enfiou a castelhana? – insistiu Dax Chamber.

    O rosto do americano – que lembrava um prato, no formato; uma geléia, na consistência; e um lençol, na cor – mostrava grande preocupação.

    Todos os presentes se entreolharam, cismados.

    A primeira a sair do torpor foi Fedorova:

    – Onde está o corno do garçom que não volta com a minha pinga? Será que o condenado aproveitou a viagem pra assassinar Mikahilucha? Ou será que os agentes da KGB, que estão sempre tentando me liquidar, se enganaram de apartamento e mataram a velha?

    – Morte é batata! – disse Sim Et Non e soltou uma tétrica baforada. – Sempre que há um furdunço num congresso de escritores de histórias policiais, a morte é a primeira hipótese a ser levada em conta.

    Senti que havia como que uma carga elétrica no ar. Todos que estavam naquela sala trocavam rápidos olhares escorregadios.

    A pergunta de Dax Chamber – sempre pronunciada no mais genuíno gauchês – veio em nova roupagem:

    – Mas eu pergunto pra vocês, baguais: peladonde anda a cucaracha velhusca?

    Nesse momento, surgiu ao lado de Dax Chamber um homenzinho de terno preto. Por baixo de uma basta cabeleira preta, havia uma máscara amarela, na qual se destacavam dois olhos rasgados, nada mais que finos traços horizontais.

    Meu combalido coração mais uma vez disparou. Sem dúvida, aquele era Foo Lee Shi Men, o genial escritor chinês.

    Passando à frente do americano, o baixinho disse:

    – A morte, mano, se confunde com o sono mais profundo. Ou dona Miguela foi ferrada pelo sono ou foi ferrada pela morte! As chances de que uma pessoa deitada esteja morta são, meu, sempre de cinquenta por cento.

    Além do mano e do meu, Foo Lee Shi Men havia dito cinqueinta por ceinto. Seu sotaque, conclui, era paulistano da gema.

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    18 – Recorde mundial de movimentação em elevadora

    Morte.

    Também nas frases do escritor chinês surgira a palavra terrível. Ora, quando vários escritores de livros policiais, num mesmo lugar e hora, falam em assassinato ou morte, as pessoas ficam muito nervosas. Foi o que aconteceu então.

    Nós todos nos entreolhamos. Trocamos olhares surpresos, espantados, inquietos, interrogativos, suspeitosos e assustados. Nessa ordem exata. Se nossa imobilidade persistisse, logo faltariam adjetivos para descrever nossos olhares.

    Batota foi o primeiro a reagir à tétrica insinuação. Saltou da cadeira e apressado deixou a sala.

    Segui as pegadas dele.

    Ofegante, o português deteve-se diante da porta do apartamento de número 1313, ocupado por Miguela de Alcazar. Após um segundo de hesitação, bateu de leve.

    Nada de resposta.

    Estávamos já cercados pelos escritores ansiosos. O silêncio era profundo, mas pareceu-me escutar o surdo rumor daqueles cérebros brilhantes funcionando.

    Mais uma vez, mais forte, o gerente do hotel bateu à porta.

    – O silêncio está cheio de facas sedentas – disse uma voz muito rouca.

    Voltamo-nos todos na direção daquela voz. Vimos um velho magro de arrepiadas sobrancelhas grisalhas avançando pelo corredor. Tateava o chão e a parede com uma bengala.

    – É Jorge Luís Bugres! – gritei.

    – Todos aqui o conhecem – disse Batota.

    – É o divino Bugres! – continuei, excitado. – O poeta cego de Buenos Aires, o maior escritor das Américas, senhor das adagas, rei dos labirintos, domador de tigres, semideus dos espelhos…

    – Deixa-te de mariquices! – rosnou o português para mim. E, em voz alta e clara, indagou do recém-chegado: – O que quer dizer o senhor poeta com isso das facas sedentas?

    Bugres deteve-se perto de nós e falou:

    – Vocês batem à porta de Miguela porque temem pela vida dela. Bem, se ela estiver morta, será o fim deste hotel porque jornais do mundo inteiro dirão que no Brasil turistas são assassinados até mesmo dentro de quartos fechados. Porém, se Miguela estiver só sesteando, será ainda mais terrível porque os espanhóis defendem com garras e dentes o seu sagrado direito de tirar uma soneca no meio do dia. Miguela tem o gênio de um touro furioso e certamente vai matar aquele que a acordar.

    Batota levou o indicador à fronte e o girou. Para ele, o famoso Bugres não passava de um maluco. Depois, como para afrontar o poeta, esmurrou com força a porta do apartamento 1313.

    – Se a espanhola investir, sai-lhe bandarilha! – ameaçou o português.

    Passou-se um longo minuto e nada.

    Vendo o garçom que chegava, trazendo na bandeja uma garrafa de cachaça, o gerente do hotel gritou a ele:

    – Corre à portaria, pedaço de asno, e traz-me a chave-mestra. Já!

    O garçom girou nos calcanhares e sumiu no ventre do elevador que o havia trazido.

    – A minha birita! – urrou Fedorova. – Puta que pariu esse garçom! Eu devia dar-lhe um murro nos cornos! Vou morrer de sede! Volte aqui, chifrudo!

    – O serviço aqui é ruim demais da conta – comentou Águeda Christine, torcendo o nariz. – Os nativos são todos meios lesadinhos.

    Como que para contrariar a inglesa, o elevador se abriu um segundo depois e dele saiu o garçom. Acabara de bater o recorde mundial de descida e subida de elevador com bandeja. Fedorova voou em direção a garrafa de cachaça, derrubando Foo Lee Shi Men e Bugres.

    – Perdão, oxente, mas eu não suportaria ver esse baitola desaparecer outra vez com a minha pinguinha – disse a escritora russa à guisa de desculpas, e arrancou com os dentes a tampa da garrafa.

    Ofegante, o garçom entregou a chave-mestra ao gerente do hotel. Lenta e silenciosamente, Batota enfiou a chave na fechadura. E ainda mais vagarosamente a girou. Ouvimos um estalido. Em câmera lenta, o gerente foi abrindo a porta do apartamento 1313.

    hallway of building

    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    13 – A secreta ligação entre garçons e ladrões

    – Chegamos aos elevadores – digo eu.

    – Sim, chegámos aos ascensores – confirma o Batota.

    O ascensorista do hotel, como todos os seus irmãos de ofício, exibia uma tremenda unha de cinco centímetros no dedo mínimo da mão esquerda, utensílio de que se utilizava para a exploração das côncavas cavernas dos seus ouvidos.

    – Para que andar vamos, seu Manoel? – perguntou o unhudo quando embarcamos.

    – Para todos! – urrou o português. – Aperta em todos os botões. Descemos no andar que quisermos.

    De imediato, já recuperado do súbito acesso de raiva, Batota explicou-me em voz baixa:

    – Temos cinquenta apartamentos neste hotel. Vinte no primeiro andar e vinte no segundo. No terceiro, estão as dez suítes para os hóspedes de maior importância.

    Descemos. Saímos no terceiro andar.

    Abrindo os braços, Manoel Joaquim Batota sussurrou trêmulo umas palavras que trepidavam de emoção:

    – Aqui estão eles. Quatro gênios à minha esquerda, mais três gênios à minha direita. Quantos mortais no mundo inteiro tiveram o privilégio de vê-los assim, aqui reunidos, de ouvi-los, de admirá-los? Ninguém antes. Vivemos aqui um momento raro, tu e eu, Campestre. Devíamos cair de joelhos e agradecer ao Senhor por esta abençoada oportunidade.

    O lusitano respirou fundo, passou a mão pelos olhos já marejados e acrescentou:

    – Por quarenta e oito horas estas sumidades estarão no meu hotel. Enfrentarão pesada agenda, com incontáveis reuniões de trabalho. Somente duas pessoas têm autorização para permanecer na sala de debates: tu e eu. Somente um garçom virá aqui, de vez em quando. Cogitei em trazer-lhes tradutores, mas os escritores os recusaram. Como todos sabem falar inglês, francês e espanhol, escolherão a língua que quiserem. E tu, qual dessas línguas sabes falar bem?

    – Bem, nenhuma bem – respondi. – Mas me defendo em portunhol porque me criei em Bagé, na fronteira com o Uruguai. Arranho um pouco de francês, e dou uns tapas em inglês, que é a língua mais primária do mundo.

    – Como assim, néscio?! – o lusitano irritou-se. – Primária? Como podes dizer isso do idioma de Shakespeare, meu idiota?

    – Por causa da conjugação do verbo to be – expliquei. – Veja só: you are, they are. É como se a gente dissesse em português: tu és, eles és.

    O gerente do hotel permaneceu alguns segundos em silêncio coçando a cabeçorra.

    – Talvez não sejas tão estúpido como pareces à primeira vista.

    Paramos ao final do corredor. Batota esfregou vigorosamente as mãos antes de escancarar uma porta na qual se lia: Sala de Reuniões.

    – Está quase na hora dos nossos gênios saírem da toca.

    Entramos. A sala media uns quarenta metros quadrados e tinha umas trinta poltronas. Ao fundo, sobre um estrado, encontrava-se uma grande mesa redonda, em torno da qual havia sete cadeiras de assento e espaldar estofados em veludo. Em cima da mesa, sete microfones, blocos de rascunhos e canetas.

    O alfacinha apontou para um canto do estrado onde estavam duas cadeiras comuns:

    – Ficamos ali. A menos de três metros dos escritores. Mesmo que venhas a passar o resto da porca da tua vida de joelhos diante de mim jamais conseguirás agradecer-me o suficiente pelo imenso favor que hoje te presto.

    Subimos ao palco e, calados, tomamos posse de nossos modestos assentos.

    Mal nos sentamos, ingressou no salão um sujeito vestindo calça preta, paletó branco, camisa branca e gravata borboleta preta. Sem muito esforço, conclui ser o garçom. Mas, surpreso, percebi que aquele era o primeiro do seu ofício que eu via usando óculos de lentes mais grossas que fundo de garrafa. Lembrei de uma frase que o pai sempre repete quando vamos a um restaurante:

    – Nunca vi ladrão de óculos nem garçom míope, filho. Até nisso eles se parecem bastante.

    O garçom curvou-se diante de Batota:

    – Alguma recomendação especial, seu Manoel?

    – Permanece sempre invisível. Materializa-te apenas se precisarem de ti.

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    14 – Sangue, sexo e sobressaltos

    Desaparecido o garçom, o português voltou-se para mim:

    – Espero que os nossos geniais escritores sejam pontuais. Existe um protocolo minucioso do ingresso deles no salão. Entram sozinhos e com intervalo de dois minutos entre um e outro. E a ordem de entrada foi ditada por sorteio.

    Consultei meu relógio: três horas em cima da pinta.

    Voltei os olhos para porta e, um segundo depois, vi adentrar a sala de reuniões do Imperial Hotel da República nada mais nada menos que lady Águeda Christine, a quase centenária primeira-dama do crime inglês.

    Foi demais para o meu futebol. Agarrei-me à cadeira e fechei a boca para que o coração não me escapasse por entre os dentes. Ali estava em carne e osso – mais apropriadamente, em pelancas e ossos – a autora de clássicos como Assassinato no expresso Liverpool-Manchester e O sucessivo falecimento de dez meninos de cor, a criadora do famoso detetive Herculano Poire.

    Águeda Christine era mais alta, mais magra e mais velha do que eu pensava, mas reconheci-a pelos cabelos pintados de azul. Logo meus olhos correram para as mãos da escritora inglesa. Eu sabia que era apaixonada por joias. Naquele dia ela usava oito anéis de diamantes grandes como bolas de golfe.

    De imediato, liguei o gravador.

    Manoel Joaquim Batota não se aguentou dentro das calças, correu até ela e, meio ajoelhado, resfolegante, babujou-lhe os anéis.

    – Credo! – disse Águeda Christine, em português, com forte sotaque mineiro. – Não foi boa a safra do vinho qui´ocêandou bebendo, Chateau Gauchier, 1972.

    Incrível! A escritora inglesa havia descoberto a marca e até a safra do vinho só pelo bafo do filho da Lusitânia!

    – Brilhante descoberta, lady Águeda! – extasiou-se o Batota. – Foi mesmo um Chateau Gauchier, mas nem dei atenção ao ano da safra. Mas por saber que vos encontraria, após o almoço, escovei furiosamente os dentes, a língua e as gengivas. Como pôde a senhora descobrir que…

    – Uai! Depois da criação de Sherlock Holmes, todos nós, britânicos, ficamos bem mais espertinhos.

