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  • ‘Não é o brócolo e a couve que pagam os cursos de Medicina’

    ‘Não é o brócolo e a couve que pagam os cursos de Medicina’

    As posições que tem assumido, nos últimos anos, fizeram de Manuel Pinto Coelho uma das figuras mais polémicas da classe médica em Portugal, por vezes em confronto com a própria Ordem dos Médicos. Entre as práticas mais controversas que defendeu, e que mais causaram celeuma, estão a exposição solar sem protector e a ingestão de água do mar. A pretexto do seu mais recente livro, Seja um super-humano, o PÁGINA UM entrevistou-o na sua clínica, ou “casa”, como lhe chama, onde, fiel à irreverência, explicou as suas teses e não poupou críticas ao método convencional da Medicina e sobretudo à Organização Mundial de Saúde e gestão da pandemia.


    Seja um super-humano! é o seu 10º livro, e aponta 50 hábitos que pretende mudar a saúde das pessoas. Marca também os seus 50 anos de prática clínica. Estamos perante um balanço de vida?

    Eu sei da responsabilidade que tenho. Quer as pessoas gostem ou não de mim, sabem que 50 anos de prática, seja ela clínica ou não, ensinam muito. O empirismo, a experiência e a prática é sempre o que mais importa em qualquer tipo de matéria. Claro que a teoria é importante, mas nós sabemos que o que é verdade hoje, amanhã já não o é, enquanto que aquilo que a prática nos ensina é sempre verdade. Não “passa de moda”, ao contrário da teoria. Como tal, eu percebo que as pessoas possam ter um interesse acrescido em ver como é que pensa o médico que anda, há meio século, a ver pacientes à sua frente.

    Manuel Pinto Coelho fotografado na semana passada na sua clínica em Lisboa.

    E o que é que mudou, e o que é que se manteve, na sua forma de pensar, desde que começou a sua carreira?

    Estive muitos anos na sombra do conhecimento que tenho agora. O que mudou foi, essencialmente, o facto de eu hoje tentar ir à causa dos problemas e das doenças, em vez de apenas tratar as suas consequências. Durante muito tempo, eu fiz isso, na esteira daquilo que aprendi na faculdade. O nosso programa académico ensinou-nos a ver as coisas de determinada maneira, e eu fi-lo durante anos a fio de uma forma quase acrítica. A certa altura, passei a fazê-lo de maneira diferente. Isso abriu-me muitas portas e trouxe-me muitas alegrias. Não há dinheiro que pague vermos as pessoas felizes e contentes por nossa intersecção. O acto de dar, dá 10-0 ao de receber. E eu comecei a perceber isso. Como tal, hoje sinto, que as respostas que a “casa” [Clínica Dr. Manuel Pinto Coelho] oferece, com esta forma integrada de ajudar as pessoas, tem-me dado alegrias que antes não conseguia obter quando, ao longo dos meses, passava meia-dúzia de receitas.

    Como reagiu então quando percebeu que aquilo em que acreditava, afinal não era bem assim…

    Não é que aquilo em que acreditava fosse errado. Eu fiz medicina hospitalar, serviço de urgência, durante muitos anos. Comecei ainda antes do 25 de Abril. Fui médico de centro de saúde durante 35 anos e sou reformado da Função Pública desde 2009. Por isso, eu sei qual é a prática clínica tradicional, que a larga maioria dos meus colegas segue. Mas o inesperado problema de saúde do meu filho [que sofria de esclerose lateral amiotrófica, e que acabou por morrer aos 49 anos, em Dezembro passado, 12 anos após ser diagnosticado] ajudou-me a procurar outras formas de ajudar, em primeiro lugar, quem eu tinha em casa. E que ajudou-me também a perceber uma coisa que é inacreditável eu nunca ter reparado: Hipócrates, pai da medicina, ensinou-nos a todos, há quase 2.500 anos, que o alimento é o nosso principal remédio, que temos dentro de nós tudo quanto precisamos. E também que, não conhecendo o alimento, fica mais difícil tratar as doenças. Aliás, todas as nossas doenças começam no intestino. Com o juramento de Hipócrates, pomos o homem nos píncaros. E, depois, não seguimos o seu conselho.

    E porque é que acha que isso acontece?

    Porque não é o brócolo e a couve que paga os cursos de medicina. O paradigma actual seguido pela classe médica é um comprimido para cada maleita; foi instituído por decreto. Mas, voltando atrás: em 1895, Louis Pasteur, o dono da teoria do germe, morreu. Esta teoria defende que a Medicina deve tentar barrar a entrada do germe no nosso organismo. Bateu-se toda uma vida e, ganhando o braço de ferro, teve vários opositores, nomeadamente Claude Bernard e Antoine Béchamp, que o contradisseram, e defenderam que a Medicina se devia “virar” para o hospedeiro e a homeostase.

    O 10º livro de Manuel Pinto Coelho foi publicado no mês passado pela Oficina do Livro, do Grupo Leya.

    Refere-se à teoria do terreno, ou terrain theory?

    Sim. Eles perderam; e Pasteur ganhou, abrindo as portas à indústria do tratamento. Só que, as pessoas não sabem da existência de um papelinho que ele deixou na mesa de cabeceira, no seu leito de morte, dizendo que se enganara, e que realmente o micróbio não era nada e o terreno era tudo. Portanto, pouco antes de morrer, ele negou uma vida inteira em que tentou provar a teoria do germe. Mas foi essa teoria que ficou, para posteridade. Em 1910, o ensino médico privilegiava realmente o corpo e o terreno, através das chamadas terapêuticas não-convencionais. Depois, com o Flexner Report entendeu-se que essa prática médica não fazia sentido e instituiu, na linha do Pasteur, o modelo que ainda hoje está vigente. E é assim que hoje se ensina Medicina: o médico espera que a pessoa fique doente para a poder ajudar. Não se trata de Saúde nos programas académicos das faculdades da Medicina; trata-se da doença. Não há cadeiras de Nutrição nas Faculdades de Medicina; só agora apareceu a Nova Medical School com uma cadeira de Ciências da Nutrição. Uma pedrada no charco, porque não existia. Quando uma pessoa vai ao médico, não lhe passa pela cabeça sair de lá sem uma receita. Se sair do médico sem uma receita, diz que o médico o enganou, não percebendo que devia era pôr em ordem o seu estilo de vida, de forma a nunca mais lá voltar.

    Diria que essa é uma forma de fazer Medicina que beneficia a indústria farmacêutica…

    Pois. Quando as potências do dinheiro assumem o controlo da saúde, é um desastre. E é o que está a acontecer agora. Quem gere a saúde, e tomou as rédeas da Organização Mundial da Saúde (OMS) são puros homens de negócios com conflitos de interesses e sem qualquer preparação médica. Nos anos de 1970, as quotizações dos países-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) representavam 80% do budget da OMS. Isso mudou. Em 2016, já 80% do budget provinha de donativos privados. Temos em curso um “golpe de estado” e ninguém abre os olhos; estamos a assistir, impávidos e serenos, à criação de uma organização sem qualquer matriz de saúde, que determina como é que devemos conduzir os nossos problemas ligados à Saúde, seja com a covid-19 ou com o que for.

    Os países estão a perder a sua soberania em matéria de Saúde Pública?

    Sim. Se a OMS fosse um órgão democrático, democraticamente eleito, tudo bem, mas não. É agora o dinheiro que está a mandar e a assumir o controlo da Saúde. As potências do dinheiro estão a assumir o controlo da Saúde. Veja-se aquilo que se está a passar com a aliança entre o World Economic Forum, da figura inacreditável do Klaus Schwab, e o poder do dinheiro da OMS.

    Que saída propõe então?

    Sou uma pessoa optimista por natureza, e tenho esperança. Ou não fosse eu do Sporting, e não fosse o verde a cor da esperança [risos]. Mas tenho que dizer que a situação actual é preocupante. Como dizia Robert Malone, a covid-19 é uma questão de poder e de dinheiro. Claramente. Eu sinto isso, no meu dia-a-dia. Mas não irei calar-me. Não me calo. E ninguém me pode instituir um processo disciplinar por isto que eu estou a dizer. Podem gostar ou não gostar, concordar ou discordar, mas, caramba, acho que só na Coreia do Norte é que há pensamento único. Era o que faltava que num país democrático as pessoas não pudessem dizer de sua justiça, desde que o façam de maneira educada e civilizada.

    No ano passado, a obra O segredo do sistema imunitário contou com o apoio de Cristiano Ronaldo.

    Pelo que foi assistindo nos últimos anos, comportámo-nos como um país plenamente democrático?

    Não. Não. Não agimos como um país 100% democrático. Basta ver as linhas editoriais dos principais órgãos de comunicação. Aquilo é democracia? Quantas pessoas é que vimos na comunicação social a dizer que o terreno é mais importante que a semente? Não chamaram cientistas ou investigadores de Saúde para discutirem esta questão. Nem um. Quem aparece são virologistas e epidemiologistas, sempre na perspectiva da semente: é as vacinas, são as máscaras, é o confinamento, é o distanciamento social. No meu livro O segredo do sistema imunitário [lançado em Março de 2021], o Cristiano Ronaldo diz, na chamada de capa, que considera a expressão “vacina natural” uma expressão feliz, e que o livro revela claramente a importância do sistema imunitário. O que ele disse não teve praticamente eco nenhum. O melhor jogador de futebol do Mundo de todos os tempos, melhor marcador, a dizer uma coisa destas e falou-se pouco nisso.

    Mas “arranjar” essa “vacina natural” não dá o mesmo lucro que as vacinas que as farmacêuticas vendem…

    As pessoas deviam saber que, por exemplo, o arroz tem mais de 50 mil genes, mais genes do que nós temos no nosso corpo, e que podemos modificar a expressão dos genes com os alimentos. Não me parece que haja algo mais interessante do que o facto de podermos modificar os genes com que nascemos, através do alimento, do ar que respiramos, de um sono reparador, da quelação dos metais pesados que temos dentro de nós… A importância gigante do exercício físico, e do intestino. Temos 10 triliões de células, mas temos 100 triliões de micróbios dentro do nosso intestino, que nos pesam dois quilogramas. É a microbiota, que hoje tem a figura de órgão. Porque é que não se fala mais sobre isto? Muita da Medicina está ligada à doença, não está ligada à saúde. Nos meus livros estão as referências bibliográficas, para quem queira consultar; está lá tudo. Se há colegas que não concordam com o que eu digo, muito bem, escrevam, tal como eu escrevo. Dêem referências bibliográficas para suportar as suas teses, como eu dou para suportar as minhas.

    Tem-se dito muito às pessoas para confiarem na Ciência, como se fosse uma questão de fé, um dogma. Qual a sua opinião sobre o estado actual da Ciência e seu papel sociedade?

    Maria Angell, ex-directora e antiga editora-chefe da New England Journal of Medicine, que é uma das publicações mais importantes no mundo médico, escreveu isto num editorial em 2000: “a distinção entre Governo, indústria, Ciência, e Medicina está enevoada, está confusa. O resultado são doses maciças de desinformação que custam bem caro ao consumidor”. Dizia ela que “na indústria da Ciência, a indústria usa a Ciência para aumentar a procura pelos seus produtos, de modo a realizar mais dinheiro”. É exactamente isto. O actual secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales, disse num noticiário da TVI que a evidência científica de hoje é o erro rectificado de amanhã. Disse muito bem. Não se pode acreditar cegamente. O Richard Horton, que foi editor-chefe da Lancet, disse que metade dos trabalhos científicos são falsos. Portanto, Ciência muito bem, mas vamos com calma.

    Não se pode perder o espírito crítico?

    As pessoas não podem aceitar, de uma maneira quase acrítica, aquilo que ouvem nos jornais e nas televisões, nos noticiários. Não faz sentido. Não se fala em conflitos de interesses, que têm muitas das pessoas que escrevem. O apelo que faço é que as pessoas pensem. O Edgar Morin tinha uma frase fantástica: muitos dos nossos problemas resultam da ausência de pensamento, mais do que problemas económicos, ambientais, sociais ou culturais. Há um défice de pensamento; as pessoas não pensam. É inacreditável o que se está a passar. Este totalitarismo global crescente é preocupante. Eu considero que isto da covid-19 é só uma escaramuça [risos], porque o que verdadeiramente me preocupa é haver meia dúzia homens de negócios a mandarem em nós, e nos destinos de cada país. Isto é grave. O Prémio Nobel da Medicina em 1993, Richard Roberts, denunciou como funcionam as grandes farmacêuticas dentro do sistema capitalista, acusando-as de preferirem os benefícios económicos à saúde e detendo o progresso científico na cura completa das doenças, porque a cura não é tão rentável quanto a doença. Temos que dar mais voz a estas pessoas. A apetência da investigação científica só se faz para as áreas lucrativas; nunca para as áreas que não dão lucro.

    Ou seja, quer dizer que os hábitos que, por exemplo, recomenda no seu último livro, não são mais divulgados porque não dá lucro às farmacêuticas…

    Ninguém investigou, por exemplo, os benefícios de três hábitos que considero serem os mais importantes de todos os que menciono no livro: a meditação, o exercício e a leitura. Por exemplo, a biblioterapia era uma prática corrente na civilização grega, romana e egípcia. Neste momento, temos dois técnicos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa a pesquisar os benefícios incríveis que a leitura tem no tratamento de doenças. Porque é que ninguém fala disso? Porque é que ninguém explora a importância gigante que a meditação tem no tratamento de doenças e a ajudar as pessoas a chegarem novas a velhas? Independentemente do seu grau de cultura, as pessoas não são burras; elas entendem, têm sensibilidade, e percebem que, na realidade, há qualquer coisa que não está bem contada. Não é preciso ser agricultor ou lavrador para se perceber que o solo importa bem mais do que a semente que lá cai. Não interessa saber, por exemplo, porque é que há pessoas que vão abaixo e outras que não vão? E porque é que nas famílias, há um ou dois resistentes que nunca apanham covid-19?

    Manuel Pinto Coelho com o norte-americano Robert Malone.

    Fala-se nisso como se fosse um mistério…

    Não é mistério nenhum. Para as pessoas que não percebem nada disto, é misterioso. Há que dizer porque é que essas pessoas não vão a baixo, e é porque têm um sistema imunitário que as protege de todas as investidas. Se tivermos, dentro das ameias do nosso castelo, um exército suficientemente robusto e forte, esse exército protege-nos de tudo. Não é só a covid-19 que não se apanha, derrota-se qualquer inimigo que lhe bata à porta. Mas isto não é discutido, nem investigado. Uma das formas de termos um sistema imunitário capaz é termos uma alimentação correcta.

    Já existem mais médicos, em Portugal, a preconizar a alimentação e o estilo de vida como factores importantes na saúde, ou ainda são poucos?

    Caramba, caramba, se existem. A Leonor Rodrigues Lopes, por exemplo, que também é doutorada, professora universitária e neuroradiologista, com quem eu tenho a sorte de trabalhar, filha do grande Ernâni Lopes [antigo ministro das Finanças, falecido em 2010], e outros, variadíssimos médicos que trabalham aqui, e que percebem.

    Então este movimento, se assim lhe podemos chamar, está a crescer?

    Sim, cada vez mais médicos vêem o problema desta maneira. Não faz sentido fazer o juramento de Hipócrates e depois não ligar nenhuma àquilo que ele ensinava. Cada vez mais colegas meus estão a perceber que uma alimentação pode modificar o seu genoma. Em 2004, nasceu a epigenética, que nos ensina a perceber que é possível modificar a expressão dos genes com que nós nascemos. Uma pessoa, hoje, já não é vítima dos genes que herdou quando o espermatozóide fecundou o óvulo da mãe. Eu falo muito na vitamina D, e dá-me imenso prazer poder dizer que fui a primeira pessoa em Portugal a falar das suas vantagens. Em Novembro de 2015, no meu livro Chegar novo a velho chamei a atenção que o Sol fazia muito mais bem do que mal. E se eu fui atacado na altura! Quando hoje é uma evidência que o Sol faz mais bem que mal, com as cautelas devidas. Com níveis elevados de vitamina D, eu costumo dizer, por paródia, que as pessoas podem andar a beijar na boca os “covidosos” e as “covidosas” todas lá da rua, que mesmo assim, podem apanhar o vírus, mas o vírus não as apanha a elas. Se, juntamente com isto, se fizer a evicção dos alimentos que aumentam a permeabilidade do intestino, e que o inflamam, terão, com certeza, muito menos probabilidade de ficar doentes. Costumo até dizer que, para essas pessoas verem uma bata branca têm que ir à Netflix [risos]. Isto, os homens de negócios não vão dizer. O Lair Ribeiro, que já devia ter ganho o Prémio Nobel há muito tempo, dizia que aos grandes grupos farmacêuticos não lhes interessa duas coisas: curar e matar. Na realidade, interessa-lhes é manter a pessoa em banho-maria, tornar a situação crónica. Recuso-me a aceitar este sistema como normal, porque não é, e não dá saúde a ninguém.

    Como tem visto a actuação do actual bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, particularmente em relação aos colegas que, nos dois últimos anos, expressaram uma opinião diferente?  

    Tenho uma opinião, mas não a vou divulgar porque tenho um processo que deu entrada no Tribunal Administrativo em Outubro de 2017, contra o actual bastonário, contra o Conselho Nacional, e contra o Conselho Disciplinar Regional do Sul da Ordem dos Médicos. Como tal, não me é permitido fazer qualquer tipo de comentário. E, se o meu advogado estivesse aqui, diria: “apoiado“!

    Manuel Pinto Coelho nas instalações da Leya a autografar a sua última obra.

    [risos] Mas, como é que lidou com as críticas, e com as acusações, de que defende ideias pseudocientíficas ou que carecem de comprovação científica? Afectaram-no de alguma forma?

    Não, porque conheço alguns pensamentos de gente válida como, por exemplo, do grande Karl Popper, que disse que o crescimento do conhecimento depende inteiramente do desacordo. Também me lembro que Fernando Pessoa recomendou: “segue o teu destino, rega as tuas plantas, ama as tuas rosas, o resto é sombra de árvores alheias”. Tenho esta cultura, sei o pensamento destas grandes figuras. E tenho a minha prática clínica. Enquanto eu tiver resultados e as pessoas nos procurarem, esses comentários são sombras de árvores alheias; não me interessa perseguir nem perder tempo com eles. Não me interessa nada [risos].

    Aprecia ser polémico?

    Enquanto eu estiver na plena posse das minhas capacidades intelectuais e físicas, sentir esta garra dentro de mim, e perceber os resultados da nossa conduta nas pessoas, que é para quem eu vivo, ninguém me vai calar. Ninguém. E quando passarem o risco, aí há os tribunais. Os advogados também precisam de ganhar a vida [risos]. A minha folha de serviços da Ordem dos Médicos está imaculada, não tem uma única sanção. Queixas, há muitas, mas depois eu respondo.

    Imaginava que, um dia, poderia vir a ser considerado irreverente entre a classe médica?

    Tenho seis filhos, sete netos, 50 anos de prática clínica. Estou como aquele ditado hindu: o coração, quando está em paz, vê uma festa em todas as aldeias. Estou cada vez menos belicoso, e menos conflituoso. Se calhar há 20 anos atrás picava-me mais com o que ouvia; hoje em dia já não. Até porque vejo que, cada vez mais, as pessoas percebem que se deve abordar primeiro a saúde, e só depois a doença.

  • ‘Ser alfacinha é saber andar a pé em Lisboa, é saber olhar para as coisas, é gostar da luz’

    ‘Ser alfacinha é saber andar a pé em Lisboa, é saber olhar para as coisas, é gostar da luz’

    Em Lisboa: indo e vindo, a escritora Filomena Marona Beja junta, num estilo muito peculiar, a sua memória da capital portuguesa com a História e as estórias que, no conjunto, revelam verdadeiros tesouros de curiosidades. O pretexto da conversa com o PÁGINA UM era para ser uma breve conversa sobre o seu mais recente livro, editado pela Parsifal, mas acabou por resvalar para uma longa e agradável viagem de memórias e sentimentos por uma cidade que só pode ser aprendida e apreendida devagar, a pé, sempre a pé.


    O seu nome, enquanto autora, tanto aparece numa versão curta – Filomena Beja – ou numa versão mais longa – Filomena Marona Beja. Com qual delas prefere assinar?

    Na escrita, é sempre Filomena Marona Beja. Há uma coisa engraçada: eu sou escritora, fui documentalista de arquitectura escolar e escrevi muitas obras, e, no âmbito profissional, era sempre conhecida como Filomena Beja. Uma vez, a Biblioteca Nacional perguntou-me se ambos os nomes eram da mesma pessoa e eu disse que sim; então, estou na Biblioteca com os dois nomes.

    Pelo que escreve, percebe-se que é pessoa atenta, com uma invulgar capacidade de absorver em pormenor o que a rodeia. Este livro tem, aliás, uma riqueza excepcional de sensações, que nos “aguça” os sentidos…

    Eu acho que é o quanto gosto de Lisboa que está neste livro, e o facto de conhecer muito bem Lisboa.

    Identifica-se então como uma lisboeta, uma alfacinha.

    Mais alfacinha do que lisboeta. Sou lisboeta, porque nasci em Lisboa, e sou alfacinha, porque vivo essa cultura e porque a sinto.

    E o que é ser alfacinha?

    [risos] Olhe, é saber andar a pé em Lisboa, é saber olhar para as coisas, é gostar da luz, é saber ir de um lado para o outro e é sentir-me lá bem. Ser alfacinha é, sobretudo, isto. É a comida, é o próprio falar. Eu sei que nós, os lisboetas, não damos por isso, mas temos uma pronúncia. Além de falarmos depressa, temos uma pronúncia própria. Abrimos um bocado os últimos “o”, e essas coisas assim, e usamos termos que são de Lisboa, porque Lisboa foi sempre um encontro de tudo e mais alguma coisa. Tanto do que veio de fora, que nos chegou nas caravelas que iam entrando no Tejo e nos mercadores que iam cá deixando as coisas; como no que depois, a determinada altura, quando eu era pequena, no fim da Segunda Guerra Mundial, as pessoas deixaram de ter, no campo, os mesmos meios de rendimento que tinham tido até aí, e começaram a vir trabalhar para as fábricas… foi um vir de longe para cá e essa mistura, o continuar a querer falar à maneira de Lisboa e a querer as coisas à maneira de Lisboa, isso é ser alfacinha, acho eu.

