Etiqueta: Correio Trivial

  • Omnisciência à portuguesa

    Omnisciência à portuguesa


    Portugal deve ser o único país do mundo com a Presidência entregue a um Ser omnisciente.

    Diariamente, cerca de dez milhões de portugueses escutam, ávidos de novidades e conhecimento, os discursos, as opiniões, os conselhos ou, simplesmente, os apartes do Chefe de Estado.

    São horas de lições dadas sobre todos os assuntos, a todas as horas, em todos os dias do ano.

    Não será uma Enciclopédia, com todos os temas bem arrumados e classificados, mas é, indiscutivelmente, um “google com pernas”.

    Marcelo fala de tudo, e de todos, com uma convicção superlativa.

    As frases saem, em catadupa, sobre ouvintes estarrecidos com tal sapiência.

    Gestos, calculados ao milímetro, acompanham as frases numa coreografia que faz aumentar a confiança no orador.

    Um rosto expressivo, onde ao olhar duro da reprimenda se segue um sorriso de desprezo dirigido aos que ousam pensar diferente, permite o aumento da credibilidade à enorme falange de portugueses formados na “universidade da vida”.

    Seus indefectíveis votantes.

    E são milhões, como o Facebook prova.

    Marcelo é um mestre-escola do início do Século XX.

    Impõe a sua autoridade, fala para ensinar e não para dialogar e é homem de certezas absolutas.

    Tudo com ar paternal.

    Os raros momentos em que não nos entra pela casa adentro, em conluio com os canais de televisão, permitem-nos analisar todas as suas palavras com mais serenidade.

    Discuti as conclusões a que cheguei, com alguns amigos, e para meu espanto vi que a maioria concordava comigo.

    Marcelo discute futebol e ficamos a perceber que talvez entenda de Justiça.

    Fala de defesa nacional e compreendemos que saberá de pesca.

    Opina acerca de finanças e todos concordam que pode ser expert em gestão hospitalar.

    Analisa a situação internacional e sentimos que é, quiçá, especialista em educação.

    Aborda a guerra na Ucrânia e ficamos com a certeza absoluta de que é um profundo conhecedor de melões.

    Comenta a qualidade dos vinhos, qual enólogo, e fica a convicção do seu saber sobre obras públicas.

    Marcelo debate música clássica, com qualquer maestro consagrado, nos quinze minutos de intervalo de um jogo de futebol.

    Faz crítica literária ao almoço, entre o prato de peixe e o de carne. Sempre com adjectivos ultra qualificativos.

    Concede uma entrevista-monólogo nos vinte minutos que tem livres entre a recepção a um atleta português, terceiro classificado numa prova de badminton no Burkina Faso, e um jantar comemorativo dos vinte anos de existência da Sociedade Filarmónica de Boliqueime. 

    Analisa um orçamento de estado enquanto sobe as escadas de um avião que o levará para uma das dezenas de viagens que faz, anualmente, ao estrangeiro.

    E, nesses países, o frenesim continua.

    Reuniões com políticos e compatriotas, discursos em dezenas de cerimónias, inaugurações, distribuição de medalhas e bailaricos.

    Nos discursos em línguas estrangeiras consegue esquecer a lição que todos os políticos deviam aprender antes de se aventurarem a falar noutra língua que não a portuguesa:

    Poliglota é um indivíduo que sabe falar várias línguas, poliglota inteligente é o que sabe estar calado em vários idiomas.

    Marcelo fala, consciente da sua omnisciência, um pouco de tudo.

    Conclusões:

    Marcelo não é, ainda, um político confiável.

    Talvez nunca venha a ser.

    Marcelo não é, ainda, Caetano.

    Com a sorte que tem, talvez nunca chegue a ser.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Investir na Ignorância

    Investir na Ignorância


    Contava-me um professor, há muitos anos, que no primeiro Conselho de Ministros do Japão, depois de terminar a última Guerra Mundial, a preparação do Orçamento de Estado foi extremamente complicada dado o estado em que tinha ficado o país.

    Todos os Ministros pediam aumento substancial das verbas que seriam atribuídas aos seus Ministérios sabendo, embora, da falta de recursos.

    O Ministro da Saúde lembrava a quantidade de feridos de guerra e as vítimas das radiações, causadas pelas bombas atómicas que destruíram Hiroshima e Nagasaki, e que aumentavam, exponencialmente, o número de doentes internados.

    brown wooden table and chairs

    O Ministro das Obras Públicas falava da necessidade de recuperar as cidades, estradas e pontes arrasadas pelas bombas.

    O Ministro da Solidariedade recordava as inúmeras famílias que tinham ficado sem casa, sem emprego, sem possibilidade de trabalho e que precisavam de apoio imediato.

    O Ministro da Indústria salientava a necessidade premente de ajuda para as fábricas que estavam paradas por falta de energia, de maquinaria e de pessoal.

    O Ministro da Defesa explicava o estado em que tinham ficado os três ramos das Forças Armadas, depois de uma guerra em que tinham sido derrotados.

    E todos exigiam, para os seus ministérios, quantias que, por vezes, ultrapassavam o valor total de que o país dispunha.

    Houve um grande alvoroço quando o Ministro da Educação apresentou a sua proposta.

    Pedia uma verba superior ao do último ano de paz no país.