    – Fantástico! – continuou o gerente do hotel. – Eu bebi apenas…

    – Três taças!

    Batota arregalou seus olhos negros:

    – Como a senhora sabe até o número de taças?

    – Pelo número de raias vermelhas nos seus olhos, bobão!

    – Estou absolutamente pasmado. Venha comigo, lady Águeda, vou conduzi-la ao lugar que lhe cabe na mesa. Mas diga-me, no entretanto, apenas uma coisinha: onde a senhora aprendeu a falar tão bem a língua do glorioso Camões?

    – Foi em Londres com o meu jardineiro, um rapaz bobinho de Minas Gerais, chamado Bonifácio. Toda hora ele virava pra mim e recitava um trechinho de Os Lusíadas. A parte de que gosto mais é aquela que diz assim:

    Antes, em vossas naus vereis cada ano,

    Se é verdade o que meu juízo alcança,

    Naufrágios, perdições de toda sorte,

    Que o menor mal de todos seja a morte!

    – Oh! – entusiasmou-se o português. – É lúgubre, mas divinal!

    – Belo livro de aventuras! – acrescentou a inglesa. – Os Lusíadas é uma obra atulhada de tempestades, guerras, traições, cobiça e mulheres bonitas. É disso que gostam os leitores.

    – Belíssima tese! – disse Batota, sacudindo com movimentos concordantes sua cabeçorra. – Mas, fale-me da vossa receita de sucesso. Como faz para deter tantos apreciadores em todo o mundo?

    – Eu minto, uai! Quanto mais inacreditável a história, mais leitores eu arranjo. Escritores de livros policiais apenas repetem a fórmula dos jornais populares: sangue, sexo e sobressaltos.

    – Permita-me discordar! – disse Batota, lançando um olhar enviesado na minha direção. – A senhora está a ser muito modesta. Diga antes ser a vossa prodigiosa imaginação que vos permite inventar tantas histórias maravilhosas. E a vossa imensa gentileza depois concede-nos a benesse de nos deleitarmos com essas maravilhas.

    – Deixa de ser bobo, sô! Invento nada, não. Os fatos mais estúrdios acontecem primeiro com as pessoas e só depois de relatados pelos jornais é que surgem nos meus livros. A gente só faz adaptar o que leu nas gazetas.


    15 – A paixão brasileira por chope e dança

    A segunda escritora a adentrar o salão, exatamente dois minutos depois, foi a impressionante Fedorova Smerdlova Dornascostasviskáya.

    Era outra santa que tinha lugar de honra no altar dos meus deuses da escrita. Mundialmente famosa, ela havia passado quarenta e cinco dos seus cinquenta e oito anos nas prisões da Sibéria e da ilha de Sacalina. Durante trinta anos esteve em cana, na jaula propriamente dita. O restante ela viveu, ainda menina, numa casa ao lado da prisão onde se achava preso seu pai, o poeta anarquista Fiodor Iuri Ivan Igoróvitch Dornascostasviésky.

    Sou capaz de jurar que ela tinha uns cinco centímetros a mais do que a altura registrada na sua biografia oficial, que era de um metro e oitenta e cinco.

    Seu rosto tinha a cor de uma barra de giz. Por isso, ganhavam força o vermelho do batom que ela usava nos lábios grossos, o carmim que ostentava nas bochechas e o preto do rímel que lhe sublinhava os esgazeados olhos cinzentos.

    Não sou especialista em vestuário, mas julgo que o roxo predominante na saia xadrez que ela vestia não combinava bem com os riscos amarelos da blusa vermelha nem com o estampado do blêiser verde-limão.

    – Boa tarde, apostemas! – gritou para nós a russa, com sua voz de baixo profundo, num fortíssimo sotaque nordestino.

    Fedorova trazia firmemente preso pelos dentes um charuto cubano de dez centímetros. De circunferência. O comprimento era o dobro.

    Ela avançou a passos largos pela sala e com um salto acrobático pulou para cima do estrado, que tremeu e gemeu. Com um alentado suspiro, causador de uma tormenta que agitou as folhas do seu bloco de anotações, sentou-se ao lado de Águeda Christine.

    A seguir, seus olhos correram nervosos pela sala, como que procurando microfones escondidos.

    – Isso aqui mais parece um velório, cacete! – gritou. – Cadê a música? Russos não fazem nada sem bebida e dança. Dizem que a grande paixão dos brasileiros é por chope e dança. Cadê os músicos?

    – Não me deram ordem para providenciar música! – desculpou-se Batota, curvado diante de Fedorova.

    Apontando com o charuto fumegante para o português, a mulherona indagou:

    – Mas diga-me, cabra da peste, onde tão aqueles bronzeados e bronzeadas, que, seminus, rebolam, obscenos, ao som de pandeiros e tamborins? Por aqui só vejo rostos sombrios. Onde está a histérica alegria dos brasileiros?

    – Valha-me Santo Antônio! – meio zonzo, Batota pediu ajuda ao céu.

    – Deixe de embromação, seu filho de uma égua. Onde está a cachaça? Você deve saber que um russo, quando abre uma garrafa, só para de beber quando ela fica seca ou quando ele próprio vai para o hospital.

    – Bebida posso conseguir-lhe imediatamente – disse o gerente do hotel e bateu palmas.

    Como combinado, o garçom materializou-se imediatamente.

    Agarrando o garçom pela lapela, a autora de Contravenção e penalidade, Um dia na vida de Ivã, o Terrível e Guerra é guerra gritou:

    – Você, seu amarelo, traga logo uma garrafa de cana! Pode ser de qualquer marca, mas tem que estar cheia até os cornos!

    O garçom desmaterializou-se em fração de segundo.

    Fã de carteirinha da autora russa, eu estava simplesmente aparvalhado. Agarrado à cadeira, eu tentava dominar os tremores de frescura que me percorriam o corpo. Quando, por fim, Fedorova dirigiu seu olhar na minha direção, eu quase me derreti de tanta emoção. E ela continuou a discursar:

    – Estou avexada com Brasília. Esta bosta aqui lembra Moscou. Milhares de funcionários vagabundos, gordos todos, de ternos mal cortados, rodando o tempo todo em carros negros; um bêbado em cada quarteirão; e mendigos por todo lado. Realmente, estou me sentindo em casa.

    – Onde vossa excelência aprendeu a falar esse português castiço? – indagou Batota, pasmo por perceber que também Fedorova arranhava bem a última flor do Lácio.

    – Na Sibéria, com um vigarista cearense chamado Alencar. Ele foi pego vendendo vodca falsificada no Metrô de Moscou. Cumpriu pena de vinte anos de trabalhos forçados na Sibéria. Na prisão de Gorógrado, fundou uma fábrica de redes. Foi lá que o encontrei. Alencar era tão habilidoso que consertava relógio no escuro usando só os cotovelos…

    white and black ceramic teapot beside clear wine glass

    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • Estante P1: Outubro de 2023

    Estante P1: Outubro de 2023

    Título

    Os perigos da direita radical

    Autor

    Carlos Martins

    Editora

    Saída de Emergência

    Sinopse

    Os perigos da direita radical apresenta a história e analisa a ideologia da extrema-direita e da direita radical no pós-1945, não só em Portugal, mas em vários países do mundo onde o fenómeno continua presente. Dando especial atenção à atualidade e aos partidos e personalidades de direita radical que são mais relevantes em cada país, Carlos Martins identifica os principais conceitos que formam a ideologia da direita radical populista (nação, autoridade e populismo), bem como outros conceitos secundários que são importantes para entender as especificidades desta ideologia.

    Considerando também a evolução e transformação dos diferentes partidos e movimentos, o autor analisa a forma como estes conceitos se manifestam na direita radical em França, Itália, Rússia, Hungria, EUA, Brasil, Espanha e Portugal, e a ascensão de figuras como Marine Le Pen, Giorgia Meloni, Trump, Bolsonaro ou André Ventura.

    Este é um livro fundamental para compreender a atualidade, mas igualmente uma chamada de atenção para o que o autor considera o principal perigo da atual direita radical populista: a ameaça à própria democracia liberal.

    Título

    Somos o esquecimento que seremos

    Autor

    Héctor Abad Faciolince

    Editora

    Alfaguara

    Sinopse

    A obra-prima do escritor colombiano é um comovente tributo à memória pessoal, familiar e política do seu pai. Um dos romances latino-americanos mais celebrados do século XXI.

    A 25 de Agosto de 1987, o médico colombiano Héctor Abad Gómez é assassinado por paramilitares na cidade de Medellín, a poucos dias de umas eleições em que era candidato. Seis balas na cabeça puseram fim a uma vida de luta contra a opressão e a desigualdade social, num país amordaçado pelo narcotráfico e pela política suja.

    Vinte anos depois, o filho, o escritor Héctor Abad Faciolince, decidiu contar a história do pai até ao terrível epílogo. O resultado é um livro belíssimo, poderoso no que conta, comovente no que deixa intuir, uma história dilacerada e dilacerante sobre família e pertença, sobre perda e luto.

    Educação sentimental, romance de formação, radiografia da sociedade colombiana desfigurada pela violência, Somos o esquecimento que seremos é um romance em que pulsam memórias e afetos, escrito com a cabeça e com o coração, que emociona sem sentimentalismo, que indigna sem reclamar vingança. A obra-prima de um dos mais elogiados escritores colombianos do nosso tempo.

    Título

    A hora dos lobos

    Autor

    Harald Jähner

    Editora

    Dom Quixote

    Sinopse 

    A Alemanha depois da guerra. Um país em dissolução. Pessoas dispersas, desalojados, ocupantes, presos libertados, refugiados, culpados. Pilha-se, rouba-se, inventam-se novas identidades, começa-se do zero. Mas será isso realmente possível? Como se pode reconstruir uma sociedade a partir de semelhante caos?

    Ter escapado à morte lança uns num estado de apatia, aos passos que noutros faz brotar uma alegria de viver sem precedentes. A vida ficou virada do avesso, mas as pessoas voltam a conviver, e o país é percepcionado pelos mais jovens e destemidos como se fosse um parque recreativo, no qual todos os dias tentam a sua sorte.

    Harald Jähner dá-nos uma impressionante perspectiva geral dos primeiros dez anos do pós-guerra, mostrando como se reergueu a Alemanha. O recomeço – visto de um novo ângulo.

    Título

    A conspiração nazi

    Autores

    Brad Meltzer e Josh Mesch

    Editora

    Casa das Letras

    Sinopse

    Dos autores de The First Conspiracy e The Lincoln Conspiracy, bestsellers do The New York Times, chega-nos a história verdadeira e pouco conhecida de uma conspiração nazi para matar F. D. Roosevelt, Joseph Estaline e Winston Churchill no auge da Segunda Guerra Mundial.

    Em 1943, enquanto a guerra contra a Alemanha nazi se desenrolava no estrangeiro, o Presidente Franklin Roosevelt tinha um objetivo crucial: um encontro frente a frente com os seus aliados Joseph Estaline e Winston Churchill. Esta primeira reunião de sempre dos Três Grandes em Teerão, no Irão, iria decidir alguns dos pormenores estratégicos mais cruciais da guerra. No entanto, quando os nazis souberam da mesma, o seu próprio plano secreto tomou forma — um plano de assassinato que teria mudado o curso da história.

    Uma história verídica repleta de salvamentos ousados, duplos e intrigas políticas, A conspiração nazi detalha a reunião crucial de Franklin D. Roosevelt em Teerão e a mortífera conspiração nazi contra os chefes de Estado das três maiores potências aliadas que nela participaram.

    Com todas as características de um livro de Brad Meltzer e Josh Mensch, A conspiração nazi explora as grandes mentes políticas do século XX, investigando os anos cruciais da guerra ao detalhe. Esta reunião dos Três Grandes mudou o curso da Segunda Guerra Mundial. Aqui, é revelada a história interna daquilo que quase levou a um desastre mundial.

    Título

    Libertação

    Autor

    Sándor Márai

    Editora

    Dom Quixote

    Sinopse

    Cerco de Budapeste, dezembro de 1944. O Exército Vermelho encontra-se nas proximidades da cidade desde novembro e está prestes a conquistar a capital húngara.