    Mesmo correndo o risco de se tornar francesa… [risos]

    Foram os franceses que me educaram, sim. Aprendi a escrever ao mesmo tempo nas duas línguas, mas isso foi outra história. Foi do lado do meu pai, que era tradutor na Companhia dos Caminhos de Ferro. Ele ajudou, durante a guerra, a resistência francesa, e chegavam-lhe refugiados, gente que vinha escondida nos comboios, que ele ia buscar a Santa Apolónia, e conseguia depois passar para Inglaterra. E, no fim, teve a roseta da Liberdade de França e convidaram-no a ir para à escola francesa. Na altura, ainda fiz a primeira e a segunda classe na École Française de Lisbonne, que ficava na Travessa do Forno do Tijolo. Entretanto, estava a ser construído o Liceu Francês, que ficou com o nome de Charles Lepierre, que era professor de química no Instituto Superior Técnico. E, quando eu fui para a terceira classe, inaugurámos o Liceu. Há sessenta anos. Aprendi com os franceses uma coisa muito importante: o que é a liberdade e que se é livre desde que se seja responsável. E nessa altura isso não se aprendia no ensino português. Foi essa a história [risos]. Também me ensinaram que quando falasse português, era português, e quando falasse francês, era francês. Portanto, eu não podia misturar as duas línguas nem as duas culturas.

    De 1944 para 2022, Lisboa transformou-se. Já não é a mesma.

    A essência está lá. Claro que não é a mesma Lisboa, e uma das razões é as “invasões” que tem sofrido [risos]. Primeiro, de pessoas estranhas à cidade que vieram para cá viver e agora é a invasão dos turistas. Desce-se a Rua Augusta e não se vê nenhuma das lojas antigas, só se vê casas de comida. Ah!

    A maioria nem sequer apresenta comida portuguesa.

    Sim! Nem sequer é comida portuguesa, são coisas esquisitíssimas. Já vi turistas a comerem sardinhas com um café com leite ao lado. Eu acho que não são turistas, são viajantes que vêm cá para ver e não para descobrir. Vêm para verificar que está e às vezes vêem mal. Vão ao Carmo, vêem umas ruínas mas não percebem porque é que aquilo está assim… Está lá a Guarda Nacional Republicana, eles olham para aquilo e não sabem muito bem o que é que aquele fulano está para ali a fazer de um lado para o outro… No chão está escrito o nome do Salgueiro Maia e eles sabem lá quem é que foi o Salgueiro Maia e o que é que aconteceu ali. E pronto, é isto. Isto não é viajar, não é conhecer. E é mau, é uma invasão e é estragar a nossa cidade.

    Ao regressarem a casa levam consigo umas fotografias, mas não provaram a gastronomia portuguesa, não conheceram Lisboa…

    Não sabem o que viram! Dizem que os turistas deixam cá dinheiro, mas às vezes nem deixam. Comeram aqui e ali, mas geralmente as coisas até vêm pagas. E depois, o que é isto do alojamento local, não é? As pessoas a serem empurradas para fora das casas para as casas serem transformadas em alojamento local. Também não é bom.

    Escreveu até sobre os jacarandás, que são um marco de Lisboa, ao qual ninguém que viva na cidade fica indiferente…

    Quando vejo os jacarandás, fico muito contente, porque continuam a florir todos no mesmo dia. É assim, porque vieram todos do mesmo sítio, foram plantados na mesma altura, deram a mesma flor, e isso acontece, está tudo a florir ao mesmo tempo. São um sinal de vida, da Natureza, da sintonia.

    Este livro acaba por ser um convite para se viajar por Lisboa. Aliás, é uma autêntica viagem pela cidade…

    [risos] Olha, que bom! É uma viagem por Lisboa, não deixando de ser uma viagem pela memória de Lisboa.

    O que sente por Lisboa?

    Sinto muito orgulho. Aliás, basta ver a cidade que ainda é. Tem resistido ao que lhe tem acontecido, justamente com estas “investidas” de gente que não sabe o que é Lisboa, como o alojamento local, o ter desaparecido as lojas para aparecerem os comedouros…

    people walking on street near building during daytime

    Como é que se poderia resolver essa situação?

    Era voltar atrás, o que seria complicado. Seria outro “terramoto”, quem sabe. As evoluções são mesmo assim… há sítios que resistem melhor, e há sítios que resistem pior. Depende.

    Junta às memórias de Lisboa as suas próprias memórias. Era impossível dizer o que aqui está dito se não as tivesse vivido, certo? Sentiu-se obrigada a deixar um registo daquilo que sentiu, viveu e aprendeu?

    Foi um bocado isso, o gosto de escrever às vezes dá isso. Foi para deixar escrito, mas talvez até mais para mim mesma; é uma recordação, está apontado aquilo que eu vivi, aquilo que eu senti e aquilo que eu gosto. Até podia ter escrito mais coisas que não estão no livro e que eu assisti, e que podia ter dito.

    Usa alguma ironia quando se refere aos membros do clero, como por exemplo ao Cardeal Cerejeira – o amigo de Salazar [risos]. Qual é a sua relação com a religião?

    Nunca tive relação nenhuma [risos]. Fui sempre livre de escolher o que queria, e achei que a religião era algo que não fazia sentido. Em pequena, lembro-me de uma tia minha me tentar ensinar uma oração, e eu achava que aquilo não queria dizer nada. Nunca me obrigaram a ir à Igreja, e aí tive sorte porque os franceses não obrigavam ninguém a fazê-lo. Mas, pela lei portuguesa, era preciso que se ensinasse religião. Em França, não se dá aulas à quinta-feira à tarde, e é uma coisa que vem do tempo da Revolução Francesa, era uma maneira de terem um dia livre durante a semana, e não só o domingo. Mas cá, o dia livre era a quarta-feira porque era o tempo da Mocidade Portuguesa. Havia um grande anfiteatro no liceu francês, e à quarta-feira à tarde eles levavam lá um padre que vinha da igreja de São Luís dos Franceses, e ele enchia o quadro de uma conversa qualquer em latim. A porta ficava aberta, quem queria entrar assistia, e quem não queria, não ia; ninguém tinha nada a ver com isso. Fui lá uma vez ou duas para os ver a escrever em latim, e depois fui-me embora porque achei aquilo uma chatice de todo o tamanho. De resto, entrei nas igrejas que quis ver por razões de arquitectura e de arte. Eu e o meu marido não nos casámos pela Igreja, não baptizámos os filhos. Não sou anticlerical sequer: quem quer, quer; quem não quer, não quer, pronto. Não acredito na religião [risos].

    O seu texto nasce de uma tensão entre a sua experiência particular e a História em geral. Qual é o sentido desse movimento? Ou seja, interessou-se primeiro pelos lugares, passando depois à investigação, ou leu primeiro sobre alguns lugares e monumentos, cruzando-se depois com estes?

    Quando me encontro num lugar ou diante de um monumento, tenho logo curiosidade de saber como é que foram as coisas. Porque me interesso pela Arquitectura, porque me interesso pela Ciência, porque eu não sou uma literata, não sou da Faculdade de Letras. Sou da Faculdade de Ciências [risos]. E isso é uma coisa que me dá uma grande bagagem e uma forma diferente de olhar para as coisas.

    Neste caso, porquê a opção pela crónica?

    Foi a forma que encontrei para contar a História com verdade. Não foi inventar a verdade, como faço quando escrevo romances.

    Em vez de lhe perguntar sobre qual é o público-alvo, gostava de saber qual é o perfil das pessoas que poderão sentir-se atraídas por esta obra…

    Não escrevi o livro para atrair ninguém, nunca penso nisso. Eu sei que sou um bocado bicuda a escrever. Aquilo que fica contado é com um português certo e rigoroso, mas sou um bocado “bicuda”. Pelo que tenho percebido desde que o livro foi publicado, o que me chegou foi que qualquer pessoa que lê, percebe o que ali está e fica a gostar. De Lisboa, não do que está escrito [risos].

    Os seus valores assentam nos três pilares: liberdade, igualdade, fraternidade?

    Sim, sim, sobretudo a liberdade. É importante saber usá-la. Quando se é livre, é-se responsável pela liberdade que se tem.

    Romance de estreia de Filomena Marona Beja em 1998, quando contava já 54 anos. Na última década intensificou a sua vida literária com mais de uma dezena de títulos.

    Destaca aqui, mais uma vez, a palavra liberdade. Acha que vivemos tempos em que podemos gritar vitória, que somos livres, ou vivemos um fracasso da liberdade?

    Sinto alguns sinais de fracasso, mas, mesmo na Europa, somos dos povos que melhor percebe o que é a liberdade. Porque quisemos, porque fomos submetidos durante muito tempo, tanto pelo Marquês de Pombal como pelos que vieram a seguir, e que deu mau resultado… E finalmente houve qualquer coisa que deu algum resultado, e foi bom, foi o que de melhor aconteceu.

    Sebastião de Carvalho e Melo é um dos responsáveis pela cidade ser como é. Vê-o como tirano e opressor ou como um herói libertador?

    É capaz de ter sido as duas coisas. Nesta altura ele era Sebastião José, ministro da guerra, não era ainda Conde de Oeiras, muito menos Marquês de Pombal ou primeiro-ministro. E teve que deitar a mão ao que aconteceu, e deitou bem, ou, no mínimo, o melhor que pôde. Ele tinha sido embaixador em Viena de Áustria e tinha trazido de lá muitas ideias. Por cá, já tinha as coisas mais ou menos preparadas. O plano de recuperação de Lisboa surge num instante, em poucos meses, e foi de certeza porque já estava preparado e pensado, por ele e pelos militares que trabalharam para ele e conseguiram reconstruir Lisboa. Ele, com a visão do que tinha visto lá fora, saiu o que saiu e saiu muito bem. Era um bocado ditador, pois era, mas já se sabe que há coisas que só à força é que se fazem [risos]. Como é que teria sido se não fosse à força? Tinha sido o que cada um quisesse, e não podia ser.

    Numa viagem livre, as páginas do seu livro tanto nos levam aos históricos cafés de Lisboa como às paragens do metropolitano. E de repente, estamos no meio de uma lição que nos ensina os significados do girassol, da gaivota, ou da caravela simbolicamente escolhidas.

    Foi a Maria Keil [risos]. Era uma senhora amorosa, pequenina, pintava… lembro-me muito bem dela, as últimas imagens que tenho dela foi na Expo 98. Ela era sempre muito bem recebida, davam-lhe o lugar nas filas, mas ela nunca queria passar à frente de ninguém. Com uma mochilinha às costas, viu tudo.

    Para esta obra, investigou, por exemplo, na Torre do Tombo ou na Biblioteca Nacional?

    De propósito para isto, não. Fiz muitas investigações, por várias razões profissionais e não só, e “apanhei” muita coisa, tomei nota, e sei muita coisa por isso. Tinha muito boa memória. Agora já não tenho a memória que tinha, e como estou com esta “bicharada”, fugiu-se-me muito. Mas muitas coisas ficaram, e voltam, e uma delas é como é que era Lisboa, onde ficavam os sítios. Sabia tudo isso, e era algo que me dizia muito. Por exemplo, as pessoas agora vão ao Hospital de São José entregar papéis e a sigla que lhes aparece é “O.S.”, e não sabem o que significa. É omnium sanctorum: era o nome do “Hospital de Todos os Santos”. Pronto, sei, aprendi.

    A expressão “Lisboa é Portugal, o resto é paisagem” é justa?

    Não, não, isso é conversa. O resto não é paisagem de maneira nenhuma. Há cidades que se impõem, como Coimbra, Beja, Évora. São cidades muito interessantes. Os Açores…

    Mas como é que passamos a paixão pelo conhecimento às novas gerações?

    Ou as pessoas vêem e são capazes de perceber o interesse que as coisas têm, ou então não há nada a fazer. Antes disto acontecer, eu fiz termas num sítio mesmo à beira do Rio Douro, no concelho de Resende, chamado Caldas de Aregos. Quando ali chegou o cônsul de Portugal vindo de Paris, porque ia tomar conta de uma casa que a mulher tinha herdado, não chamou à zona de Aregos, chamou-lhe Tormes. Tudo isto é Portugal.

    Vou ler o que escreveu no seu livro, na página 69: “Rua António José Serrano, sobe-se, rua do Arco, rua Martim Vaz, anda-se por ali. Ouve-se a sirene de uma ambulância, de outra, outras”. Como é que estabeleceu o equilíbrio entre a história de Lisboa e a sua história pessoal? Por exemplo, os acontecimentos no Hospital de São José e a relação com o terramoto…

    Pelas várias razões por que lá fui, e por que hoje ainda vou, seja por causa dos meus que trabalham lá, ou pela minha médica. E lembro-me de o Hospital de São José ter muito má fama e das pessoas serem muito mal atendidas, antes do 25 de Abril, claro, e depois, das coisas terem corrido bem e ter havido uma evolução extraordinária, e de ser um sítio de excelência para as urgências. Portanto conheço, sei o que era aquilo antes de ser o hospital, sei o que foi estarem lá os franceses. E, como eu disse, fui documentalista de arquitectura, e olho muito para os prédios e para os edifícios, é uma coisa que me diz muito. E é com muita pena que vejo que os portugueses sabem quem é que escreveu Os Lusíadas [Luís de Camões], mas ninguém sabe dizer quem foi o arquitecto da Torre de Belém [Francisco de Arruda]. Não é preciso saber ler para olhar para um edifício e para o admirar, e tudo é isso, é História. Gosto.

    Assim sendo, e como excelente conhecedora de Lisboa, onde é que se pode tomar um bom café e a que horas?

    [risos] A qualquer hora, e há bons sítios para se tomar café. Antes havia a Pastelaria Suíça, que deixou de existir, mas o Café Nicola por exemplo, tem bom café.

    white and black bus on road near building during daytime

    No livro apresenta-nos um leque de ofertas, desde o Vá-Vá, em Alvalade, ou a Brasileira, que ainda existem, mas será que aos poucos também não se vão descaracterizando?

    Sim, claro. A Brasileira agora é o que se vê; e, no entanto, as coisas lá dentro ainda correm razoavelmente. Mas depois também há, às vezes, uma certa renovação. Muitas vezes parei na Brasileira e gostava de lá ir. Há um bom café, por exemplo, na Pastelaria Sacolinha [na Rua dos Douradores, na Baixa], um sítio onde se vendiam bordados da Ilha do Faial. Logo ao lado esquerdo há uma barbearia muito conhecida e antiga, e ao lado havia uma casa de bordados, que agora se tornou um café onde se bebe um óptimo café.

    Ficou por dizer neste livro algo que gostaria de acrescentar?

    Não sei, há tanta coisa que faltaria dizer. Muita coisa, muita. Sobre outros bairros, outros sítios. Toda a beira-Tejo, o que se vê no Castelo, no caminhar na Mouraria, o fazer a Avenida Infante D. Henrique. Saindo do Terreiro do Paço e passando por Santa Apolónia, e por aí fora. Tudo em Lisboa é muito apetecível de se dizer que queria estar lá. A Feira do Livro, por exemplo, não cheguei a descrever o que é. Eu lembro-me da Feira do Livro ser doze barraquinhas à roda do Rossio, e hoje já vai onde vai.

    Cresceu na zona do Poço do Bispo e ali, mesmo ao lado, temos o Parque das Nações, que sofreu uma evolução brutal. Mas ainda temos ali Xabregas…

    São os cais, é o facto de haver cais. De chegarem navios, do acostar, é o movimento ainda do rio.

    Sim, mas, pelo que me apercebo pela leitura deste seu livro, não acha propriamente uma paisagem bonita aqueles contentores.

    Desde 2015, Filomena Marona Beja publicou seis obras de ficção na Parsifal, entre romances, contos e crónicas.

    Não era, não era uma coisa bonita. Como é que foi possível juntar-se aquilo tudo ali ao molho? Foram tirados e ainda bem. Depois foi arranjado, arquitectonicamente foi bem arranjado, aquela solução que o arquitecto Manuel Salgado arranjou de pôr os bancos às riscas, aquilo sim, ficou bem. Aquelas tágides [risos]!

    E sobre as ciclovias? Para si descaracterizam a cidade ou são simplesmente uma mais-valia?

    As ciclovias? Porque não?! E agora está tudo muito chateado, porque dizem que vão cortar o trânsito aos fins de semana na Avenida da Liberdade. Que cortem, e depois? Subir e descer aquilo a pé, não é bom? Pois, experimentem e vão ver se não gostam [risos]. As ciclovias são de certa maneira um resguardo. São úteis, desde que sejam cumpridas regras. Há espaço para tudo desde que haja bom-senso, respeito e inteligência prática.

    É complicado passear por toda a cidade de bicicleta.

    Pois é. Mas eu não acho que as ciclovias sejam más, porque no fundo é um bocado pôr o automóvel na ordem, é um bocado isso [risos].

    No fim de cada capítulo deste seu livro, regista, na maior parte das vezes, Lisboa e Sintra como sendo o local onde os escreveu, e revela-se que, normalmente, demorou em cada um cerca de dois meses.

    Às vezes, escrevo coisas e guardo. E, depois, daí por uns tempos, dou com os papéis e retomo a ideia, e dou-lhe a forma final. Antes de me aposentar, eu ia todos os dias a Lisboa, e depois de me aposentar passei a ir apenas várias vezes por semana. Por isso, claro que todos os capítulos têm um “pé” em Lisboa. E depois a escrita é aqui, em Sintra.

    Tem já uma vasta obra, cerca de uma dezena e meia de romances e livros de contos e crónicas. Já tem outro em mente, presumo…

    Sim. Em princípio, há já uma coisa preparada para o ano que vem, com novelas. Uma novela é diferente de um conto, e aprendi as diferenças com o Camilo Castelo Branco. Chamá-lo-ei As novelas ao vento, são umas tantas. Gosto muito de escrever contos, mas os editores gostam pouco de os publicar. Quando quero dar um presente a alguém, escrevo um conto e ofereço-o, no final do ano. Ponho o Natal de parte, sou muito crítica em relação ao Natal. Sei que Cristo existiu, e sei o que ele passou para defender aquilo em que acreditava. Não o vejo como um “homem-deus”, mas como uma figura histórica. Acho impensável que se festeje o seu nascimento apenas com consumismo. Portanto, para mim não há Natal, mas há outra coisa que se lhe sobrepõe: tudo o que nós temos de festas ligadas ao catolicismo aproximam-se das festas pagãs antigas, e neste caso é o Solstício de Inverno. E eu festejo o Solstício de Inverno oferecendo contos a toda a gente, pronto [risos]. Mas retomando a pergunta, tenho sim, uma série de novelas preparadas.

    Ainda que goste muito de Lisboa, acaba por viver em Sintra.

    Eu e o meu marido casámos em 1967. Na altura ele veio para aqui dar aulas para a secção do Liceu Passos Manuel. As casas em Sintra eram muito mais em conta; em Lisboa eram muito mais caras. Acabámos por comprar uma moradia e aqui vivemos há sessenta anos.

    Imaginemos que depois de morrer, o paraíso, para si, era ficar sentada num cadeirão a observar Lisboa. Que recanto da cidade escolheria?

    O Castelo é um sítio bom, mas há outros. Um sítio onde eu até tenho estado, e gosto de saborear, é em frente à igreja de São Cristóvão. Vem-se de baixo, sobe-se as Escadinhas de São Cristóvão até meio, à entrada para a clínica dos Empregados do Comércio, e há aquele larguinho…  Ali, está-se muito bem.

  • ‘As novas gerações não reconhecem no Cristianismo uma proposta de felicidade’

    ‘As novas gerações não reconhecem no Cristianismo uma proposta de felicidade’

    É um dos três portugueses de destaque no Vaticano. Formalmente, é bispo titular de Belalos, mas essa é “mercê” simbólica, porque a sua função tem uma dimensão mundial: desde finais de 2011 ocupa as funções de delegado do Conselho Pontifício para a Cultura. Numa conversa reflexiva com o PÁGINA UM, na casa no Vaticano – daí a informalidade não ter “permitido” fotografias oficiais –, Dom Carlos Azevedo fala dos desafios mais marcantes da Igreja Católica, incluindo a perda de fiéis, das questões de moral e da ética nos tempos modernos, e também dos interesses pessoais (e críticos) que o mobilizam.

    Leia o perfil de Dom Carlos Azevedo, AQUI.


    Habitualmente, como são os seus dias aqui no Vaticano?

    Primeiro, há a normalidade daquilo que é a vida de um padre: levantar-me, rezar… Entro às 8 horas no trabalho e às 13 e 30 tenho o intervalo do almoço. Três vezes por semana regresso ao trabalho às 15 horas e saio às 18 horas. Às quartas e sextas não há regresso. Esse é o ritmo. Durante as horas de trabalho, o que faço é responder às solicitações dos bens culturais da Igreja, que é o campo que me tenho destinado. Por exemplo, hoje um director de um coro queria vir marcar uma audiência para falar sobre uma determinada situação e respondi a esse e-mail indicando-lhe a pessoa com quem ele devia falar. Portanto, é preciso responder aos e-mails, preparar temas, estudar e ler aquilo que neste momento está em debate na questão dos bens culturais.

    Entre os quais, a música…

    Sim. Daí eu ter feito quatro congressos. A música é um sector muito importante, sobretudo depois da mudança de paradigma da liturgia, no vernáculo de cada língua; é preciso que haja compositores, pessoas preparadas para corresponder a uma qualidade musical que está um pouco decadente. Sobretudo no sul da Europa e na América Latina, é algo que exige reflexão. Fiz vários congressos porque tinham bastante sucesso, havia uma necessidade. Outra área de trabalho tem a ver com as igrejas vazias, e sobre o que faz em relação a isso, de modo a dar-lhes um outro uso, como tem acontecido no Canadá, Estados Unidos e Austrália. É um fenómeno que vai continuar a intensificar-se nos próximos anos. Muitas igrejas, em particular nas cidades, não têm fiéis. Não tendo fiéis, como é que irão sobreviver? É preciso encontrar soluções.

    Dom Carlos Azevedo

    Em certos países, há igrejas que já foram transformadas em hotéis, bares, restaurantes, discotecas…

    Nós fizemos um documento de 16 páginas, que foi aprovado a nível das conferências episcopais europeias, e que deu bastante trabalho; está na internet e as pessoas podem ler. São linhas orientadoras para esta questão. Fala sobre o que se deve fazer, quais são as prioridades, como se deve conduzir o processo. Além da leitura do fenómeno, dá recomendações concretas.

    Caso a Igreja Católica não consiga manter alguns dos seus templos, estes devem ser demolidos, vendidos?