    A revolta foi enorme e os Ministros começaram a analisar toda a proposta, ponto por ponto, concluindo que, para todos estes, eram pedidas verbas que consideravam exageradas e que ao orçamento da Educação devia ser atribuída uma verba muitíssimo inferior à apresentada pelo Ministro.

    two roads between trees

    Quando foi a vez deste falar, disse:

    –  Se consideram erradas as contas de quem quer investir na Educação, façam contas ao custo de investir na Ignorância.

    O silêncio que se seguiu acalmou os ânimos e a Pasta da Educação foi das que menos cortes sofreu.

    Algo semelhante aconteceu na Alemanha.

    Talvez seja essa uma das explicações para que, poucas décadas depois do fim da guerra, as duas maiores potências na Europa e na Ásia, fossem, de novo, a Alemanha e o Japão.

    Os dois países que tinham ficado arrasados.

    Pode parecer estranho que, em pleno século XXI, ainda seja necessário recordar, aos governantes, que a Educação, a par da Saúde e da Justiça, tem de ser a grande prioridade.

    Voltando a falar do Japão, há quem garanta que o apertado protocolo de Estado obriga a que todos os cidadãos se curvem perante o Imperador, com excepção dos professores.

    Muitos acham tal como uma excentricidade que provoca sorrisos ou, mesmo, gargalhadas.

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    Outros põem em causa esta narrativa, que até podia ter um fundo de verdade por uma razão simples:

    Os japoneses apostam na Educação.

    Já em Portugal, os professores estão na base da pirâmide social ganhando mal, sendo desrespeitados por alunos e pais e sem qualquer apoio do Estado, sequer na sua segurança.

    Os portugueses apostam na Ignorância.

    Aqui, o Ensino degrada-se de dia para dia.

    Péssimo comportamento dos alunos, falta de professores, desajustados programas escolares, facilitismo e desleixo são as marcas das nossas escolas.

    A preocupação dos últimos governos, no que à Educação diz respeito, é zero.

    Alunos que passam de ano sem terem nota positiva a uma única disciplina, são imensos.

    Depois acontecem vergonhas como na Ordem dos Advogados onde, nos últimos três anos, chumbaram 83% dos licenciados em Direito e que pretendiam ser advogados.

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    Não terão dificuldades em conseguir emprego porque entrarão nas juventudes partidárias e, em breve, serão Deputados, Secretários de Estado e Ministros.

    Antigamente os pais, que se apercebiam do facilitismo, e da falta de disciplina nas escolas, diziam esperançados:

    – A tropa vai endireitá-los!

    Mas, antigamente, as Forças Armadas eram levadas a sério…

    Para desagrado dos ignorantes, de ontem e de hoje, que tudo têm feito para, de igual modo, as destruir, hoje nem na tropa há disciplina.

    A Ignorância venceu.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Já fomos um país de marinheiros

    Já fomos um país de marinheiros


    Nos meus tempos de escola primária, no século passado, aprendíamos que este País, “à beira-mar plantado”, era um “país de marinheiros”.

    A poesia, escrita e cantada, a literatura, a pintura, a escultura, glorificavam o mar que os portugueses tinham vencido em inúmeras provas de coragem.

    “Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal!”, exclamava Pessoa.

    body of water during golden hour

    Os portugueses faziam questão de mostrar, aos restantes povos do Mundo, que eram os únicos que conheciam o mar e, ainda que o temessem, o enfrentavam.

    Cedo aprendíamos que só os portugueses entendiam que o género do mar era o masculino.

    Em Portugal era, e é, O mar.

    Não fazemos como os franceses que só o visitam nas praias vigiadas e nunca avançando para zonas onde a água suba acima dos joelhos.

    Para os franceses é “La” mer. “A” mar.

    Meninas!

    Batíamos, em coragem, os próprios vikings, entrando em “cascas de nozes” para descobrir “novos mundos” através de “mares nunca dantes navegados”.

    E não havia monstros que nos fizessem desistir,

    Porque “ao leme” ia alguém maior.

    Alguém que queria o mar que tinha sido, até então, dessas criaturas medonhas.

    As nossas lições de História eram hinos à coragem e à superioridade dos portugueses.

    Escutava-as com atenção (infantil, talvez, mas orgulhosa) e fui crescendo com enorme respeito por todos quantos enfrentavam mares e oceanos.

    De pescadores a marinheiros. De desportistas a fuzileiros.

    E muito do meu patriotismo se deve a esses heróis.

    O que se ensinará, hoje, nas nossas escolas primárias a esse respeito?

    E no que acreditarão os nossos filhos e netos?

    grayscale photo of ocean waves

    Os que vivem no litoral pobre, muitos deles familiares de pescadores, continuarão a respeitar esses profissionais e a despedirem-se deles, todas as madrugadas, com um beijo, ou um abraço, que sentem poder ser o último.

    Depois há os “novos” portugueses, criados em escolas sem disciplina, sem respeito pelos melhores, sem cultura, sem exemplos.

    Os que se sonham heróis porque só pensam em medalhas e não sabem dos riscos de, por vezes, só nos restar “sangue, suor e lágrimas”.

    Os que vão para a Marinha pensando nas fardas brancas, que prendem os olhares em cerimónias, ou nos camuflados especiais, de fuzileiros, que dão um ar de valentia e masculinidade.