    Nos dias que antecedem o Natal, uma jovem mulher de vinte e cinco anos, Erzsébet, procura refúgio para o seu pai, um famoso cientista, astrónomo e matemático que é perseguido pela Gestapo e por militantes do Partido da Cruz Flechada devido às suas conhecidas simpatias liberais. Depois de o deixar em segurança num minúsculo esconderijo subterrâneo, Erzsébet refugia-se na cave do prédio em frente, juntamente com os habitantes desse e de outros prédios das redondezas. Aí permanece durante as quatro semanas que durará o cerco do Exército Vermelho a Budapeste.

    Nesse submundo escuro, fétido e caótico, onde as pessoas se amontoam em colchões e as tensões estão ao rubro, Erzsébet nunca deixará de acreditar que a libertação há de vir, que os russos chegarão em breve e que tudo irá mudar. Finalmente, nas primeiras horas do dia 19 de janeiro, o primeiro soldado soviético aparece à porta do abrigo, mas nada será como Erzsébet tinha imaginado.

    Título

    O poder da autossusgestão

    Autor

    Émile Coué

    Editora

    Albatroz

    Sinopse

    Émile Coué, considerado o pai da hipnose, apresenta um método de cura e autoaperfeiçoamento, que já ajudou milhões de pessoas, focado no poder da autossugestão.

    Conduzindo-nos por uma jornada de conhecimento pessoal, ensina-nos a usar conscientemente a força incalculável que existe dentro de cada um de nós.

    Através da repetição de frases ou mantras, com uma intenção positiva, conseguimos alterar os nossos pensamentos e crenças de modo a termos uma vida com mais saúde, sucesso e felicidade.

    O poder da autossugestão, bestseller mundial, reflete uma abordagem transformadora sobre o autodomínio que nos permite alcançar o bem-estar mental e emocional.

    «Todos os pensamentos, bons ou maus, concretizam-se, materializam-se e acabam por se tornar, numa palavra, realidade.»

    Título

    Como viver sem diabetes

    Autor

    Manuel Pinto Coelho

    Editora

    Oficina do Livro

    Sinopse

    O método simples e eficiente para diagnosticar, prevenir e reverter a diabetes tipo 2.

    Este livro pretende ajudar quem já foi diagnosticado com esta doença, bem como quem já dela padece há vários anos e quer encontrar outra solução que não a farmacológica.

    A diabetes é já um flagelo que assola impiedosamente a grande maioria da população mundial. Segundo as últimas previsões espera-se que duplique em apenas 30 anos o número de diabéticos à volta do globo, para cerca de 1,3 milhões em 2050. Portugal não será excepção.

    A pergunta que se impõe é porque não evitar a todo o custo este cenário, em vez de lidar com as consequências? É isso o que propõe fazer o Doutor Manuel Pinto Coelho neste livro, ao mostrar-nos que a diabetes tipo 2 pode não apenas ser prevenida, bem diagnosticada e acima de tudo revertida. Tudo com gestos simples e mudanças quotidianas.

    Título

    Um dia de cada vez

    Autor

    Nelson Olim

    Editora

    Lua de Papel

    Sinopse

    Era a catástrofe do século. O tsunami de 26 dezembro de 2004 tinha dizimado a Ásia, e na comunicação social não se falava de outra coisa. Nelson Olim, de férias, preparava-se para ir à neve passar o primeiro fim de ano com a mulher, com quem tinha casado havia meses. Mas uma chamada, no dia 29, mudou-lhe os planos: “Queres ir para Sumatra? Vai haver uma missão.” O cirurgião, apaixonado pela emergência médica desde jovem estudante, cancelou as férias e voou, numa lata velha, para a Indonésia.

    Tsunami é uma das onze histórias reais contadas neste livro, na primeira pessoa. Guiados por Nelson Olim, vamos cruzar a cidade de Lisboa numa viatura de emergência, com as sirenes a abrir caminho, ainda nos tempos em que trabalhava no INEM.

    Vamos também conhecer uma tribo do Sudão do Sul e um hospital clandestino para feridos de guerra no Iémen, onde o médico se vê rodeado de soldados nervosos e com o dedo no gatilho. Assistimos a pequenos milagres, como uma ferida cardíaca fechada com agrafador ou uma cirurgia feita à luz de… telemóveis.

    E em cada uma dessas situações limite, encontramos o cirurgião, de ego comedido como lhe ensinaram, a lutar contra a morte, Um dia de cada vez.

    Título

    Sobressalto pela esperança

    Autor

    Jaime Ramos

    Editora

    Guerra & Paz

    Sinopse

    Portugal pode ser um dos países mais prósperos do mundo. Podemos ter esperança e ser um povo feliz. Contudo, vivemos estagnados num atraso declivoso, num país em decadência desde o século XVI.

    O nosso modelo económico é um desastre, com baixos salários. Temos uma democracia eticamente apodrecida, que favorece poderes absolutistas, necessariamente centralistas. O Estado social está degradado, com demasiada pobreza, idosos sem cuidados continuados, uma educação medíocre, um Sistema Nacional de Saúde comatoso e funcionários públicos desmotivados.

    A Justiça balanceia entre sentenças de moeda ao ar e a arrastada impotência em condenar poderosos. O Interior está despovoado, enquanto a Grande Lisboa se debate com a crise na habitação e maus transportes públicos.

    Jaime Ramos, médico, político e empreendedor social, considera que os eleitores não podem lavar as mãos e dizer que a culpa é dos outros. Os maçons, os religiosos e os patriotas têm a obrigação de pensar Portugal. Precisamos de um abanão cívico que agite o situacionismo pantanoso. Vamos a isso!

    Título

    Roma sou eu

    Autor

    Santiago Posteguillo

    Editora

    Asa

    Sinopse

    Em Roma, no ano de 77 a.C., o cruel senador Dolabela está a ser julgado por corrupção. Contratou os melhores advogados, subornou o júri do tribunal e é conhecido pelo seu caráter violento e vingativo. Ninguém espera uma condenação. Até porque ninguém se atreve a ser o advogado de acusação.

    Inesperadamente, um jovem patrício aceita defender o povo de Roma e desafiar o poder das elites. O nome deste desconhecido é Caio Júlio César.

    Combinando um exaustivo rigor histórico com uma extraordinária capacidade narrativa, Santiago Posteguillo consegue mergulhar o leitor no calor das batalhas, nas ruas mais perigosas da cidade, onde assassinos contratados espreitam a cada esquina, na grande história de amor de Júlio César com Cornélia, e compreender, em suma, como foram as origens do homem por detrás do mito.

    Roma sou eu retrata a infância e a juventude de César, descendente de uma antiga família patrícia cujas origens míticas remontam a Eneias, o herói troiano, e à própria deusa Vénus.

    Vinte séculos depois, a sua lenda continua tão viva como sempre.

    Título

    Empúsio

    Autora

    Olga Tokarczuk

    Editora

    Cavalo de Ferro

    Sinopse

    Setembro de 1913. Mieczyslaw Wojnicz, estudante de Engenharia de Lviv, chega à cidade termal de Görbersdorf, na Baixa Silésia, sede de um dos mais famosos sanatórios da Europa e do mundo. É aqui, no sopé das montanhas, beneficiando de métodos inovadores, que espera travar a progressão da sua tuberculose.

    Na Hospedaria para Cavalheiros onde reside, doentes oriundos de Viena, Königsberg, Breslau e Berlim juntam-se ao serão para tomar um cálice do retemperante licor Schwärmerei e filosofar sobre a natureza do mundo e de Deus, a política, ou o papel das mulheres. Contudo, não são só as grandes polémicas intelectuais da época que ocupam a mente destes homens. Há notícias de corpos sem vida encontrados mutilados na floresta circundante, dando a ideia de que forças obscuras estão à espreita escolhendo o seu próximo alvo.

    Livro que marca o regresso de Olga Tokarczuk ao romance após a atribuição do Prémio Nobel de Literatura em 2019, Empúsio – amálgama linguística de Empusa, figura mitológica grega, e Simpósio – pode ser lido como um diálogo com a grande tradição literária europeia e os seus dogmas, em particular com A Montanha Mágica, de Thomas Mann, apresentando um protagonista que se revela símbolo de resistência e de anseio por um mundo radicalmente diferente.

    Título

    As cinco mães de Serafim

    Autor

    Rodrigo Guedes de Carvalho

    Editora

    Dom Quixote

    Sinopse

    O que é uma família?

    Foz do Douro, 1923. Nasce Maria Virgínia Landim da Silva, em casa imponente da alta burguesia. Demonstra desde criança uma personalidade vincada, a firmeza de um propósito, um sentido de missão.Foz do Douro, 2023. O maestro Miguel Serafim, filho de Maria Virgínia, aguarda com ansiedade o reencontro com um amigo de adolescência que não vê há décadas. Abraçam-se, emocionados. Têm de preparar a celebração de um aniversário muito especial. E assim começamos a percorrer uma história que se estende por um século.

    Há paixões, fé e mentiras, numa galeria de personagens inesquecíveis. Juras e traições. Segredos tão fundos e inconfessáveis que nos fazem regressar constantemente à pergunta: o que é uma família?

    Em múltiplos cruzamentos entre o Porto, o Minho, a Galiza e Trás-os-Montes, o romance viaja entre o nevoeiro de um passado doloroso e a força terna da união de três amigos de infância.

    Talvez a amizade seja um outro nome para família.

    Talvez a amizade seja um outro nome do amor.

    Título

    A malnascida

    Autora

    Beatrice Salvioni

    Editora

    Alfaguara

    Sinopse

    Com ecos de autores como Natalia Ginzburg, Alberto Moravia ou Elena Ferrante, eis a estreia fulgurante de uma escritora cuja mestria literária se dedica, neste romance, à procura da origem do mal e dos obstáculos à liberdade individual.

    Monza, Itália, 1936. Francesca, de 13 anos, está nas margens do rio Lambro, vergada sob o peso de um homem morto que tentou violá-la. Maddalena, amiga de Francesca, sai da água e ajuda-a a livrar-se do corpo: escondem-no no meio de arbustos. Este momento é um marco inolvidável na relação entre as duas raparigas, que começa um ano antes, quando Francesca se deixa fascinar por aquela a quem todos chamam «a Malnascida»: uma rebelde de origens humildes e com estranhos poderes.

    Contrariando a vontade da sua mãe, obcecada pelas convenções sociais burguesas, e ignorando os rumores que atribuem várias mortes à Malnascida, Francesca junta-se ao seu bando de amigos problemáticos, ávida por descobrir um modo de vida em absoluta liberdade. Entre as duas amigas, contudo, imiscui-se a guerra e o fascismo. Francesca e Maddalena terão de fazer uma difícil escolha: aliar-se contra a opressão social e a injustiça, ou deixar que o curso da História as separe para sempre.

    A malnascida é o elogiado romance de estreia da italiana Beatrice Salvioni, distinguido com o prémio literário Scuola Holden, criado pelo premiado escritor Alessandro Baricco. Uma inesquecível história de amizade e crescimento, sob o pano de fundo da Itália fascista.

    Título

    Sem rasto

    Autores

    Luís Francisco e José Bento Amaro

    Editora

    Oficina do Livro

    Sinopse

    Há poucas interrogações tão perturbadoras como as que envolvem pessoas desaparecidas. Maddie McCann e Rui Pedro são nomes que a opinião pública fixou, mas existem várias outras histórias passadas no nosso país que também permanecem na maior das obscuridades.

    Em Janeiro de 1990, Hélder Carriço partiu de Santo André para ir comprar uma prancha de surf a São Torpes – depois, o rapaz de dezasseis anos desapareceu sem deixar rasto. Quatro anos mais tarde, Cláudia Silva e Sousa, de sete anos, eclipsou-se de uma aldeia do Minho, no curto trajecto entre a escola e a casa que fazia sempre. Sofia Oliveira era apenas uma criança de colo quando, em 2004, o pai a levou de Câmara de Lobos para parte incerta, guardando desde então o segredo do actual paradeiro da filha. Mário Sousinha saiu de casa num fatídico dia de 2019 e não voltou: ninguém sabe se foi morto ou se cometeu suicídio, se teve um acidente ou quis fugir. E qual terá sido o destino de Rosiney Oliveira, logo depois de ser despedida de um restaurante e nunca mais ter dado sinais de vida?

