Etiqueta: Crónica de um infiltrado

  • Os sócios do Porto votaram para ganhar, eu votei em branco

    Os sócios do Porto votaram para ganhar, eu votei em branco


    A conquista do campeonato com recordes de pontos, vitórias, golos bonitos e mulheres notáveis – tanto que já há muitos casamentos marcados –, deixou o plantel do Sporting vulnerável. O balneário começou a meter água e pedidos de autógrafos por todos os lados. Os geniais mas exaustos e aliviados craques deram por eles emaranhados até ao pescoço – os mais baixos até à raiz dos cabelos – numa maré de cornetas de plástico, foguetes e debates sobre comportamentos adequados na sociedade portuguesa.

    O Kökçü não é conhecido por ser lá muito trabalhador – comentou um conhecido adepto do Benfica, já a pensar na Taylor Swift para salvar a época. E que época, caramba! Qual Gabriel Alves passado a escrito, o ilustre director do PÁGINA UM bem relatou, ao longo de 17 aborrecidas e aturadas jornadas, como foi enervante e dolorosa a temporada na Varanda da Luz. Apesar do esforço democrático de Pedro Almeida Vieira, o comentário do adepto de bancada parlamentar não mereceu quaisquer desculpas no balneário do Sporting.

    A princípio, os jogadores mergulharam em pequenas celeumas sobre direitos humanos e liberdade de expressão, que aos poucos degeneraram num burburinho generalizado, do Paulinho roupeiro ao Paulinho goleador, sobre a qualidade dos treinos do turco do Benfica. A polémica culminou na fundada suspeita quanto à existência de um plano concertado, a partir das mais altas instâncias e palácios, para retirar mérito à conquista do pátrio título e das raparigas mais bonitas de Lisboa. Coube ao presidente anunciar ao balneário um plano terapêutico para o completo restabelecimento da reputação do clube.

    Na final da Taça, é para rebentar com eles!

    Está bem que faltou ao dr. Frederico Varandas, provavelmente o melhor presidente do Sporting desde que sou nascido, a precisão retórica de um José Hermano Saraiva ou a profundidade científica de um Sousa Veloso. Mas, que diabo, os médicos já não prescrevem com a prosa do dr. Fernando Namora! Mais uma vez, um inocente e desadornado comentário, despido de quaisquer intenções malévolas ou maliciosas, não passou despercebido no balneário do Futebol Clube do Porto.

    A final da Taça de Portugal era, pois, um jogo de alto risco.

    Fui ao estádio com a irresponsável esperança de curar as traumatizantes memórias das finais recentemente perdidas contra a gloriosa Académica e o colossal Desportivo das Aves. Até mesmo a réstia de fé que arrastei para a tribuna de imprensa era infundada: por ver ao vivo Pedro Almeida Vieira escrever ao vento do Jamor, enquanto eu cruzava os braços de frio, agravei um resfriado com vários dias de evolução. Aprimorado com uma camisola verde que alegremente me cravou, orgulhosamente vestida na bancada dos jornalistas, o Sr. Director animou-me a ir resistindo, sem grandes espirros, a 120 minutos mais descontos daquilo.

     – Viste esta jogada? O Sporting este ano tem mesmo um ataque de rebentar!

    A equipa do Sporting entrou em campo com a desconcertante descontracção daquele inocente pónei que foi violado nos seus direitos à alface e à imagem num supermercado de Sintra, sem ao menos o PAN relinchar por ele de indignação em conferência de imprensa. Já os jogadores do Porto apresentaram-se como cavalos selvagens. Matreiro, o Otávio pediu respeitosamente ao Gyökeres para ir atacar para outro lado, que ele não queria passar vergonhas no Estádio Nacional. O St. Juste, qual anjinho a esbracejar as asas, ficou tão extasiado pelo golo mais bonito da tarde que não tardou a afogar a equipa na esparrela do adversário. Talentoso e artista, Evanilson tantas vezes tentou, sem sucesso, encandear o árbitro e enganar um valente guarda-redes de 19 anos, que já no prolongamento caiu morto na relva e foi mesmo penalty.

    Eu preparava-me para escrever o nome de Diogo Pinto no boletim distribuído pela Federação Portuguesa de Futebol aos jornalistas para escolhermos o homem do jogo. Senti-me tão confuso e contrariado que engoli em seco e votei em branco.