    Muitos conseguem ostentar dezenas de medalhas conquistadas em missões importantes mas nem sempre perigosas.

    São os heróis actuais incapazes de embarcar num navio com alguns problemas embora o seu comandante garanta que não há perigo.

    gray and black ship on sea under white clouds during daytime

    O que podem fazer estes marinheiros da Armada Portuguesa, a Marinha de Guerra, por outras palavras, se houver a necessidade de entrarem em combate?

    Não obedecem a ordens, porque temem uma avaria que os deixe parados no oceano?

    Não obedecem a ordens, seja lá porque motivo for?

    Em que país do Mundo um militar desobedece, discute ou, simplesmente, questiona uma ordem de um superior?

    E este episódio foi um caso isolado, de treze erros de casting na selecção da tripulação de um navio de guerra, ou é o exemplo do que pode acontecer em qualquer navio de guerra, em qualquer esquadrilha de aviação, em qualquer companhia no exército?

    A indisciplina habitual nas escolas, nas últimas décadas, com alunos a desobedecer, gritar e, mesmo, agredir professores, de modo impune, não terá formado adultos frustrados, sem noção das regras básicas e cobardes?

    a flag on a beach with a bridge in the background

    Já éramos conhecidos como o país com pior educação, saúde e condições de trabalho da Europa democrática.

    As nossas Forças Armadas, apesar de tudo, conseguiam disfarçar os seus problemas porque se enviavam, para as missões no estrangeiro, os seus melhores.

    O que se passou no NRP (Navio da República Portuguesa) Mondego faz-nos pensar no pior.

    Vejamos como reage o Comando.

    Pessoalmente, gostava de continuar a viver num país de marinheiros.

    Heróis do Mar!

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O apodrecimento da democracia

    O apodrecimento da democracia


    Quando analiso a situação política portuguesa, começo a idealizar cenários para o futuro e caio em profunda depressão.

    Os comentadores políticos insistem em que o actual Governo está ferido de morte, devido às inúmeras trapalhadas em que se meteu, e que, numas prováveis futuras eleições antecipadas, é possível a criação de uma nova “geringonça” mas, desta vez, de direita.

    A acontecer, garantem, o líder do PSD seria o novo Primeiro-Ministro com a necessidade de uma coligação que incluiria o partido Chega.

    Ora, sabemos as exigências dos responsáveis (?) deste partido.

    Aceitam participar na condição de lhes serem entregues várias “Pastas”, com a da Justiça à cabeça.

    Este simples facto deveria deixar qualquer português com insónias.

    Aceitar que a Justiça fique nas mãos de um ministro militante de um partido que defende a “castração química”, a “prisão perpétua” e a “pena de morte” é impensável num país europeu e que se quer democrático.

    É sabido que todos os populistas se julgam isentos de pecado, e candidatos a uma santificação ou, no mínimo, a uma canonização.

    Garantem ser pessoas que não falham. Que não podem cometer um delito.

    E o mesmo com os seus familiares e amigos.

    Explicar-lhes, por exemplo, que uma distração ao volante de um automóvel pode resultar num acidente grave, ou até num atropelamento mortal a ser considerado homicídio por negligência, é considerado insultuoso.

    person hands with black liquids

    Jamais lhes poderá acontecer porque são, sempre, respeitadores de todas as regras e nenhum imprevisto os pode levar a erros desses.

    E porque pensam estar no patamar superior da raça humana sentem-se no direito de condenar quem prevarica a viver o resto da sua vida numa cela, longe de tudo e de todos.

    Ou, mesmo, à morte.

    Para mais, tentam mostrar a sua “superioridade moral”, exibindo-se nas igrejas onde tentam cumprir todas as regras a que a religião obriga os crentes.

    Vão à missa, todos os domingos, recebem todos os sacramentos e citam, constantemente, o Papa.

    O mesmo Papa que, na Quaresma, lava os pés a doze presos.

    Não a doze deputados, não a doze ministros, não a doze padres, não a doze bispos.

    A presos.

    man in black long sleeve shirt raising his right hand

    E faz isso numa demonstração na esperança da reabilitação, e não, obviamente, para branquear qualquer crime que aqueles doze tenham cometido.

    O líder do partido a que me refiro disse, num debate durante a campanha eleitoral, que “não se perdia nada” se cortassem as mãos aos ladrões.

    O líder parlamentar do mesmo partido, disse, em pleno hemiciclo da Assembleia da República, quando do debate sobre uma proposta de perdão de penas e amnistia para pequenos delitos, que, para ele, “os presos deviam apodrecer nas cadeias”.

    Todos eles, presume-se.

    Sabemos que 7,6% desses são homicidas e que 7,8% estão detidos por serem detectados a conduzir veículos sem terem a respectiva carta de condução.

    Como acontece em todo o Mundo, alguns haverá que estão presos sendo inocentes.

    Para estes “políticos” portugueses são todos bandidos.

    barbed wire

    No nosso país há quem desvalorize estas frases porque consideram que os seus autores são uns imbecis.

    Eu sei que são, mas temo que, ainda assim, cheguem ao Poder.

    De qualquer modo custa ouvir alguém vomitar frases, carregadas de ódio, do tipo das acima mencionadas, em plena Casa da Democracia.

