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  • À bolina culinária pelo melhor bago

    À bolina culinária pelo melhor bago

    Título

    O arroz português: um mundo gastronómico

    Autor

    FORTUNATO DA CÂMARA

    Editora

    Clube do Coleccionador dos Correios (Setembro, 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Começo com uma declaração de interesses: sou apaixonado pelo Arroz Carolino português. Faz parte da minha infância, das minhas memórias gustativas e das minhas aventuras culinárias na recriação de receitas tradicionais.

    Posto isto, foi com elevado entusiasmo que recebi a notícia de mais um livro escrito por Fortunato da Câmara (n. 1977), ainda por cima, versando o Arroz em toda a sua plenitude, desde as origens até às novas variedades autóctones de Arroz português, culminando com um excelente sortido de receitas para o leitor confeccionar, onde se especifica o tipo de variedade de Arroz a utilizar, medida que importa implementar cada vez mais para melhor informar o consumidor e o ajudar no seu processo de decisão de compra.

    O Arroz (da família das gramíneas e do género Oryza), que o historiador Fernand Braudel (1902-1985), considerou como uma das três “plantas da civilização” (a par do trigo e do milho), alimenta “3 500 milhões de pessoas no planeta, sendo cultivado em todos os continentes”. Em termos europeus, somos os maiores consumidores, com cada português a ingerir 17 kg/18 kg de Arroz anualmente, contra uma média europeia de 5,5 kg/ano por pessoa. Tal voracidade valeu-nos o epíteto de os “asiáticos da Europa”.

    Entre os especialistas em botânica, conforme refere o autor, “é aceite que a família [género] Oryza spp. se reparte entre 23 e 27 espécies diferentes”, embora, em diferentes bases de dados internacionais, estejam até ao momento “identificadas mais de 450 espécies de plantas Oryza, com variações a partir de espécies e subespécies distribuídas por todo o mundo”.

    Segundo Fortunato da Câmara, “a domesticação da planta Oryza a partir do seu estado selvagem foi um primeiro passo, quando há mais de 10 000 anos o homem de épocas remotas começou lentamente a colher e a tratar de um modo agrícola plantas e cereais espontâneos até conseguir fazer com eles as suas próprias culturas.” Os estudos arqueológicos apontam “duas grandes regiões de domesticação do Arroz onde foram achados pedúnculos ancestrais de espiguetas ainda intactas, em zonas de arrozais dos rios Yangtzé, na China, e do Ganges, na Índia”.

    Por esta altura, já o amável leitor terá notado que escrevo “Arroz” com o vocábulo grafado assim, em letra maiúscula. Tal como expresso pelo autor, também eu considero que este cereal “merece tratamento distinto como nome próprio, pois esta palavra única abraça o mundo e tem um papel maior na história da humanidade como alimento preponderante”.

    Há muito tempo que Fortunato da Câmara, jornalista e crítico gastronómico, tem vindo a defender não só a qualidade dos produtos de origem portuguesa mas também a sua boa confecção, promovendo uma educação do gosto. Nesse desiderato, enquadra-se perfeitamente o Arroz português, tão celebrado no receituário nacional mas que ainda não se alcandorou ao patamar de excelência que merece, a par de outras variedades de Arroz internacionais, que brilham em celebradas especialidades culinárias: “Comemos muito, mas descuidamos ainda mais em garantir que fazemos receitas perfeitas, como os melhores risotos, paelhas e afins que fazem o nome dos outros.”

    Em Portugal, existem dois tipos de Arroz cultivados, os “agulhas” e os “carolinos”, “nas margens e estuários dos rios Mondego, Sorraia, Tejo e Sado.” Destes, o Arroz Carolino do Baixo Mondego (2015) e o Arroz Carolino das Lezírias do Ribatejo (2008) possuem denominação de Indicação Geográfica Protegida (IGP). Apenas o Arroz Carolino do Sado ainda não tem esta denominação.