    Num conjunto de quebra-cabeças que perduram até aos dias de hoje, resistindo às investigações da polícia e alimentando o desassossego de famílias torturadas pela dúvida, Sem rasto reconstitui com precisão e grande mestria narrativa alguns dos mais enigmáticos casos de crianças, adolescentes e adultos desaparecidos em Portugal.

    Título

    Terra sangrenta

    Autor

    Timothy Snyder

    Editora

    Dom Quixote

    Sinopse

    No coração da Europa, em meados do século XX, os regimes Nazi e Soviético mataram 14 milhões de pessoas na Terra Sangrenta, os territórios situados entre Berlim e Moscovo.

    Durante um período de doze anos, nesses campos de morte – as atuais Ucrânia, Bielorrússia, Polónia, Rússia ocidental e costa Leste do Báltico – foram assassinadas, em média, por ano, um milhão de pessoas, devido a políticas deliberadas não relacionadas com confrontos militares.

    Neste livro extraordinariamente bem investigado e fundamentado, Timothy Snyder apresenta um trabalho pioneiro sobre a motivação e os métodos empregados por Estaline e Hitler nessa região, e demonstra que os massacres em massa então cometidos eram duas faces da mesma moeda.

    Integrando um novo epílogo sobre a relevância destes acontecimentos no atual declínio da democracia, Terra sangrenta é de leitura obrigatória para entender uma das maiores tragédias da história moderna – e como ela se liga ao tempo presente.

    Título

    Tivemos de remover este post

    Autora

    Hanna Bervoets

    Editora

    Dom Quixote

    Sinopse

    Kayleigh está cheia de dívidas e por isso aceita um emprego como moderadora de conteúdos de uma rede social, cujo nome está absolutamente proibida de mencionar. O seu trabalho consiste em decidir, segundo regras muito apertadas e em constante mudança, que textos, vídeos ou fotos devem ser removidos da plataforma, passando grande parte dos dias a testemunhar o pior de que a humanidade é capaz. Mas Kayleigh ganha bem, é boa no que faz, arranjou amigos entre os colegas e até se apaixonou por uma delas, pelo que, pela primeira vez na sua vida, o futuro parece sorrir-lhe. Só que, de repente, um após outro, os colegas começam a entrar em colapso e a despedir-se, quando não a abraçar as mesmas causas que supostamente deviam censurar…

    Ambientado no universo tóxico das redes sociais, Tivemos de remover este post é uma história poderosa e absolutamente pertinente sobre quem determina hoje a nossa visão do mundo. Explorando o conceito de moralidade e a forma como este se tornou completamente fluido, destaca o poder das grandes empresas tecnológicas e a forma como controlam, direta ou indiretamente, as nossas vidas.

    Título

    História das religiões

    Autor

    João Gouveia Monteiro

    Editora

    Manuscrito

    Sinopse

    Por onde vamos viajar? Por uma geografia que se estende da Escandinávia até África e do Brasil até à China, com epicentro na região do Crescente Fértil. a cronologia principia no terceiro milénio a.C.

    É espantosa a influência que estas tradições religiosas tiveram na nossa cultura. Pense-se nas ideias de Juízo Final, de ressurreição e de Paraíso. Ou nos revivalismos a que algumas deram lugar, como no caso das mundividências celta e escandinava, com a sua celebração da Natureza, visível na obra de Tolkien. Quem não conhece O Senhor dos Anéis?

    Na primeira parte, são apresentados seis politeísmos antigos: as religiões étnicas (com exemplos de Moçambique e do Brasil); as religiões da Mesopotâmia (em especial, da Suméria); a fabulosa religião do Antigo Egito; os casos dos Celtas e dos Nórdicos; e as religiões da Grécia e da Roma antigas, sementes da ideia de Europa. Há ainda um capítulo sobre o Zoroastrismo – o monoteísmo dual que foi a religião oficial da Pérsia durante doze séculos.

    Na segunda parte, uma mão experiente propõe-nos uma antevisão dos modelos religiosos do futuro: o teocrático; o da religião oficial nacional; o secular radical; e o multirreligioso. A terceira parte é dedicada ao Taoismo, a joia espiritual da China Antiga. O Tao te Ching de Laozi é, depois da Bíblia, um dos livros mais traduzidos em todo o mundo. Um seu continuador, Zhuangzi, também maravilhou muitos pensadores ocidentais, de Heraclito a Heidegger.

    Vale a pena a experiência desta leitura. Como escreveu Tolkien, «nem todos os que vagueiam estão perdidos». Fizemos, por isso, uma obra rigorosa e muito didática. Embarque connosco, porque – dizia Eduardo Lourenço – «mais importante do que o destino é a viagem»!

    Título

    Os segredos para ler e influenciar pessoas

    Autor

    Alexandre Machado

    Editora

    Manuscrito

    Sinopse

    Nos bastidores da nossa vida normal, os serviços secretos de inteligência atuam todos os dias. Nas sombras, com recurso a técnicas de influência, persuasão e controlo, estes operacionais enganam mestres do crime, por vezes, durante anos. É fundamental que assim seja: só desta forma é possível desmantelar redes de tráfico, apanhar assassinos e proteger inocentes

    E se essas técnicas confidenciais viessem a público? e se tivéssemos acesso aos segredos da manipulação humana, para aprender a ler pessoas, prever comportamentos, recolher informação, influenciar e persuadir?

    Depois de um longo e criterioso processo de autorização por parte das agências de inteligência e governos, o resultado está aqui. Alexandre Machado, conselheiro de unidades de operações psicológicas (PsyOps), revela pela primeira vez em livro as técnicas dos serviços secretos de inteligência.

    Neste livro, vai descobrir como:

    – Ler pessoas;- Detectar mentiras;- Influenciar indivíduos, isoladamente ou em grupo;- Prever e induzir comportamentos;- Causar uma boa primeira impressão;- Ser um líder eficiente.

    Ao perceber de que forma estamos programados pelo nosso cérebro para agir de determinada forma, saberá utilizar isso a seu favor.

    Preparado? A recruta começa agora!

    Título

    Pequeno-almoço de campeões

    Autor

    Kurt Vonnegut

    Editora

    Alfaguara 

    Sinopse

    Um marco da ficção norte-americana do século xx, tendo confirmado Vonnegut como um dos escritores mais influentes do seu tempo. Uma história onde a imaginação ácida e impiedosa do autor se revela em pleno.

    Narrativa frenética e desconcertante, súmula das obsessões do autor, composição da paisagem humana de uma certa América, veículo de transmissão de recados políticos e sociais: Pequeno-almoço de campeões condensa tudo isto, numa história meticulosamente urdida para deleite do leitor. O núcleo deste romance é o escritor de ficção científica Kilgore Trout, uma das mais veneradas personagens de Kurt Vonnegut. Numa das suas deambulações, Trout descobre, com horror, que Wayne Hoover, um bem-sucedido vendedor de carros, interpreta à letra as rocambolescas teorias apresentadas nos seus livros. E isso está a levá-lo à loucura. O que se segue é uma sátira deliciosa e inquietante sobre guerra, sexo, racismo, sucesso e política. O resultado é uma espécie de guia para entender o século xx.

    Com um mecanismo de revelações em camadas sucessivas, Vonnegut, um dos terráqueos mais divertidos de que há memória, apresenta-nos nada mais nada menos do que o planeta Terra, num romance brilhante e divertidíssimo, que o consagrou como um dos escritores mais instigantes do nosso tempo.

    Título

    Nós

    Autor

    Manuel Vilas

    Editora

    Alfaguara

    Sinopse

    Irene acreditava ter vivido um casamento perfeito, ao longo dos anos de entrega total e paixão ardente entre si e Marcelo, o marido agora falecido. Viviam um para o outro, como se cada novo dia fosse o primeiro. Esta relação acabou por afastá-los da realidade que os rodeava. com a perda e a dor do luto, o mundo de Irene desaba — até que ela descobre uma forma insólita de continuar a viver junto de Marcelo.

    É esta forma de invocar o grande amor de uma vida que constitui o cerne desta fantasia literária, ao longo de cuja leitura compreendemos a força avassaladora da solidão. Um romance que explora os limites do sentimento amoroso e que empreende uma viagem às profundezas da alma de uma mulher presa numa utopia íntima e irreal — uma mulher tão apaixonada, que o seu amor parece ser capaz de enganar o tempo, o esquecimento e até a morte. Nós incorpora a singularidade e o estilo poético inconfundível de toda a obra literária de Manuel Vilas.

    Título

    O Livro dos mortos do Antigo Egito

    Tradução do inglês

    Filipa Aguiar

    Editora

    Marcador

    Sinopse

    Misterioso, poderoso e comovente, O Livro dos Mortos do Antigo Egito é um dos textos mais antigos e influentes de toda a História. É composto por uma combinação de orações, feitiços e discursos que os antigos egípcios enterravam com os seus mortos, com o objetivo de ajudar os falecidos na sua «viagem» para a vida após a morte.

    Esta edição contém imagens do requintado papiro de Ani – um antigo escriba egípcio – na sua totalidade. Meticulosamente inscrito com hieróglifos e ilustrações dos rituais da vida após a morte, o papiro é apresentado com a tradução do aclamado egiptólogo E. A. Wallis Budge.

    Título

    A arte da guerra

    Autor

    Sun Tzu

    Editora

    Marcador

    Sinopse

    Escrito cerca do século VI a. C., A arte da guerra é um dos mais antigos livros sobre estratégia militar, e provavelmente o melhor. Ensina-nos a pensar com rapidez quando a batalha começa e a apanhar o nosso inimigo desprevenido.

    Desde que foi traduzido, contou entre os seus leitores com Napoleão, MacArthur, Montgomery, Mao Zedong e o general Van Riper, o qual ajudou a planear as operações Escudo do Deserto e Tempestade no Deserto.

    As lições de A arte da guerra ainda são válidas, e esta bonita edição inclui um fascinante posfácio sobre a forma como as ideias de Sun Tzu têm sido aplicadas nos negócios, no desporto e noutras áreas da vida.

    É ideal para quem pretenda ser mais astuto do que a oposição e apanhá-la de surpresa.

    Com ilustrações autênticas.

    Título

    A dança dos loucos

    Autor

    Sérgio Luís de Carvalho

    Editora

    Clube do Autor

    Sinopse

    No dia 19 de abril de 1506 em Lisboa, em pleno domingo de Páscoa, um homem explicou por que razão uma cruz de prata brilhava intensamente na Igreja de São Domingos, no Rossio. Esse simples facto desencadeou uma das maiores matanças da História de Portugal. Devastado, Mestre Navarro parte com as filhas para longe da perseguição.

    No dia 14 de julho de 1518 a senhora Troffea começou a dançar freneticamente e sem razão aparente. Em vão a tentaram ajudar, mas a senhora não conseguia parar. Ao fim de alguns dias, eram mais de quatrocentas pessoas a dançar ininterruptamente, alheadas e desesperadas. Foi o início de uma das mais estranhas e bizarras epidemias da História.

    Que ligação haverá entre estes dois acontecimentos, um tão trágico, outro tão pícaro?

    Título

    A máquina de Joseph Walser

    Autor

    Gonçalo M. Tavares

    Editora

    Relógio d’Água

    Sinopse

    No romance A máquina de Joseph Walser, pertencente à série O reino, o protagonista, Joseph Walser, trabalhador modesto numa fábrica e coleccionador obsessivo de pequenas peças metálicas, vai sobrevivendo à violência da guerra e à vida familiar deprimente, com uma apatia que, por vezes, de longe, parece uma espécie de sabedoria.

    O seu corpo sobrevive às traições, que comete e que sobre ele são cometidas, e resiste às bombas, mas diante da máquina de trabalho o seu corpo cede, não resiste. Mas ainda assim sobrevive. Joseph Walser é um sobrevivente.

    Título

    A vida bem vivida

    Autora

    Gladys McGarey

    Editora

    Lua de Papel

    Sinopse

    “Os médicos não curam os pacientes; os pacientes é que se curam a si próprios”, escreve Gladys McGarey, aos 102 anos. A médica sabe do que fala. Começou a exercer medicina há mais de oito décadas, num tempo em que as mulheres nem sequer podiam abrir contas bancárias. E era já octogenária quando resolveu ir para o Afeganistão ensinar os cuidados a ter durante o parto, reduzindo assim, drasticamente, a mortalidade infantil naquele país.