    Como nem no tempo da Assembleia Nacional, sequer durante o mais negro período do fascismo, se ouviu algum daqueles pulhas a dizer algo igual, é caso para perguntar se o que está a apodrecer, no nosso País, não é a Democracia.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • ‘Máfia do sangue’: a toda a parte chegam os vampiros!

    ‘Máfia do sangue’: a toda a parte chegam os vampiros!


    Sempre que as televisões, as rádios ou os jornais falam de sangue, fico com o meu a ferver.

    Acreditava eu que, sendo um “bem” imprescindível, estaria protegido pelo Estado, de modo a que ninguém pudesse beneficiar com as fragilidades de cidadãos.

    Negociar em sangue é próprio de vampiros, como bem cantava Zeca Afonso.

    Por isso fui, e muitos da minha família são, dadores de sangue.

    Não conheço maior prova de cidadania do que partilhar, anonimamente, sangue para ser utilizado por quem dele necessita sem nos preocuparmos em saber quem serão os beneficiados.

    Nem esperar contrapartidas.

    Dar sangue a alguém doente, sem sabermos quem, desconhecendo a cor da pele, a conta bancária, a ideologia política, a crença religiosa, a idade, o género, do receptor, é solidariedade pura.

    E são milhares os portugueses que o fazem.

    Por isso, repito a primeira frase da crónica, “sempre que as televisões, as rádios ou os jornais falam de sangue, fico com o meu a ferver”.

    Sei que a nossa imprensa só faz manchetes quando algo de mal acontece.

    Se falam de sangue, algo aconteceu de muito mau.

    black cross on red textile

    Há uns anos foi noticiado que milhares de colheitas de plasma, recolhidas de dadores, seguia para o lixo dada a incapacidade de armazenamento.

    Isso porque – acredite quem quiser – “as câmaras de frio, para conservar o plasma, estavam a ser usadas como armazém para guardar, por exemplo, papéis”.

    Em dois meses, informava o jornal Público, cerca de 40 mil unidades tinham sido inutilizadas, nos três centros regionais do sangue (Lisboa, Porto e Coimbra).

    Num dos mapas de produção, constava, na coluna dos “componentes inutilizados”, relativa ao plasma, a razão para o não aproveitamento: “incapacidade de armazenamento”.

    Cada bolsa tinha entre 180 a 250 mililitros de plasma.

    Curiosamente, o responsável do Instituto Português do Sangue não se mostrava preocupado.

    person injecting syringe

    Segundo ele, “estão já neste momento armazenadas em Lisboa 22.300 unidades de plasma”

    E acrescentou que “há, actualmente, uma reserva, à disposição dos hospitais, de mais 900 unidades que cumprem com a segurança da quarentena”.

    Questionado sobre a quantidade de plasma que ainda é desperdiçado, limitou-se a responder: “Para que todas as colheitas sejam aproveitadas, ministério e IPS estão a desenvolver os procedimentos necessários para a aquisição de viaturas equipadas, ou equipamentos para as já existentes, que permitam o transporte de plasma congelado entre regiões, com todas as garantias de qualidade e segurança”.

    Depois, para que os jornalistas se recordassem que estavam em Portugal, alertou, quando questionado sobre a data prevista para a aquisição de tais viaturas: “Está em curso a avaliação dos sistemas de refrigeração que sejam mais adequados, não estando ainda aberto o procedimento. Não temos ainda uma previsão da data para aquisição das mesmas.”

    Os números, na altura, indicavam que Portugal produzia, com as suas dádivas de sangue, 450 mil bolsas de plasma por ano, sendo que os hospitais apenas precisavam de 90 mil.

    Que não eram aproveitadas.

    Sabia-se que, se fossem exportadas, poderiam render seis milhões de euros.

    Mas… não eram porque, repete-se, as câmaras de frio onde poderiam ser armazenadas estavam a ser utilizadas para guardar papéis.

    Para não adoecer, e com medo de ir parar a um hospital dirigido por gente com esta inteligência, optei por deixar de ler qualquer notícia onde a palavra sangue aparecesse.

    Quebrei essa norma, hoje.

    Queria saber como é que é possível haver uma “máfia do sangue”.

    Como é que alguém se prontifica a pagar meio milhão de euros para não ser julgado por negociatas com sangue?

    A última notícia que eu tentei ler dizia que esse produto, que eu pensava ser, em grande parte, oferecido por dadores, e que se deitava para o lixo por falta de equipamentos para o guardar, já que o que havia estava destinado a outros fins, afinal era fonte de riqueza e, mais, era a base de processos crime por corrupção e branqueamento de capitais.

    man in black framed eyeglasses

    Crimes esses que, obviamente, prescreveram.

    Os implicados estão, agora, acusados de falsificação de documento e recebimento indevido de vantagem.

    Até que estes crimes também prescrevam.

    É gente de sangue frio e que sabe esperar.

    E, claro, rica!

    Ainda os verei a encher as tulhas, beber vinho novo e dançar a ronda no pinhal do rei.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Anões em bicos de pés

    Anões em bicos de pés


    António Paulouro, uma referência no Jornalismo português, fundador do “Jornal do Fundão”, contava que, após a invasão de Goa, Damão e Dio pelas tropas indianas, Salazar reagiu dando instruções para que, em todas as cidades, a população se organizasse em “manifestações espontâneas”.