    Confortaram-me, em coro ruidoso mas bem ensaiado, os adeptos do Porto, soltando até ao fim excruciantes gritos de alívio de cada vez que uma quadrilha de defesas roubava a bola ao Puro-sangue do Sporting. Aquele estridente trauma terá sido infligido por dois golos de rajada, ao minuto 86, por volta das dez horas da noite de 28 de Abril de 2024. Acredito que esse acontecimento, que fica para a História dos Clássicos, foi mais chocante para eles do que para nós não termos verdadeiramente chegado a disputar a final da Taça de Portugal.

    Na véspera dos petardos do Gyökeres, deu-se um acontecimento muito mais importante para o futuro. Os corajosos sócios do Porto tiveram a sabedoria muito nortenha de votar em massa, limpar o clube e libertar a cidade. Deus ajude sempre quem muda com coragem! O Sporting honrou os seus adeptos e a sua História abrindo alas a um meritório e justo vencedor.

    O Pedro levou a camisola verde que lhe emprestei para casa. Diz que já fica para a final da Supertaça.

    Fica tu também, St. Juste! Da próxima vez, até ao fim do jogo – e da festa.


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  • Juba de luz a cruzar os céus

    Juba de luz a cruzar os céus


    Uma juba ciclópica incandescente atravessou o céu e pintou de branco e verde a foz do rio Douro, campanários, talhas e pomares do Minho ao Algarve, peixes, dunas e amantes nas praias de Portugal.  Cigarras, humanos e ovelhas entoaram em coro:

    – Tão resplandecente, não foi pássaro, super-homem ou avião. Assim brilhante, claro que foi o Sporting campeão!

    Antes do jogo começar, ao meu lado na bancada central, o telemóvel mais frenético do estádio é o do senhor director do PÁGINA UM. Ele aponta para todo o lado, compondo vídeos e fotografias aos ziguezagues, imolando as fintas rápidas e súbitas paragens do Trincão. Ao ver Pedro Almeida Vieira neste torpor místico e alucinado, compreendo como se sentiram Eduardo Gageiro, na manhã do 25 de Abril, e o astronauta Neil Armstrong de câmara na mão e pés na lua.

    Durante a semana, deu ao Inácio para ocupar o tempo a desafiar o Pote:

    – Aposto um jantar no Solar dos Presuntos em como não és capaz de um centro de jeito de fora da área para eu marcar de cabeça.

    E o orgulhoso transmontano, ainda antes de se fintar a si próprio tão bem fintado que não pôde guardar-se de pé e se esparramou no relvado a festejar ao comprido, respondeu crente e arrogante uma torga venenosa:

    Não só te acerto na testa com tanta força que até te ponho a risca ao meio, como ainda te pago umas férias nas termas de Vidago se desta vez imitares o Senhor Capitão Coates para golo, em lugar de cabeceares para o ar com esse bestunto de vento, esbanjando a minha arte para a bancada.

    Aos quatro minutos, os dois armaram a maravilhosa e profética jogada, mas a bola depois de fazer a risca no Gonçalo estremeceu o poste com a força insuportável de um aerólito. O homónimo guarda-redes do Chaves agradeceu o ansiolítico receitado pelo médico da equipa para ele se aguentar à estreia, na última jornada, contra o melhor ataque do campeonato.  Os dois atletas leoninos, que não estavam medicados para tão insólito desfecho, amuaram para o resto do jogo. Já o falso defesa e superlativo extremo Nuno Santos ficou a gozar como um perdido do outro lado do campo, sem nunca se aproximar demais para não cair em fora de jogo.

    – Nem todos nasceram para ser lindos e loiros, nem para assombrar guarda-redes com jogadas à Puskás por dá lá aquela palha.

    Vaidoso por trajar de azul celeste numa procissão de craques, excitado pela romaria de cachecóis, foguetes e marchas de “Viva o Sporting!”, o árbitro Manuel Oliveira agarrou-se ao microfone e deixou dito e luzido quem era o Tony Carreira da festa.

    O jogador número 13 não comete qualquer falta, por isso o penalty fica para daqui a bocado. Peço aos atletas do Desportivo de Chaves para entrarem na festa alçando braços em pose não natural. Prometo visionar tais gestos em conformidade com as leis da FIFA e da gravidade, e apitar resignado.