    Juntamente com o marido, revolucionou o entendimento da sua profissão, ao lançar as bases da medicina holística nos Estados Unidos. Percebeu que não se pode separar o corpo da mente, concluindo que para tratar uma doença primeiro é preciso descobrir as suas causas. Não basta examinar o paciente: é necessário ouvir a sua história.

    A sabedoria que acumulou surge resumida neste livro, que revela seis segredos que a autora põe em prática no seu dia a dia, como pessoa, mulher, mãe de seis filhos, avó, bisavó e trisavó… E se o primeiro segredo é a âncora para toda a sua filosofia de vida (“estamos aqui por um motivo”), o último completa o ciclo: gaste a energia sem medo, porque ela é inesgotável…

    A vida bem vivida acompanha o percurso desta mulher extraordinária, reunindo histórias reais, dela e dos pacientes, em que (nas palavras do professor Robert Waldinger, da Universidade de Harvard), descobrimos “verdades ricas e complexas, que vão ecoar nos corações e mentes dos leitores”.

    Título

    As minhas estúpidas intenções

    Autor

    Bernardo Zannoni

    Editora

    Dom Quixote

    Sinopse

    As minhas estúpidas intenções é a história fascinante de Archy, um macho de fuinha nascido na miséria, mutilado ainda jovem por um acidente e vendido como escravo pela mãe a um raposo usurário chamado Solomon, que, considerando-o esperto, resolve ensiná-lo a ler a Bíblia em segredo. Este conhecimento faz de Archy um milagre da zoologia, mas também um ser estranho que acaba por não encaixar em lugar nenhum.

    À medida que a vida de Archy é transformada pela descoberta da escrita – e de uma entidade bastante ambígua chamada Deus -, ele começa paradoxalmente a ter saudades da sua velha existência guiada pelo instinto. Mas não pode desaprender o que aprendeu, nem conciliar as suas pulsões mais selvagens com dilemas éticos ou o seu desejo de transcendência com as suas necessidades animais. Escrever sobre a sua vida e passar a outros o conhecimento é a tentativa de Archy de vingar o destino a que a mãe, afinal, o quis condenar.

    Vencedor de uma série de prémios no ano da sua publicação, este é um romance de estreia a todos os títulos excepcional.

    Título

    A Bíblia

    Autor

    Péter Nádas

    Editora

    Cavalo de Ferro

    Sinopse

    Budapeste, anos 1950. Uma vila situada na colina da cidade e o seu jardim de inverno constituem o pequeno reino protegido onde Gyuri, filho de altos funcionários do partido, passa dias indolentes na companhia dos avós. À tarde, depois da escola, deambula, lê, espreita os vizinhos, ou simplesmente não faz nada, limita-se a ficar à espera, a ver o que acontece, aguardando pela noite e pela chegada dos seus pais.

    A entrada ao serviço de uma jovem doméstica vinda do campo irá, porém, perturbar o falso equilíbrio e a tranquilidade do lar, trazendo à superfície crueldades e pulsões ocultas que irão marcar o fim da inocência de Gyuri e da sua família.

    Publicado originalmente em 1967, A Bíblia é o curto romance de estreia de Péter Nádas, considerado um dos maiores nomes da literatura mundial, traduzido pela primeira vez no nosso país.

    Título

    O declínio do anjo

    Autor

    Yukio Mishima

    Editora

    Livros do Brasil

    Sinopse

    O último volume da tetralogia «Mar da Fertilidade».

    No final dos anos de 1960, Shigekuni Honda está reformado, rico e sem filhos. Quando conhece Toru, um órfão de dezasseis anos, acredita ter descoberto nele a reencarnação do seu amigo de infância Kiyoaki Matsugae e adota-o como seu herdeiro. Honda educa-o e observa-o, interrogando-se sobre se também a vida de Toru irá ser abrupta e precocemente interrompida. Desfecho dramático da tetralogia «Mar da Fertilidade», O declínio do anjo ata por fim o entrançado de temas dos três primeiros volumes: a decadência dos valores tradicionais japoneses, a essência da filosofia budista e a visão apocalíptica do mundo moderno. Pouco depois de escrever as últimas linhas deste romance, Mishima suicidou-se, praticando seppuku.

    Título

    Mentiras de mulher

    Autora

    Ludmila Ulitskaya

    Editora

    Cavalo de Ferro

    Sinopse

    Um romance composto por várias narrativas que abrem a porta para a vida interior de mulheres da sociedade russa nos anos seguintes à queda do regime soviético.

    Génia, intelectual soviética, mãe e a braços com um casamento fracassado, tem o dom de atrair as confidências de mulheres com quem se vai cruzando ao longo dos anos. São relatos de intimidade, histórias de lutos, adultérios, ligações escandalosas e ilusões perdidas que Génia escuta com benevolente ingenuidade, compaixão e não menos surpresa, pois todas elas acabam, invariavelmente, por se revelar falsas.

    Artificiosas, inofensivas e quase infantis, as mentiras que estas mulheres contam a si mesmas, sem necessidade aparente, revelam-se fonte de reinvenção e sobrevivência perante a desilusão que sentem com a vida e a estreiteza do seu mundo.

    Mosaico de várias histórias, Mentiras de mulher é, segundo a autora, o romance mais verdadeiro que alguma vez escreveu. Com a sua invulgar mão de romancista, Ulitskaya abre uma porta para a vida interior de mulheres resilientes, astutas e corajosas, de diferentes origens, idades e destinos, cuja arte de saber viver está intimamente ligada à arte de contar histórias.

    Título

    Liberta-te de emoções tóxicas

    Autor

    Habib Sadeghi

    Editora

    Albatroz

    Sinopse

    Quando, há mais de 20 anos, lutava para recuperar de um cancro, o Dr. Sadegh percebeu que as emoções negativas causavam danos reais a nível celular. Focado em limpar a mente para ajudar a curar o seu corpo, desenvolveu uma poderosa estratégia de 12 passos que lhe permitiu identificar as questões emocionais que o estavam a bloquear, alcançando uma sensação de paz, de controlo e de renovação de energia.

    Baseado na estratégia desenvolvida pelo Dr. Habib Sadegh, Liberta-te de emoções tóxicas, irá ajudar-te a:

    • Definires uma intenção clara;• Expurgares emoções negativas;• Praticares o autoperdão compassivo;• Recentrares a energia negativa para ir além da dúvida e do medo;• Fazeres as perguntas certas que te ajudarão a gerir relacionamentos.

    Seguindo os doze passos deste poderoso guia serás capaz de limpar a tua mente e curar o teu corpo, transformando obstáculos em oportunidades de cura e de energização.

    Título

    O imenso, sereno e doce rio

    Autor

    Rui de Azevedo Teixeira

    Editora

    Guerra & Paz

    Sinopse

    Circe, Ulisses, Penélope?!

    A paixão entre a militante do PCP e o «fascista» comando começou pela voz, «capaz de derreter os ossos a um homem», e pelo masculino «melhor cheiro do mundo». Ana de Jesus Roriz e Paulo de Trava Lobo, entre terramotos de cama, conversavam sobre o meio literário e discutiam o país e a política.

    Às coçadas histórias comunistas de Ana, Paulo contrapunha a «transcendência vazia» do comunismo ou o «Ketman estético». As ásperas discussões – «penedo mental», «assassino de guerrilheiros» – acabavam, contudo, macias sobre os lençóis. Na verdade, ambos sentiam no outro o fascínio pelo melhor inimigo, pelo dono do «defeito perfeito». Entre os Jardins do Éden e o Inferno, aos solavancos, viviam un amour vache por Lisboa, Alentejo e Linha.

    Mas havia Iza, a mulher de Paulo, o amor que o fazia transbordar de ternura.E, como sempre com o antigo comando, a violência. Em Moçambique, no Rio, no Porto…

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    10 – Ganância, inveja, ingratidão e loucura

    O português piscou indeciso. Não sabia se eu falava a sério ou se estava de gozação. Quando falam com brasileiros, os lusos partem sempre de uma premissa: este gajo está a engambelar-me. Ou a endrominar-me, como dizem eles, do outro lado do oceano. Batota sacudiu a cabeça para recuperar-se do golpe e perguntou:

    – Andas armado, ó estupor?

    – Não. Ando mal de numerário, mas confesso que ainda não pensei em assaltar.

    – Num país com tantos criminosos, como o Brasil, devemos andar sempre com uma arma à mão. Andam por aí bandidos à solta pelas ruas aos milhares, matando e assaltando. E, no final, fica tudo na mesma. A polícia não os prende. Inconcebível!

    – Não seja tão trágico – ponderei. – Olhe a questão pelo meu ângulo. Preciso desses assaltos e assassinatos. Escrevo sobre eles. Em troca, o patrão me dá um dinheirinho para sobreviver até o final do mês. A isso, a essa rotina, eu chamo vida, minha vida.

    Sou assim mesmo, bastante sardônico. Minhas frases sempre escondem um tantinho de horror por trás das brincadeiras.

    O gerente do Imperial moveu-se inquieto na cadeira:

    – A tua rotina, patife, é apenas um fragmento insignificante da grande tragédia humana. Fazes parte de um espetáculo maior, embora me pareças um mau ator. Já ouviste falar em Shakespeare?

    – Qual era a área do sujeito? História em quadrinhos?

    Ele nem me ouviu. Melhor assim.

    Rei Lear é a peça dele que mais aprecio. Ela escalpeliza os traços mais marcantes dos homens: a ambição, a inveja, a ingratidão e a loucura.

    Manoel Joaquim Batota levantou-se bruscamente da cadeira. Mas isso não o ajudou: ele continuou baixinho. Lenta e teatralmente, enfiou a mão no bolso interno do paletó e dele retirou um canivete.

    Não era um canivete comum, desses que as pessoas usam para tirar sujeira das unhas ou para desmanchar tabletes de maconha prensada. O imenso canivete era daqueles que têm, além da lâmina, saca-rolhas, abridor de garrafa, termômetro, bússola, tesoura, relógio, calculadora e radinho de pilha.

    A lâmina que saltou do miolo do canivete remeteu-me à minha infância. Lembrei-me do gigantesco facão que era usado pelo nosso açougueiro lá em Canguçu.

    Vagarosamente, o gerente do hotel caminhou na minha direção, recitando um poema de João Cabral de Melo Neto:

    O que em todas as facas

    é a melhor qualidade:

    a agudeza feroz,

    certa eletricidade,

    mais a violência limpa

    que elas têm, tão exatas,

    o gosto do deserto,

    o estilo das facas.

    Parou a dois passos de mim, ameaçador, teatral:

    – Vais confessar, antes de morrer, o verdadeiro motivo que te trouxe até aqui? Vieste para me matar ou para jogar uma bomba no meu hotel? Percebi logo que, embora parvo, és um verdadeiro criminoso.

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    11 – Mentira para assustar babacas do terceiro mundo

    Naquele baita canivete estava a confirmação da demência que eu vislumbrara, logo na primeira mirada, nos olhos de Manoel Joaquim Batota. Das paixões humanas, citadas há pouco, a mais pronunciada neste cidadão lusitano era a loucura.

    Com o enorme canivete apontado para o meu pescoço – que, como todo humano pescoço, não tem osso –, ele continuou:

    – Que te parece preferível, pancrácio, o impacto seco de uma bala nos duros ossos do teu crânio ou o suave deslizar de uma lâmina afiada na tua rubra e cálida garganta?

    A extensa frase era mesmo assustadora, mas, convenhamos, o estilo poético não era dos piores. Como sou especializado em manusear pensamentos tolos em horas impróprias, pensei o seguinte: com um fraseado tão elegante, este portuga, se quisesse, entrava na hora para a Academia Brasileira de Letras. Pensei e disse:

    – Se o senhor Batota pleiteasse uma cadeira na ABL, talvez ficasse com a 23, que foi de Machado de Assis, com a benção de Quincas Borba.

    – Cala-te energúmeno! Como podes brincar com coisas sérias? Não sabes tu que a cadeira 23 pertence ao grande Jorge Amado, autor da maior novela humorística brasileira, que é A morte e a morte de Quincas Berro D`Água?

    Não respondi porque o gigantesco canivete seguia a perigosos cinco centímetros da minha carótida, presumo que para me desaconselhar o emprego de chufas, motejos, pilhérias, chistes e assemelhados.

    Com gestos ainda mais demorados, mas sempre sem tirar os olhos de mim, o português virou-se ligeiramente de lado e, com a mão esquerda, abriu uma gaveta. Dela retirou um revólver. Na verdade, um mísero calibre 22. Talvez aquela arma não fosse capaz de acabar com a minha raça, mas certamente me causaria algum dano.