    As Juntas de Freguesia alugaram autocarros, compraram lanches e garrafões de vinho, pintaram cartazes e levaram o povinho como se fosse para uma excursão.

    A cidade da Covilhã não foi excepção.

    Milhares de pessoas, vindas de todo o concelho, encheram o Largo da Câmara Municipal para poderem ouvir os patrióticos discursos dos políticos do partido único.

    No meio dessa gente destacava-se um velho agricultor, com um cartaz enorme na ponta de um pau, que ele levantava vaidosamente para alegria do autarca da terra.

    O cartaz tinha escrito: “Casegas exige acção imediata”.

    Foi um “maná” para os muitos oposicionistas duma terra conhecida pela aversão à ditadura.

    Entre gargalhadas comentavam:

    – “Quando Neru souber desta exigência de Casegas (uma terrinha com poucas centenas de habitantes) recua imediatamente com pedidos de desculpas a Portugal”.

    Lembrei-me desta cena ao assistir ao debate, na Assembleia da República, no dia em que passava um ano sobre a invasão da Ucrânia.

    Os deputados que intervieram não se limitaram a condenar, a análises políticas, a críticas ou elogios.

    Pelo contrário, fizeram veementes exigências em tom ameaçador e determinante.

    Seria ridículo se não fosse triste pela percepção de que não têm a mais pequena noção do que valem as suas palavras.

    Os optimistas pensarão que contam pouco.

    Os realistas sabem que não contam para nada.

    O Presidente dos Estados Unidos visitou a Ucrânia e, depois, reuniu com personalidades de diversos países.

    Em primeiro lugar com o Grupo de Bucareste, que teve como anfitrião o presidente da Polónia, Andrzej Duda, e juntou, na mesma mesa, Joe Biden e os representantes dos restantes oito países que integram o grupo: Roménia, Bulgária, República Checa, Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia e Eslováquia.

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    Já tinha reunido, antes disso, na Alemanha, com o grupo das sete principais nações industrializadas, e em Madrid num encontro de países membros da NATO.

    Não consta que tenha mostrado interesse em saber a opinião de países europeus sem dimensão internacional.

    E isso é o que nós somos, por muito que custe a alguns.

    Há quem considere que o Governo Português poderia ter uma palavra sobre o conflito e algumas ideias para tentar pôr cobro a esta tragédia.

    Corre o risco, se o tentar, de ser comparado com o pobre agricultor de Casegas.

    O Governo Português pode colaborar na mediação para pôr cobro a esta guerra?

    Mas o Governo Português nem sequer consegue uma solução para terminar com a greve dos professores.

    Portugal pode ajudar a Ucrânia, no que respeita à saúde, no pós-guerra?

    Mas se nem sequer conseguem cumprir a promessa de haver um médico de família para todos os portugueses.

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    Portugal pode ajudar no plano militar?  

    E quem nos levará a sério quando souberem que as nossas Forças Armadas têm mais oficiais do que “praças” e mais generais do que os Estados Unidos?

    Podemos colaborar na reconstrução das infraestruturas destruídas pela guerra?

    E quem aceitará, quando se souber que as obras num Hospital Militar, em Portugal, custaram 3,2 milhões de euros quando o orçamento inicial era de 750 mil, tudo com o conhecimento, e luz verde, do actual ministro dos Negócios Estrangeiros?

    Nas reuniões, a sério, onde os políticos credíveis se juntarem para tentar analisar, com seriedade e competência, o fim do conflito, as condições para que se estabeleça um plano de paz efectiva e os planos de recuperação dos países destruídos por esta catástrofe, não interessa que apareçam, atrás daqueles, anões aos saltinhos e a gritarem, de modo esganiçado, “eu tenho a solução, eu tenho a solução!”, num português mais ou menos escorreito.

    O mais certo é serem olhados com desdém e postos fora da sala por um qualquer porteiro mal-encarado.

    Estes vaidosos não têm consciência do seu verdadeiro valor.

    E isso é o cúmulo da infelicidade.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Disparem que é governante!

    Disparem que é governante!


    Abriu a caça ao Governante no Poder.

    As Oposições, é sabido, tentam mostrar as fragilidades de quem governa no intuito de fazer com que os eleitores, num próximo acto eleitoral, mudem o seu voto e lhes dêem o poder.

    Tarefa sempre complicada e quase impossível quando se enfrenta uma maioria absoluta.

    Então, há que aproveitar todos os falhanços, ampliá-los e discuti-los à saciedade.

    Em Portugal vive-se um desses momentos.

    city landscape photography during daytime

    A Oposição não dá tréguas e raro é o dia em que não apareça com um novo escândalo.

    Há que reconhecer que o Governo se tem posto a jeito, com erros que roçam o ridículo, mas a verdade é que é preciso algum atrevimento para se apontarem falhas a adversários políticos, quando rodeados de companheiros conhecidos pelos mesmíssimos erros e falcatruas.

    Ouvir, por exemplo, Luís Montenegro criticar o Primeiro-Ministro António Costa por não escolher os membros das suas equipas com critério, minutos depois de tentar explicar a demissão do Vice-Presidente da bancada parlamentar do PSD, uma das suas poucas escolhas, num caso que, inclusivamente levou à prisão preventiva de dois implicados, é bem demonstrativo da desfaçatez de alguns políticos.

