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  • A solidariedade também atrai abutres

    A solidariedade também atrai abutres

    O jornalista Nuno André esteve três semanas num centro de refugiados ucranianos na fronteira polaca, e fez várias incursões pela Ucrânia em ajuda humanitária. Regressado a Portugal, nos próximos dias mostrará aquilo que viu e sentiu. Eis o segundo episódio de Crónicas da Ucrânia.


    Na constante tensão entre aquilo que consideramos ser bom, porque nos dá prazer, e aquilo que tem de ser feito, porque é nosso dever, está o eixo em torno do qual se desenvolve o nosso carácter. Assim, se as dificuldades nos proporcionam oportunidades – vimos, ouvimos e lemos –, então não podemos ignorar.

    Portugueses, espanhóis, franceses, italianos, alemães, polacos, e tantos outros cidadãos do Mundo, partiram em carros particulares, enviaram carrinhas, alugaram autocarros, com a nobre intenção de levar mantimentos e resgatar famílias ucranianas.

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    Para nós, portugueses, tratou-se de uma viagem, entre ida e volta, de cerca de sete mil quilómetros, a gastar entre mil e três mil e quinhentos euros, dependendo do veículo ser ligeiro ou pesado, e a despender no mínimo seis dias, caso não tenha havido paragens para pernoitar ou descansar durante uma viagem de mais de oitenta horas.

    Estes números são meramente indicativos, e dependeram da carga, do número de condutores ou das obrigações legais. Aqui, não se contabilizaram as despesas com o alojamento e alimentação. Gastaram-se milhares e milhares de euros em deslocações. Fomos generosos, não há dúvida.

    Esta ajuda humanitária não esperou por instruções governamentais. Diria mesmo que não dependeu em nada das associações ou organizações oficiais teoricamente organizadas e estruturadas.

    Na generalidade, a acção humanitária eclodiu no seio das famílias comuns, em reuniões de jantar ou em encontros informais entre amigos, que não se conformaram com o cenário desastroso que diariamente passou a invadir os nossos lares.

    Por tudo isto, este texto podia terminar por aqui. Eventualmente, concluindo que se o egoísmo produz um efeito deletério sobre o desenvolvimento da sociedade, o altruísmo evoca o que de melhor existe no ser humano, para viver, e persistir em viver, em comunidade.

    Contudo, na verdade, a ajuda humanitária aos refugiados ucranianos teve tanto de belo como de perverso. Somos, por isso, obrigados a denunciar, a entender e a refletir sobre aquilo que aconteceu, e continua a acontecer, nas fronteiras, nos campos de refugiados. De forma perversa, mas também discreta. E, por isso, mesmo, por discreta, persistente.

    Os centros humanitários de apoio aos refugiados e sobreviventes ucranianos surgiram logo nos primeiros dias após a invasão pela Rússia. E de um modo voluntário e improvisado. E não estando preparados para receber tanta gente, funcionaram; ainda que sem liderança, estrutura ou organização formal.

    Além dos problemas inerentes ao grande fluxo de pessoas – como a higiene (ou falta dela) –, estiveram em causa problemas de segurança.

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    Nunca faltaram alimentos nem transportes nem cuidados de saúde. Os refugiados eram, na sua maioria, mulheres, crianças e idosos que caminhavam com ar cansado, desolado, entristecido. Traziam consigo toda uma vida arrumada numa pequena e singela bagagem. Sem casa, sem conforto, sem destino.

    Esta fragilidade abriu as portas aos criminosos – pervertidos, carniceiros – que, apercebendo-se dos pontos fracos, facilmente aproveitaram para raptar e traficar pessoas. Levaram-nas consigo. Fizeram-nas desaparecer. Nunca mais saberemos do seu paradeiro, e nem sequer daremos pela sua ausência. Serão vítimas da guerra. Os anónimos desaparecidos que caem nas estatísticas das estimativas. Sem rosto. O seu desaparecimento individual jamais será notícia.

    Durante as primeiras duas semanas do conflito, os campos de acolhimento não gozavam de vigilância nem de um registo capaz de cruzar informação sobre as pessoas que entravam e saíam. Qualquer motorista, que ali chegasse, parava o carro e oferecia boleia. Tudo simples. Não havendo controlo, os raptores circularam pelos corredores junto aos quartos onde dormiam centenas de refugiados, no meio de tantos outros que ofereciam autêntica ajuda humanitária.