    – Escolhe, cão dos infernos! – berrou ele. – Bala ou faca?

    Finalmente, compreendi a pergunta dele em toda a sua plenitude: altura, largura e profundidade. Aparentemente, ele não estava brincando. Queria mesmo saber se eu preferia morrer degolado ou fuzilado. Não era um dilema filosófico que me atraísse muito. Prefiro sempre discutir questões de menor transcendência. Como, por exemplo: por que o condicionador acaba sempre antes do xampu?

    Naquele momento, pela primeira vez na vida, achei que realmente corria o risco de ser mandado para o beleléu.

    Aí, me perguntei: que vim eu, descendente da brava estirpe dos centauros dos pampas, fazer nesta terra de árvores enfezadas e retorcidas? Vim para morrer nas mãos de um doido, de um lusitano lunático, de um lusitanático? Se vim para isso, por que gastei tanto com a passagem de avião? Por que não peguei um ônibus?

    É assim mesmo. Quando se defronta com a morte, a gente faz um monte de perguntas. Por que não passei uma cantada na minha prima, aquela gostosa? Por que não fui morar em Florianópolis, que é a cidade preferida dos maconheiros gaúchos? Lá, pelo menos, tem praia.

    Suspirei fundo.

    Com um insano sorriso pendurado nos lábios, Manoel Joaquim Batota aguardava minha resposta. Faca ou bala? Nas provas da faculdade, eu não gostava de questões desse tipo. Preferia as de múltipla escolha, com possibilidade de três opções.

    Pigarreei para ver se tirava da garganta o medo pegajoso que tomara conta dela ou de mim:

    – Se pudesse escolher um tipo de morte, eu optaria pelo atropelamento, seu Manoel. Gostaria de ser esmigalhado por um caminhão carregado com pedras. Seria uma morte indolor.

    – Indolor e sem graça, estúpido! Não passas de um simplório. Não te seduz o crime intrincado, ardiloso e requintado? O crime que faz jus às nossas origens latinas? A casca de banana na sala da velha perneta. O etanol na botija do cachaceiro. O cidadão claustrofóbico preso no elevador de um prédio comercial durante o fim de semana. O excesso de medicação dado pelo enfermeiro negligente. A sabotagem nos travões do carro.

    Entusiasmado como político diante de câmera de televisão, o luso não parava:

    – Pensa nos homicídios que nem chegam à polícia e nem aparecem nos jornais. Todo dia, no mundo todo, milhares de crimes perfeitos são praticados por pessoas comuns. Na verdade, não há nada mais excitante do que cometer um crime e nada se pagar depois…

    – Aqui no Brasil não é bem assim – contestei. – Os ricos, é certo, sempre livram o pescoço. Só a chinelada vai em cana.

    – Não se trata de dinheiro, lorpa! – atalhou-me. – Estou a falar-te de inteligência assassina. Conheço mulheres simples, lavadeiras ou faxineiras, que moem vidro para colocar no feijão-com-arroz dos maridos infiéis. Outras ateiam fogo aos barracos onde eles cozinham as bebedeiras. Tivemos uma camareira aqui no hotel que matou o marido com veneno de rato na farofa. Como ela moía muito o feijão, o desgraçado nem percebeu… Por acaso, já notaste que no Brasil o número de viúvas é mais expressivo entre as mulheres mais pobres?

    – Não! – respondi, verdadeiramente surpreso.

    – Pensa um pouco, palerma, naqueles crimes maravilhosos relatados pelos engenhosos escritores de livros policiais. Os assassinatos em série. O crime do quarto trancado à chave. O morto assassino. As crianças diabólicas. Os objetos com vida própria, que se movem.

    – O senhor tem razão – disse eu, já francamente bajulador. – Realmente, a morte pode ser uma coisa de extremo bom gosto e sofisticação.

    – Então, como podes tu, meu grande bobo, preferir a sensaboria de um camião carregado de pedras?

    – Por causa da minha origem, doutor Batota. Nós, gaúchos, amamos a simplicidade até mesmo na hora da morte. Uma facada no bucho, um tiro na testa, uma paulada no cocuruto, uma capação sem anestesia. E pronto.

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    12 – Argumentação a favor do serial killer

    – Sim, Campestre, sei que os gaúchos são uns primitivos! Todo o mundo sabe! Porém, eu, nascido na pátria de Gil Vicente, Luís Vaz de Camões e Fernando Pessoa, sou um homem refinado. Por exemplo, para me deliciar com tua agonia, eu poderia agarrar-te pelo pescoço com a mão esquerda e, simultaneamente, com a direita enfiava teus dedos na tomada

    – Sim, mas, nesse caso concreto, o senhor tomaria o choque junto comigo.

    Às vezes, principalmente nos momentos menos indicados, sinto a tentação de ser didático. Quando permanece dentro de mim, sem ser compartilhado, o conhecimento me sufoca. Na verdade, amo a humanidade, gosto de dividir com ela minha inteligência. Ali, por exemplo, eu falava com conhecimento de causa. Formei-me rádio-técnico pela Escola Técnica de Pelotas e possuo razoável noção de eletricidade. Levei uns dez choques terríveis.

    – Pois, palerma… Então amarrava-te os braços e as pernas e depois cortava-te os pulsos. E arrematava com golpes pequenos, porém profundos. Ficarias a esvair-te em sangue. Quantas horas pensas que seriam necessárias para ficares sem pingo de sangue?

    Decidi, pensando estar já livre de funestos tormentos, dar trela ao gerente do Imperial Hotel da República. Como se sabe, todo maluco gosta de papo. Decidi espichar a conversa com ele até que aparecesse alguém para me socorrer.

    – O senhor Batota tem toda a razão. O estilo é tudo em um criminoso. Mas eu, pela minha humilde extração, sou um bronco. Morte por morte, prefiro a bomba atômica. Uma só explosão leva milhares de pessoas desta pra uma melhor. Sem gritos, sem sofrimento.

    – Deixa-te de parvoíces, meu estulto! Só ingênuos acreditam na existência da bomba atômica. Isso é mais uma das mentiras dos russos e americanos para assustar os babacas, como vocês dizem, do Terceiro Mundo.

    Olhei espantado para Manoel Joaquim Batota. Aquela ideia era interessante. Sem dúvida, ele era um biruta acima da média. Prossegui:

    – O que o senhor Manoel acha dos serial killers? – indaguei.

    – São uns reputados imbecis que acabam apanhados e sempre mortos. A parte mais doce de um crime é justamente o momento posterior, ou seja, é o prazeroso usufruto da impunidade.

    – Gosto dos serial killers porque sabem transplantar a eficiência americana para os morticínios em massa. Ninguém mata mais gente em menos tempo, gastando menos projéteis, que um americano,

    Sem perceber a agudeza da minha argumentação, Batota virou o pulso que empunhava o revólver e consultou o relógio. Aproveitei para olhar o meu também. Estava curioso para conhecer a hora exata da minha morte, se ele decidisse afinal disparar. Faltavam dez minutos para as três da tarde.

    Um calafrio percorreu-me a coluna cervical. Teria aquele bigodudo assassino predileção pelas horas redondas para praticar seus crimes?

    – Vamos lá embora. O nosso Congresso está para começar – disse, de repente, o português e, empertigando-se, guardou o revólver na gaveta. – Passaste no meu teste de coragem. Sendo tu mais um tolo, nem és dos mais cagões.

    Em seguida, num gesto rápido e elegante, ele recolocou o canivete gigante no bolso interno do paletó.

    Uma onda de raiva subiu-me à cabeça. Maldito portuga! Tudo não passara de brincadeirinha. Pensei em baixar o braço nele. Mas desisti logo porque ele era – como dizem os gaúchos – mais reforçado que sapato de padre, mais pescoçudo que touro de exposição, maior que geladeira de açougue. Um armário, repito, como dizem em português de discoteca.

    Durante o tempo todo da brincadeira eu permanecera firme, mas, no desfecho, aliviado, veio-me uma formidável frouxidão nas pernas. Manaram suores por todo o meu corpo e eu senti a urgente necessidade de recolher-me a um local privado.

    – Cadê o banheiro? – perguntei. – Há um por aqui?

    – Ali!

    Batota apontou para uma porta onde se lia: “Perigo. Depósito de Produtos Químicos”.

    Minutos depois, ainda mais aliviado, de barriga vazia, em companhia do gerente do hotel, deixei aquele maldito escritório.

    – Quer dizer que vai haver mesmo esse tal Congresso? – perguntei-lhe, no corredor. – Pensei que não passava de um trote em cima do pobre Medalhão.

    – A pensar morreu um burro da tua idade. Fui eu quem deu a informação ao Medalha, a esse grande camoniano, um excelente cidadão e cristão convicto. Nunca o enganaria.

    – Sem dúvida, ele é um homem muito sensato e comedido.

    Chegamos ao saguão de entrada.

    Vários dos sujeitos engravatados tinham resvalado para o sono sonoroso.

    – Estes pobres diabos aparecem de todos os cantos do país para tratar aqui em Brasília de problemas de seus municípios – disse Batota. – Mas nem sempre conseguem audiências nos Ministérios, e vão ficando. Vês aquele ali, com cara de índio? Vai fazer um ano que aqui está. É o Zé Tapajós, Veio de Macapaiutubanarema, ou coisa parecida, no Amazonas. Ouviram falar por lá que foi inventada a penicilina, O Tapajós quer umas doses, mas parece que o encarregado dos remédios no Ministério da Saúde foi para Inglaterra fazer um doutoramento.

    Nem sei bem para que estava me contando aquilo.

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    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    7 – Sobre a incivilidade dos motoristas brasilienses

    Mal deixei o estacionamento do jornal, passei pelo quadrado e cinzento prédio do Tribunal de Justiça. Imaginei que, àquela hora, os corredores deviam estar cheios de advogados, juízes, promotores, prisioneiros, acusados, acusadores, réus e depoentes – a escorregadia e bolorenta fauna que vive desse obscuro negócio chamado justiça.

    Certa vez, um gatuno me deu uma esclarecedora definição:

    – As justiças são duas. Tem a de primeira classe, que protege os que têm dinheiro; e a de segunda, que ferra os pés-rapados.

    – Você esqueceu a justiça de Deus – ponderei.

    – Essa não funciona mesmo – respondeu ele. – Você já leu o livro de Jó?

    Convém adiantar que o meu interlocutor era um larápio de setenta anos, que entrevistei para uma reportagem nostálgica sobre o tempo em que havia certa dignidade no crime, enfim, quando bandido era bandido e polícia era polícia.

    Numa cela superlotada de uma delegacia no Guará, depois de me relatar como se iniciara, ainda menino, a bater carteiras nos bondes do Rio de Janeiro, ele lamentou:

    – Agora a coisa tá ruça! Já não existe mais ladrão. Só tem assassino. Todo assalto é arrematado à bala. Se o assaltado tem grana, leva um tiro na boca pra não falar depois de morto. Se não tem, leva dois pra ficar esperto.

    Olhando para o Tribunal de Justiça, visualizei mentalmente milhares de processos amarelando em salas mal arejadas: milhões de páginas de péssima literatura servindo de alimento às traças.

    A Justiça é mesmo uma grande e custosa brincadeira. Como se sabe, no final das contas, só uns poucos processos são julgados. E nesses casos julgados, raros são os condenados. E dos condenados, são raríssimos os enjaulados. Todos pobres.

    Dizem que no Brasil, de cada cem criminosos conhecidos, só vinte são denunciados e apenas um vai para o xadrez. E um cínico acrescentaria que esse único encarcerado é, em geral, inocente.

    Não, eu não acredito nesses papos. Isso é coisa de comunista. Eu amo meu país assim do jeito que ele é. Tem um pouquinho de privilégio para os ricos? Tem. Mas, no fundo, no fundo mesmo, esta é uma nação verdadeiramente democrática. Sou um idealista ideológico. Ou um ideólogo idealista. E dos esperançosos.

    Eram duas e meia quando, a meditar sobre essas elevadas questões, entrei dirigindo a quarenta quilômetros por hora no Eixo Monumental. Os motoristas que vinham atrás, indignados, cravavam o dedo na buzina. Mas eu, nem bola. Seguia no meu ritmo, impassível. Não podia correr porque meus pneus estavam totalmente carecas e eu precisaria de, no mínimo, uns duzentos metros para frear no asfalto molhado.