    Almarelo, Alvario, Amarelês, Arbelo, Campino, Ferónio, Lezíria, Saloio e Tardio são os nomes das variedades existentes de Arroz português. Não obstante, o grão carolino Ceres e o grão agulha Maçarico tornaram-se, em 2017, nas duas primeiras variedades autóctones de Arroz do séc. XXI. Em 2019, foi acrescentado a este rol o grão carolino Diana e em 2021, o carolino Caravela, que se espera venha a ser comercializado ainda neste ano de 2024: “Este Caravela promete uma descoberta no mundo dos carolinos, ao permitir que o bago se mantenha inteiro e cremoso, absorvendo sabores, trazendo um resultado final diferente do que por vezes sucede com a mistura de diferentes variedades na mesma embalagem.”

    Não só somos os maiores consumidores europeus como estão identificadas mais de 100 receitas de Arroz, abrangendo todas as regiões de Portugal, “entre livros portugueses de referência publicados desde o século XVII e recolhas populares.” Esta diversidade de receitas oferece-nos “uma espécie de fresco sobre a capacidade inventiva de o receituário português pintar com sabores de Arroz o nosso mapa gastronómico com uma distinção assinalável, que se destaca a nível internacional.” Fortunato da Câmara apresenta mesmo uma lista com 118 receitas onde o Arroz é protagonista, que vão desde o “Arroz de Cabidela”, na Carne, até ao “Pudim de Arroz”, na Doçaria.

    Apesar de toda esta riqueza culinária, ainda hoje somos confrontados com “a versão Arroz branco ‘soltinho’ de bago agulha, que surge como acompanhamento básico quase omnipresente nas ementas de inúmeros restaurantes de cozinha popular económica, fazendo parte da temível e discutível parceria ‘Arroz & batata frita’ que se alastrou de norte a sul do país.”

    Em confronto com a actual conjuntura culinária arrozeira, e como acto de resistência, propõe Fortunato da Câmara, em boa hora, um ilustre conjunto de receitas de “Arrozes regionais, tradicionais e populares” de norte a sul e ilhas, confeccionadas pelo Chefe Luís Gaspar (n. 1991). Nas receitas, são sugeridas as variedades de Arroz que devem se usadas na confecção destes pratos tão emblemáticos, pormenor que raramente, ou nunca, sucede encontrar-se em livros de culinária, sejam eles nacionais ou internacionais. À exceção do “Arroz de lampreia”, todas as receitas foram preparadas pelo Chefe Luís Gaspar, “em que foram utilizadas sete variedades de Arroz carolino, duas variedades de Arroz agulha e duas variedades de Arroz médio, no total de onze bagos de Arroz diferentes.” Neste capítulo, assinale-se “a inclusão, em estreia absoluta, de duas variedades autóctones de grãos carolino 100% desenvolvidas em Portugal nos últimos vinte anos: o Caravela e o Ceres.” Um triunfo da ciência em prol da gastronomia: conhecer e saber fazer para melhor comer.

    Para finalizar, destaque para a emissão de selos intitulada “Arroz Português”, que acompanha o livro, evidenciando algumas das especialidades culinárias mais emblemáticas do receituário nacional com selos dedicados ao Arroz de Cabrito, Arroz de Bacalhau, Arroz de Grelos e Arroz de Lampreia.

    Soberbo este périplo arrozeiro proposto por Fortunato da Câmara, manifestando-se como um elogio mas também uma verdadeira defesa do nosso património culinário, que tanto nos agasalha o espírito e aguça o paladar.

  • O mar que tanto tem para contar

    O mar que tanto tem para contar

    Título

    Fainas épicas do mar português

    Autor

    Álvaro Garrido

    Editora (Edição)

    Clube do Colecionador dos CTT (Junho, 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Depois de vários títulos dedicados às pescas em Portugal, Álvaro Garrido (n. 1968), professor catedrático e director da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, regressa agora com uma visão sobre as três fainas épicas portuguesas: a pesca do bacalhau, do atum e da baleia.

    Para o autor, o presente “livro justifica-se pelo seu argumento original, pela relevância cultural e científica do tema e pelo fascínio histórico das três grandes fainas” que seleccionou, uma vez que as três “têm em comum a dureza do trabalho e a memória mítica que delas ficou”.