    Mas esse desplante é generalizado e não há Partido que lhe escape.

    No Bloco de Esquerda houve a perseguição a Ricardo Robles, por causa de especulação imobiliária.

    No PCP, acusações ao genro de Jerónimo Sousa que seria beneficiado pela Câmara de Loures presidida pelo comunista Bernardino Soares.

    No CDS ninguém esquece nem os submarinos de Paulo Portas nem os sobreiros de Nobre Guedes e Telmo Correia.

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    No PSD há uma infinidade de nomes de ministros e deputados, com as acusações mais diversas, e de gravidade diferenciada, que vão desde uma cunha bem paga a homicídio, passando por desvio de milhares de milhões de euros da Banca e fuga a impostos.

    No PS, de autarcas a actuais e ex-membros do Governo, há uma quantidade de gente implicada em processos judiciais.

    Percebe-se que a Oposição tente fazer cair um Governo em descrédito.

    O objectivo é substituí-los no Poder, repete-se, mas estranha-se que não entendam que também os substituirão no papel de alvos de quem tem, como hobby, ou mesmo como profissão, destruir quem tem autoridade para mandar, mesmo que apoiado em eleições livres e democráticas.

    O mais grave em tudo isto é que, quando alguém é denunciado publicamente, com o apoio da comunicação social, passa imediatamente à situação de culpado “sem margem para dúvidas”.

    São conhecidas as “certezas” do nosso Povo de que “não há fumo sem fogo” e de que “se é acusado alguma coisa terá feito”.

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    Há que acreditar, cegamente, na Justiça e só criticar quando se considerar que as penas são “brandas” (desde que não toque nos seus, obviamente).

    Mas será assim?

    Os números da Direcção-Geral da Política da Justiça dizem o contrário e de modo aterrador:

    “As percentagens de absolvição por “carência de prova”, em processos-crime findos em julgamento de primeira instância em Portugal, oscilam entre 40,4 e 48% do total de arguidos não condenados – estes, na sua maioria, por desistência de queixas em crimes semipúblicos ou particulares, segundo os últimos números oficiais disponíveis.”   

    Como exemplo indicava-se que, em sete anos, foram absolvidos 154.569 cidadãos, o que dá uma média de 65 por dia, incluindo sábados, domingos e feriados. De salientar que o máximo admitido por peritos europeus para o total de arguidos não condenados é de 12%.

    O mais certo é que muitos dos que hoje são arrastados pela lama virão a ser, amanhã, absolvidos.

    Lembram-se de perseguição ignóbil ao ex-Ministro da Defesa (que se viu obrigado a pedir a demissão) Azeredo Lopes? Resultado do seu processo: absolvição.

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    Recordam Fátima Felgueiras que se viu forçada a fugir para o Brasil para não ficar presa preventivamente? Resultado do seu processo: absolvição.

    Claro que haverá quem culpe a ineficácia da Justiça que, no entender de muitos, falha sempre que absolve ou condena com pena “pequenas”.

    O grande problema do nosso País é que, para além de se adjectivarem os políticos como corruptos, lhes paga como funcionários de segunda.

    Resultado: os Governos, e o Parlamento, têm muitos dos seus lugares preenchidos por gente incapaz, imatura, populista, vaidosa e incompetente.

    Com os resultados que se conhecem.

    Se pelo menos “disparássemos” (*) sobre esses…

    (*) Sentido figurado, claro. Fica o alerta para quem é alérgico à ironia.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Adeptos exigentes, cidadãos alheados

    Adeptos exigentes, cidadãos alheados


    Os portugueses deveriam ser um caso de estudo.

    Se analisarmos, ao longo de uma semana, os temas das suas conversas, os textos publicados em jornais e revistas e, principalmente, os programas de rádio e televisão, ficaremos estarrecidos.

    Principalmente, se tentarmos perceber algumas das razões de determinadas opções.

    Vemo-los, por exemplo, a analisar os valores de contratações e salários mensais de jogadores de futebol, com vinte anos, sempre na ordem das centenas de milhares de euros, e a criticarem os dirigentes dos clubes não por hesitarem em pagar esses valores obscenos mas por demorarem na assinatura dos contratos.

    E justificam essa pressão por entenderem que a qualidade deve ser bem recompensada e que o clube tem de pagar o justo valor a quem lhes garanta sucesso.

    Atitude bem contrária, todavia, quando a conversa muda para a gestão da “coisa pública”.

    Aí, as mesmas criaturas insultam todos os governantes e políticos criticando os “ordenados principescos” que auferem.

    Dizer-lhes que um ministro recebe, de ordenado mensal, menos do que alguns futebolistas juniores, de dezassete ou dezoito anos, é-lhes indiferente.

    Pelo contrário, aceitam, sem uma palavra de desagrado, que um treinador que seja despedido receba, só de indemnização, mais do que todos os ministros juntos (e são muitos), durante os quatro anos dos seus mandatos.

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    A necessidade de se pagar bem a quem dirige o país, a quem tem de gerir milhares de milhões de euros, a quem tem a responsabilidade de zelar pela Saúde, Justiça e Educação, àqueles que têm por missão criar as leis que nos regem, é algo considerado de somenos importância. 

    Para cúmulo, há políticos de partidos populistas, que tudo fazem para agradar à imensidão de demagogos que nos cercam, que também garantem que não devem ser aumentados.