    Logo que conseguiam sair da minha cola, esses motoristas incivilizados me ultrapassavam então, em alta velocidade, buzinavam, gesticulavam obscenidades, cuspiam palavrões. Conhecedor das linguagens labial e braçal, entendi que mandavam recados desaforados à dona Mimosa, gentil senhora que me trouxe a este mundo cão. Mamãe, que é de família alemã, nasceu em Não-Me-Toque. É não-me-toquense da gema.

    Minha pobre genitora, indiferente aos desaforos, àquela hora devia estar curtindo a sesta na nossa cidadezinha perdida no Pampa, a dois mil e quinhentos quilômetros dali.

    Passei de novo pela Estação Rodoviária, mas não olhei para a plataforma. Tive medo de dar de cara com um novo engavetamento e mais presuntos. Para os padrões do jornalismo policial, sou um profissional delicado: não aguento mais do que uma tragédia por dia.

    Mais adiante, surgiram os prédios dos ministérios, alinhados como gigantescas caixas de fósforo. Verdes. Dentro deles, milhares de sujeitos – bocejando – lutavam bravamente contra a sonolência pós-prandial.

    É dura a vida dos funcionários. Não é moleza ter que redigir, carimbar, protocolar e catalogar milhares de documentos. Ainda mais quando sua única finalidade é o arquivamento. Ou a lixeira, anos depois.

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    8 – Teoria sobre o desgaste das palavras

    Contornei o edifício da Câmara dos Deputados. Pelas janelas envidraçadas, vi vários sujeitos dormindo pacificamente por trás de suas mesas. No espelho de água, na frente do prédio, deslizavam cisnes. Sete. Consideravelmente robustos. A salivar, pensei, um só deles me resolveria o problema de falta de víveres até o dia do pagamento.

    Na frente do Palácio do Planalto, virei à direita. Um soldado de guarda, arma na mão esquerda, tentava com o indicador direito capturar qualquer coisa perdida no interior de uma narina. Botava muito empenho naquilo. Parecia ser um jovem muito decidido.

    Um rapaz que limpa a fossa nasal com tanta determinação – conclui – é capaz de dar sua vida pela pátria. Sem vacilar.

    A chuva diminuía. Um cheiro bom de terra molhada invadia o carro. Tomado de forte excitação telúrica, botei a cabeça para fora e berrei:

    – Primeiro Congresso Internacional dos Escritores de Histórias Policiais? Doidices do Medalhão!

    Mas e se fosse verdade?

    Respirei fundo. Algum preparo eu tinha. No ginásio, mergulhei de cabeça nos romances policiais norte-americanos e europeus. Li tudo que pude.

    Neste ponto, devo reconhecer que nunca li nada de filosofia. Meu pai me disse certa vez:

    – Livro de filosofia? Pra quê? Se um sujeito é suficientemente esperto pra descobrir um bom modo de viver por que vai falar dele aos outros? Guarda pra si o segredo desvendado. Só os escroques dão receitas, todas fajutas.

    Cheguei, enfim, ao Imperial Hotel da República.

    Terminada a chuva, o solzão brilhava lá em cima. A paisagem resplandecia, luminosa. Estacionei o “Revolução de Maio” à sombra do arvoredo e desembarquei. Gostosamente, enchi os pulmões com o ar úmido porque, dali a minutos, o ar estaria seco novamente. Atravessei o pátio em direção ao saguão penumbroso.

    Enterrados no aconchego de amplos sofás de couro, jiboiavam uns dez sujeitos engravatados. Estavam na pose típica de quem comeu com dinheiro do governo: pança estofada, olhos sonolentos e beiços caídos.

    Encarei um por um. Nenhum tinha jeito de escritor. No máximo, seriam rabiscadores de petições. Nenhum trazia nos olhos aquela chama de loucura que – achava eu – caracteriza os grandes romancistas do crime.

    De gravador a tiracolo, já ligado, dirigi-me à portaria. Por trás do balcão, havia um sujeito pálido como defunto e de traços absolutamente impessoais, como todos os que atendem em hotéis do mundo inteiro. Recebeu-me com a mais gelada das cortesias:

    – Pois não?

    Seus olhinhos espertos deslizaram pela minha calça jeans, passearam pela minha camiseta de discutível limpeza, subiram para os meus cabelos desgrenhados e se fixaram, por fim, na minha barbicha rala.

    – Gostou do tipo que eu faço, rebelde sem causa? – perguntei.

    – O doutor deseja o quê? – retrucou, impávido, o cadavérico.

    – Falar com o gerente desta espelunca.

    – O senhor Batota não se encontra no momento. O doutor poderia me adiantar o assunto que deseja tratar com ele?

    – Não! Se te adianto o assunto, acabo gastando os vocábulos.

    – Interessante essa sua tese sobre o desgaste das palavras – debochou, impassível, o branquelo.

    – Não tente plagiar! Já a registrei em cartório. Mas onde anda o nosso lusitano? Estará a vestir as peúgas? Ou estará a embarcar em um comboio?

    – Por acaso, não – disse o porteiro. – Ele já está chegando aqui.

    Mal ele pronunciou a palavra aqui, senti que uma senhora mão gorda e forte circulou meu frágil pulso direito. Uma força hercúlea comandava aquela manápula, áspera como lixa, dotada de dedos curtos e grossos, como se recortados de um cabo de vassoura.

    Lamentei ter um punho tão delicado. Se tentasse me livrar do aperto, poderia quebrá-lo. Lembrei que o pai vivia insistindo para eu praticar esportes a fim de fortalecer os punhos, mas eu, preguiçoso, sempre me esquivava:

    – E onanismo, pai? Não é esporte?

    Contornei o edifício da Câmara dos Deputados. Pelas janelas envidraçadas, vi vários sujeitos dormindo pacificamente por trás de suas mesas. No espelho de água, na frente do prédio, deslizavam cisnes. Sete. Consideravelmente robustos. A salivar, pensei, um só deles me resolveria o problema de falta de víveres até o dia do pagamento.

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    9 – A paixão do narrador pelos diálogos tenso

    Naquele baita canivete estava a confirmação da demência que eu vislumbrara, logo na primeira mirada, nos olhos de Manoel Joaquim Batota. Das paixões humanas, citadas há pouco, a mais pronunciada neste cidadão lusitano era a loucura.

    Com o enorme canivete apontado para o meu pescoço – que, como todo humano pescoço, não tem osso -, ele continuou:

    – Que te parece preferível, pancrácio, o impacto seco de uma bala nos duros ossos do teu crânio ou o suave deslizar de uma lâmina afiada na tua rubra e cálida garganta?

    A extensa frase era mesmo assustadora, mas, convenhamos, o estilo poético não era dos piores. Como sou especializado em manusear pensamentos tolos em horas impróprias, pensei o seguinte: com um fraseado tão elegante, este portuga, se quisesse, entrava na hora para a Academia Brasileira de Letras. Pensei e disse:

    – Se o senhor Batota pleiteasse uma cadeira na ABL, talvez ficasse com a 23, que foi de Machado de Assis, com a benção de Quincas Borba.

    – Cala-te energúmeno! Como podes brincar com coisas sérias? Não sabes tu que a cadeira 23 pertence ao grande Jorge Amado, autor da maior novela humorística brasileira, que é A morte e a morte de Quincas Berro D`Água?

    Não respondi porque o gigantesco canivete seguia a perigosos cinco centímetros da minha carótida, presumo que para me desaconselhar o emprego de chufas, motejos, pilhérias, chistes e assemelhados.

    Com gestos ainda mais demorados, mas sempre sem tirar os olhos de mim, o português virou-se ligeiramente de lado e, com a mão esquerda, abriu uma gaveta. Dela retirou um revólver. Na verdade, um mísero calibre 22. Talvez aquela arma não fosse capaz de acabar com a minha raça, mas certamente me causaria algum dano.

    – Escolhe, cão dos infernos! – berrou ele. – Bala ou faca?

    Finalmente, compreendi a pergunta dele em toda a sua plenitude: altura, largura e profundidade. Aparentemente, ele não estava brincando. Queria mesmo saber se eu preferia morrer degolado ou fuzilado. Não era um dilema filosófico que me atraísse muito. Prefiro sempre discutir questões de menor transcendência. Como, por exemplo: por que o condicionador acaba sempre antes do xampu?

    Naquele momento, pela primeira vez na vida, achei que realmente corria o risco de ser mandado para o beleléu.

    Aí, me perguntei: que vim eu, descendente da brava estirpe dos centauros dos pampas, fazer nesta terra de árvores enfezadas e retorcidas? Vim para morrer nas mãos de um doido, de um lusitano lunático, de um lusitanático? Se vim para isso, por que gastei tanto com a passagem de avião? Por que não peguei um ônibus?

    É assim mesmo. Quando se defronta com a morte, a gente faz um monte de perguntas. Por que não passei uma cantada na minha prima, aquela gostosa? Por que não fui morar em Florianópolis, que é a cidade preferida dos maconheiros gaúchos? Lá, pelo menos, tem praia.

    Suspirei fundo.

    Com um insano sorriso pendurado nos lábios, Manoel Joaquim Batota aguardava minha resposta. Faca ou bala? Nas provas da faculdade, eu não gostava de questões desse tipo. Preferia as de múltipla escolha, com possibilidade de três opções.

    Pigarreei para ver se tirava da garganta o medo pegajoso que tomara conta dela ou de mim:

    – Se pudesse escolher um tipo de morte, eu optaria pelo atropelamento, seu Manoel. Gostaria de ser esmigalhado por um caminhão carregado com pedras. Seria uma morte indolor.

    – Indolor e sem graça, estúpido! Não passas de um simplório. Não te seduz o crime intrincado, ardiloso e requintado? O crime que faz jus às nossas origens latinas? A casca de banana na sala da velha perneta. O etanol na botija do cachaceiro. O cidadão claustrofóbico preso no elevador de um prédio comercial durante o fim de semana. O excesso de medicação dado pelo enfermeiro negligente. A sabotagem nos travões do carro.

    Entusiasmado como político diante de câmera de televisão, o luso não parava:

    – Pensa nos homicídios que nem chegam à polícia e nem aparecem nos jornais. Todo dia, no mundo todo, milhares de crimes perfeitos são praticados por pessoas comuns. Na verdade, não há nada mais excitante do que cometer um crime e nada se pagar depois…

    – Aqui no Brasil não é bem assim – contestei. – Os ricos, é certo, sempre livram o pescoço. Só a chinelada vai em cana.

    – Não se trata de dinheiro, lorpa! – atalhou-me. – Estou a falar-te de inteligência assassina. Conheço mulheres simples, lavadeiras ou faxineiras, que moem vidro para colocar no feijão-com-arroz dos maridos infiéis. Outras ateiam fogo aos barracos onde eles cozinham as bebedeiras. Tivemos uma camareira aqui no hotel que matou o marido com veneno de rato na farofa. Como ela moía muito o feijão, o desgraçado nem percebeu… Por acaso, já notaste que no Brasil o número de viúvas é mais expressivo entre as mulheres mais pobres?

    – Não! – respondi, verdadeiramente surpreso.

    – Pensa um pouco, palerma, naqueles crimes maravilhosos relatados pelos engenhosos escritores de livros policiais. Os assassinatos em série. O crime do quarto trancado à chave. O morto assassino. As crianças diabólicas. Os objetos com vida própria, que se movem.

    – O senhor tem razão – disse eu, já francamente bajulador. – Realmente, a morte pode ser uma coisa de extremo bom gosto e sofisticação.

    – Então, como podes tu, meu grande bobo, preferir a sensaboria de um camião carregado de pedras?

    – Por causa da minha origem, doutor Batota. Nós, gaúchos, amamos a simplicidade até mesmo na hora da morte. Uma facada no bucho, um tiro na testa, uma paulada no cocuruto, uma capação sem anestesia. E pronto.

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    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    4 – O valor jornalístico de uma cabeça humana numa carrocinha de pipoca

    Um loiro aproximou-se de mim. Não era muito alto, mas era mais largo que porta de igreja. Um armário, em português de discoteca.

    – Tu és gaúcho, tchê? – perguntou-me.

    – Como descobriste? Pelas impressões digitais?

    – Pelo sotaque – respondeu, sério. – Eu vinha no ônibus de Taguatinga. Queres o meu depoimento?