    Fotografavam e filmavam crianças e mulheres, enquanto estas dormiam ou conversavam. Escolhiam. Apresentavam-se mais tarde com a promessa de lhes oferecerem um transporte, uma casa, um emprego, uma vida renovada, nova.

    Mostravam, de forma encenada, fotografias dos seus lares, apresentavam contratos de trabalho como garantia de emprego, e exibiam filmes da sua própria família, talvez fictícia, que se mostrava contente e preparada para os receber. Actuavam com rapidez e astúcia.

    O comportamento destes homens e mulheres chamou à atenção dos verdadeiros voluntários e, quando confrontados, estes limitavam-se a fingir não perceber a língua, saindo de cena sem dar nas vistas. Enquanto não houve uma forte presença policial nestes centros, pouco foi possível fazer para impedir esses crimes.

    Chegou a haver denúncias, e pessoas identificadas pelas autoridades. Contudo, sem provas concretas – ou porque não tinham sido apanhados em flagrante delito –, pouco ou nada se conseguiu fazer.

    Ser-se jovem, mulher, bonita ou elegante eram critérios essenciais no momento de escolher quem resgatar. Ali, a generosidade era aplicada segundo o peso e a medida. Fez doer a alma. Ainda me faz doer.

    Depois de terem sido aplicadas regras de segurança apertadas, o ritmo abrandou. Passou a ser obrigatório o registo de cada motorista e a viatura à chegada e à saída. Cada refugiado era registado à entrada e só podia sair depois de declarar todos dados, de forma a saber-se com quem e para onde seguia. Proibiu-se a circulação no interior dos espaços reservados aos refugiados, e criaram-se postos de controlo à saída do estacionamento.

    Enquanto estive, durante três semanas em Przemyśl, consegui perceber melhor a diferença entre solidariedade e bondade. Em nome da solidariedade, as mulheres bonitas também devem ser resgatadas – e mesmo sendo a beleza um aspecto relativo e discutível, constatei ser esse um critério determinante para esta mobilização. A solidariedade também atrai abutres.

    Já a bondade, não repara no número de dentes, no busto ou nas cicatrizes provocadas pelo tempo. Não olha para a cor da pele. Não olha a origem dos refugiados. Nem olha para o conflito.

  • Caridade sem prazo de validade

    Caridade sem prazo de validade

    O jornalista Nuno André esteve três semanas num centro de refugiados ucranianos na fronteira polaca, e fez várias incursões pela Ucrânia em ajuda humanitária. Regressado a Portugal, nos próximos dias mostrará aquilo que viu e sentiu. Eis o primeiro episódio de Crónicas da Ucrânia.


    De forma objectiva e fria, primeiro os factos. Durante as primeiras horas do dia 24 de Fevereiro, ouviram-se as sirenes em Kyiv, e mísseis russos caíram sobre solo ucraniano. Foi o despertar de mais uma guerra – uma nova ferida no coração da Humanidade.

    Ninguém pareceu surpreender-se. As movimentações militares e políticas, nas semanas antecedentes, prognosticavam uma invasão iminente, e, por esse motivo, as forças armadas ucranianas estavam preparadas para uma resposta defensiva minimamente eficaz. O avanço das tropas russas fez-se por três frentes: norte, leste e sul. A Ucrânia aplicou a Lei Marcial.

    Entretanto, quase todos nos sentámos no sofá para assistir, ao vivo, pela televisão, jornal e redes sociais, ao desenrolar de uma história que tem sempre pouco de original.

    Como sabemos, os responsáveis políticos dos países ditos ocidentais optaram por não intervir directamente. Enviaram apenas armamento, dinheiro e, a custo, sancionaram a Rússia.

    Mais lesta se mostrou a sociedade civil. Poucos dias após a eclosão do conflito, gentes de várias nações orquestraram, à margem dos governos e das instituições internacionais, planos individuais e humanitários.

    Por exemplo, no dia 1 de março, já tinham saído de Portugal mais de uma dezena de camiões carregados com mantimentos, recolhidos em escolas, sedes de associações, juntas de freguesia.

    E tudo serviu para o transporte: carros, carrinhas e camiões para levarem alimentos, roupas, medicamentos e o mais que se imaginasse poder ser útil para os refugiados da guerra.

    Mas foram também braços e pernas para ajudar. Muitos voluntários seguiram para a fronteiras da Polónia, Eslováquia, Hungria e Roménia junto à Ucrânia. E juntaram-se a muitos outros.