    Através desta abordagem, “na inclusão de memórias do trabalho humano associado às grandes fainas do mar e na sua ligação com os seus territórios matriciais: Açores (pesca/caça da baleia); portos da costa ocidental portuguesa (pesca do bacalhau); praias do Sotavento algarvio (atum)”, Álvaro Garrido apresenta estes patrimónios cuja presença ainda permanece bastante arreigada no imaginário nacional, “precisamente porque as três fainas épicas do mar português se tornaram lendárias à escala internacional durante o período final do seu próprio apogeu”.

    Apesar de Portugal ser um país virado para o mar, “a memória social de todo esse universo humano é frágil, e pouco trabalhada, apesar da retórica tecnocrata de ‘regresso de Portugal ao mar’ e de redescoberta da vocação oceânica do país.” De acordo com o autor, “não são muitos os museus marítimos em Portugal e costumam ser escassas, quando não ausentes, as referências à cultura do mar e aos imaginários marítimos nos programas culturais e educativos que partem de iniciativas do Estado e das grandes instituições públicas e privadas.”

    Este livro vem colmatar essas lacunas e propor um novo olhar, não só científico como humano, sobre “as fainas épicas nos seus aspetos singulares: origens; organização económica e social; relações de trabalho; representações ou imagens culturais.”

    Embora a linguagem adoptada pelo autor seja, em alguns momentos, bastante académica, em outros apresenta descrições apelativas e literariamente curiosas. A recolha de alguns excertos de autores reconhecidos é bastante pertinente, e permite verificar como estas fainas foram marcando presença na literatura portuguesa ao longo do tempo.

    O livro está recheado de pequenas e grandes histórias, oferecendo um verdadeiro pitéu para todos aqueles que apreciam aquelas curiosidades que a História tende a esquecer. Uma delícia para quem gosta de descobrir e aprender.

    O capítulo dedicado à pesca do bacalhau é, sem dúvida, o mais recheado, também fruto da sua importância na história e cultura portuguesa, de onde podemos destacar, por exemplo, a história sobre os navios portugueses que, por volta de 1585, foram atacados “por uma esquadra inglesa comandada pelo lendário corsário Francis Drake”. A pesca do bacalhau, como escreveu o etnógrafo poveiro Santos Graça, “era ‘áspera, dura, tremenda, quase heroica’, uma verdadeira ‘epopeia dos humildes’.”

    Sobre a pesca ou caça à baleia, Álvaro Garrido aponta que a “prática da baleação a partir de pequenos portos e varadouros açorianos não partiu do impulso das comunidades locais. Nasceu sobretudo da escala de baleeiras americanas no porto da Horta”. Com o tempo, a fama dos caçadores de baleias açorianos tornou-se lendária, motivando Herman Melville a escrever algumas linhas sobre eles no romance Moby Dick (1851).

    Quem dedicou especial atenção ao atum foi o rei D. Carlos, “o Rei-pintor, grande amante dos mares e estudioso dos fenómenos bio-oceanográficos das pescarias portuguesas”, tendo sido dos primeiros a estudar o comportamento dos atuns na costa algarvia, publicando em 1899 um relatório intitulado A Pesca do Atum no Algarve em 1898.

    Embora a pesca do atum na costa do Algarve fosse uma actividade muito antiga, a mesma também se realizou em outras “zonas da costa portuguesa, em especial junto a Sesimbra e a Cascais», com recurso a armações fixas, as antigas almadravas, «mas foi na costa algarvia que ela ganhou maior expressão.”

    Nas palavras do autor, “este livro pode interessar a um público muito diverso: comunidades marítimas, colecionadores, cientistas do mar, professores, agentes de turismo e cultura. Creio que interessa aos Portugueses, em geral.” Um livro que pode e deve “inspirar outras formas de imaginar o património marítimo português”, pois, como finaliza Álvaro Garrido, “importa descobrir e valorizar, num registo multicultural, a cultura marítima portuguesa — os grandes empreendimentos humanos das pescas e da navegação comercial, as pescas longínquas e costeiras, a vida marítima nas comunidades litorâneas.”