    Em primeiro lugar, a comunidade deve ser ouvida. A decisão compete ao bispo, mas depois existem as questões das confrarias e das ordens religiosas. Por isso, promovemos outro congresso apenas sobre as ordens religiosas, porque os seus bens culturais são isentos da intervenção do bispo. Naqueles que dependem do bispo, deve ouvir-se a comunidade, e isso não é só ouvir os católicos. Uma igreja num determinado local é um elemento de coesão, mesmo para os que não vão à missa. É um símbolo. Esquece-se muitas vezes essa dimensão, que deve ser respeitada. Depois, se a comunidade pode dar-lhe outra finalidade cultural ou social – é o ideal. Podem, por exemplo, transformá-las num centro de acolhimento ou, se o espaço for grande, em habitação social. Em Manhattan, estavam decididos a fazer um condomínio de luxo de uma igreja e graças à mobilização dos fiéis, foi transformada numa habitação social. Uma igreja pode ser transformada numa biblioteca ou num arquivo, numa sala de conferências ou de exposições, num atelier de artistas… Mas isso não dá dinheiro; portanto, a questão é se a comunidade consegue angariar fundos para manter essa nova instituição.

    Palácio do Santo Ofício (Vaticano), residência de Dom Carlos Azevedo. Foto: ©Nuno André.

    Estamos a falar de eliminar por completo o templo – mandar tudo abaixo.

    Exacto, é “desconsagrado”. Usa-se esse termo, embora eu não concorde com ele. Deixa de ser um espaço litúrgico, pura e simplesmente. No Cristianismo não há sagrado e profano – tudo é chamado à santidade. A matéria, o cosmos, tudo! Há casos em que dá para manter uma parte da igreja como espaço litúrgico, como o presbitério, e a outra parte da igreja passa a ser de uso social e assim mantém-se as duas dimensões. Há igrejas na Alemanha e na França que têm essa polivalência, mas o bispo tem que determinar isso. Em último caso, há a hipótese de vender. Aconteceu isso com confrarias em que o bispo não tinha interferência. Nesses casos, é preciso “despir” a igreja de todos os elementos decorativos, para ficar apenas a arquitectura. Cada país terá as suas regras. É possível dar os elementos retirados de uma igreja para outra que não os tenha, ou para uma comunidade pobre… No caso do altar, não tendo uso, deve ser destruído, não deve transformar-se em mesa de bar, como se vê em fotografias que nos mandaram de uma igreja em Florença.

    Por tudo aquilo que já publicou, pelas suas conferências e aulas, percebe-se ser um verdadeiro amigo da Cultura. Foi esta a razão – aliada à capacidade de comunicação – que o conduziu até ao Conselho Pontifício para a Cultura?

    Certamente que o lugar que me foi dado aqui em Roma tem a ver com as minhas competências. Fazia parte da Comissão Episcopal da Cultura e Bens Culturais, tinha organizado exposições… Na maior exposição de arte religiosa em Portugal, no ano 2000, fui o comissário-geral. Também publiquei livros sobre iconografia. E depois a reflexão propriamente dita sobre a Cultura e a Arte Contemporânea, que é algo a que tentamos estar atentos. Não se trata só do património que já foi feito, mas também de continuarmos a produzir, seja no campo da Música, da Escultura, da Pintura, da Arquitectura, espaços e expressões artísticas de qualidade. Por exemplo, fui recentemente a um colóquio sobre a arte contemporânea numa Universidade de Belas Artes em Espanha, e ficaram muito admirados com o Vaticano, por termos uma visão sobre a Arte Contemporânea. Quando a Paula Rego fez uns quadros para o Museu da Presidência, eu fiz a sua leitura a pedido do Presidente Jorge Sampaio – isso até calou um bocadinho algumas críticas que havia, e que um ou outro jornal veiculou, sobre as pinturas da chamada “capela”, que é um pedaço de corredor que tem um altar. Ela foi convidada a fazer oito quadrinhos pequeninos sobre a vida de Maria, e eu depois fiz uma leitura. Claro que para fazer uma leitura de obras de grandes artistas, como a Paula Rego, é preciso, e eu dei-me ao trabalho, de ler livros, entrar no seu mundo. Temos de entender a gramática de cada artista para captar a sua mensagem.

    Dom Carlos Azevedo com o Papa Francisco

    Como adquiriu o gosto pela Cultura?

    Penso que foi o seminário que me abriu horizontes. Alguns professores mais cativantes… Já no fim da sua vida, tive o Bernardo Xavier Coutinho, que foi uma figura que conheceu a História da Arte e tem uma obra clássica sobre o Camões. Depois, o Castro Meireles, que era outro professor, diretor do museu do seminário. A partir daí aproximei-me, perguntei, quis saber mais. Havia outro professor, também muito sensível à dimensão da Arte, que era o educador Arlindo Cunha. Esse gosto foi sendo alimentado por onde fui passando.  

    Há uma figura que, certamente, fica para a História de Portugal e da Igreja, ainda que por vezes haja quem tente pô-lo numa gaveta do esquecimento: Dom António Ferreira Gomes, bispo de Portalegre e do Porto durante o Estado Novo. Que importância teve este homem na sua vida?

    Isso tem a ver com outra dimensão, que é a do papel da Igreja na sociedade. Através do contacto com as suas homilias, a sua doutrinação, percebia-se que a dimensão profética da vida na Igreja deve continuar sempre em vida. Por exemplo, nestes últimos tempos, notámos a falta – na Igreja Ortodoxa Russa – da dimensão profética e crítica do poder. Ser livre do poder, de forma a chamar a atenção para os valores do Evangelho. Nós não estamos ao serviço do poder, estamos ao serviço de Jesus e do Evangelho. Aprendi com o Dom António Ferreira Gomes – que era não só um pensador profundo, mas também alguém que foi capaz de ser livre tanto antes como depois do 25 de Abril, criticando algumas medidas. Isso era algo que quase só ele tinha autoridade na Igreja: uma voz crítica em relação à maneira como foram tratados alguns membros da PIDE e à forma como estava a ser conduzida a democracia para uma falta de democracia. Eu publiquei, aliás, há tempos, um trabalho sobre as posições que António Ferreira Gomes teve nesses dois períodos: uma coerência evangélica mantida sempre com sentido crítico em relação à realidade que o circundava. Esse é o papel da Igreja. E isso é algo que me ficou na massa do sangue, devido ao contacto muito profundo. Depois de ele morrer, também tive a graça de ter arrumado os seus papéis e a correspondência, e acabei publicando uma série de escritos dele. Isso foi prolongado como presidente da Fundação SPES, quando Dom Manuel Martins fez 80 anos e me disse “agora ficas tu”; e fiquei como presidente da fundação até vir para cá [Roma].

    Missa de canonização de novos santos no passado dia 15 de Maio na Praça de São Pedro. Foto: ©Nuno André.,

    Ser-se irreverente e ousar pensar a realidade com sentido crítico é arriscado. É mais fácil seguir as regras e não criar agitação. Dom António Ferreira Gomes, sendo um exemplo de virtude, não seria expectável uma tentativa de abertura de processo para beatificação, por exemplo? Ou será que ao agitar o Estado e a Igreja, perdeu em ambos os lados?

    Por admirarmos pessoas em certas vertentes, não devemos perder a capacidade de reconhecer outras vertentes em que elas não eram tão boas. Não devemos “adorar” cegamente certas figuras, também aqui devemos ter sentido crítico. Ele teve valor, entre outros aspectos, como pessoa que foi capaz de pagar com dez anos de exílio a sua posição eclesial e não posição política, como alguns fizeram crer. Claro que os comunistas ao verem um bispo a criticar o Estado Novo, se aproveitaram disso, mas isso não quer dizer que ele partisse dos ideais comunistas.

    Alguns até o acusam de ter sido maçon. Há fundamento?

    Evidentemente que não. O facto de ele desejar, como escreveu no seu testamento, ter esculpidos no seu túmulo a rosa e a cruz, fez alguns pensarem “cá está!”, mas não tem nada a ver. A rosa é o símbolo da civilização, e o grande símbolo do cristianismo é a cruz. Como ele próprio explicou, são símbolos da civilização do amor – é uma expressão que ele usou muitas vezes, de forma recorrente no final do seu episcopado.

    Mudemo-nos para o Vaticano, onde aliás estamos a ter esta conversa. Diz-se que é o país do Mundo que tem mais fé porque quem por cá passa deixa ficar alguma. Ao fim de dez anos aqui, quanto já cá deixou?

    Um cristão deve ter essa consciência crítica, porque a crença talvez se possa ir perdendo. A fé solidifica-se. Porque ao vermos testemunhos em que há uma ausência de evangelho, dá-nos vontade de sermos construtores desse evangelho, portanto solidifica-nos. Contudo, Roma tem também a vantagem de vermos o sentido católico da Igreja, de vermos aqui expressões diversas da mesma fé, não só na liturgia, mas nas expressões culturais, nas linguagens… e todos se sentem irmanados no mesmo Jesus, no mesmo Cristo. E essa experiência de universalidade da Igreja é uma experiência fundamental que Roma nos oferece.

    Dom Carlos Azevedo durante uma homilia.

    Estamos no Palácio do Santo Ofício. Por aqui passaram vários processos persecutórios, uns porventura mais justificados, outros menos. Nesse tempo, a Igreja parecia não permitir que as pessoas fossem muito além. Qual é hoje a posição do Vaticano sobre o “andamento” da Igreja? O Vaticano continua a impedir que se avance demasiado?

    Vivemos um momento raro. Antigamente eram, geralmente, experiências inovadoras em alguns países ou em algumas dioceses que faziam abanar um pouco as estruturas centralizadas da Cúria Romana. Nos últimos anos, sobretudo a partir de João Paulo II, vemos o contrário. Basta olharmos para a Caminhada Sinodal. Hoje, é a Cúria, o Papa e os seus organismos, que estão a puxar pela Igreja para que seja capaz de ver que os tempos mudaram, que a Igreja também tem de mudar. Porque senão, não é capaz de ser credível para este tempo.

    E que alterações são necessárias?

    Muitas. Mas gostava de concluir a questão anterior. A nível pastoral devem ser, e sempre foram, os bispos que criam, inventam e renovam as formas de serviço à Igreja, que depois, Roma pode querer adoptar. A ousadia apostólica tem de estar nos pastores, não podem ficar à espera a ver se a Santa Sé aprova. Não é esse o modo de funcionar desde as comunidades iniciais. A Cúria e a diocese, por exemplo, são termos que vêm do Império Romano. Infelizmente, muita coisa do Império Romano passou para a Igreja, inclusive as vestes. Todas essas coisas, é preciso fazer uma certa limpeza. Alguns acham que já se limpou demais, mas eu acho que ainda se deve limpar mais… Não se trata da Igreja se limitar a adaptar à cultura contemporânea, pode, contudo, ser capaz de dialogar com a cultura contemporânea. Não significa perder a identidade, porque senão não há diálogo. Uma sinfonia funciona melhor quando cada instrumento toca o que deve tocar. Ter uma identidade forte, que não seja baseada em ideologia, mas no Evangelho.

    Depreendo que tem preocupações pessoais como bispo. Pode apresentar-nos um exemplo?

    Preocupa-me muito a posição de alguns, que apesar de serem minoria, fazem barulho e seduzem parte do clero mais jovem na ideia que voltar ao passado é o caminho do futuro. Pessoas psicologicamente inseguras aderem com facilidade a um conservadorismo doutrinal, a uma dedicação espiritualista e devocional, em vez de arriscar ir ao encontro da realidade actual e dialogar, servir os mais pobres e confusos, apresentando humildemente, mas firmemente a proposta cristã da felicidade.

    Uma das 10 obras da autoria de Dom Carlos Azevedo, que costuma assinar como Carlos A. Moreira Azevedo

    Falou na necessidade da Igreja se despir das vestes… Tivemos em Portugal um rei, D. João V, que achava que tudo se podia comprar, até o Céu. Sobre esse tempo chegou a publicar um artigo no qual referiu – o macaco do Papa!

    Sim. Foi um núncio em Portugal que utilizou essa expressão numa carta a um secretário de Estado queixando-se ao ver como o patriarca copiava tudo o que acontecia em Roma. Parecia um macaco do Papa – daí a expressão schimia del papa. Queria comparar-se com a corte romana. As benesses, os privilégios, o facto de ter um patriarca… Uma vontade de afirmar-se na Europa graças a “pompas”. O que eu critico é: D. João V teria sido um grande monarca se tivesse investido na Cultura, na Educação, na formação científica, em vez de gastar rios de dinheiro em “Mafras” e em objectos de ouro que distribuía aos cardeais para conquistar as benesses que desejava para a sua Corte – mesmo sacrificando as dioceses. Portugal vivia para a Corte de Lisboa.

    Pagou o suficiente para que ainda nos dias de hoje algumas dessas vantagens se mantenham – como o título de Cardeal para Lisboa.

    O patriarca de Veneza já não é cardeal. Com Bento XVI, e com este Papa, já não foi nomeado cardeal. São títulos que são fruto de um império. De certa forma, havia um império comercial em Veneza, e um império ultramarino de Portugal, embora a origem do título de patriarca já tivesse nascido em 1640, quando a Espanha não deixava nomear bispos para Portugal. Nasceu na junta de teólogos, que o rei D. João IV reuniu, a ideia de transformar Portugal num patriarcado, e escolherem eles os bispos sem dizerem nada ao Papa. Isto porque não tínhamos bispos. Chegámos a não ter nenhum, porque os espanhóis ameaçavam se o Papa nomeasse bispos para Portugal. Foram ideias, que de facto nunca avançaram, mas estão escritas e conhecem-se.

    Podemos concluir que o próximo bispo de Lisboa não será automaticamente escolhido para ser cardeal?

    Esse é um compromisso a que se apela desde o tempo de D. João V, mas não podemos esquecer que houve um Concílio que alterou as regras. Por exemplo, a questão da resignação dos bispos aos 75 anos. Quando as pessoas permaneciam no lugar até ao fim da vida, o que vinha a seguir assumia o título. Já aconteceu, recentemente, com Paris, por exemplo. Enquanto o velho cardeal não tiver 80 anos, o novo bispo de Paris não é nomeado cardeal. É arcebispo de Paris, mas não cardeal. Porquê? Porque tem lugar na eleição do Papa, e era um pouco estranho que uma cidade tivesse dois votos na eleição do Papa. Por isso, só quando um atinge 80 anos e já não vota, é que o sucessor é nomeado cardeal destas cidades mais importantes. Ao escolher uma cidade por país, seria Lisboa. Mas este Papa tem rompido muito com isso: se uma pessoa dá um testemunho de vida evangélica, mesmo estando numa diocese “perdida” no mapa, merece o título.

    Guarda suíça. Foto: ©Nuno André.,

    A Igreja sempre teve e continua a ter, um peso substancial na forma como as pessoas pensam, na forma como vivem e como julgam a sua própria vida. Parece-lhe que poderá haver espaço para mudar a forma de pensar sobre assuntos que causam polémica e divisão, como, por exemplo, os temas da sexualidade? Há pessoas que sofrem permanentemente porque parece que o que é bom, ou engorda ou é pecado [risos].

    A expressão da perda da juventude, penso que é um problema gravíssimo e que a Igreja é chamada a enfrentar com grande verdade, porque nós vamos às celebrações e não vemos jovens. Desertaram. Sabe-se que há muitos que fazem o Crisma para poderem casar pela Igreja. Aqueles que ainda querem, porque esse número também vai diminuir. A inserção na vida da Igreja é algo que se está a perder continuamente, e não é só em Portugal e Espanha; acontece na Alemanha, na Polónia, em Itália…

    Nestes últimos anos tem havido uma queda bastante acentuada…

    Sim. Tudo isso é fruto de as novas gerações não reconhecem no Cristianismo uma proposta de felicidade – e isso passa, certamente, por uma liberdade em relação à sua sexualidade, ao poder, pela relação da Igreja com a Economia e com a Política. Nos grandes canais de comunicação social, a imagem que ainda passa é de uma grande repressão a nível da sexualidade. Felizmente, este Papa tem uma linguagem muito acessível e as intervenções dele têm eco nos media porque têm a ver com a vida das pessoas. Dizer que o prazer é bom e que os casais devem exprimir o seu amor, são dimensões conhecidas por quem está por dentro da Igreja e da actual moralidade. Mas a grande maioria tem uma imagem negativa, do que é proibido e do que não se pode. Bento XVI chegou a dizer que o Cristianismo é um código de felicidade – é essa mensagem que tem de passar, mas, para ser passada, temos de alterar alguns arquétipos mentais que estão a perturbar e que dão azo a todas as maleitas que a Igreja está a sofrer, de perversões e tudo isso. Porque não se educou uma energia que é própria do ser humano, e que deve ser vivida harmonica e equilibradamente, como é a sexualidade. E não negada.

    Praça de São Pedro, na passada semana. Foto: ©Nuno André.,

    Conhecemos a expressão “santificarmo-nos no trabalho”. Será que algum dia haverá uma expressão “santificarmo-nos durante o acto sexual”? Através do sexo, podemos chegar a Deus?

    Eu dizia há bocado que tudo é santo. Um pai e uma mãe falam de Deus a um filho(a) tanto quando falam do Evangelho da catequese como quando o beijam. A ternura, como o Papa tantas vezes fala, é um sinal da presença de Deus. É um sinal da profunda Humanidade. E isso abre caminho a que as pessoas sejam mais descontraídas a expressarem a sua afectividade. Isso certamente implica uma Educação, porque é uma dimensão que tem uma energia fantástica, que por isso deve ser canalizada. Ou seja, ter balizas. Mas não reprimir nem oprimir, senão depois é como uma panela de pressão, e torna-se perigoso. Penso que aí é que há um caminho a fazer, de relativizar a maldade. A um certo momento, quando se dizia pecado, parecia que era apenas em referência à sexualidade, mas há pecados muito mais graves. As novas gerações ainda não apanharam esses novos ventos. Não estão habituadas ao sacrifício, porque foram sempre muito facilitadas pelos pais, e quando têm a primeira adversidade parece que o mundo vai acabar. E isso é uma fragilidade afectiva enorme das novas gerações. Não só porque vivem muito dependentes do computador, do telemóvel; e o seu mundo de relações é muito circunscrito. Transmitir aos mais novos a importância do bem-comum é garantia de futuro, porque o futuro exige diálogo intercultural e inter-religioso se quisermos uma Humanidade nova. Não podemos ficar fechados num catolicismo de muros.

    Uma sexualidade reprimida pode levar a desvios, nomeadamente à pedofilia que, aliás, sabemos que existe entre os membros do clero. Pode haver pedófilos que são professores, actores, jornalistas, jogadores de futebol… De que forma a Igreja pode aproveitar este momento para mostrar de forma exemplar como se pode conduzir um processo de averiguação de um mal, que afinal, está presente em tantos sectores?

    Sim, essa fragilidade afectiva e perversão tem sido facilitada nos últimos tempos por uma falta de valores. Passa a “valer tudo”. Alguns chegaram a dizer, quando se começou a falar muito disto, que até os padres [fazem isto], e a defenderem que se “liberalizasse” para todos, como a droga. Há épocas onde esses dramas e atitudes são mais provocadas pelas circunstâncias do ambiente, e outras em que são provocadas pela falta de uma orientação e de uma educação sexual. Há que, para além de cuidar das vítimas, precaver para que uma nova geração de padres possa ser educada de uma forma mais sadia, de modo a não dar azo a perversões.

    Parece-lhe que em Portugal os processos relacionados com a pedofilia têm sido bem conduzidos pela Igreja portuguesa?

    Eu acho que esta abertura que a Europa começou a ter, de criar uma comissão para clarificar o assunto, fomenta a transparência, o que é fundamental. É preciso, primeiro, fazer-se uma “radiografia” da situação para termos o tratamento adequado. Está a ser feito.

    Dom Carlos Azevedo com o actual Papa emérito Bento XVI

    Realizou muitos congressos, conferências e escreveu vários livros e está bem de saúde. Como é que olha para o seu futuro?

    Quis sempre servir na Igreja no espaço que me é dado, que nuns momentos é mais a nível social, noutros mais cultural. Aqui [no Vaticano] tinha tempo, por isso dediquei-me a servir a Igreja e o meu país, publicando algo que possa ser necessário para o conhecimento da nossa História eclesial. É essa atitude que mantenho, enquanto Deus me der saúde – servir da forma que posso o que me pedem. Ainda que eu considere que tenho capacidades que são melhores para um determinado campo do que para outro. Tomar essas opções é algo que cabe a quem está nos lugares de decisão.

    Poder-se-á afirmar que é um bispo e um pensador irreverente?

    Eu não me considero um pensador. Considero-me um padre que é livre, isso sim. E que, por vezes, pode ousar, seja com uma terminologia ou uma intervenção… Creio que a Igreja deve intervir! Defendia isso como presidente da Comissão do Constitucional Social, naqueles anos economicamente críticos de 2008. Ao criar um fundo social que distribuiu mais de um milhão de euros… Aliás, fui gerindo esse fundo pelas várias dioceses com projectos que apareciam. Dávamos dinheiro para projectos que criassem emprego, que ajudassem as pessoas. Também poderia servir para ajudar directamente pessoas em grande aflição, mas tentava-se sobretudo que fosse para projectos que criassem emprego.

    Quando reza e comunica com Deus, que homem está ali de joelhos a rezar?

    É o homem frágil, pecador, que diz “eis-me aqui”, com atitude de serviço. Como quem diz “eis-me aqui, o que queres de mim?”. É isso que também acaba por espelhar-se no dia-a-dia, nas minhas actividades. Parte de uma atitude que nasce na oração. Isso é muito interessante e fundamental. Nós podemos ter uns planos e tal, mas nunca somos só nós a fazer as coisas, é o Espírito Santo em nós e devemos seguir sempre a sua voz. O espírito de Jesus e de amor universal do Pai continua a estar presente na vida, e a apelar-nos a que estejamos disponíveis para aquilo que é necessário, e que a Igreja e a sociedade nos pedem. A lutar pelos ideais – ainda que estes sejam maiores do que as nossas pernas, e condicionados pelos que nos permitem. Portanto, é como me posiciono: “eis-me aqui, ao serviço”.

