A indústria farmacêutica reforçou a sua presença no Ministério da Saúde com a nomeação de Francisco Gonçalves para a Secretaria de Estado da Gestão da Saúde. O novo governante salta directamente da Sanofi, onde ocupava desde 2021 o cargo pomposamente denominado Head of Market Access & Public Affairs. Nessas funções, Francisco Gonçalves foi responsável pela definição de estratégias para a obtenção de preços e reembolsos junto das autoridades de saúde, bem como pela articulação com decisores políticos e instituições públicas, assegurando o enquadramento regulatório e institucional favorável à empresa.
Foi ele que, por exemplo, negociou com o Ministério da Saúde, então liderado por Ana Paula Martins, a introdução do fármaco Beyfortus – marca comercial do nirsevimab, um anticorpo monoclonal para a prevenção do vírus sincicial respiratório –, que é hoje uma das coqueluches da farmacêutica francesa (confirma). Nas contas de 2024, a Sanofi reportou receitas com este fármaco de quase 1,7 mil milhões de dólares, com um crescimento de 208% face ao ano anterior, ocupando já a segunda posição entre as suas marcas, apenas atrás do Dupixent, também um anticorpo monoclonal destinado ao tratamento da asma e da dermatite atópica, e que é um autêntico campeão de vendas devido ao seu elevado preço.

Apesar de se tratar de uma doença genericamente benigna e de não haver registo em Portugal de mortes em bebés, a Sanofi – apoiada numa intensiva campanha mediática que incluiu parcerias promíscuas com a imprensa mainstream – conseguiu que, em 2024, o Ministério da Saúde adquirisse doses suficientes para inocular cerca de 62 mil bebés nascidos entre 1 de Agosto do ano passado e 31 de Março de 2025.
De acordo com o Portal Base, a Sanofi conseguiu vender até hoje cerca de 14,6 milhões de euros (IVA incluído) de Beyfortus, mas a factura deverá ainda aumentar substancialmente. Grande parte deste valor deveu-se á administração de doses em cerca de 62 mil crianças”, justificada por um alegado estudo do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), com base em dados de 2023, que apontavam para o internamento hospitalar de 145 crianças até aos dois anos de idade, entre 2 de Outubro e 10 de Dezembro.
No passado mês de Abril, o Ministério da Saúde, através da Direcção-Geral da Saúde (DGS), decidiu expandir a estratégia de imunização na próxima campanha de vacinação, alargando a sua abrangência a todos os bebés nascidos entre 1 de Junho de 2025 e 31 de Março de 2026. A data ainda não está definida, mas a campanha de administração do anticorpo monoclonal – que não é tecnicamente uma vacina – deverá arrancar a 1 de Outubro e prolongar-se até 31 de Março de 2026.

Apesar de diversos estudos indicarem que o Beyfortus reduz significativamente a hospitalização de bebés com infecções respiratórias por VSR, não são conhecidos estudos públicos sobre o verdadeiro impacto nos hospitais portugueses, sendo certo que, em termos de óbitos, não havia nada a melhorar, por não haver registos de desfechos fatais. Até porque, antes do Beyfortus, já existia um outro anticorpo monoclonal administrado apenas a prematuros e recém-nascidos com comorbilidades graves.
Apesar disso, os dados da Agência Europeia do Medicamento – actualmente presidida por Rui Santos Ivo, presidente do INFARMED, e que ficará agora sob tutela do ex-Sanofi Francisco Gonçalves – começam a indicar suspeitas de efeitos adversos graves associados à toma de nirsevimab. Ainda que estes dados careçam de confirmação, a sua inclusão no sistema EudraVigilance constitui já um alerta regulatório.
Desde 2023 até à data, foram reportadas 628 reacções adversas graves, incluindo 21 mortes. Destas, 13 foram reportadas em 2024 e sete já este ano. O mais recente registo de morte associada à nirsevimab é de 29 de Março e ocorreu por morte súbita de um recém-nascido com menos de um mês no próprio dia da toma, de acordo com o registo da EudraVigilance.

Os efeitos adversos do Beyfortus têm sido detectados sobretudo em França, onde a administração do fármaco é mais intensiva. Actualmente, para além de Portugal e França, o Beyfortus tem sido administrado em Espanha, Alemanha, Itália, Finlândia e Bélgica – embora nem todos os países tenham optado por abranger todas as crianças. O custo por dose ascende a mais de 200 euros, valor considerado exorbitante, o que tem contribuído para o expressivo crescimento das receitas da Sanofi.
Com a nomeação de Francisco Gonçalves, são agora dois os governantes do Ministério da Saúde com fortes ligações à indústria farmacêutica. Ana Paula Martins esteve durante vários anos ligada à Gilead, uma das farmacêuticas que conseguiu importantes negócios durante a pandemia, sobretudo com o remdesivir, um fármaco que fora um investimento ruinoso contra o vírus do Ébola, mas que miraculosamente foi considerado eficaz contra o SARS-CoV-2.
Apesar de a covid-19 ser actualmente uma doença praticamente inofensiva, a Gilead conseguiu já vender este ano em Portugal mais 744 mil euros de remdesivir a diversos hospitais, tendo no ano anterior obtido ainda 3,7 milhões de euros. Desde finais de 2020, cerca de 40 milhões de euros deste antiviral foram adquiridos pelo Estado português à antiga empregadora da actual ministra da Saúde.

A indústria farmacêutica vive, na Europa, um período de expansão acentuada dos seus negócios, com cada vez menor vigilância regulatória, fruto das chamadas “portas giratórias” entre o sector e a política. Além disso, ao nível dos media, tem-se vindo a registar aquilo que se poderá denominar – com rigor a definir – “abraços de urso” publicitários, em que parcerias comerciais envolvendo jornalistas alimentam uma cobertura enviesada: os órgãos de comunicação social funcionam agora como novos delegados de propaganda médica.
Em Portugal, por exemplo, o Expresso, o Público, a CNN, o Observador, o Diário de Notícias, entre outros, têm mantido generosas parcerias com farmacêuticas, o que se traduz numa visível redução de notícias desfavoráveis e num aumento de conteúdos entusiásticos, mesmo relativamente a medicamentos ainda sem provas consolidadas de eficácia ou de segurança.