    Estes enervantes acontecimentos agravaram o torpor alucinado e místico que se apoderou do Pedro quando saiu do metro do Campo Grande e deu de caras com o estádio a cintilar de alegria. Sem sequer disfarçar um sorriso de retaliação e felicidade, desatou a apagar os ficheiros laboriosamente amealhados nas 17 jornadas desperdiçadas na Varanda da Luz, abrindo espaço para cada segundo, bandeira e foguete da festa do Sporting Clube de Portugal.

    Levou tão a peito a comparação com a barba, o penteado e as fintas do Trincão da minha primeira crónica no seu jornal, que hoje se vestiu de preto tal e qual o seu modelo apareceu na entrevista ao jornal A Bola, periódico centenário que neste campeonato descobriu, à custa de muitas piadas e memes, quem é o rei agora, da selva, dos céus e dos relvados.

    O jogador número 4 cometeu falta no início da jogada.

    O Tony dos árbitros persiste em desafinar aos nossos ouvidos, sem se atrever a pronunciar o nome do Senhor Capitão Coates.Que desfeita! Antes fechar os olhos e suspender as regras do que anular um golo limpinho e pleno de força, bola corrida e tão bem rematada.

    Felizmente, ao intervalo, o dr. Varandas mandou entregar ao artista uma camisola do Gyökeres autografada por Inês, a bela dele namorada. Esse precioso brinde regulamentar, simbólico da luminar união nórdico-lusitana, ofereceu a adeptos e jogadores uma segunda parte sem cantigas de Oliveira da Serra, ou Monte da Arrábida, e ao Pedro Almeida Vieira ocasião para expressar um inesperado desejo estatístico.

    – Já só faltam cinco golos para o Sporting chegar aos 100 no campeonato.

    Em plena bancada, o meu fiel amigo e ainda sócio do Benfica, descobre maravilhado que o Sporting é o detentor, desde 1947, do recorde de golos marcados num só campeonato: um, dois, três, 123, cento-e-vinte-e-três, 43 dos quais da autoria de Fernando Baptista de Seixas de Vasconcelos Peyroteo, provavelmente o maior avançado português de todos os tempos.

    Tanto invocámos Peyroteo e os outros violinos, Yazalde, Manuel Fernandes, Jordão e Beto Acosta, que se materializou mesmo à nossa frente uma jogada que só se descreve com o movimento das estrelas. O melhor jogador em campo, Luís Carlos Novo Neto, arrancou um passe de parábola supersónica, a abrir caminho ao cometa nocturno, Nuno Santos entrou em órbita sobre a linha de fundo, e Paulinho respondeu com a precisão e a simetria de um satélite. De pé esquerdo para pé esquerdo se faz golo à velocidade da luz.

     – Se o Paulinho mostra os dentes, eles até caem, até caem…

    O director do PÁGINA UM, confesso benfiquista, claramente ‘sequestrado’ pelo famigerado ‘Núcleo da Garagem’ no final do jogo entre Sporting e Desportivo de Chaves.

    Não caiu nenhum defesa, nem teve tempo para isso, mas caiu o estádio todo a celebrar o mais admirável resultado da época. Contra todas as previsões parvas e catastrofistas, Midas Gyökeres fez explodir o talento imenso do antes solitário e sacrificado ponta-de-lança da equipa.

    Manuel Oliveira acabou o jogo mais cedo para ir com a camisola autografada meter inveja aos amigos da Cervejaria Europa, de Gondomar. A taça atraiu ao relvado bandos de crianças e retratistas. E nós fomos comemorar para a garagem do estádio, onde assámos uma cacholeira de Alpalhão e duas alheiras de Chaves com fogo de pirotecnia.


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  • Vamos ver

    Vamos ver


    A notícia do dia é que o Sporting é campeão europeu de hóquei em patins, a mais portuguesa das modalidades desportivas.

    Tenho uma ‘cacha’ para os leitores do PÁGINA UM: o seu ilustre Director assistiu a tudo sem pregar olho nem tirar os óculos, como aconteceu em dois outros gloriosos momentos desta época. Confortavelmente aterrado no mesmo sofá com formato de nenúfar, vi-o sobreviver corajosamente aos dois golos do Génio Catamo. E jamais poderei esquecer o impávido espanto com que tentou travar, de braços retraídos e pernas no ar, a arrancada dos dois cometas nórdicos que acabou com as incompreensíveis dúvidas sobre o desfecho da meia-final da Taça.

    (O estádio grita “Rafa, Rafa” para bater um penalty. Foi lá antes aquele craque argentino que nunca pode ser substituído e é campeão do Mundo sem alguma vez ter marcado um golo ao Sporting. A harmonia continua na família do querido rival.)