    O resultado é conhecido: os nossos governantes são, na imensa maioria das vezes, gestores medíocres que as empresas privadas de topo jamais contratariam.

    Pelo menos antes de terem passado pelo Governo, já que, depois, trazem consigo uma extraordinária mais-valia que é a lista de contactos de gente influente e poderosa nas decisões políticas.

    Inexplicavelmente, grande parte da população tem a mesma atitude crítica, por exemplo, com os salários de médicos, enfermeiros, polícias e professores.

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    Saber o ordenado que os portugueses consideram justo pagar a quem lhes pode salvar a vida, ensinar os filhos ou garantir a sua segurança, em comparação com o que aceitam como correcto para quem lhes proporciona a alegria da conquista de uma vitória desportiva, é algo de incompreensível.

    Os governantes, há que dizer, conseguem melhorar a situação com alguns estratagemas que vão passando mais ou menos despercebidos da maioria dos maledicentes.

    Ao ordenado, os ministros e deputados somam uma série de subsídios e prebendas que tornam o lugar mais apetecível e remunerado.

    Os polícias, e outras forças de autoridade, recebem “subsídio de risco”, como se não fosse claro que a sua profissão é de risco e como se não fosse natural que esse “subsídio” se somasse ao ordenado normal.

    Ainda assim, é deprimente saber que há médicos que recebem, mensalmente, menos do que um futebolista num “prémio de jogo” que junta ao seu salário milionário.

    E mais deprimente saber que há quem considere isso como normal.

    Escrevem-se artigos e mais artigos de jornais com críticas violentas sempre que surge um artigo a defender um aumento aos salários dos nossos governantes.

    Esquecem (ou não consideram importante) que o resultado óbvio desta opção de pagar pouco é ter, em lugares de extrema importância para a Nação, somente os mais incompetentes e os incapazes de conseguirem lugares em empresas privadas onde o mérito é condição base para se ser admitido.

    A opção pela excelência, para os portugueses, limita-se a alguns desportos.

    Talvez mudem de opinião no dia em que, nos hospitais, nas escolas e nas esquadras haja profissionais com o mesmo nível de competência que existe nos ministérios e no Parlamento.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Finalmente, uma oposição a funcionar?

    Finalmente, uma oposição a funcionar?


    Mesmo os mais aguerridos adversários de António Costa reconhecem-lhe talento político.

    Mesmo os mais próximos dos companheiros do primeiro-ministro assumem que deve muito do seu sucesso à sorte.

    Um talento especial que tem, na base, anos de observação atenta dos bastidores da política, onde conviveu com alguns dos mais experientes políticos portugueses e, facilmente, apreendido as técnicas, a arte e as manhas que o transformaram em vencedor.

    Muitas das vezes esquecendo escrúpulos e amizades (lembro o caso Seguro, por exemplo) que pudessem fazer perigar, ou adiar, a chegada ao topo.

    Determinado, confiante, frio, tenta disfarçar, em público, todo o seu autoritarismo com um ar de descontração e optimismo que se percebe ser inexistente em privado.  

    António Costa é o exemplo acabado do político português com sucesso.

    A sorte que o bafeja, há que reconhecer, tem muito de preparada e trabalhada.

    Mas o inesperado joga, frequentemente, a seu favor.

    Chega à liderança do seu partido por ter convencido os militantes que o seu antecessor, que tinha ganho as últimas eleições, se devia demitir por o ter conseguido por margem pequena.

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    Perde as eleições seguintes, mas chega à liderança de um Governo democrático por ter beneficiado, numa situação irrepetível, do apoio das lideranças do Bloco de Esquerda e, principalmente, do Partido Comunista, que apostaram em lhe dar, no Parlamento, a maioria que precisava para governar.

    Finalmente, conta com as guerras intestinas dos partidos de direita, que levaram ao afastamento de nomes fortes, passando a ser geridos por rematados incompetentes, o que leva a que ninguém tome a sério as poucas críticas feitas à sua gestão.

    Com a esquerda a apoiar, ou a não contestar, as suas decisões e uma direita mais preocupada com a sua sobrevivência (que não conseguiu), todas as muitas falhas, suficientes para, em termos normais, fazer cair 10 Governos, foram sendo desculpadas e, até aceites.

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    Por outro lado, um sem número de situações de extrema gravidade (a covid-19, a guerra da Ucrânia, etc.) fazem com que os problemas do país passem para segundo plano.

    Tudo isto, há que reconhecer, com o apoio de uma fantástica e eficaz máquina promocional apoiada numa comunicação social dependente de patrocínios de vária ordem.

    Com a aproximação de novas eleições, numa jogada política inteligentíssima, aposta numa “guerra intestina” no principal partido da oposição com um apoio mal disfarçado, mas cirúrgico, ao partido populista de direita que podia tornar aquele ainda mais frágil.  

    E António Costa, mais do que o PS, consegue uma maioria absoluta.

    Mérito extraordinário, há que reconhecer, só comparável à completa cegueira política do Povo português.

    Para se manter em “estado de graça”, António Costa tenta rodear-se de todos os que lhe querem suceder, seguindo a velha máxima “ter os amigos perto e os inimigos ainda mais perto”.