  • ‘Passei quatro anos na Assembleia da República, e a maior parte das pessoas nem sabia que eu escrevia’

    ‘Passei quatro anos na Assembleia da República, e a maior parte das pessoas nem sabia que eu escrevia’

    Nos livros, o título não diz tudo, ou nem sequer diz nada. O título desta entrevista também não diz, na verdade, nada de muito relevante sobre esta longa conversa com o José Carlos Barros, primeiro que tudo arquitecto paisagista, mas agora o escritor que hoje recebe o Prémio Leya 2021, um dos mais prestigiados da Literatura portuguesa. O galardão serviu apenas como pretexto para se falar, em tom muito informal, sobre o mundo rural, Évora, Arquitectura Paisagista, o ordenamento do território, autarquias, deputados e, já agora, também sobre a Literatura e os sentimentos dos escritores. Afinal, sobre “coisas” que unem pessoas. As fotografias, esta manhã tirada pela lente de André Carvalho, não poderiam ter sido em lugar mais apropriado: o jardim da Fundação Calouste Gulbenkian, desenhado por dois arquitectos paisagistas de eleição: Ribeiro Telles e Viana Barreto.


    Partilhamos a mesma alma mater – a Universidade de Évora, e em particular o Departamento de Planeamento Biofísico e Paisagístico, fundado por Ribeiro Telles. Mas eu sou engenheiro biofísico, e tu és arquitecto paisagista. Quando comecei a publicar romances, perguntavam-me o que tinha sucedido para um engenheiro escrever ficção. Ora, conhecendo eu a nossa formação e a tua obra, aquilo que antes te pergunto é: os teus romances seriam diferentes se não fosses arquitecto paisagista?  

    [pausa] Eu não sei muito bem o que é causa e consequência. Penso que está tudo um bocado misturado. Eu nasci no mundo rural, fui para um curso em que os aspectos do território são essenciais, e continuo agora a viver no mundo rural. Portanto, se não fosse arquiteto paisagista, não sei se não seria à mesma uma pessoa ligada à ruralidade e ao território. Na verdade, olhando para o que escrevo, parece-me evidente haver uma ligação muito grande entre a arquitectura paisagista e a ruralidade.

    O pretexto desta conversa é o teu romance As pessoas invisíveis, mas queria abordar o teu percurso de vida. Se pudesses escolher o guião da entrevista, por onde começavas? Pelo arquitecto paisagista que foi assessor do governo socialista, pelo técnico que foi director do Parque Natural da Ria Formosa? Pelo autarca de Vila Real de Santo António? Pelo deputado da bancada do PSD? Pelo escritor, não apenas romancista, mas sobretudo poeta? Ou seja, como te defines de uma forma curta?

    Pois, é uma questão complicada. Eu acho que na minha vida escolhi sempre muito pouco. E, às vezes, temos uma presunção que escolhemos muito. Por vezes, há uma força qualquer, à qual alguns chamam destino, e a que outros chamarão matemática. Acredito muito no poder dos acasos, e deixei-me sempre ir muito por eles. Sempre que um acaso me proporcionava uma qualquer situação, uma mudança ou um determinado caminho, aquilo que eu fiz foi apenas deixar-me levar por esses caminhos, pelos caminhos que ia encontrando. Foi por isso que fui parar a Évora, por causa do romance Aparição do Virgílio Ferreira. Eu estava num curso de Ciências, e de repente descubro que se fosse para Évora, havia duas coisas especialmente fantásticas: ia para aquela cidade branca daquele romance, que me tinha fascinado tanto, e podia ser aluno do Ribeiro Telles. Penso que eu fui o único do meu curso que pôs em primeiro lugar a Universidade de Évora. Não propriamente por uma grande escolha, mas porque em determinada altura me lembrei de um livro e de uma pessoa. E o resto foi acontecendo.

    Já me estragaste aqui uma pergunta, porque tinha preparado uma para saber como foste para Évora estudar Arquitectura Paisagista [risos]. Até porque nasceste bem longe, na região de Covas do Barroso, em Boticas. Viveste na vila ou em alguma aldeia?

    Nasci em Boticas, mas logo no quinto e sexto ano de escolaridade, pedi transferência para a turma B. A outra era a dos meninos da vila, e a turma B era a dos rapazes e raparigas das aldeias. Acho que foi esse o primeiro acaso que me aconteceu.

    Havia essa segregação?

    Era uma segregação que teria sobretudo razões horárias, de logísticas. As pessoas das aldeias vinham de camioneta para a vila. Não sei se por uma segregação urbana/rural, mas de facto as raparigas e os rapazes das aldeias estavam na turma B. E eu apercebi-me cedo que essa malta parecia mais interessante, porque o seu mundo era mais carregado de coisas: tinha bruxas, animais fantasmagóricos, acontecimentos absolutamente incríveis. E, olhando agora a esta distância, percebo que havia uma ligação relativamente próxima com o sobrenatural. Próxima e quase natural, passo a expressão. O sobrenatural estava muito próximo de deixar de ser sobre.

    Ou seja, não terias sido o escritor que és, ou pelo menos com a naturalidade de falar do sobrenatural, se não tivesses passado para a turma B?

    Sim, acho que essa foi, de facto, a primeira descoberta importante. Depois, foi o Padre Fontes [António Lourenço Fontes]. Tinha por volta dos quinze anos e fui parar a casa dele. Visitei-o quando ele publicou os seus livros sobre etnografia barrosã. Percebi que alguém estava a valorizar aquilo, ao contrário das outras pessoas que associavam as aldeias ao atraso, e o mundo rural a coisas menores, digamos assim. Portanto, fui para Vilar de Perdizes, e passei alguns fins-de-semana em casa dele. Fui ao Congresso de Arquitectura Popular, onde apareceu, por exemplo, o Nadir Afonso. O destino sempre me reservou umas ligações ao mundo rural, mesmo quando eu parecia sair um bocadinho disso.

    Entras num curso e numa universidade, no Alentejo, num meio completamente distinto. Na Arquitectura Paisagista, o teu coração pendeu sempre mais para a parte das paisagens, da Natureza, e menos para os jardins ou espaços verdes urbanos?

    Confesso que me fascinam todas as disciplinas da arquitectura paisagista, incluindo o pequeno jardim e pequena intervenção urbana. Aliás, uma crítica que às vezes até se fazia ao meu curso era ser pouco especializado. A ideia de o arquitecto paisagista poder trabalhar com outros técnicos e outras áreas continua a ser das coisas que mais me fascina, e que mais gostaria de fazer. Não faz sentido nenhum estar a separar as disciplinas como por vezes separamos. Ao falar-se de jardins não se deixa de ser falar de Economia. E tudo isso me fascina por igual. É verdade que o meu estágio foi de ordenamento do território, mas fui sendo empurrado mais para aí, para essa ideia de compreensão da paisagem e das ligações do homem ao território. Quando vou de viagem, olho para a maneira como o território foi transformado.

    Vives há muitos anos no Algarve. Qual foi o motivo de seguires para o extremo sul depois de uma infância e adolescência no extremo norte? Também foi um livro? [risos]

    Foi o fabuloso poder dos acasos: o acaso de me enamorar por uma algarvia, e acabar por me casar.

    E ela venceu na escolha do sítio para viverem? [risos]

    Eu estou muito ligado ao sítio onde vivo, mas acho que poderia viver em qualquer lugar. Se for uma zona urbana, prefiro que tenha árvores por perto, e espaços onde se possa sentir essa ligação ao que chamamos de Natureza. Por exemplo, umas das coisas que me liga às árvores é quase filosófica: é a ideia de ver o tempo a passar. Eu preciso essencialmente disso. A minha ligação ao território, à Natureza, às árvores e ao campo tem a ver com essa ideia de perceber o movimento do Mundo. Quando saio da porta da minha casa, o que tenho à minha frente são figueiras e alfarrobeiras mais do que centenárias, e algumas já as conheci com o aspecto que hoje têm. As árvores mostram-nos que há coisas que permanecem, e outras que estão sempre a mudar. Essa ideia de permanência e mudança que encontramos na Natureza é bastante importante para mim.

    Há pouco falávamos do Ribeiro Telles, que advogava que a paisagem é uma construção humana. Sendo uma construção humana e havendo uma paisagem tão diversificada entre o norte e o sul de Portugal, o que é que molda o quê? É a paisagem que molda o homem ou o homem que molda a paisagem? Ou ambos interagem?

    Cada vez mais me parece evidente que a paisagem é o resultado dessa interação. Por um lado, o modo como nos adaptamos às condicionantes, isto se estivermos a falar de comunidades cultas como as comunidades rurais e das aldeias, que conhecem o território. O problema é as comunidades cultas terem deixado de olhar para o território. Cultas no sentido em que percebem os fenómenos naturais e procuram adaptar-se às condicionantes que o território lhes apresenta, e assim transformam o território de maneira a aproveitar os seus recursos. Portanto, a paisagem é, de facto, uma construção humana. O estado do ambiente pode ver-se sempre pelo modo como tratamos a paisagem. Aliás, quando saio de casa e começo a andar na rua, percebo logo que não existe Ministério da Agricultura. A agricultura não está separada do ambiente e do território, e aquilo que vejo, governo após governo, é o Ministério da Agricultura apenas preocupado a distribuir os fundos comunitários. É um bocadinho arrepiante.

    Estiveste alguns anos na Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Algarve e a dirigir o Parque Natural da Ria Formosa. Sentiste essa situação, essa falta de visão? Advém daí a perpetuação dos conflitos quando está em causa a conservação da Natureza e a paisagem?

    A paisagem é o reflexo daquilo que nós somos. Por isso dizia há pouco que o estado do Ambiente e da Economia se vê por aí. Para mim isto é evidente há muito tempo, só agora começa a ser consensual que falar de Ambiente é falar de Economia. Não separemos as coisas. Temos um problema de partida: o ordenamento do território é uma disciplina a que ninguém liga ao nível das decisões. Vamos ter não sei quantos milhões da “bazuca” sem que o país esteja preparado para perceber quais os caminhos para chegar aos objetivos genericamente desenhados. Não há apoio para actualizar planos directores municipais (PDM) ou planos regionais de ordenamento do território (PROT). Fez-se, relativamente há pouco tempo, um Programa Nacional da Política de Ordenamento de Território que é sobretudo um plano centralista, muito virado para resolver os problemas de reforço da mobilidade nas duas grandes Áreas Metropolitanas. Mas ninguém ficou muito preocupado com isso. Suscitou muito pouco envolvimento político, mesmo na Assembleia da República, onde eu participei nesse processo. Até parecia um bocadinho estranho que alguém estivesse a perder muito tempo com algo sobre o qual ninguém iria falar.

    Referiste a questão de actualização dos planos, mas, se nós formos a ver, os planos anteriores, dos anos 80 e 90, não serviam para muito…

    Uma das características do processo de ordenamento do território deveria ser a flexibilidade. Um plano faz-se, e poderia ser alterado depois de uns três ou quatro anos. Esse dinamismo, que devia estar associado aos próprios territórios, nunca foi compreendido. Por exemplo, nos anos 90 fez-se um PDM; passado quatro ou cinco anos houve alterações drásticas das situações e das necessidades e o PDM continuou igual por mais 10 ou 15 anos, já sem capacidade de dar resposta aos desafios que se colocavam. O mesmo com outros planos. Ou seja, nós, de facto, ainda não temos verdadeiramente ordenamento do território.

    O facto dos PDM serem tão estanques não se deve também a uma desconfiança relativamente àquilo que os políticos, os autarcas e os decisores podem fazer em benefício de A, B ou C?

    Primeiro aspecto: os autarcas e os políticos, de modo geral, fazem aquilo que o povo quer. Eles querem ganhar eleições. A experiência que eu tenho, nomeadamente nos processos de consulta pública em que participei, é de ver que a única preocupação das pessoas era, geralmente, saber se o seu terreno ficava no verde ou no vermelho, se podiam construir ou não. Pouco mais vi, de preocupação, fosse em que plano fosse. Por isso, digo que, em certo sentido, é como se o processo de ordenamento do território ainda não tivesse verdadeiramente começado. Temos dificuldade em passar dessa fase inicial, de entender os planos como coisas que nos dizem se se pode construir ou se não se pode construir. Estes planos, de facto, não dão resposta nenhuma às pessoas, são rígidos e, se calhar, permitem que se olhe para eles conforme os interesses. O meu ponto é este: nós, enquanto sociedade, ainda não valorizamos o processo de ordenamento do território.

    No teu romance As pessoas invisíveis, que aliás tem desfecho inesperado, acabas por abordar um curioso e trágico-cómico aproveitamento de informação privilegiada por via de uma decisão política. Inspiraste-te em alguma situação verídica? [risos]

    Não. O final do romance é também metafórico. Embora isso não fosse muito evidente, eu gostaria de que a ideia de poder e de ambição fosse atravessando o livro, em várias situações. Portanto, há episódios que eu desejaria que funcionassem como metáforas de poder e de ambição, de coisas que nos desligam do que é essencial.

    Mas regressemos ao teu percurso de vida, e à tua experiência autárquica [vereador e vice-presidente da autarquia de Vila Real de Santo António, entre 2005 e 2013]…

    Foi, mais uma vez, o poder dos acasos. Eu era técnico na Direção Regional do Ambiente e na CCDR do Algarve, e fui desafiado para as eleições autárquicas [em 2003]. Como era por um partido que nunca tinha ganhado as eleições [PSD], eu até achei que podia ir à vontade…

    Podias candidatar-te à vontade, porque não ias ganhar… [risos]

    A verdade é que vencemos durante dois mandatos. E foi uma experiência que muito prezo. Vi pessoas a trabalhar muito nas autarquias, e com uma preocupação de interesse público. Para mim foi muito satisfatório, mas também desgastante, porque é extremamente difícil ser autarca a tempo inteiro, estar muito próximo das pessoas.

    Depois tiveste mais dois mandatos como presidente da Assembleia Municipal, certo?

    Sim, sem funções executivas. Em Portugal, as Assembleias Municipais não são verdadeiramente valorizadas.

    Como é que viveste o caso “bicudo” da anterior presidente da autarquia de Vila Real de Santo António, a social-democrata Conceição Cabrita [detida e acusada por suspeita de corrupção]?

    Com normalidade, mas, por um lado, com tristeza, porque me ligava e liga uma relação de amizade. Por outro, também com uma vontade muito grande que a Justiça funcione, e que haja um julgamento e se perceba tudo. De facto, isto descredibiliza não só a política, mas o país todo. Não houve ainda um julgamento, não sabemos que culpas existem. Incomoda-me muito esta ideia de que sejam sistematicamente levantadas suspeitas. De resto, espero que as suspeitas sejam infundadas e, se não forem, pois então, que a Justiça funcione.

    Depois, temos o José Carlos Barros deputado…

    Fui parar à Assembleia da República por mero acaso.

    Mais um acaso… [risos]

    Exatamente. Absoluto. Ainda por cima, eu nem era militante do partido.

    Ainda não és?          

    Continuo a não ser. Por nenhuma razão especial. Se calhar não fui ainda seduzido de maneira empolgante. Acho que fui parar à Assembleia da República na sequência daqueles desentendimentos que existem muitas vezes no interior dos partidos. Essa minha experiência como deputado tem aspectos mais positivos e menos positivos. O mais positivo é percebermos como a democracia é uma coisa fundamental, haver diferentes visões do Mundo e que se possam pôr em cima da mesa e discuti-las. Portanto, desse ponto de vista, foi uma experiência extremamente interessante. Agora, nem eu consegui mudar grandes coisas, nem ninguém deve ter ficado muito preocupado com isso. Foram quatro anos em que andei à procura de alguns temas, que não tive a capacidade de demonstrar como eram importantes.

    Eu estive a consultar a lista das tuas intervenções, e verifiquei que versaram entre o urbanismo e planeamento, e os assuntos culturais. Mas eu não queria perguntar muito sobre esses aspectos. Prefiro saber com quem trocavas impressões sobre Literatura na Assembleia da República…

    Com muito pouca gente.

    Queres dizer nomes?

    Posso dizer um nome, que nem era da minha bancada: a Isabel Moreira [deputada do Partido Socialista], e inclusive estive ligado, por razões pouco relevantes, à edição de um dos seus livros. É um dos poucos exemplos que te posso dar. Passei quatro anos na Assembleia da República, e a maior parte das pessoas nem sabia que eu escrevia.

    E em plenário ou pelos corredores da Assembleia da República, viste deputados com um romance nas mãos?

    Não quero ser injusto, porque eu próprio andava com poucos romances na mão. Não serão todos os deputados que levam a actividade da Assembleia da República a sério, mas no essencial é um trabalho relativamente intenso, nomeadamente nas comissões. Há alguns casos muito absorventes; anda-se muitas vezes em corridas, e sobra pouco tempo para outras questões. De qualquer modo, não me parece que a Literatura seja uma das grandes prioridades na Assembleia da República, tal como noutros sítios da sociedade.

    Mas teríamos melhores deputados se todos eles lessem pelo menos um romance todos os meses?

    Eu acho que a Arte, de um modo geral, e portanto também a Literatura, alarga o nosso entendimento do mundo. As pessoas têm uma visão mais alargada das “coisas” se não estiverem fechadas para as “coisas da Arte”. Por isso, sim, sou dos que acreditam que ler, em particular ficção e poesia, ou ir a exposições, dá às pessoas um entendimento mais alargado do mundo, embora não as faça melhores pessoas [risos].

    Tu és simultaneamente poeta e romancista. Eu nunca arrisquei escrever poesia, porque é muito fácil escrever um mau poema [risos]. Mas sei que são ritmos diferentes no acto de escrita. Já disseste que, quando escreves poesia, podes sempre voltar a um poema de tempos a tempos, que não é um processo tão intenso. Posso deduzir que aproveitaste alguns daqueles plenários mais chatos para ir versejando?

    A poesia é, de facto, diferente da prosa, porque o romance exige uma disciplina que a poesia não exigirá. Isso é muito evidente; os métodos são diferentes. Mas há também uma outra característica diferenciadora: a poesia vive muito de um relâmpago, da fulguração, da interrogação, do espanto. E esse questionamento, feito de coisas tão intensas, e às vezes breves, pode apanhar-nos em qualquer lado. Portanto, mesmo quando estava mais entediado em plenários, que tinham temas que me interessavam muito pouco, nunca estaria a preocupar-me com a prosa, que exige de facto um outro tempo e um outro momento. Mas admito que, de vez em quando, fui apanhado por essa fulguração e por esse relâmpago que a poesia, às vezes, nos traz.

    Tens já uma obra literária muito vasta, com romances e sobretudo poesia. Tens aliás, mais livros de poesia do que romances, e até já tinhas ganhado por duas vezes o Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama. Em todo o caso, o Prémio Leya é um dos mais prestigiados. Vamos ter um José Carlos Barros ainda mais empenhado na escrita?

    Primeiro, eu gostaria que este prémio ajudasse a que se olhasse melhor para o que eu escrevi, sobretudo na poesia. Muito daquilo que escrevi é absolutamente desconhecido.

    Lamentaste mesmo, há uns meses, que o anúncio do Prémio Leya tivesse “apagado” livros de poesia que tinhas recentemente lançado…

    Não sei se “apagou”, mas gostaria que pudesse agora contribuir para lhes dar mais visibilidade. Obviamente, a partir do momento em que foi anunciado o Prémio Leya 2021 [em Dezembro passado], ninguém mais me perguntou sobre o meu livro de poemas Penélope escreve a Ulisses ou sobre os meus Poemas do DN Jovem [1984-1989]. No caso da minha poesia, ainda é muito secreta. [risos] Mas o Prémio Leya não vai mudar muito o meu ritmo, desde logo porque eu próprio tenho dificuldade em explicar porque escrevo. Há talvez alguma vaidade, que não será dos sentimentos mais nobres, que nos leva a escrever.

    Eu costumava dizer que, em Literatura, escrever é uma espécie de droga dura, dá prazer e sofrimento, e é viciante até pararmos. Falo por mim, que escrevi quatro romances em seis anos, e mais de uma dezena de livros em pouco mais de uma década. E estou há sete anos sem escrever ficção ou não-ficção…

    É capaz de haver qualquer coisa parecida com uma adição, sim; porque para mim não é muito divertido escrever. Admito que para algumas pessoas possa ser, mas para mim não é. É uma coisa que me custa, cada parágrafo sai-me com muita dificuldade. Para conseguir uma página que considere boa, demora-me muito tempo.

    Quando eu escrevia três páginas numa noitada, sentia-me completamente feliz…

    Por isso digo que não é por vencer o prémio que me vou dedicar de imediato à escrita; acho que não tem influência. Há coisas muito mais divertidas para fazer do que escrever. Vou escrever só quando essa inevitabilidade me obcecar. Caso contrário, não vou outra vez meter-me em frente a um muro com uma folha de papel ou um ecrã em branco.

    Certo escritor, não me recordo o nome, terá dito: “não gosto de escrever; gosto de ter escrito”… [risos]

    Pois, eu percebo isso muito bem, porque o grande prazer vem depois de muito trabalho. Quando percebemos que, depois de muitas dúvidas, há ali qualquer coisa que parece ter chegado a um bom resultado, não é? Aliás, eu olho, por exemplo, para a vaidade que tinham e têm as pessoas do lugar onde eu nasci quando ganhavam o prémio da vaca barrosã. De facto, ganhar esse prémio implica um esforço e uma dedicação; é uma recompensa.

    Acontece-te por vezes revisitar um livro e pensar: “isto nem parece que fui eu que escrevi”? Sentir, como leitor, que aquilo está mesmo muito bom…

    Sim. Sim, por vezes, sim. Mas eu gosto pouco de reler o que escrevo, porque estou sempre a temer… Para mim, a escrita tem também muito de matemática ou de música, e eu tenho sempre medo de descobrir coisas que podia ter feito melhor, e que não fui capaz, porque o ritmo não está certo. Porque o que está bem feito, é a minha obrigação. Na verdade, não vale a pena fascinar-me muito com o que encontro de melhor. Se perdi tanto tempo, e se fui cuidadoso, é normal que as coisas funcionem. O meu problema é que, quando me releio, estou sempre a encontrar coisas que não estão muito bem.

    O Mário Carvalho dizia que os nossos livros nos fazem momices; e deduzo que se referia ao facto de nos apontarem nos seus defeitos os nossos erros… Enfim, mas consideras que é um luxo ser escritor em Portugal, e que quase se tem de pagar para escrever?

    Algumas pessoas perguntaram-me o que é que senti quando recebi o prémio. E eu respondi que me agrada receber o dinheiro, ser pago. E não é porque eu goste muito de dinheiro, mas acho uma desgraça não haver esse reconhecimento, de que o acto de escrever deve ser um trabalho pago. Alguns colegas meus, que sabem que escrevo, dizem que a escrita é o meu hobby, como se fosse algo que faço quando não tenho nada para fazer, em vez de ir beber uns copos. Eu não fico ofendido, mas sinto isso quase como uma provocação. Ninguém pede a uma pessoa para executar determinadas tarefas pensando que as vai fazer gratuitamente. Devemos pagar esse serviço que está a ser feito. No caso da escrita, penso que isso é reconhecido muito poucas vezes.