    Ocasiões como as do Catamo, do Hjulmand e do Gyökeres são como sacramentos entre amigos verdadeiros de clubes rivais.

    – Pedro Almeida Vieira, estás convidado para a final da Taça! Nesse dia nem fazes mais nada, acordas e vens logo aqui ter a casa.

    Aqui no estádio, ao meu lado, o Pedro já escreveu umas 12 laudas de texto. Parece o Trincão a fintar os laterais, com ligeiras diferenças de tonalidade na barba, compensadas pelo corte de cabelo fiel ao modelo. Dribla o teclado e ao mesmo tempo consome gurosans de estatísticas ao telemóvel, para depois debitar gigas de resultados mais velhos do que nós ao meu ouvido, com a alegre efervescência dos comprimidos a alaranjar as águas. Manifestamente, o jogo interessa-lhe ainda menos do que a mim.

    (O estádio acorda o Senhor Director do torpor analítico e da sanha historiográfica-futeboleira aos gritos de Rafa, Rafa. Outra vez penalty. A julgar pela rasteira escandalosa que pregou às pernas do adversário, o guarda-redes do Arouca deve ser fan do Rafa. Cá de cima, parece-me um sueco da terra do Gyökeres, imagino que traumatizado desde o recreio da escola primária. E o árbitro apitou mesmo com vontade de alegrar a bancada. Rafa, Rafa? Desta vez marcou o turco que vai ficar com o lugar dele para o ano. O Roger Smith é tão exímio a mostrar quem manda como a culpar os outros pelas derrotas. Como foi golo, isto hoje já não descamba, nem vai dar grande notícia.)

    Notícia digna de registo foi a iniciação do Senhor Director do PÁGINA UM no glorioso Núcleo do Sporting Clube de Portugal da Garagem do Estádio de Alvalade. Aconteceu ontem, dia 11 de Maio de 2024, numa reunião extraordinária realizada no bairro da Graça, para assistir ao jogo no Estoril em comunhão de duas espécies.

    O Núcleo da Garagem tem sementes na abençoada terra de Alpalhão. Zé Sequeira, Major João Presumido, Fernando Cardoso, Cotrim, Severino Cunha, Tó Luís Joeirinha e Ti José Joaquim, este já no prado mais verde dos céus, foram os sete violinos fundadores. Antes e depois de cada jogo, no piso menos um do estádio, montam mesa farta de azeitonas, queijos de cabra e ovelha, cacholeiras, ovos com espargos, toda a sorte de petiscos, muitos vinhos e alguns doces.

    Quem ousa aproximar-se é sempre bem recebido. Eu fui um deles, um dia, e fiquei para sempre. Dantes, o Núcleo da Garagem reunia-se no Alvaláxia, para desespero dos restaurantes de comida rápida do recinto. Para o ano, já comemora 15 anos. Saborosas bodas de cristal, com vinho alentejano a transbordar dos copos.

    (O Rafa marcou um golo de bola corrida. Deve ter posto beicinho de desforra. É mais um benfiquista no estádio com vontade de contrariar o treinador. A orquestra da Luz continua afinada e, desportivamente reconheço, ele sempre foi um solista talentoso…)

    Pedro Almeida Vieira foi recebido pelo Núcleo da Garagem como se fosse o João Pinto. E eu juro que o vi aos saltos, bem embalado. E quem não salta? O Pedro estava muito, mas muito, muito mais divertido ontem do que hoje, que o Benfica ganhou cinco a zero.  

    Eu cumpri a minha parte do nosso trato, com visita ao Estádio da Luz, credencial de imprensa e esta crónica preguiçosa. Foi pena o Arouca ter ido de férias antes do jogo. Daqui de cima, confirma-se que o Benfica tem alguns grandes jogadores. Dou graças a Deus por não ser cego e me ter libertado do fanatismo clubista. Até gostava de ver o João Neves no Sporting mas felizmente isso é impossível. Hoje houve algumas jogadas bonitas, nenhuma como o vôo da águia.   Sonho com o dia em que haverá leões à solta no fosso do nosso estádio. Para já, só no relvado.

    Para o ano, disse-me o Pedro, se o Sporting for bicampeão aumenta exponencialmente a probabilidade de voltar a ser penta. É que nunca fomos só bicampeões. Vamos ver!


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