    Abri o caderninho e ordenei:

    – Desembucha!

    – Bah, o motorista tava num porronaço que dava gosto. Dirigia se cagando de rir. Gargalhou de Taguatinga até aqui. Ria que se mijava. Não adiantava nem apertar a campainha que ele não parava. Não recolheu nem velha em cadeira de rodas. Se veio direto, desembestado. Mas era um vivente bom de braço! Não fez nenhuma barbeiragem até o momento de meter o pé no freio. Aí, falhou. Então, se estrepemos todos. Blam!

    Anotei tudo, ipsis literis. Gaúchos são bons contadores de histórias. Em geral excessivamente enfáticos, porém bastante sintéticos.

    Bati no ombro do alemão e agradeci:

    – Obrigado, patrício!

    O depoimento daquele colono, vertido em língua de gente, brilharia na edição do dia seguinte do Correio de Brasília, onde eu exercia meu ofício.

    Guardei o caderninho no bolso e fiquei observando o trabalho do fotógrafo do jornal. O galalau de dois metros de altura babava de felicidade ao fotografar o cenário da tragédia. Exultava, o insano. Acho que um jornalista precisa ser comedido, ter noção de limite. Uma alegria discreta era mais do que suficiente naquele caso.

    Por fim, ele veio até onde eu me encontrava:

    – A primeira página tá garantida, mano. Isso aqui parece balcão de padaria: tá cheio de presunto.

    – Avisa no jornal que vou até o Hospital de Base – eu disse a ele. – Vou apanhar a relação dos mortos.

    Ele me puxou pelo braço:

    – Mano, você viu aquela cabeça que saltou pra dentro da carrocinha de pipoca? Fotografei. Será que vão ter coragem de publicar na capa?

    Não respondi porque estava sem revólver. A minha vontade era escrever um ponto final na testa dele. Ponto de chumbo. O cara, além de fotógrafo, era paulista. Vê se pode, meu!

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    5 – Um homem sensível diante de uma chuva injusta

    Pouco antes das duas da tarde, entreguei ao editor-chefe a reportagem sobre o acidente. O meu texto não é lá um primor, reconheço, mas possuo a mais valorizada qualidade de um jornalista: escrevo depressa. Nunca entro em conflito com o Governo. Nem com o patrão. Assim, fico certo de que não vou para a cadeia e nem perco o salário. Escrevo como falo e falo como camelô. Uns dizem que eu falo mais que o homem da cobra. Minha avó portuguesa dizia que eu vendia banha de cobra, o que dá no mesmo. Minha garganta é azeitada, meus dedos também. Convenço e por isso venço a credulidade dos leitores.

    Antes de ler o texto, como eu tinha previsto, o indivíduo me deu uns coices:

    – A sua mãe morreu, gaúcho?

    – Que eu saiba, ainda não, chefe.

    – Então, por que você faltou à reunião de pauta?

    – Por causa do morticínio na rodoviária. Considerei que ele, além de garantir a manchete de amanhã, justificaria a minha ausência.

    – Reunião de pauta, gaúcho, é coisa sagrada. Eu sei que nela nunca se decide nada de importante. Sei também que tudo o que planejamos de manhã acaba sendo alterado ao fim do dia porque a realidade nunca corresponde ao que nós, jornalistas, esperamos dela. Mas, mesmo assim, não se pode faltar impunemente a uma reunião. Vou ler com cuidado o que você escreveu. Duvido que essa reportagem me impeça de puni-lo severamente.

    Aristides Medalha, meu chefe, é mais conhecido como Medalhão. Características físicas notáveis garantiram-lhe o apelido: ele é realmente grande, pesa mais de cento e dez quilos, e tem a caraça totalmente rubra, devido a um passado e um presente de entupimentos alcoólicos.

    O pobre homem é casado com uma mulher desgraçadamente feia. O nariz dela, imenso, é o centro de tudo. Dele partem feixes de rugas que correm em todas as direções. E reúnem-se, depois, creio eu, num ponto qualquer lá atrás, na nuca, da referida senhora. Não, a definição não ficou boa. Digamos que tudo o que havia de carne no rosto dela foi, certo dia, sugado, aspirado, chupado, puxado e repuxado. Depois, numa borracharia, injetaram-lhe um jato de ar na caveira. E tornaram a esvaziá-la.

    Isso não é tudo o que de mal sucedeu ao Medalhão: tem cinco filhas, muito parecidas com a mãe.

    O Medalhão poderia ser católico, espírita ou budista, mas ele nunca foi apreciador de religiões tradicionais. Integra assim os quadros do Evangelho Milagroso dos Dias que Antecedem o Apocalipse, seita fundada no Piauí, por um antigo sargento da Polícia Militar de Pernambuco, partejado em Afogados da Ingazeira.

    Enquanto Medalhão lia minha reportagem, fui à lanchonete do jornal, onde, só mediante muita insistência chorosa, consegui descolar um pastel fiado – que empurrei goela abaixo com o auxílio de um copo de água da bica. Tristonho, meditabundo, eu mastigava com os olhos pousados no gramado verdejante. Lamentei não ser herbívoro naquele momento.

    De repente, me senti intimamente tocado pela chuva que caía no pátio. Sou meio poeta, um cara sensível. Comoveu-me aquele aguaceiro generoso que lavava, graciosamente, a numerosa frota de carros do jornal. Não! A natureza não é justa, socialmente falando. Aquela chuvarada, por exemplo. Para ser justa, ela deveria cair sobre apenas um carro de cada proprietário. Lavaria o “Revolução de Maio” e também um carro do patrão. A frota toda, não!

    Voltei à redação, onde meu exercício filosófico-político foi cortado pela voz de taquara rachada do Medalhão:

    – Considerando que é da sua lavra, até que essa reportagem está razoável, gaúcho. Estaria melhor se você não tivesse escrito perigosamente com zê.

    Esse é o tipo de piada que ele prefere. Sem graça. Na verdade, de início, eu havia escrito perigosamente com z, mas tinha corrigido a tempo.

    Resolvi levar na brincadeira:

    – Considerando o que me pagam aqui, pode-se até dizer que a reportagem está excelente. Salário não é uma palavra que descreva adequadamente a merreca que recebo em paga pelo meu suor.

    – Pare com o cinismo! – gritou Medalhão, que adora fazer shows no meio da redação. – Não ganho o suficiente pra aturar piadinhas de sulistas analfabetos!

    Imediatamente depois, com ar cúmplice e em voz baixa, me disse:

    – Esqueça essa materinha vagabunda porque tenho um trabalho fantástico pra você! É uma reportagem que vai lhe garantir um lugar destacado na História do jornalismo de Brasília.

    Senti que ia embarcar em uma fria. Toda vez que Medalhão vem com esse papo de reportagens sensacionais, fantásticas, eu danço. Uma vez ele me obrigou a redigir a notícia da morte de um cara que partiu engasgado com um gomo de bergamota, aquela frutinha que tem uma porção de outros nomes: tangerina, mexerica, mimosa e, no país do bacalhau, clementina.

    – Está bem, chefe, aceito a tal reportagem – aquiesci. – Mas só amanhã. Preciso passar o resto do dia vomitando por causa do que vi na rodoviária.

    – Nada disso! Jornalistas são como almas penadas: nunca descansam. Você vai partir em cinco minutos, assim que eu lhe passar informações sobre o maravilhoso evento que começará daqui a pouco.

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    6 – O risco de giz que nos separa da chamada anormalidade

    Todos sabem que os editores de jornal são pessoas particularmente desequilibradas, mas a maioria ignora que eles estão sempre mais enlouquecidos nas segundas-feiras. Afinal, foram obrigados a passar o final de semana em casa, sem ter por perto subordinados aos quais pudessem humilhar.

    – O trabalho que estou passando pra você, gaúcho, é tão importante que a pessoa mais indicada pra executá-lo seria eu, eu mesmo, Medalhão, o cão farejador, o craque da reportagem policial carioca nos anos cinquenta.

    Enquanto o pobre homem sorria, orgulhoso do seu passado, eu meditava, e sentia pena dele. Além da mulher e das filhas horrendas, ele tinha sempre um domingo particularmente duro. Das sete da manhã às sete da noite, ele permanece de pé e de braços abertos na “catedral” do tal Evangelho Milagroso, em Ceilândia Norte, cantando e pedindo a Deus a antecipação do Juízo Final.

    – Cobrir esse acontecimento é tarefa pra um profissional íntimo da gramática e amante da literatura policial.

    – Fala logo, chefe. Qual é o parangolé?

    – Hoje, pela manhã, recebi um telefonema de um dos meus informantes. Um ínclito cidadão estrangeiro. Fonte jornalística altamente confiável. Ele me informou que, daqui a muito pouco, exatamente às três da tarde, começará no Imperial Hotel da República o Primeiro Congresso Internacional dos Escritores de Histórias Policiais.

    – Chefe, vossa excelência está a fim de gozar da minha cara?

    – Não se trata de gozação! Brasília vai mesmo sediar um congresso que reunirá os maiores escritores de livros de suspense do mundo. Sim, gaúcho, o maior evento literário deste ano, no planeta Terra, será realizado aqui na modesta Brasília diante dos nossos focinhos! E tem um detalhe sórdido: o único jornal presente será o nosso Correio de Brasília.

    – Ora, se um congresso desses tivesse que ser realizado no Brasil, é claro que seria no Rio de Janeiro ou em São Paulo. Lá, tendo sorte, os participantes poderiam ser assaltados por pivetes, sequestrados, atingidos por balas perdidas ou fuzilados em uma chacina. Lá teriam, em suma, matéria-prima pra escrever um livro depois. Em Brasília, não. Isto aqui é um marasmo.

    – Deixe de ser despeitado, Campestre – Medalhão só usa meu nome quando está furioso. – Você fala mal do Rio de Janeiro e de São Paulo por causa do complexo de inferioridade dos gaúchos. Mas não se pode esperar boa coisa de alguém que nasce em um estado onde o crime mais praticado se chama abigeato.

    Pausa. Vá ao dicionário, leitor! Procure por lá as palavras abigeato e abigeatário.

    Achou?

    Então, já aproveitando a pesquisa, procure o equivalente para furto de cortiça, que me dizem ser comum também no Sul, mas de Portugal.

    Não achou? Pois é parece que não existe mesmo um termo específico.

    Voltemos ao nosso romance. Além de todos os fatores negativos que aqui já alinhei, Medalhão nasceu no Rio de Janeiro. Digamos que ele é bairrista. Para ele, na América Latina só tem uma grande cidade. Buenos Aires? Decadente. Cidade do México? Sujinha. São Paulo? Feiosa.

    – O seu informante, chefe, estava bebum – insisti. – Estava mamado, borracho, entropigaitado.

    – Não venha com esse desprezível dialeto espanholado pra cima de mim! Minha fonte é confiável. Na verdade, o congresso será realizado aqui porque escritores de histórias policiais só gostam de violência no papel. Mas chega de conversa mole! Você vai daqui direto ao Imperial Hotel da República. Lá, procure o gerente, o senhor Manoel Joaquim Batota. Ele tem todos os detalhes do Congresso. Respeite-o! É um cidadão português, muito culto, versado em Camões, que nas suas horas de lazer é lexicógrafo amador.

    – Escritores policiais em Brasília, essa é boa! – resmunguei.

    – Leve o gravador e algumas fitas. Grave tudo o que for dito por lá. Será um evento histórico. Mas cuidado: esse gravador custou uma fortuna! Se voltar sem ele, tomo seu fusca. E você ainda sai ganhando.

    – Que fotógrafo irá comigo?

    – Hoje, nenhum. Só a partir de amanhã poderemos enviar um retratista… Mas preste bem atenção, centauro! Se você, apesar de sua quase invencível burrice, conseguir escrever algo aceitável, eu posso lhe conseguir duas páginas… Agora, suma!

    Medalhão virou-se de costas para mim e apanhou a Bíblia que mantém em cima da mesa. Toda vez que bate boca comigo ele precisa ler uns versículos do Eclesiastes para se acalmar. Ou talvez seja Mateus, com o seu impossível “amarás o teu próximo como a ti mesmo”.

    Ao deixar o prédio do jornal, eu ainda meditava sobre a loucura.

    Teria Medalhão, como tantos outros editores-chefes antes dele, ultrapassado a tênue marca de giz que nos mantém presos na chamada normalidade?

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    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).