    Tem que se mudar esse paradigma?

    Sim, claro que sim, porque não se valoriza esse trabalho. Eu sinto isso, diariamente. E há outro drama: pode-se estar anos a escrever, e a fazer até coisas bem interessantes, mas por determinadas circunstâncias não se chegar a ter um editor. É aquilo que acontece com algumas pessoas. Não sei se foi o Picasso que disse – penso que sim, quando lhe perguntaram se ele acreditava na inspiração – acreditar nela, imenso, mas que esperava que quando essa inspiração viesse o encontrasse a trabalhar.

    Agora, vamos regressar ao teu recente romance. Qual a mensagem que pretendeste transmitir com as pessoas ditas invisíveis? O que é que te fez ter, como linha central, pessoas sem rosto, mas ambiciosas?

    Isto pode ter várias leituras. Eu acho que os bons leitores alargam o próprio entendimento de um livro, não é? Porque se um livro tiver alguma complexidade, há-de ter camadas que o próprio autor, por vezes, nem identifica muito bem. E é através do processo de leitura e de crítica que um livro vai ganhando o seu verdadeiro entendimento. As pessoas invisíveis foi um título que me apareceu, que se me impôs, quando percebi que algumas das personagens surgiam como se não contassem. Aliás, esta ideia das pessoas invisíveis veio-me quando comecei a intuir que aquilo que designamos por interesse público, que gera quase sempre uma factura paga por pessoas que não contam para nada, que são invisíveis. A industrialização da floresta, por pinheiro-bravo, durante o Estado Novo, foi um processo intenso, e que muitas desgraças deu, feito contra o interesse do mundo rural. O mesmo com as barragens de elevado valor hidroeléctrico. Eu admito que haja um interesse público em fazer essas barragens, mas há um conjunto de pessoas no mundo rural que vão pagar essa factura. O mesmo foi com o volfrâmio, e agora com o lítio. Eu não discuto o interesse público em explorar o lítio, o que seria de nós sem as baterias dos telemóveis, não é? Há-de haver um interesse obviamente público, mas o que eu sei é que as pessoas de Covas do Barroso, que eu conheço, ainda antes de ser emitida qualquer licença de exploração, já tinham explosivos à porta de casa, máquinas a abrir buracos por todo o lado, problemas com a água e encostas que estão completamente mexidas de uma ponta à outra. E isto à custa do único valor que aquelas pessoas têm, que é o seu território e a sua paisagem. E, portanto, estão a pagar o interesse público do lítio porque contam pouco. Nesse sentido, o nome do livro foi-se me impondo de uma maneira um bocadinho metafórica, a pensar que é assim que geralmente acontece com o mundo rural. Pessoas que não elegem deputados, ou que elegem muito poucos, não importam muito para a sociedade.

    Falámos já sobre a importância do mundo rural e de fenómenos quase paranormais. A tua escrita denota aquilo que se denomina realismo mágico, que está muito associado ao mundo rural. Ora, o mundo rural está em perda. Achas que o realismo mágico desaparecerá na Literatura com a extinção do mundo rural?

    Eu acho que sim, porque o mundo rural é um mundo difícil. Eu escrevi sempre sobre o mundo rural, mas eu gostaria que nunca fosse de um modo muito apologético, no sentido de achar que os seus valores são melhores do que os urbanos. Aliás, muitas vezes, tento desarmar esse romantismo à volta do mundo rural. Na verdade, é um mundo muito difícil, muito dependente de factores como o clima e a meteorologia, onde não havia médicos e o Estado nunca esteve presente para ajudar em nada. Portanto, eu diria que era quase normal que as pessoas daquele mundo tivessem que procurar outras ajudas, que vêm tanto da ideia de Deus como do sobrenatural nas suas diferentes formas. E agora, num mundo em que não estamos tão dependentes da Natureza, em que o pensamento se desligou da mão, como diria a Sophia [de Mello Breyner Andresen] num dos seus poemas, acho que, de facto, esta magia vai, naturalmente, desaparecer.

    O romance está estruturado em três partes: a corrida ao volfrâmio, no início do Estado Novo; o massacre de Batepá, em 1953 em São Tomé e Príncipe, que eu, aliás, desconhecia; e no período da morte do Sá Carneiro. Que te fez escolher estes três momentos numa narrativa em elipse?  

    No caso do massacre de Batepá, eu fiquei muito surpreendido com a dimensão daquilo que aconteceu durante uma viagem, e sobretudo por não saber nada até então, o que é uma coisa que me incomoda imenso. Eu quero escrever sobre o meu tempo, mas não consigo fazê-lo sem olhar um bocadinho para trás, para perceber como é que chegámos até aqui. E o que espoletou foi, de facto, essa ideia do massacre. E para perceber como é que se chega a 1953, fui à procura da política colonial e ao que esteve associado. Eu escrevo por ignorâncias, sobre o que não sei, e tenho de ir à procura. Neste processo, descobri que estava afinal a escrever sobre o Estado Novo. Sobre o Portugal do Estado Novo, um país que tinha colónias, mas que, simultaneamente, era um país rural, supersticioso e pobre. Aí, percebi que tinha que escrever sobre essa ruralidade e, ao mesmo tempo, sobre um país que tinha um Império. Ora, eu queria entrar no 25 de Abril exactamente pelo preconceito que tinha, de que ia ser muito difícil um Portugal democrático, por causa de todo aquele passado e dos primeiros anos a seguir à Revolução. Sabendo que corria alguns riscos, a minha ambição era constituir um olhar possível do que é o Portugal do Estado Novo. Não era esse o propósito inicial quando comecei a escrever, mas foi impondo-se.

    Então, como fizeste a construção do romance?

    Eu andei com este romance dez anos. Comecei a escrevê-lo por causa do massacre de Batepá. Entretanto parei, depois regressei e aquilo já não estava bem. O meu principal método de escrita, para o bem e para o mal, é não ter método nenhum, mas isto é muito propositado. Eu sei mais ou menos sobre o que é que quero escrever, mas quero que seja o próprio processo que me vai dizendo que personagens devem desaparecer ou que devem entrar.

    Coloquei-te esta questão exactamente por entender que podias ter começado o romance pelo meio, e depois recuar e, por fim, avançar…

    A vida é feita de imperfeições e de acasos, e a cronologia é uma das coisas que conta pouco para a nossa vida. Eu gostaria que a minha escrita não tivesse esse método muito cronológico, pré-definido. O primeiro capítulo foi das últimas coisas que eu escrevi. Enfim, tudo isto levou a este livro; poderia ser outro qualquer. Mas, se eu tivesse tido disponibilidade, de tempo e também mental, para me poder dedicar à escrita, este livro seria provavelmente mais perfeito, e também desinteressante.

    [risos] O próprio Machado Assis também dizia que um livro está sempre a ser reconstruído, e é verdade. Provavelmente, se o voltares a ler daqui a uns anos, talvez tenhas vontade de o alterar. Aliás, o final até abre portas para uma continuação, não é?

    Sim, embora me apeteça contar outras histórias. Mas, por exemplo, a determinada altura da escrita, eu percebo que há uma questão mal resolvida, que tem a ver com o fim da escravatura. Pensava que a escravatura fora abolida no século XIX, e ponto final. E, afinal, percebi que, através dos sistemas de contrato, e de outros subterfúgios, o fim da escravatura foi apenas um fim legal, e não um fim real. Em 1947, no conhecido relatório de Henrique Galvão [inspector-geral da Administração Colonial, também escritor e mais tarde opositor de Salazar], denuncia-se uma realidade mais grave do que a criada pela escravatura pura. Pode ser complicado imaginar o que será pior do que a escravatura pura, mas, de facto, um escravo, sendo um objecto para o proprietário, esse não gostaria que o objecto se partisse, e até tinha bons hospitais e condições para o escravo durar mais tempo. Portanto, foi o próprio processo de escrita que me foi levando a estas situações, começando por um ponto e puxando pelo novelo. E por aí fora…

    Fotos da entrevista: André Carvalho

  • ‘A Humanidade cresceu com os loucos’

    ‘A Humanidade cresceu com os loucos’

    Um dos mais conhecidos psiquiatras portugueses, José Luís Pio Abreu (n. 1944) é professor emérito da Universidade de Coimbra e autor de uma multifacetada obra, onde se destaca o best-seller Como tornar-se doente mental, publicado em 2006. Mais do que uma entrevista, eis uma longa e estimulante conversa sobre normalidade, anormalidade e diversidade, sobre doenças, traumas e fobias (até de aranhas), sobre choques e eléctrodos, e sobre a pandemia, e sobre tudo o mais, que tudo cabe nas “folhas” de um jornal digital.


    Gostava de lhe lançar o desafio de falarmos da novela O alienista, do escritor brasileiro Machado de Assis. Um alienista do século XIX, como o doutor Simão Bacamarte, difere assim tanto do psiquiatra do século XXI?

    Não havia psicofármacos nem havia a Psiquiatria como é reconhecida agora. Não havia diagnósticos, por exemplo. Nós, médicos, trabalhamos fundamentalmente com o diagnóstico. Existe um conjunto de sintomas que são coerentes entre si, e que podemos detectar, e com esses sintomas criamos síndromes, que não são propriamente doenças. Em Psiquiatria não temos um marcador de qualquer doença, não existe. As doenças têm várias influências: podem ser genéticas, podem ser locais, podem ser cerebrais, podem ser culturais, podem ser familiares, podem ser traumáticas.

    Antigamente, no tempo do doutor Bacamarte, havia mais uma observação do médico e não tanto um diagnóstico clínico, certo?

    Dependia muito do psiquiatra, sim.

    E depois havia também aquelas teorias da predisposição para certos males, como o histerismo das mulheres, ou até a frenologia que associava a conformação e protuberâncias da cabeça, ou outros modelos físicos, a determinadas aptidões ou actos criminosos…

    Sim, por exemplo, considerava-se que existia uma relação entre a altura e peso. As pessoas, digamos assim, mais redondas teriam tendência às psicoses maníaco-depressivas; as pessoas mais altas teriam tendência à esquizofrenia; as pessoas mais musculadas teriam uma tendência para a epilepsia. Isso foi completamente ultrapassado, embora houvesse algumas indicações… Mas foi com [Philippe] Pinel [1745-1826] que se começou já a descrever as doenças mentais e tentar catalogá-las. E depois com [Jean-Étienne] Esquirol [1772-1840] e a seguir com todo um conjunto de psiquiatras. E depois existem dois vultos essenciais na Psiquiatria: o [Emil] Kraepelin [1856-1926] e o [Sigmund] Freud (1856-1939), que estabeleceram, por um lado, as psicoses – as psicoses maníaco-depressivas e a esquizofrenia – e, por outro lado, as diversas neuroses.

    Portanto, passamos a ter a componente de neurologia…

    O Freud considerava-se neurologista, mas de facto era fundamentalmente mais um psicólogo ou psiquiatra. Aliás, antigamente, a Neurologia estava ligada à Psiquiatria.

    Eu comecei a entrevista a falar do Doutor Simão Bacamarte do Machado de Assis porque ele também personifica o cientista que se que se enrodilha no próprio labirinto…

    Depois de ter recusado ser reitor em Coimbra… e foi para Itaguaí.

    Exacto! Enfim, ele baseou-se meramente em critérios científicos, mas errados…

    Sim. Descobre primeiro que toda a população era louca, e descobre depois que afinal não era verdade, que o único louco era ele. Hoje existe um conjunto de síndromes que são coerentes entre si, embora as causas sejam muito discutíveis. Existem vários tipos de causas; não existe propriamente uma só causa, mas conseguimos ter a noção das síndromes e dos medicamentos que podem melhorar esses quadros.

    Ainda queria falar num outro pormenor do Doutor Bacamarte e da Casa Verde, para onde ele enviou todos aqueles que não eram normais. Ele viu que, nos seus padrões, era o único normal na comunidade, o que era um paradoxo.

    Ele era normal porque era perfeito. Os outros não.

    E a questão é mesmo essa: o que para um psiquiatra é uma pessoa normal?

    Eu tenho a noção muito clara de que a normalidade é a diversidade. Somos todos diferentes uns dos outros, podemos adaptarmo-nos às circunstâncias, somos flexíveis, podemos inclusivamente transformar-nos a nós próprios. Isso é ser normal. No meu livro Como se tornar um doente mental, a questão central é exactamente essa: se alguém quiser ser doente mental não é doente mental.

    Tudo também depende das circunstâncias. Alguém me contou que um certo juiz do Supremo Tribunal de Justiça garantia que jamais, em nenhuma circunstância, seria capaz de roubar, mas o mesmo não dizia sobre matar. Ou seja, podem existir circunstâncias em que deixamos de ser normais…

    Basta ter estado na guerra. Por exemplo, se uma pessoa for considerada inimputável e praticou um crime, pode ir para um hospital, e ficar lá a vida toda se for perigoso. E o critério de perigosidade mais importante é ter matado alguém, porque uma pessoa que mata alguém entra num esquema diferente.

    Alguém que mata uma primeira vez fica com maior predisposição para matar mais vezes?

    Sim, sim. Mas depende. Numa guerra – e eu estive numa guerra; por sorte não matei ninguém, porque a minha G3 ardeu quando lá cheguei e o meu instrumento era o estetoscópio –, as pessoas matam, embora nem sempre dão conta que matam, pois não se vê o inimigo. Não matam a ver-lhe os olhos. Matar olhos nos olhos é difícil. Lançar uma granada e matar uma data de pessoas é completamente diferente.

    E isso marca indelevelmente uma pessoa…

    Marca, claro. As pessoas que estiveram numa guerra ficam sempre marcadas, mesmo se existem mecanismos para esquecer, como aliás em qualquer situação muito traumática. Vêm sempre à cabeça, em qualquer circunstância, em pesadelos ou outras manifestações.

    Os homens e mulheres sendo seres racionais afinal não são assim tão racionais. Eu costumo dizer que não há nada mais humano do que a desumanidade…

    Em certas circunstâncias, sim. Se vivemos num clima pacífico, vamos fazer a nossa vida normal; agora, se vamos para um ambiente que não é pacífico, um ambiente de guerra, ou intensamente traumático, de tráfico de droga, então as coisas são diferentes.

    O meio ambiente pode condicionar muito, certo?

    Sobretudo nas marcas que deixa. Mas o stress traumático está, neste momento, generalizado. Qualquer coisa pode ser. Ir a um hospital pode ser um stress traumático [risos].

    Tudo agora é traumático, de facto. Um filho ficar doente mostra-se traumático para os pais, sabendo-se que nunca se teve uma taxa de mortalidade infantil tão irrelevante. Não há uma exacerbação do trauma?

    Sem dúvida. Existem modos de ultrapassar, de recuperar dessas situações traumáticas. Existe o chamado processo de luto. Basicamente, baseia-se num processo de enfrentamento. Geralmente, quando as pessoas perdem alguma coisa, quando perdem alguém, ou quando têm um acidente automóvel, ou quando estão num cenário de guerra, a maneira de dessensibilizar é voltar aos mesmos locais. Agora, até através da realidade virtual, é possível. Por exemplo, entrar num local de guerra, e enfrentar a situação traumática. Resolvê-la.

    Resolvê-la de que maneira?

    Nós temos um mecanismo. Por exemplo, com os sonhos e também através da nossa descrição. Normalmente, as situações traumáticas, como numa guerra ou numa violação, são arredadas da memória. Há várias teorias fisiológicas sobre isso. Poderá ter a ver com a questão da linguagem, com o hemisfério direito e esquerdo. São situações que ficam encapsuladas, digamos assim, no hemisfério direito, que não tem acesso à descrição. Portanto, uma pessoa teve uma situação muito traumática e esqueceu; não se lembra mais, excepto às vezes, com novos pesadelos ou através de algumas atitudes disparatadas. Se uma pessoa vai a um psicólogo e se fala nelas, há possibilidade de se ter acesso à descrição, isso tem a ver com a transferência daquele “abcesso psicológico” que está no hemisfério direito, e passa para o hemisfério esquerdo, sendo traduzido em palavras ou noutros sinais. Isso ajuda.

    Mas o que é afinal ser doente mental? É algo reversível ou uma doença crónica?

    Há situações que tipicamente passam. Por exemplo, num ataque epilético, passa, mesmo que se possa repetir mais tarde.

    Estava mais a referir-me aos traumas…

    Depende. Um acidente pode resultar numa fobia, a pessoa não consegue mais andar de automóvel. Mas se a pessoa enfrentar, for conduzir depois de um acidente, aí consegue vencer aos poucos. Inicialmente, pode ter um pouco medo, mas depois consegue, geralmente, ultrapassar o trauma. É um tratamento de dessensibilização. Por exemplo, para a aracnofobia, temos várias maneiras de a resolver, com uma exposição progressiva: primeiro, desenhos; depois bonecos; a seguir, a própria aranha. Mas também há modos farmacológicos. Por exemplo, fazer uma exposição, uma imersão com aranhas, e depois tomar inderal, um betabloqueador.

    Que se deve fazer se uma pessoa tem medo de aranhas mesmo só de se falar delas?

    Depende. O problema das fobias é o evitamento; as pessoas evitam falar, evitam estar num sítio, evitam pensar, evitam estar em locais onde possam existir aranhas. E, portanto, cada vez enfrentam menos a fobia.

    Mas queria que abordasse mais a questão da doença mental. Não há uma banalização sobre o seu conceito?

    Nós temos agora o DSM [Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais] com os critérios e sintomas que definem cada uma, e que evoluiu para uma “psiquiatrização” de quase tudo por influência dos psicólogos.

    Mas afinal o que é uma doença mental? Porque uma coisa é um trauma e outra uma doença, não? Pode ter-se um trauma e ir a um psiquiatra, mas isso não o faz um doente mental…

    Não. Ele pode é ter outros sintomas que, na maior parte das vezes, nem relacionamos com o trauma. Podem ser fobias, podem ser perturbações dissociativas, etc,,

    E não há aqui também um jogo de palavras? E há depois os estigmas. Há uns anos, alguém com problemas mentais era um doido e era metido num manicómio; agora é um doente mental e é tratado num hospital psiquiátrico…

    Bom, alguém que vem a um psiquiatra para se tratar não é um doente mental, porque tem consciência do seu estado [risos].

    Então agora é mais o psiquiatra que vai à procura dos doentes?

    Também não é assim. Evidentemente, perante um crime ou um comportamento que ameaça o património pessoal ou material, pode suceder um internamento compulsivo. Antes resolvia-se com os enfermeiros a apanharem uma pessoa dentro de um cobertor e internavam-na. Agora, existem métodos legais para internamentos compulsivos e juntas psiquiátricas que determinam se se justifica ou não o internamento. Até porque existem situações de filhos zangados com os pais que tentam interná-los, por isso existem essas juntas. Além disso, os internamentos compulsivos são para doença diagnosticada e tratável.

    Como se combate o estigma da doença mental, mesmo se já não tão significativa como há algumas décadas?

    Uma das melhores maneiras é através de pessoas conhecidas que assumem essa doença, que escrevem livros e falam em programas de televisão. Isso tem acontecido ultimamente. Há muita gente a assumir, por exemplo, que sofre de transtorno obsessivo-compulsivo. Com psicoses também, e o mesmo com transtorno bipolar. E o estigma assim fica mesmo menor. Até porque essas pessoas são notáveis, com capacidades notáveis. Aliás, há pouco estávamos a falar de doenças tratáveis, mas, por exemplo, temos o autismo, que tem provavelmente uma forte componente genética. Pode-se, neste caso, reabilitar, aumentar a capacidade de falar, de estar com outras pessoas, mas não é tratável. Mas há pessoas célebres nesta condição, que são super-inteligentes, que escreveram livros sobre o seu quadro, o que ajudou a combater o estigma.

    Não se pode dizer então que o autismo venha a ter cura…

    Há autismos profundos, e há outros que se podem reabilitar, com medicação. Mas não podemos dizer que curámos o autismo. Provavelmente, a reabilitação será o futuro da psiquiatria.

    Existe a ideia de que o psiquiatra é uma pessoa que receita sobretudo medicamentos, enquanto um psicólogo receita palavras. São profissões muito diferentes?

    Diria que são muito complementares. O psiquiatra tem de saber de Psicologia e de Psicoterapia. Não faz mal nenhum ao psicólogo que tenha uma noção dos quadros psiquiátricos, pelo menos se tiver que mandar alguém para um médico.

    É normal que lhe chegue um doente vindo de um psicólogo ou concluir que afinal alguém que atende precisaria mais de um psicólogo?

    Sim, por vezes enviam. E eu, por vezes, não ultrapasso a Psicologia. Há pessoas que, por vezes, não querem tomar medicamentos, e que conseguem resolver os seus problemas. Mas também os fármacos seguem agora também formas mais naturais, pode ser mesmo uma dieta. Por exemplo, observa-se isso no caso da serotonina.

    Portanto, um psiquiatra acaba também por necessitar de conhecimentos de nutricionismo.

    Não há nada que não tenhamos de saber, até Filosofia.

    Quando começou a exercer Psiquiatria, julgo que ainda na década de 60, ainda estava muito em voga o uso dos electrochoques e métodos mais invasivos. Hoje estamos na era dos psicofármacos…

    Olhe, mas para certas afecções, um dos tratamentos mais eficazes são os electrochoques, que são uma espécie de reset, como se faz com um computador para que volte a funcionar correctamente. O cérebro é a mesma coisa: por vezes, pode ser desligado para reiniciar, sincronizado, para voltar a funcionar em modo normal.

    Mas isso é feito com mais Ciência do que era nos anos 50 ou 60 do século passado, não?

    Continua a ser um tratamento empírico. Tal como se faz também com a magnetoterapia. Há campos magnéticos que podem fazer aumentar a actividade cerebral em determinadas zonas. E existe também a possibilidade de implantar elétrodos muito finos, não lesivos, em determinadas zonas do córtex, e as pessoas mudam completamente de estado mental. Em casos muito graves de perturbações obsessivo-compulsivas ou para a doença de Parkinson, pode funcionar.

    Mas já não estamos a falar de electrochoques como se viam nos filmes…

    No electrochoque há um reset, cria-se uma “tempestade” cerebral, e a pessoa entra num estado passivo em que recupera sem os “curto-circuitos”. Na psico-cirurgia, com os eléctrodos, é tudo bem controlado, com recurso também à imagiologia, e depois variações na frequência de impulsos, vai-se observando até chegar aos melhores efeitos.