    Só que, esta regra tem, sempre, como perigo acoplado, a possibilidade de lutas internas com o despertar da “vontade de ir ao pote” sem aguardar pelo tempo certo.

    Erros de cálculo, por precoces, de Marta Temido, Fernando Medina e principalmente Pedro Nuno Santos, unicamente por se quererem antecipar aos seus “rivais”, colocaram holofotes nas inúmeras fragilidades do Governo PS.

    Inúmeros erros, constantes trapalhadas, ilegalidades sem conta, favorecimentos diários aos membros da família socialista, promessas incumpridas, começaram a ser relatadas diariamente.

    O que, numa primeira fase, destrói os putativos sucessores acaba por fazer perder a confiança no líder já que ninguém acreditará que todos os erros denunciados foram cometidos à sua revelia e sem o seu conhecimento e concordância.

    Pode aparecer, finalmente, uma oposição a António Costa.

    De onde ele menos esperaria.

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    De dentro do seu próprio partido.

    O que nem sequer é original, como ele próprio concordará se analisar o seu percurso.

    A história repete-se, dirão alguns.

    O “karma” não falha, garantirão outros.

    Eu, mais pessimista e menos dado à metafísica, limito-me a aguardar por mais um golpe de sorte que vai salvar António Costa de todos estes problemas.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Uma indemnização de ir às nuvens!

    Uma indemnização de ir às nuvens!


    Há muitos anos, um colega de turma perguntou ao professor:

    – “Afinal, senhor professor, que diferença pode haver entre gerir uma empresa pública e uma privada?”

    O professor fez uma pausa de segundos e contou:

    – “Numa sexta-feira, ao final da tarde, o administrador financeiro de uma empresa pública entrou, preocupadíssimo, no gabinete do presidente do conselho de administração e disse-lhe:

    “Senhor presidente, estamos perdidos. Os nossos dois maiores clientes declararam falência e, dado o montante das suas dívidas para connosco, é certo de que iremos falir por arrastamento.”

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    O presidente levantou-se, arranjou o nó da gravata, e começou a caminhar para a porta enquanto exclamava:

    “Meu Deus! O que eu me vou preocupar na segunda-feira de manhã!”  

    Lembrei-me deste episódio quando ouvi a história da indemnização, de meio milhão de euros, dada pela TAP à sua ex-administradora exclusiva, Alexandra Reis, de cujos serviços terá prescindido (segundo alguns) ou aceitado a sua demissão (segundo outros), a meio do seu mandato de quatro anos.

    Vejamos, então, como se gere uma empresa que depende do Estado.

    A TAP, é sabido, é uma empresa que vive a balões de oxigénio, com o Estado a salvá-la, consecutivamente, da falência graças a injeções de capital na ordem dos milhares de milhões de euros.

    O número de funcionários, e de aviões, reduz constantemente.

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    Enfrenta greves sucessivas dos funcionários que consideram não receber o salário que lhes é devido nem ter as condições de trabalho necessário para um desempenho eficaz.

    O serviço da companhia – que já foi considerado dos melhores do mundo – degrada-se de dia para dia: os atrasos são constantes, o serviço de bordo é péssimo, os preços dos bilhetes, principalmente para alguns dos destinos com mais procura, por não terem concorrência, são de agiotagem.

    Tudo isto só pode levar à conclusão de que a sua administração é de uma incompetência atroz.

    O que não impede que os seus membros aufiram ordenados principescos, como aliás o próprio Presidente da República reconheceu (até porque lhe toca na pele): “é sempre o problema de haver uma série de cargos empresariais de empresas direta ou indiretamente relacionadas com o Estado ou propriedade do Estado, que são muito superiores àquilo que são os vencimentos, não digo dos portugueses, mas mesmo dos titulares do poder político ao mais alto nível”.

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    Na realidade, a senhora de quem vimos falando, recebia um salário duas vezes superior ao do Presidente da República…

    É muito, há que reconhecer, mesmo não tendo em conta a falta de qualidade do seu trabalho, nem os resultados alcançados.

    Se já era grave “premiar”, para mais com 500.000 euros, o despedimento (ou a saída de “motu próprio”) de uma funcionária cujo trabalho era medíocre (para ser simpático nesta época natalícia), o que se seguiu foi, ainda, mais incompreensível.

    O mesmo “patrão” contratou a senhora para outra das suas empresas, mas promovendo-a a presidente.

    Não conheço o salário que foi receber mas deve ter tido um “aumentozito”, em relação ao último, dada a promoção, o que possibilitou, certamente, que não tivesse de recorrer ao dinheiro da indemnização para poder pagar as contas do dia-a-dia.

    person holding wine glass

    Uns meses depois, todavia, também deixou esse cargo.

    Não se sabe se por ter sido despedida, ou se por sua iniciativa, nem mesmo se recebeu outra indemnização.

    Sabemos, somente, que foi contratada, para outro lugar e, de novo, pelo mesmo “patrão”.

    Duvido que conseguisse o mesmo trajecto numa empresa privada, mas isso não é para aqui chamado…

    É, agora, secretária de Estado do Tesouro.

    Considero uma excelente escolha e aplaudo-a veementemente.

    Espero bem que consiga aumentar o Tesouro Público na mesma proporção que consegue aumentar o seu. Privado.

    Vamos ser a inveja da Europa!

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.