    Impossível saber agora – nem nunca saberemos – quantas toneladas de mantimentos foram enviadas pelos portugueses, sobretudo por causa de uma evidente falta de gestão organizada, que dificultou, em grande escala, que o generoso apoio de tantas famílias pudesse ser mais útil.

    E isso deve levar-nos a reflectir sobre a necessidade de uma educação e uma preparação social para que, no futuro, a solidariedade seja eficaz.

    Logo nas primeiras horas da minha chegada ao centro de apoio aos refugiados em Przemyśl, na fronteira polaca, foi evidente que, a montante, nos países que doaram os mais diversos mantimentos não havia a mínima ideia daquilo que mais falta fazia. Não havia uma plataforma ou uma central de informação e, portanto, nunca foi possível saber o que já tinha sido enviado, nem para onde, nem aquilo que seria útil.

    Como resultado, logo no final da primeira semana de Março, os responsáveis pelos armazéns do centro de refugiados em Przemyśl impediram mesmo a entrega de peças de vestuário. A quantidade de roupa enviada foi de tal modo exagerada que não havia forma nem meios para a guardar, escolher ou separar. Chegou-se a assistir a descargas descontroladas feitas pelos camionistas que, desesperados, tiveram de encontrar soluções de recurso para evitarem regressar ao ponto de partida com a carga. Houve mesmo quem tivesse sido multado ou visse o seu camião apreendido na Polónia por essa prática ser considerada crime.

    Perguntavam algumas mulheres ucranianas: “porque é que nos enviaram vestidos, calções ou fatos de banho?”; ou então: “para quem são estes sapatos de salto alto?”… E havia roupa suja, rasgada, de odor duvidoso. Felizmente, e saliente-se, também chegaram muitos casacos para o frio, sacos-cama, botas quentes.

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    Mas os problemas não se limitaram à roupa. Também se estenderam à alimentação, que deu dores de cabeça (e de barriga) a muitos.

    Falemos do centro que conheci, em Przemyśl, com vários pontos de entrega de refeições confecionadas. Para quem chegava da Ucrânia, havia pizzas, hambúrgueres, sopas e muitas outras receitas mais ou menos condimentadas. Tudo gratuito. Toda esta alimentação e refeições quentes provinham de uma empresa financiada com dinheiro dos fundos humanitários da Polónia.

    Ou seja, a maior parte dos alimentos que enviámos para a fronteira nunca chegou a fazer falta. Muito menos enlatados cuja validade terminava em 2017. Tudo isto, contrariando a realidade que se vive no interior da Ucrânia, onde aí sim fazem falta enlatados, chouriços, leite, bolachas, fruta, pois as massas ou o arroz, por exemplo, dificilmente podem ser cozinhados por faltar gás, eletricidade e água.

    Ainda assim vai chegando alguma alimentação necessária para os civis e para os militares. A enviar alimentos, que sejam em lata, mas com a garantia de que chegam mesmo às cidades e outras terras ucranianas, onde fazem falta.

    Situação similar aconteceu com os medicamentos e material médico. Quem estava em Portugal e noutros países europeus, talvez tenha idealizado um cenário de guerra junto às fronteiras, onde apareceriam feridos com braços esfacelados e pernas amputadas, balas nos corpos, feridas, fraturas expostas. A realidade era outra.

    No limite, os refugiados chegavam com dores de cabeça, febre ou diarreia – excepção para diabéticos, grávidas ou para quem sofria de outras doenças crónicas. Nestes casos, o apoio especializado estava garantido nos hospitais locais e de campanha na Polónia.

    Os medicamentos faziam falta sim, mas no interior da Ucrânia, sobretudo nas cidades cercadas ou bombardeadas. E aí tem chegado pouco do que tem sido enviado. É, por isso, legítimo perguntar onde param as toneladas de paracetamol, de amoxicilina e betadine que se enviaram ao longo do mês de Março.

    E tanto mais havia a dizer sobre os quilos e quilos de fraldas, as centenas de sacos de rações para animais, os milhares de escovas de dentes e as paletes de água engarrafada…

    Entretanto, somente agora, mais de um mês após o início das hostilidades, chegam à Ucrânia os políticos. Sem coletes. Sem capacetes. Sorridentes. Para se ser herói não é preciso ter uma capa. Só é preciso “ter lata”. E dentro do prazo.