    José Luís Pinto Abreu com José Manuel Silva, presidente da Câmara Municipal de Coimbra e antigo bastonário da Ordem dos Médicos.

    Em todo o caso, estamos agora numa era dos psicofármacos.

    Eu diria antes que estamos ainda numa fase de uso psicofármacos. Mas atenção, o problema de uma depressão por uma perda não melhora com antidepressivos, mas sim com psicoterapia. Agora, há psicofármacos com efeito imediato, como por exemplo os neurolépticos. Há injecções que têm uma duração de três meses, e as pessoas passam a ter uma vida normal.

    Porém, por exemplo, hoje parece que se prescreve um psicofármaco com a maior das facilidades… Veja-se o caso da Ritalina (metilfenidato).

    A Ritalina funciona para as crianças que têm uma síndrome de hiper-actividade grave, que não conseguem estar quietas e não conseguem aproveitamento escolar. Aquilo que convém saber é o que pode acontecer a esses jovens quando tiverem 18, 19, 20 anos. Se vão continuar a tomar. Curiosamente, muitas mães, neste processo, descobriam que também tinham esta síndrome, e começam também a tomar.  Aí há claramente um exagero. Mas se houver uma dosagem cuidadosa, não há efeitos adversos.

    Há pouco falávamos sobre o que era normal e falou-se que a normalidade é diversidade. Ora, mas ao “normalizarmos” as pessoas todas, não estaremos a perder algo? Não é a parte anormal que faz surgir os génios? A Humanidade evoluiu com os normais ou com os anormais?

    A Humanidade cresceu com os loucos. Há uma autora [Kay Redfield Jamison] que teve psicose maníaco-depressiva, perturbação bipolar, e que conta num livro [Uma mente inquieta] como evoluiu quando começou a tomar lítio, que é uma substância muito simples que melhora imenso a perturbação bipolar. E ela tem um livro onde exactamente demonstra que todos os grandes génios do século XX – portanto, as pessoas sobre as quais assenta a nossa cultura – eram bipolares, com psicose maníaco-depressiva.

    Daí o perigo de “normalizarmos” tudo…

    Podemos acabar com a criatividade, por exemplo.

    Isso. Porque uma coisa é melhorarmos o estado de uma pessoa para que não faça mal a si ou a outrem; outra, é poder-se condicionar alguém só porque não está com atenção às aulas…

    O próprio Einstein não tinha boas notas.

    Pois, e quando agimos sobre um adolescente para melhorar o seu desempenho, e dizemos que ficou normal, o que é que isso significa? Ficou normal para sempre, para ter uma vida banal para sempre?

    Quer dizer, há pessoas que têm vidas normais, banais, que têm família. E depois há outras que ultrapassam isso, que são grandes criadores, têm uma vida superior.

    Portanto, o psiquiatra não estará a matar a criatividade?

    [pausa] Em princípio, não, porque os criativos não vão ao psiquiatra [risos]. Agora, a sério, ao contrário do que as pessoas pensam, geralmente tomar psicofármacos não é para a vida toda. As pessoas têm capacidade de melhorar e de se reabilitarem. Há um paradigma completamente diferente. Os neurónios estão constantemente a renovar-se. Até em idades tardias. Isso sabe-se agora. Dantes não se sabia, pensava-se que a cada momento se perdiam neurónios. Sabe-se agora que os neurónios criam novas sinapses, reaparecerem, e isso abre um mundo completamente diferente, que é a reabilitação. Por isso é que eu foco muito na história da reabilitação.

    Falemos agora da pandemia. E sobretudo do medo. Em muitas fases, as pessoas ficaram com tanto medo da covid-19 que, sentindo sintomas graves de uma outra doença aguda, não iam ao hospital, fugiam do único sítio que as poderia salvar…

    O medo leva a duas reacções: ou à fuga ou o ataque. E também a paralisia que pode ser um grau extremo do medo, a pessoa desmaia e, por vezes, salva a vida por isso. Na verdade, o medo serve para nos salvar a vida, para nos defendermos ou para atacar. Um problema é quando atacamos quando nos poderíamos defender – e entramos em paranóia –, e um outro é quando fugimos quando devemos atacar. Por exemplo, podemos eliminar facilmente uma aranha ou um rato, mas muita gente foge, quando devia enfrentar. E ficam fóbicas. Por exemplo, os hipocondríacos evitam análises e idas ao médico, por medo, e depois ficam a sofrer das doenças. As patologias mentais têm um círculo vicioso: a doença é a causa da própria doença.

    Durante a pandemia, a morte surgiu sempre omnipresente, sempre e em qualquer circunstância…

    Por exemplo, eu posso ter medo de um animal, ou de alguém que entre aqui, um ladrão. Eu posso fugir ou paralisar. Ou até enfrentá-lo, eventualmente. Agora o problema é se eu tenho medo de uma coisa que está dentro de mim, no meu coração, se eu tenho medo do meu coração bater, eu não posso fugir. E quanto mais o coração bate, mais medo eu tenho; e quanto mais medo tenho, mais o coração bate. É um circulo vicioso, que dá um ataque de pânico.

    O medo pode ser a génese de uma doença mental?

    É, sobretudo das perturbações fóbicas e, às vezes, paranóides, que é o que está acontecer neste momento. As pessoas vivem com muito medo, estão a fazer paranóias, fobias, ansiedades, ataques de pânico.

    E notou um aumento desse fenómeno durante a pandemia?

    Sim, sim. Aliás, o chamado discurso do ódio, que existe nas redes sociais, não é só uma paranóia. As pessoas já não ouvem, já não argumentam, já não dialogam. Acham que aquele é o inimigo, e estão sempre a atacar o inimigo. Há uma altura em que as pessoas já estão a ver o inimigo em todas as outras. E depois o inimigo avoluma-se, de modo que chegamos à rua e somos capazes de ver outra pessoa e temos medo dela. E fugimos.

    A máscara, sobretudo, não ajudou, porque se tornou o símbolo da doença e do outro como alguém que nos pode infectar, causar mal, não é?

    Exactamente. A máscara, a fuga, o isolamento e depois a forma de funcionamento das redes sociais, com aquelas mensagens sem contexto e sem comunicação interpessoal. Cerca de 60% da nossa comunicação é não-verbal, através do tom de voz, dos gestos, do olhar, da presença. Quer dizer, todo o nosso corpo é comunicativo. Num texto, se as mensagens são descontextualizadas, podemos interpretar erradamente, de acordo com aquilo que nós pensamos ou com um pré-conceito. E aí começamos a entrar numa desconfiança mútua e em agressividade social.

    E que me diz da comunicação social e das mensagens da Direcção-Geral da Saúde (DGS) durante a pandemia?

    Agora, a DGS já não tem tantas mensagens, porque temos a guerra [da Ucrânia]. As televisões usaram muita estimulação emocional terrível, sempre a passar imagens trágicas, permanentemente, várias vezes ao dia, e com imagens por vezes antigas. As pessoas ficam mais impressionadas com as imagens do que com aquilo que verdadeiramente está a acontecer.

    E depois tivemos números descontextualizados, não-padronizados, sem ter em consideração o risco. E as pessoas olharam para esta doença como se fosse pior do que o cancro há umas décadas…

    Sim, sim. O vírus era visto como se fosse uma pessoa com uma espingarda pronta a disparar.

    Não deveria ter havido outra postura da classe médica?

    Eu acho que a classe médica também ficou com medo, porque são pessoas. E também não sabiam o que fazer, e também foram influenciadas por aquilo que aconteceu na Itália, por aquilo que era transmitido pelas televisões. E começaram a ficar também com medo, a tomar medidas desesperadas, e, por vezes, contraproducentes, como, por exemplo, a ventilação excessiva, ou o uso de alguns medicamentos que não funcionavam.

    Compreende-se que ao longo dos primeiros meses essa postura tivesse ocorrido, mas depois soube-se que existia um padrão evidente, de um maior risco em função da idade e das comorbilidades. Mas deixou-se de raciocinar, e introduziram-se medidas e mais medidas, e os certificados digitais e a discriminação de quem não se vacinava…

    ,,, como se fosse a estrela de David.

    Sendo a sociedade uma “mente colectiva”, como a viu um psiquiatra durante a pandemia?

    É incompreensível. Nós víamos as mortes diárias por covid-19, mas não as víamos para as outras doenças. Se a DGS divulgasse antes da pandemia as mortes por pneumonia por dia e em todo o lado, provavelmente ficaríamos com medo.

    Sem dúvida. Houve períodos, sobretudo no Inverno de 2020-2021, que houve muitas mais mortes causadas pelo SARS-CoV-2, mas houve outros em que as mortes por covid-19 se equiparam às das pneumonias antes da pandemia. A questão, enfim, é saber o que aconteceu a este “ente colectivo”, à sociedade para se ter comportado como comportou…

    Não sei. Terá sido a falta de audiência das televisões? [risos] Não faço ideia. Acho que é tema para os sociólogos. Mas atenção, quando há pouco falava da classe médica, convém dizer que não é a classe médica; são alguns médicos que, de uma maneira ou de outra, se tornaram representativos. E o problema é a própria representação. Alguns que não tinham nada a ver com o assunto, e através de fóruns, tomaram um epíteto para si, como médico humanista ou coisas desse género [risos]. E por aí tornaram-se representativos, como os influencers. Uma pessoa que diz barbaridades acaba, por vezes, de ser mais visto do que quem não diz barbaridades. A notícia não é o cão que mordeu o homem.

    Não notou também que há uma certa radicalização na própria convivência entre opiniões diversas? Tudo o que divergia da narrativa oficial durante a pandemia era negacionista. E agora, no caso da Guerra da Ucrânia, se houver um “mas” é-se putinista… O que é que está a acontecer?

    Há uma polarização. Basta, aliás, olhar para as recentes eleições. As pessoas estão insatisfeitas, as pessoas estão mal. Percebem que a vida vai ficar pior, têm pouca esperança. E lutam, lutam. Lutam contra alguém que esteja à mão.

    Que sociedade vamos ter depois “disto”? Depois do fim de tudo “isto”? E no pressuposto esperançoso de que “isto” vai ter um fim…

    Não lhe sei responder. Mas tudo está a mudar.

    Vamos ter mais doentes mentais?

    Não necessariamente. Os valores religiosos, patrióticos ou familiares sempre foram baseados em narrativas. E neste momento deixou de haver narrativas, são muito aleatórias.

    Voltando ao fim da pandemia. Acha que as pessoas vão, por exemplo, abandonar rapidamente as máscaras?

    Os comportamentos sociais são muito imitativos. Isto vai ser como acontecia em Roma. Quem tiver uma vida de romano, quem se vestir como um romano e se comportar como um romano, então é um romano.

    Mas se a maioria continuar a usar porque a maioria usa, nunca mais nos livraríamos então das máscaras.

    Há-de haver um dia em que a maioria não usa, e então há uns tolinhos que a usam.

    A mais recente obra de Pio Abreu, publicada em Setembro de 2021.

    Ou seja, tudo isto acaba, enfim, por não ter qualquer lógica… Bom, mas queria ainda falar-lhe da capacidade da mente. Recentemente, estive em coma induzido, e não tenho dúvida alguma sobre as memórias que tive desse período. Por aquilo que vivenciei, como se fosse realidade, leva-me a perguntar-lhe: a mente está acordada mesmo se estamos em coma?

    A questão está em saber o que é a mente. Estive recentemente num congresso sobre essa temática, e que tem a ver com o tempo e o espaço. O problema é saber se a realidade é real. Se aquilo com que nós lidamos está aqui ou não, se é real. Nós podemos estar a sonhar, ou podemos estar com os olhos fechados, e começamos a dormitar, e estamos aqui e estamos noutro lugar. Quem tem alucinações está fora da realidade, é psicose. Na minha perspectiva, realidade é o que opõe resistência. Portanto, se eu for aqui a andar e atravessar as paredes, e continuar por aí fora, eu estou fora da realidade. Se eu bater com a cabeça na parede, então é a realidade. De algum modo, a realidade é o que nos causa sofrimento.

    É algo físico…

    Sim, mas também tem a ver com pontos de referência que precisamos para nos enquadrarmos com a realidade, que é: quem, onde e quando. Referências pessoais – sou eu ou outra pessoa. Se mudarem as referências sociais, eu deixo de ser eu, e está lá o outro, e isso é patológico. O quando refere-se ao tempo, se é de manhã ou noite, e podem-se perder em situações de isolamento. E o onde refere-se ao espaço, que tem a ver também com o toque, com o mexer, com os sentidos.

    Um bom actor então é aquele que consegue mudar esses pontos de referência…

    Sim. Um actor incorpora outros eus. Mas um actor tem de entrar nesse papel, mas depois voltar a si próprio.

    Não tenho a experiência de actor, mas tenho de escritor de romances, em que se cria e recriam personagens e nos incorporamos nelas.

    Isso acontece até quando lemos um romance ou vemos um filme, entramos noutra dimensão. Nós somos aqueles personagens.

    Voltando ainda ao coma. Tenho a percepção que, realidade ou não, o meu cérebro vivenciou algo forte. Ou seja, que a mente continua a trabalhar…

    Sim, sim. É sabido que as pessoas mesmo em coma continuam a funcionar, e por vezes ouvem. E por isso colocam-se questões éticas na relação que se tem com o doente.

    Mas não há uma vivência da realidade, pelo que depreendo do que diz. Na verdade, raramente tive a percepção de estar em sofrimento, imóvel e com incapacidade de comunicar…

    Às vezes as pessoas até têm a percepção de estarem no tecto a olharem para si próprias. Chama-se autoscopia. Podem viajar. Mas sobre o sofrimento, depende também dos medicamentos que esteja a tomar. Por exemplo, agora, em situações terminais está a utilizar-se até o LSD que provocam estados alucinatórios ou experiências fora de si próprias, com bons resultados.

    E o que acontece com as pessoas que estão em coma profundo e, de repente, passados anos, acordam?

    A pessoa fica a saber quem é, em que tempo está e onde está.

    Mas quem é que ligou o “interruptor” para a fazer ter consciência da realidade? É que aquilo não é um processo gradual; é repentino…

    É como acordar. Implica abrir os olhos, tocar e pôr os sentidos a funcionar. Implica ligar os sentidos ao mundo exterior. Há zonas do cérebro específicas que lidam com o mundo exterior e outras com o mundo interior. A parte interna, em ambos os hemisférios, lida com o mundo interior, com as nossas lembranças, com o nosso passado. E isso já se observa com imagiologia.

    Pedro Almeida Vieira e José Luís Pio Abreu

    Há pouco tempo, numa entrevista, explicou as diferenças entre Cirurgia, Medicina Clínica e Psiquiatria, sendo que este último ramo, além da parte física e dos fluídos, estudava a mente. Portanto, estudando a Psiquiatria os Fluídos, a Física e a Mente, o que é então afinal isto, a Vida, e sobretudo a Vida Humana?

    Eu costumo dizer que o corpo está no espaço, é uma coisa concreta. A vida está no tempo. A vida é o tempo que o corpo dura e evolui, se muda, até desaparecer. O cérebro, que os neurologistas estudam, está no espaço. E a mente está no tempo. A mente é equivalente à vida, mas tem a ver com o cérebro e o sistema nervoso central.

    Significa que se conseguirmos invernar um corpo por algum tempo…

    … mas há corpos invernados.

    No futuro, então pode ser possível escolher viver uns anos no século XXI, mais uns no século XXII, e por aí fora?

    Essa possibilidade existe. Há corpos invernados nos Estados Unidos. Antes de morrerem as pessoas decidiram entrar num processo de hibernação, geralmente pessoas doentes com esperança de encontrarem cura no futuro. Há coisas levadas da breca como a clonagem. Há animais clonados. Vamos para a clonagem de humanos, sim ou não? Essa é uma questão muito complexa, como sabemos… Dantes, falávamos da reencarnação da alma – e há religiões que acreditam –, e na verdade, tecnicamente é possível, não a reencarnação da alma, mas a reanimação do corpo. Um corpo igual ao nosso, mas com uma cultura completamente diferente.

    Mas se nascesse um clone de mim, eu teria o mesmo timbre de voz, o mesmo raciocínio? Quem seria o outro eu?

    Para já, o timbre de voz tem a ver com audição e a imitação dos outros. Mas os pensamentos seriam outros.

    Mas esse meu novo eu não teria consciência de mim, do original?

    Penso que não, mas aí nunca se sabe [riso]. Bom, agora fazem regressões até à idade infantil, através de hipnose…

    Eu sei que a hipnose é usada em Psiquiatria, e é reconhecida. Mas há quem use hipnose para indagar sobre supostas vidas passadas. Qual a sua opinião sobre isso?

    Acho que é pura sugestão, mas tenho colegas meus, psiquiatras, que acreditam sinceramente que tivemos vidas passadas. É um pouco como o budismo. Eu sou extremamente crítico, e acho que temos de ter os pés assentes no chão. Mas o acreditar que há alguma coisa depois da morte dá uma tranquilidade imensa.

    Se soubéssemos que viveríamos mais vezes, se calhar levávamos a vida de forma completamente diferente…

    Sim, mas os budistas acreditam que a vida é sofrimento, e que a última reencarnação é a libertação total, já não é vida.

    É possível cientificamente que um dia se chegue a saber se isso é verdade ou é uma patranha?

    A única coisa que se pode dizer é que, confirmando-se a existência de vidas passadas, nunca a maneira de ser seria a mesma.

    Fotos da entrevista: António Honório Monteiro

  • ‘O Estado quer pagar a um médico menos do que a um pedreiro’

    ‘O Estado quer pagar a um médico menos do que a um pedreiro’

    Na terceira e última parte da primeira ENTREVISTA P1, José Manuel Silva, antigo bastonário da Ordem dos Médicos (2011-2017) e actual presidente da autarquia de Coimbra, faz o rescaldo de uma gestão pandémica que descurou as outras doenças, abordando também as relações promíscuas de (alguns) médicos com a indústria farmacêutica. E não poupa críticas à gestão política do Serviço Nacional de Saúde (SNS), não hesitando em distinguir Correia de Campos, antigo ministro socialista da Saúde, como a pessoa que pior fez ao SNS.


    Como avalia agora a estratégia do Governo português de ter apostado tudo no combate à pandemia à custa da suspensão de exames, diagnósticos e consultas para outras doenças e afecções? Dá ideia que agora a população está com a saúde descompensada…

    Eu gostaria que essas consequências fossem avaliadas para depois percebermos se essas medidas verdadeiramente salvaram vidas ou não. Está por demonstrar, e não vai ser fácil demonstrar. Investiu-se numa doença mais do que se investiu em todas as outras juntas. Por isso, já apareceram artigos a dizer que, se calhar, a factura a pagar pelos doentes não-covid, em termos de doença e de morte, será muito superior. Do ponto de vista de Economia da Saúde não tem racionalidade investir tantos recursos numa doença, deixando as outras desprotegidas. Nós tivemos um bebé com circulação extracorporal [ECMO por alegada infecção por covid-19], e temos 400 crianças com cancro por ano, e muitas delas infelizmente morrem, mas não se tornam notícia, e não se investe o mesmo que se investiu numa única doença. Houve desproporção de investimento numa doença. Ou seja, em termos de Economia da Saúde as potenciais vidas salvas com as medidas tomadas – e seria bom que contabilizássemos o número de mortos em consequência das medidas tomadas –, o investimento foi brutal. Não se faz esse investimento noutras doenças, porque já estão mais banalizadas. Uma pessoa morreu de cancro, já não é notícia; morrer de covid-19 é notícia. E, portanto, investe-se na covid-19. E morreu-se de cancro, que não é notícia, por se terem adiado rastreios.

    Sem falar da redução do número de nascimentos, quase menos 10 mil, como efeito do medo sobre os efeitos económicos da pandemia…

    Isso foi outra consequência.

    Exactamente. E não se fala. Se se somasse a vida potencial dessas crianças não nascidas por causa da gestão da pandemia por 80 anos, tínhamos um número elevadíssimo num dos indicadores de Saúde importantes: os anos perdidos…

    Houve uma gestão muito baseada no pânico que, a partir de determinada altura, foi difícil de controlar, porque obviamente os profissionais de saúde também tinham receio, o que é humano, embora continuassem a desempenhar as suas funções. Enfim, criou-se todo um ambiente. Eu gostaria de saber a contabilidade de vidas que, no dever e haver final, foram verdadeiramente salvas pelas medidas. Se numa fase inicial, em que se desconhecia ainda o vírus, eu diria que quase tudo se justificou, o tempo em que esteve instituído o Estado de Emergência foi excessivamente prolongado. Não havia necessidade de prolongar tanto.

    José Manuel Silva, antigo bastonário da Ordem dos Médicos (2011-2017) e actual presidente da Câmara Municipal de Coimbra.

    Ainda queria voltar ao tema do certificado digital, cujo prolongamento da vigência por mais um ano esteve em consulta pública por iniciativa da Comissão Europeia. Justifica-se prolongar esse certificado por mais um ano como controlo de fronteiras e de acesso a locais públicos?

    Não se justifica. Quem se quer proteger, vacina-se; quem não se quer proteger, está no seu direito. Sem impor esse tipo de medidas. Aliás, já reparou que deixou de se falar da Suécia em Portugal? No princípio, era tudo a bater na Suécia, agora deixou de se falar na Suécia. Afinal, a Suécia não está pior do que nós; até está melhor.

    O absurdo das medidas e da falta de razoabilidade… Recordo-me que, em Helsínquia, na Finlândia, se determinou, logo em 2020, que os motoristas dos autocarros deviam estar sem máscara porque estavam suficientemente protegidos com acrílicos, não havia troca de dinheiro, e deveriam sim estar focado exclusivamente na condução. Aqui em Portugal, eles continuam ainda a trabalhar incessantemente mascarados…

    A infecciosidade depende da taxa de inoculação, depende do número de vírus que a pessoa apanha. Se as pessoas estiverem em contacto com uma inoculação baixa, uma dose baixa, isso é insuficiente para provocar a doença, e até contribui para a sua capacidade de defesa imunológica. Os contactos com baixa inoculação até eram benéficos. Portanto, os exageros não trouxeram benefícios adicionais. Veja que, desde cedo, se soube e se demonstrou que o vírus não se  transmitia pelas superfícies, mas andou-se a gastar rios de dinheiro, contribuindo para a poluição do planeta, com embalagens e desinfetantes, sem vantagem nenhuma. Olhe, recomendo-lhe que leia o relatório do Ricardo Jorge sobre a gripe pandémica de 1918-1919. Ele se vivesse hoje teria tido uma postura completamente diferente. Com a gripe espanhola, ele defendeu, por exemplo, que não se fechasse a Cultura, desde cedo se manifestou contra as “desinfecções” com creolinas e mais não sei o quê. Aquilo não vale nada. E também dizia que só com a descoberta da vacina é que a história natural da doença mudaria, mas dizia também que não se conseguia impedir que as pessoas andassem com desinfecções que não servem para nada.

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    Faz lembrar a Peste Negra, com o uso das máscaras, com aquele bico, que, na verdade, tinha sobretudo um aspecto simbólico…

    Era uma máscara. Aquilo era um filtro, tinha lá um filtro de ervas. Aquilo tinha como objetivo funcionar com o filtro.

    Não, não. Tinha um aspecto sobretudo simbólico. Tinha na ponta uma caixinha com vinagre, que até podia ter algum poder desinfetante, mas aquilo não filtrava nada. Acabou-se sim, por descobrir, que os gatos também ajudavam, mais porque andavam aos ratos, que eram os principais difusores das pulgas. E as cabras também ajudavam, porque as pulgas gostavam delas…

    [risos] Sim. Enfim, mas no caso da covid-19, desde cedo que se verificou que o vírus não se transmite pelas superfícies. Houve alguma recomendação para acabar com isso? Não, pelo contrário. Insistia-se na desinfecção das superfícies.

    Sim. Similar situação se verificou com os ares condicionados, que se suspeitava, não sei com que base científica, promoverem a proliferação do vírus. E houve uma recomendação da DGS em desligá-los em pleno Verão. Nos lares. E depois sucedeu coisas como aquelas no lar de Reguengos…

    Os velhinhos a morreram de desidratação.

    Falemos agora da independência dos médicos, que sempre foi reconhecida, como o seu Código Deontológico determina, aquele que foi aprovado quando ocupou o cargo de bastonário da Ordem dos Médicos. O médico tem a responsabilidade, mas tem também a autonomia de pensar “fora da caixa”, digamos assim…

    Mas a obrigação de respeitar a legis artis.

    Exactamente, exactamente…

    O cartão da Ordem não é uma carta de alforria.

    Por isso falei da responsabilidade. Ou seja, se falhar na legis artis, é punido e deve ser punido. Mas a questão é outra. Durante a pandemia, tivemos médicos a serem altamente criticados pelos seus pares, a serem alvo de processos disciplinares e até a serem desautorizados, como sudeceu com o presidente do Colégio de Pediatria pelo próprio bastonário, que é um urologista. O que aconteceu com os médicos nesta pandemia, com a coragem dos médicos, que são uma elite que deixou de falar livremente?

    Eu não utilizaria o termo coragem ou falta de coragem. Se calhar foram convicções. Não sei.

    Um médico, não vou revelar quem, dizia-me que havia muitos colegas que tomavam ivermectina às escondidas…

    Mas continua a não haver prova nenhuma que previna a covid-19.

    Mas a questão não é essa. A questão é o médico podia antes receitar off label, fora das directrizes, de acordo com a sua prática e responsabilidade, e teve de andar a esconder durante a pandemia, sob o risco de ter processos. Houve muitos médicos que me dizem que não concordavam com muitas medidas, mas que tiveram de se calar. Porque aconteceu isto?

    Caiu-se num campo da verdade absoluta, que eu sempre discordei.

    Acha que isso vai mudar, depois da pandemia? Acha que este clima sucedeu por causa da pandemia? Ou por causa das pessoas?

    É evidente que foi por causa das pessoas. A pandemia não tem culpa de verdades absolutas. Mas, já que pegou no caso da ivermectina, houve claramente um comportamento distinto das autoridades relativamente ao remdesivir e à ivermectina.

    Pois, o remdesivir foi endeusado, a DGS comprou 20 milhões de euros e estão contabilizadas em Portugal 250 reacções adversas, a pior posição a nível europeu…

    A brincar, eu costumo dizer que acredito em milagres, mas para termos a graça de um milagre temos de ir a pé a Fátima. Ou seja, nem os milagres acontecem por acaso. Passado este momento de humor, nós tínhamos uma molécula, o remdesivir, que foi desenvolvida como antivírico, mas que não tinha eficácia nenhuma em nenhum vírus.

    Nem no ébola?

    Nem no ébola. De repente, por milagre, é eficaz contra o SARS-CoV-2. Eu acredito pouco em milagres. Que eu saiba, o remdesivir não foi a pé a Fátima, portanto, não sei como foi agraciado com um milagre.

    Foi comprado pela Comissão Europeia, que depois obrigou os Estados-membros a comprarem à Gilead, pouco tempo antes da Organização Mundial da Saúde não aconselhar o seu uso como tratamento contra a covid-19.

    E pronto, e deu-se remdesivir, e havia as normas da DGS para dar remdesivir. E se os médicos não o dessem e, porventura, um doente morresse, podíamos ser questionados e processados por não termos dado remdesivir, porque estava na norma da DGS, e depois lá teríamos de andar a demonstrar em tribunal que o remdesivir não fazia nada. Relativamente à ivermectina, enfim apareceram alguns estudos iniciais, não controlados, abertos, que apontavam para alguma eficácia, foi completamente rejeitado por todas as autoridades. Mas o remdesivir foi rapidamente aprovado por algumas. Houve aqui uma divergência de postura que não tinha fundamentação científica. Se calhar teve foi fundamentação económica.

    Vamos então entrar num problema bicudo. Há quatro médicos que integraram a equipa da DGS que definiu as terapêuticas da covid-19 que tiveram relações comerciais directas com a Gilead, inclusive integraram o advisory board do remdesivir. Onde começa o conselho médico para a DGS e as relações perigosas com a indústria farmacêutica?

    Relações perigosas podem haver de muitas maneiras e feitios, mais explícitas, menos explícitas. Aquilo que passou a acontecer nos congressos médicos é que quando uma pessoa faz uma comunicação tem de colocar os seus conflitos de interesse, como contratos, trabalhos, consultadoria. Mostrar os seus conflitos de interesse e depois faz a sua intervenção, e as pessoas, quem está a assistir, devem ter um espírito crítico suficiente.

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    Vou contar-lhe então um caso pessoal, com uma investigação do PÁGINA UM…

    Isso não aconteceu agora na pandemia? Explicitar os conflitos de interesse. À cabeça.

    Eu ajudei a fazer isso. Aliás, ainda há pouco tempo, listei os 421 médicos que tiveram a sua participação ou inscrição paga por farmacêuticas no Congresso de Pneumologia. Revelei os apoios monetários que a Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP) recebeu deste sector no ano passado foi de 1,3 milhões de euros, quase o dobro do registado em 2020. Pfizer e muitas outras. Tudo público. E agora, tenho uma queixa do presidente da SPP na Entidade Reguladora para a Comunicação Social…

    Certamente não vai ser condenado.

    Acho que vou enviar esta sua resposta para o presidente da ERC…

    Eu acho que informação verdadeira nunca pode ser crime. A não ser que haja questões do foro pessoal.

    Não deveria ser a própria Ordem dos Médicos a criar um código de ética sobre as relações com a indústria farmacêutica?

    Eu diria que essa ética existe nas declarações de conflito de interesse, que são obrigatórias nos congressos.

    Mas depois não há consequências. Eu não quero estar a particularizar, mas estou a investigar alguns consultores do Infarmed e da DGS. Alguns são membros de sociedades médicas que recebem mais de 50 mil euros por ano, em média, do sector farmacêutico, o que é uma incompatibilidade. Quando eu denunciar isto, muito provavelmente pouco acontece. Não deveria ser uma associação profissional, como a Ordem dos Médicos, e ter esse poder regulador e disciplinador?

    Não é preciso nenhuma entidade. Quem faz a lei é o Estado, e pode considerar que determinados potenciais conflitos de interesse são inibitórios para ser consultor de uma entidade pública.

    Portugal tem, neste momento, carências de cuidados de saúde primários, hospitais a abarrotar. Afinal há médicos a mais ou menos? Não consigo compreender

    Essa é uma excelente questão. A Economia da Saúde é interessante, porque está escrito que uma das maneiras do Estado reduzir a despesa é não contratando médicos. Se não contratar médicos, os doentes são obrigados a recorrer a outras soluções, e portanto dão menos despesas ao Estado. Vivemos num mercado concorrencial, aberto. Se o Estado quiser contratar médicos, se calhar tem que lhes oferecer um vencimento minimamente aceitável. E não faz porque não quer fazer. Há quantos anos se fala na exclusividade, na dedicação plena, dos médicos aos hospitais públicos?

    E porque não há exclusividade?

    Não há, porque o Estado não quer. Quem acabou com exclusividade foi o Estado de um governo socialista. Foi um programa socialista que acabou com exclusividade no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Se um médico quiser estar em exclusividade no SNS não pode. E como um médico especialista no hospital público ganha menos que um pedreiro – e isto é literalmente verdade –, é evidente que procura outras soluções, ou complementares ou totais. Portanto, quando um Governo diz que abriu X lugares, mas ficaram desertos, não é por falta de médicos; é por falta de interessados. Os médicos emigram, vão para o sector privado. E depois temos o Estado a pagar mais aos médicos que no setor privado trabalham para o Estado do que aos médicos do setor público. Quem esvazia deliberada e conscientemente o SNS de médicos é o Estado. Não temos falta de médicos, basta ver as estatísticas mundiais. Mas é evidente que se não lhes pagamos…

    Vêem-se, por exemplo, médicos conceituados que, sendo conceituados, são professores de Faculdades de Medicina, depois ainda são directores de serviço de hospitais públicos, trabalham ainda para o privado, se calhar ainda dão consultas, consultadorias, etc. Não sei como é que eles têm tempo para serem bons em tudo…

    Eu diria que um dia só tem 24 horas. A Leonor Beleza [antiga ministra da Saúde, entre 1985 e 1990], quando instituiu a exclusividade, fez isso como uma arma de arremesso contra os médicos, porque queria demonstrar que não queriam trabalhar no SNS, e que todos queriam ser milionários. Enganou-se redondamente, e depois viu que não tinha orçamento. Houve tanto médico interessado na exclusividade que começaram a colocar restrições. Até acabarem com a exclusividade. Qual a idoneidade de qualquer partido que passou pelo Governo deste país para falar que faltam médicos no SNS se se recusam pagar essa exclusividade.

    Qual seria o valor justo para a exclusividade para um médico?

    Não sei qual será o valor justo. Isso varia com o mercado, varia de especialidade para especialidade. Mas pagar 1400 euros líquidos por mês…

    Isso não. Isso é ridículo…

    Mas, pronto, esse é o valor que o Estado paga actualmente. Quando havia exclusividade, havia um acréscimo de 40% no vencimento, que se reflectia também nas horas extraordinárias. Se um médico fizesse algumas horas extraordinárias no hospital tinham um vencimento que lhe permitia uma vida tranquila, não de rico, mas uma vida para se dedicar à Medicina num hospital público e não ter outro tipo de preocupações. Porém, havia uma dicotomia no pagamento das horas extraordinárias, porque estavam indexadas à exclusividade ou não, o que colocava, enfim, um incómodo entre os médicos que poderiam estar a fazer exactamente o mesmo serviço e com a mesma graduação, mas a receber valores diferentes.

    Não parece, de facto, muito justo…

    O Governo socialista recusou pagar o mesmo. E não só recusou como permitiu que os médicos que estavam com 35 horas em não exclusividade deixassem de fazer horas extraordinárias, e de repente… Sabe quem fez pior ao SNS. O senhor professor Correia de Campos foi o ministro da Saúde [2001-2002 e 2005-2008] que pior fez ao SNS. Permitiu que determinados médicos deixassem de fazer horas extraordinárias, os das 35 horas, e de repente ficou sem médicos para as urgências. E o que fez foi contratá-los ao privado, pagando muitíssimo mais. E desorganizou todo o SNS. O professor Correia de Campos quis deixar de ter médicos a ganhar algum dinheiro e passou a contratar médicos a ganharem 150 euros à hora. Sabe qual foi a diferença? Em vez de pagar horas extraordinárias aos médicos do SNS foi contratar ao privado e colocou os gastos na mesma rubrica das batatas e dos feijões.

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    Portanto, a valores reais, se incluirmos a contratação por essa via, a hora de um médico é hoje muito superior à de há 10 ou 20 anos, mas grande parte do dinheiro vai para os privados.

    Sem essa política, teríamos agora mais médicos no SNS e o Estado estaria a ter menos despesa. Vou lhe dar outro exemplo. O Grupo Mello, que geriu em parceria público-privada (PPP) o Hospital Amadora Sintra, tinha uma política, que eu sugeri para o SNS quando fui bastonário, de pagar o mesmo vencimento da Função Pública, mas para os melhores fazia um segundo contrato para trabalharem mais horas. Era uma forma diferente de exclusividade, sendo que não era uma exclusividade formal, mas esses médicos ficavam com o seu horário mais ocupado. Isso manteve-se com o fim da PPP. Por pressão da troika, houve um despacho do Ministério da Saúde que passou a proibir os médicos de terem dois contratos com o SNS, e aquilo que era legal passou a ser ilegal. E depois lá veio um título num jornal a dizer que não sei quantos médicos tinham contratos ilegais no Amadora-Sintra. Em consequência, esses segundos contratos foram eliminados e, de imediato, o Hospital Amadora-Sintra passou a ter um défice de milhares de horas de trabalho médico por mês. E entrou em colapso. Isso foi deliberado ou foi inocente?

    Eu acho que não deve ter sido muito inocente…

    Eu acho que foi deliberado, para prejudicar a assistência num hospital do SNS. Reduzir a despesa pública em Saúde e obrigar as pessoas a recorrer ao sector privado. Portanto, nós não temos falta de médicos em Portugal, que fique bem claro. O SNS é que não quer contratar médicos. Se lhes quer pagar menos do que a um pedreiro é porque não os quer contratar, e depois vai contratualizar com o sector privado a dita produção.

    Agora, se calhar, são os grupos privados, que beneficiaram com isso, que fazem pressão para não se inverter essa política…

    Já só podemos estar a especular sobre isso. Mas lembro-me que já tivemos um ministro da Saúde que veio do Grupo Mello, que não tinha nada a ver com a Saúde, não percebia nada de Saúde. E foi para ministro da Saúde. Portanto, essas ligações perigosas há a todos os níveis. Costumo dizer que a política de saúde do PS e do PSD é exactamente igual; só a retórica é um bocadinho diferente.

    Fotos da entrevista: António Honório Monteiro

  • ‘O certificado digital é um exagero sanitarista’

    ‘O certificado digital é um exagero sanitarista’

    Mais que o novel presidente da autarquia, José Manuel Silva ficou conhecido por dois mandatos à frente da Ordem dos Médicos, entre 2011 e 2017. Nesta segunda parte da longa entrevista com o PÁGINA UM, não se furta a falar de tudo sobre a pandemia. E tanto disse ele que haverá ainda uma terceira parte nesta primeira ENTREVISTA P1.


    Antes de ligar o microfone, falou-me que, se os munícipes assim o entenderem, ficaria à frentes dos destinos da Câmara de Coimbra durante dois mandatos, ou seja, oito anos. A prática médica estará assim, para si, em segundo plano…

    Completamente suspensa.

    Em todo o caso, será sempre um médico. Por isso, e também porque esta entrevista se justifica por ter sido bastonário da Ordem dos Médicos durante seis anos (2011-2017), como vê agora a pandemia? Ou melhor, se calhar já estamos na fase pós-pandemia, não?

    Para mim já estamos. A partir do momento em que um vírus se transforma num vírus endémico, como é o caso, já estamos na fase pós-pandémica, embora isso seja um debate interessante, mas de efeitos concretos pouco estimulantes.

    Não vou fazer nenhuma inconfidência, mas estamos aqui todos sem máscara, mas não estamos aqui a cumprir a lei e as orientações da Direcção-Geral da Saúde (DGS), certo?

    Se estivéssemos todos num restaurante estávamos todos sem máscara, a comer, e onde há mais gente. E com maior concentração de pessoas do que aqui, onde estão cinco. Um dos exemplos que dou das medidas absurdas durante a pandemia é a dos semáforos em 2021 nas praias, que foi uma manifestação de estupidez humana. E, por exemplo, nos restaurantes, em que temos de entrar com uma máscara, estamos lá dentro a comer, a beber, a conversar e a cantar, se for o caso disso, sempre sem máscara, e depois para sair do restaurante temos que pôr uma máscara outra vez. Isso é a insanidade total. A irracionalidade total nas medidas.

    José Manuel Silva, antigo bastonário da Ordem dos Médicos (2011-2017) e actual presidente da Câmara Municipal de Coimbra.

    Havia algumas medidas não-farmacológicas que até faziam sentido: a promoção do teletrabalho e a redução do número de pessoas nos transportes públicos, por exemplo. Mas chegou-se ao limite de multar pessoas por comerem sandes no carro, ou por comprarem gomas em máquinas de vending. E vedaram-se bancos de jardim com fitas para as pessoas não se sentarem. E por que não ouvimos médicos distintos a dizerem que essas medidas eram loucas? Ou melhor, porque não se permitiu ouvir? Na verdade, houve alguns que criticaram essas medidas, mas foram logo catalogados. Porque é que houve esta gestão, assim?

    Porque se instalou uma circunstância de pânico, e depois de controlo das populações pelo medo. O condicionamento das pessoas pelo medo. Eu fui tentando, nomeadamente nas redes sociais, fazer alguns comentários que divergiam das verdades oficiais, e era quase crucificado pelos extremistas das medidas e do controlo das pessoas pelo medo. Chegaram mesmo a defender que era preciso que as pessoas tivessem medo.

    Sim. Houve uma task force da DGS que defendeu essa estratégia do medo…

    E eu dizia que não; devia-se, sim, informar as pessoas. Temos aqui um distinto psiquiatra [Pio Abreu, que assistiu à entrevista], que pode confirmar que houve problemas grave de saúde mental por causa do pânico. Um pânico como se a Humanidade se fosse extinguir por causa de um vírus, quando, desde o início, se percebia que a taxa de mortalidade até era relativamente baixa.

    Eu ia colocar-lhe essa pergunta, porque o medo ou o pânico advêm sobretudo do desconhecido ou da ignorância. Ora, muito rapidamente se constatou que a taxa de letalidade rondava os 2%, que era muito superior nos idosos ou pessoas com comorbilidades, mas baixíssima na população abaixo dos 40 anos. A mortalidade pelas pneumonias, sendo irrelevante abaixo dos 20 anos, mesmo assim é superior à da covid-19. Mas quem falava disto era rotulado de negacionista. E aquilo que mais vimos foi a classe médica, corporizada pela Ordem dos Médicos e o seu Gabinete de Crise, a alimentar o pânico… Teria sido diferente consigo, se a pandemia tivesse ocorrido durante o seu mandato?

    Isso é uma pergunta que me deixa numa posição desconfortável.

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    Mas é essa a função dos jornalistas, ou não?

    [pausa] Sim, teria havido diferenças.

    E em que aspectos, mais em concreto?
    [risos] [pausa] Teria havido diferenças. Aliás, basta ver o que fui escrevendo no Facebook para se perceber.

    Os leitores do PÁGINA UM podem não o ter lido…

    Os objetivos deveriam ter sido claramente definidos. Saber o que queríamos com as medidas de combate à pandemia, na prevenção e minimização do impacto na saúde das pessoas. Aliás, como dizia aquele epidemiologista sueco [Johan Giesecke], isto não é como começa, mas como acaba; é como no futebol. Aquilo que interessa não são os picos – que só importam para avaliar a capacidade de resposta do sistema de saúde. O impacto da pandemia mede-se não pelo pico, mas pela área sobre a curva. A única coisa que as medidas [não-farmacológicas] fazem – e bem, porque foi preciso garantir que a capacidade de resposta não fosse completamente ultrapassada, como foi em alguns momentos – é achatar a curva. Mas o que se estava a fazer não era evitar casos; era adiar casos. Aliás, do ponto de vista epidemiológico, basta ver a evolução dos outros quatro coronavírus que já circulavam antes do SARS-CoV-2 para percebermos como este se comporta. E sabemos o que são pandemias quando aparece um novo tipo de vírus. Não há nada de novo nem transcendental. E a verdade é que os confinamentos achatavam a curva, adiavam mas não evitavam casos. Isso foi importante, numa primeira fase, para dar tempo ao país para se preparar melhor, porque estava completamente impreparado. Não foi por acaso que a nossa primeira medida foi o Estado de Emergência [em Março de 2020], e depois tivemos algum tempo para nos prepararmos.

    Nos primeiros confinamentos, em 2020, com os Estados de Emergência e os lockdowns até fomos elogiados internacionalmente, e quase levámos uma medalha…

    Porque usámos a “bomba atómica”, mas depois…

    Pois, a questão é essa: depois, em Outubro de 2020, o Ministério da Saúde anunciou que tinha 17 mil camas para doentes-covid, mas chegámos ao Inverno de 2020-2021 e foi o descalabro completo. O Serviço Nacional de Saúde colapsou.

    Colapsou…

    E no último Inverno, com tantos casos positivos, não se repetiu porque claramente a Ómicron, a variante dominante, tem uma letalidade muito mais baixa…

    Os casos pela Ómicron não interessam…

    Exactamente

    E quanto mais testes se fizessem mais casos tínhamos, porque se detectavam pessoas assintomáticas. O nosso número elevado de casos foi devido à decisão de se fazerem mais testes.

    Mas sempre que se falava em aplanar a curva, era afinal uma curva de casos positivos. Estava-se sempre a falar nos casos. Estávamos sempre numa epidemia de casos…

    O problema foi que não houve capacidade ou interesse do Governo, do Ministério da Saúde e da DGS em se fazer uma análise sobre o antes e o depois das vacinas. Quando apareceu a pandemia dizia-se que só se resolvia isto com a imunidade de grupo, só quando todos apanhássemos a doença, porque não havia vacinas. Ou, dependendo da contagiosidade, quando 85% da população tivesse apanhado covid-19. Felizmente – e porque a técnica já existia, já estava a ser muito desenvolvida e testada para várias doenças, incluindo terapêutica do cancro –, foi possível descobrir-se ou preparar-se, com rapidez, uma vacina contra o SAR-CoV-2, e tudo mudou. A população que nunca tinha tido contacto com o vírus, podia desenvolver imunidade sem doença, de modo a estar preparado para quando houvesse contacto com o vírus. E assim teria a situação amenizada, como acontece com as vacinas, e como acontece com a gripe. Portanto, isso preparou-nos. Houve uma redução significativa do número de casos. Por isso, a partir de Outubro ou Setembro do ano passado, quando tínhamos 86% da população vacinada – só não estavam vacinadas as crianças, que nunca precisaram de ser vacinadas, e as pessoas que não se queriam vacinar, cuja opção eu respeito –, devíamos ter recuperado uma vida normal. Desenvolver uma vida normal.

    Vamos falar da vacina. É uma tecnologia nova, que não tinha sido ainda utilizada de uma forma massiva. Ora, estamos perante uma doença em que sabemos que acima de 80 anos a taxa de letalidade rondava os 15%, depois baixava para os 4% ou 5% nos septuagenários; na minha idade descia para 1%. E por aí fora… Num adulto jovem e numa criança era 0,00 qualquer coisa. Ora, conhecendo-se isso cientificamente, e sabendo-se ainda que, afinal, a vacinação não dava imunidade de grupo, que um vacinado podia infectar e ser infectado, justificava-se a vacinação universal, como fizemos, de uma forma praticamente coerciva?

    As crianças, não. Os jovens… [pausa] Repare: fez-se uma coisa que não existe na Medicina, que é tratar uma pessoa para prevenir a doença noutra. E essa foi a justificação para se vacinarem as crianças e os jovens.

    Isso é etico?

    É discutível.

    Mas, na sua opinião, é ético ou não?

    É discutível. A ética é um conceito relativo. É eticamente discutível fazê-lo.

    Desculpe insistir, mas não me respondeu. Imagine que estava num fórum sobre ética a discutir esta questão. Qual seria a sua posição? Pode dizer-me que ainda não tomou uma posição. Mas diga-me se é a favor ou se é contra, ou se ainda não tomou uma decisão…
    Nós não vivemos num mundo de extremos, de preto e branco. Temos os tons de cinzento. A ética é um conceito relativo e subjectivo.

    Mas eu coloquei-lhe a hipótese de não ter uma posição definitiva. Nem branco nem preto, estou ainda a reflectir…

    Digo-lhe que é eticamente discutível e não foi discutido. Por exemplo, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) não foi ouvido, e eu acho que devia ter sido ouvido. Não sou um eticista. Tenho o meu conceito de ética, mas eu gostaria de ter visto esta questão ser discutida pelos especialistas em ética. E eu soube de um representante do CNECV a dizer que deviam ter sido ouvidos e não foram. Eu não vou dizer preto ou branco, é ético ou não é ético, porque há imensas matizes na ética. Agora, eu gostaria de ter ouvido o CNECV pronunciar-se sobre vacinar pessoas que não beneficiam de uma vacina alegadamente para proteger outras. E é mesmo alegadamente – não é que a vacina lhes fizesse mal, atenção. Não está isso em causa, na minha opinião. Aliás, muitas pessoas perguntaram-me se deveriam vacinar os filhos ou não. E eu disse-lhes: façam como vocês entenderem, porque eles não precisam de ser vacinados, mas a vacina também não lhes faz mal. Dizia-se, por exemplo, que os jovens vacinados têm menos miocardites [do que os não-vacinados]. Sim, e depois? É verdade, têm menos miocardites; qualquer pessoa que tenha uma doença virusal pode ter uma miocardite, mas a mim não me interessa que tenha uma miocardite; sim interessa é saber se essa miocardite tem consequências.

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    É a velha questão dos casos e dos assintomáticos…

    Sim. O que me interessa termos 10 mil casos de covid-19, se muitos são completamente assintomáticos? Não contam. Portanto, pode-se dizer, até inequivocamente, que os jovens vacinados têm menos casos de miocardite, porque não têm uma infecção vírusal – embora a própria vacina, mas enfim de uma forma discutível, pudesse eventualmente desencadear casos de miocardite, porém numa taxa inferior aos não-vacinados. Mas a questão essencial é: beneficiaram disso? Não há provas nenhumas que beneficiem disso; por isso é que nos estudos de prevenção não se aceitam os endpoints intermédios, que são os casos, porque aquilo que tem peso são os hard endpoints, como as mortes e os internamentos em unidades de cuidados intensivos. Ora, não está demonstrado que as vacinas reduzam os hard endpoints nas crianças, portanto não precisavam de ser vacinadas.

    Ainda sobre a segurança das vacinas, e o tal princípio da prevenção…
    Eu não tenho dúvidas sobre a segurança das vacinas. Algumas pessoas receiam levar RNA mensageiro porque dizem que mexe com a nossa genética, porque entra na célula. É verdade, mas se nós levamos com o vírus, em vez de levarmos uma dose controlada de RNA mensageiro, apanhamos uma dose maciça de RNA mensageiro do vírus. Eu acredito na inocuidade da vacina. Vacinei-me com as três doses, embora ache que nem precisava da terceira dose, porque tinha anticorpos positivos. Aliás, estive a trabalhar em enfermarias-covid, lidei com o vírus todos os dias, já depois das duas doses de vacina. Eu tinha valores de anticorpos positivos, porque os medi. Não precisava da terceira dose, mas ok vacinei-me, para ter o certificado, porque aquilo também não me fez mal. Andei para aí um dia com cansaço anómalo, mas isso também faz parte.

    Falou dessa questão dos anticorpos, e vou aproveitar para uma “consulta”. Tive covid-19 com internamento em Junho do ano passado, nunca usei o certificado digital por considerar que não é método de controlo da pandemia, e serve apenas para discriminar, fui recusando os “convites” para me vacinar desde Agosto, li literatura científica sobre imunidade natural, sobre efeitos adversos. Em finais de Dezembro do ano passado, fiz um teste serológico (IgG) que deu um valor 427 BAU/ml; repeti agora em finais de Março e deu 438 BAU/ml, o que indicia que, provavelmente, até terei contactado com a Ómicron. Pergunto ao médico: devo vacinar-me ou não?

    Com anticorpos positivos, não vale a pena. A não ser para ter um certificado digital, que é o passaporte para a liberdade [dito com sarcasmo]…

    Mas que é isto do passaporte sanitário? Mas o que é que é isto de se usar um passaporte sanitário? E pergunto-lhe a si como cidadão e como médico. Onde está a Ciência no passaporte sanitário? Porque, salvaguardando a analogia, é o mesmo que impor, numa campanha de redução dos cancros da pele, que qualquer pessoa se besunte de factor 50 para entrar na praia, mesmo um negro do Senegal…

    É um exagero sanitarista, até porque isso é o resultado de as autoridades não acreditarem na vacina. Eu não preciso que se vacine, ou que tenha um passaporte, para eu me proteger. Para me proteger, vacino-me. Se eu quisesse, até podia estar aqui de máscara, enfim, também tinha uma proteção adicional, mas se me quero proteger, vacino-me. Quem se quer proteger, vacina-se. Eu não tenho nenhum problema com as pessoas que não se querem vacinar. Eu acho que não devia ser necessário passaporte sanitário nenhum. Quem não se quer vacinar, prefere estar desprotegido, corre riscos maiores, mas é uma opção. Aliás, a base do exercício da Medicina é o consentimento informado; ou seja, eu não posso obrigar nenhum doente a fazer uma coisa que ele não quer. Como é que eu posso obrigar alguém a vacinar-se se ele não quiser? Como é que eu posso obrigar alguém a ter um passaporte sanitário, se ele não quiser? Eu protejo-me da forma que entendo mais eficaz, e vacinei-me. No entanto, convém dizer que há alguma similitude, por exemplo, com febre amarela em alguns países. O conceito do passaporte sanitário já existe, não é novo, não há também razão para o diabolizarmos. Mas no caso da febre amarela – que pode ser uma chatice – está em causa sobretudo evitá-la quando se está em certos países com piores cuidados médicos.

    Mas voltando atrás. Se o certificado digital deixar de estar em cima da mesa, uma pessoa nas minhas circunstâncias deve vacinar-se?

    Nos outros coronavírus já sabemos que a imunidade, a memória imunológica, aos coronavírus é transitória, e é reactivada por ciclos regulares de reinfecção a cada dois a quatro anos. Já tivemos muitas infecções por coronavírus, e vamos ter muitas infecções por SARS-CoV-2, que está endémico. Por isso, andarmos de máscara agora, quando não há uma pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde, até é contraproducente. Por isso digo que a partir de Outubro do ano passado devíamos ter passado a fazer uma vida normal, porque tínhamos a população com a taxa máxima de vacinação. E, nessa medida, seria preferível ter um contacto com o coronavírus quando se tem ainda memória imunológica, e ele reactiva, do que quando a memória imunológica se perdeu completamente. Por isso, usar máscara depois de termos 86% da população vacinada não tem nenhuma fundamentação científica. Nenhuma.

    Ou seja, até convém que as pessoas recentemente vacinadas tenham novamente contacto com o vírus…

    Claro. Para reactivarem a sua memória imunológica, e irem fazendo uma transição progressiva entre as novas variantes do coronavírus, que se sucedem, porque assim ficarão mais bem preparadas.

    Quanto à questão do consentimento informado. Soube-se no mês passado que quatro membros da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 votaram contra o parecer que deu luz verde para o programa de vacinação de adolescentes em Agosto de 2021, mas isso foi escondido por meses pela DGS. Essa informação não deveria ter sido dada aos pais, tanto mais que não houve unanimidade, mas sim unanimismo?

    Claro que sim, claro que sim.

    E porquê que houve este unanimismo?

    Não me pergunte a mim, porque não participei dele.

    Entretanto, esta semana a directora-geral da Saúde defendeu ser ainda muito cedo para deixar as máscaras em espaços fechados.

    Eu gostaria que jogássemos pela Ciência. Eu gostaria de ter um debate com ela sobre esta questão do “seguro”. O que é isso “jogar pelo seguro”? Defina “jogar pelo seguro”. Vamos evitar alguma coisa num vírus endémico? Ou vamos adiá-lo?

    Ou esperar que tenhamos mortes zero…

    A DGS tem que decidir com rigorosas bases científicas. Ora, ela diz “vamos jogar pelo seguro”; o que é isso? Ela tem a certeza que se continuarmos a usar máscara é mais benéfico do que não-benéfico? Não tem nenhuma evidência. Aliás, temos agora uma epidemia de gripe A exactamente por termos estado a usar máscara durante dois anos. É evidente que usar máscara também tem efeitos negativos. Sim, foi necessária na fase pior; foi necessária enquanto não estávamos vacinados; foi necessária não para evitar casos, mas para adiar e achatar a curva. Agora, para um vírus que se tornou endémico, ou nós usamos máscara para toda a vida e andamos a ser vacinados de seis em seis meses, ou vamos ser infectados regularmente como acontece com os outros quatro coronavírus.

    O PÁGINA UM divulgou informação detalhada de uma base de dados oficial de internados-covid, revelando situações estranhas de contabilização de óbitos por covid-19. Temos doentes terminais de SIDA considerados vítimas do SARS-CoV-2, centenas e centenas de mortes por AVC e ataques cardíacos atribuídas à covid-19 apenas por causa de testes positivos. Quedas de camas e infecções nosocomiais não-covid são imensas. Uma mulher com queimaduras de 3º grau na cara e peito, metem-lhe a zaragatoa, testa positivo, acaba por morrer três dias depois, mas por covid-19. Num hospital, um doente atira-se pela janela, como está descrito, portanto suicidou-se…

    Foi o SARS-CoV-2. Provocou-lhe um surto psicótico…

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    Como foi possível tanta contabilização criativa?

    Houve uma contabilização sem rigor científico relativamente às causas de morte.

    E isso aumentou mais o pânico?

    Isso contribuiu para aumentar o pânico, porque aumentou a casuística. Por acaso, falei com um colega do Alentejo quando morreu o primeiro doente nessa região. E ele disse-me que era uma pessoa de idade com polipatologia, acamado, demenciado, a quem, por acaso, fizeram uma zaragatoa, já ele tinha falecido, ou estava a falecer. Aliás, como está já publicado, muitas das pessoas que morreram de covid-19 iriam falecer nesse mesmo ano pela sua doença de base, pela sua idade ou pela sua polipatologia.

    E o PÁGINA UM também noticiou que até Maio de 2021, em cada 10 internamentos-covid, quatro eram afinal por outras causas…

    A congestão dos hospitais também foi agravada por causa das determinações da DGS. Eu estive a coordenar três enfermarias-covid há um ano aqui no Hospital de Coimbra, e quisemos mandar doentes para as suas instituições de origem, e não podíamos porque, embora ao décimo dia estivessem absolutamente assintomáticos, tinham de ficar lá mais 10 dias sem necessidade nenhuma. Tudo por causa de regras não cientificamente fundamentadas da DGS. E eu reclamei por escrito, depois de falar com vários colegas do hospital, e nunca obtive resposta.

    (continua amanhã)

    Fotos da entrevista: António Honório Monteiro

  • ‘Vamos aprimorar a nossa democracia, e depois falamos de regionalização’

    ‘Vamos aprimorar a nossa democracia, e depois falamos de regionalização’

    Foi uma das surpresas das eleições autárquicas de Setembro do ano passado, apeando o histórico socialista Manuel Machado da presidência da Câmara Municipal de Coimbra. O antigo bastonário da Ordem dos Médicos, entre 2011 e 2017, o independente José Manuel Silva, fala sobre a “decadência” e o novo vigor (anunciado e defendido) da cidade do Mondego, com o director do PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira, que aí nasceu há 52 anos. E também aborda a descentralização e a regionalização do país. Mas preparem-se: esta é apenas a “introdução” de uma longa entrevista. Na segunda parte, o tema é mais escaldante e nacional: pandemia, médicos e Serviço Nacional de Saúde. Eis a primeira ENTREVISTA P1.


    Historicamente, Coimbra é a capital da Beira Litoral, mas perde população há 20 anos. Na última década registou uma sangria demográfica em freguesias rurais, com três a perderem mais de 10% da população. Tem a certeza de que Coimbra fica mesmo na Beira Litoral?

    Essa é uma boa pergunta. Coimbra tem uma localização extraordinária. Tem todas as vantagens de estar no litoral e a meio do país. Aliás, quando fui bastonário da Ordem dos Médicos, a maioria das reuniões dos colégios era em Coimbra, por ser central. Tem uma boa localização geográfica, apesar de algum problema de acessibilidades, nomeadamente para o interior, que nos prejudica um pouco. Mas possui um potencial extraordinário: foi durante 100 anos a primeira capital do país, tem uma História, um Património, uma Cultura que não existe em nenhuma outra cidade.  Os italianos dizem que Coimbra lhes lembra Florença. Temos uma universidade com características únicas, temos uma música própria…

    E também tem mais de 25% da sua população com curso superior, mas…

    Exactamente. Eu diria tem tudo, só lhe faltava uma coisa, que a prejudicou e justificou a esta recente mudança: uma Câmara Municipal que acompanhasse a evolução dos tempos, que fosse um motor de desenvolvimento, e não um factor de obstaculização. Eu agora tenho andado por muitos fóruns onde me dizem que é primeira vez que Coimbra aparece.

    José Manuel Silva, presidente da Câmara Municipal de Coimbra e antigo bastonário da Ordem dos Médicos (2011-2017)

    A sensação que tenho, que nasci em Coimbra mas estou há várias décadas em Lisboa, é de que a cidade vive muito à margem da sua universidade, e que a própria universidade foi perdendo – e acho que não foi por causa do seu irmão [José Gabriel Silva, reitor entre 2011 e 2019] – um certo élan nos últimos anos…

    Eu diria que começou a reganhar algum élan nos últimos anos. Perdeu durante muitos anos, mas começou a recuperar. Ainda esta tarde estive na apresentação da segunda call da INNOV-ID para projectos empresariais na área da inovação pela Portugal Ventures, e posso dizer-lhe que na primeira call oito dos 40 projetos financiados tiveram origem no Instituto Pedro Nunes [de Coimbra]. E, portanto, há também em Coimbra um potencial científico e cultural, eu diria inigualável, na área da Educação e da Ciência. Coimbra sofre um pouco de problema de marketing, mesmo se a marca Coimbra é fortíssima em todo o Mundo. Em muitos países, como no Brasil, é mais forte que a marca Lisboa.

    Exacto. Desde o século XVIII quem no Brasil queria estudar Direito vinha sempre para Coimbra…

    Estive agora também em Pavia num encontro de cidades do Cultural Cities Twinning. São cidades de média dimensão, não-capitais com uma universidade histórica. Coimbra é conhecida na Europa por ser a cidade com uma das universidades mais antigas do Mundo.

    Mas estamos apenas perante uma questão de marketing, ou de algo mais? Repare, além desse marketing intrínseco histórico, Coimbra viu em 2013 a zona da Universidade, da Alta e da Sofia ser classificada como Património Mundial pela UNESCO, e parece que não foi nada. O que faltou para dar o pulo?

    Faltou Câmara, na minha opinião, que é naturalmente enviesada. Mas faltou Câmara, faltou uma maior ligação entre a Câmara e a universidade – e eu aí sei, por razões familiares, das dificuldades de relacionamento entre a Universidade e a autarquia, e não por responsabilidade da Universidade. Durante os últimos quatro anos [como vereador independente da oposição no anterior mandato do socialista Manuel Machado], ouvi várias vezes a Universidade a ser vilipendiada nas reuniões da Câmara, e os seus professores diminuídos. Havia alguma reserva na Câmara face à Universidade. As duas principais instituições da cidade andavam de costas voltadas. E agora andam de braço dado.

    É normal, em cidades de média dimensão, uma ligação íntima, mas nem sempre pacífica, entre a sua universidade e a sua autarquia. Mas, no caso de Coimbra, a Universidade tem um passado institucional forte, chegou a ter uma polícia própria [os verdeais], o que cria antagonismos…

    Havia. Já não há. Durante muitos anos foi uma reserva mútua, que depois deixou de ser por parte da Universidade, mas manteve-se por parte da Câmara. Por exemplo, o Pólo II da Universidade está ilegal há praticamente 40 anos…

    Porquê?

    Não está legalizado por falta de aprovação do loteamento. E o Pólo III foi parcialmente legalizado, sob risco de Coimbra perder os financiamentos do UC Biomed, um dos maiores de sempre para edifícios de investigação.

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    O estacionamento caótico no Pólo II está relacionado com questões dessa natureza?  

    Sim, mas agora está a trabalhar-se no sentido de se ultrapassarem esses problemas do passado, de relacionamento. De forma tranquila, as duas principais instituições de Coimbra, e sem esquecer outras, como o Centro Hospitalar e o Instituto Politécnico, estão a trabalhar em conjunto, em bom diálogo. Se algum problema houver, eu e o reitor conversamos sem qualquer tipo de reserva. Outro exemplo: a Câmara Municipal não recebia empresários. Ora, uma Câmara que não recebe empresários é porque não quer investimento; se não quer investimento, não quer empresas, não quer emprego; e, portanto, se não há emprego, a população vai-se embora. Tenho um exemplo concreto: o IKEA quis instalar-se em Coimbra, comprou um espaço de oito hectares na encosta de Santa Clara, mas por obstáculos levantados pela Câmara nunca se instalou. Agora, a filosofia mudou, embora a pandemia tenha alterado a filosofia deste tipo de investimentos, porque se fortaleceu a componente de compras online.

    Vejo-o com grande optimismo. Significa então que aquele projeto que se ouve falar desde os anos 90 do século passado, e do qual a autarquia de Coimbra detém 14% do capital social da empresa, não vai continuar a ser uma obra de Santa Engrácia? Estou a falar do Metro do Mondego…

    [risos] Está bem… Temos 14% no Metro do Mondego. Mas agora está a andar, está a andar…

    E também está a andar por causa de si?

    Não, não; já estava acontecendo…

    Estava a brincar consigo. Aquilo que eu gostava de saber tem a ver com uma questão muito simples: quando estava a preparar a entrevista, fui consultar o site do Metro Mondego e só quase se via estudos e mais estudos; quase só papel…

    Sim, durante muitos anos foi assim. Mas esse é um projecto do Estado, não é da Câmara. Todos os grandes projectos em Coimbra, que são nomeados, são projetos do Estado.

    No Metro do Porto, o Estado também era maioritário, mas havia força política dos autarcas para se avançar mais rápido nas obras…

    Eu não sei quais eram os obstáculos antes no Metro do Mondego, porque não estava cá, mas a mobilidade e as acessibilidades em Coimbra ficaram sempre para trás. Veja o IP3, o IC6, o IC8. Este último projecto é uma vergonha. Aliás, por causa do IC8, ainda há pouco tempo tive uma reunião com os municípios desde a Raia até à Figueira da Foz, e mais uma vez foi dito que era a primeira vez que o município de Coimbra participava numa reunião. Os outros municípios têm a noção da importância de Coimbra na defesa da Região Centro. Coimbra não podia estar enquistada sobre si mesma e ignorar o que se passava à sua volta. Por isso, 10 anos depois de serem criadas, se fez finalmente uma reunião entre as Comunidades Intermunicipais de Coimbra e de Leiria para um diálogo sobre assuntos comuns, para investimentos comuns; para constituir um lobby da Região Centro.

    Qual a sua opinião sobre a regionalização?

    Eu diria que é a mesma que tenho sobre a descentralização. A descentralização é um bom conceito mal aplicado, porque houve transferência de responsabilidades que podem ser exercidas com melhor propriedade pelas Câmaras Municipais, mas não vieram acompanhadas do financiamento necessário. O Estado descentralizou “chatices administrativas” e défice do Orçamento Geral, criando constrangimentos e dificultando o exercício das autarquias. Isto é uma perversidade sobre um conceito que era de acarinhar, pois não foi devidamente financiado. O Estado deveria transferir pelo menos o mesmo montante que gastaria se exercesse essas competências. Se calhar o principal objectivo, oculto, da descentralização foi descentralizar o défice do Orçamento Geral do Estado.

    Portanto, a regionalização pode ser má se o caminho for semelhante ao da descentralização…

    Aí, mais vale estarem quietos. Eu acredito no processo de regionalização se for conquistado pelas regiões. Se for feito pelo Estado, em benefício do Estado Central, então não; mais vale estarem quietos. Basta, aliás, ver aquilo que sucedeu com a intenção de desconcentração de algumas instituições, como o Supremo Tribunal Administrativo e o Tribunal Constitucional: alguns juízes acharam ser uma indignidade vir para uma cidade como Coimbra, quando eu dou repetidamente o exemplo da Alemanha onde não há nenhum tribunal superior na capital. Se calhar é por esta mentalidade centralista de Lisboa que a descentralização não está a correr bem. Aliás, recusamos assinar o auto de transferências em Saúde, e agora quiseram-nos impor, a partir de Janeiro de 2023, a descentralização na Acção Social, fazendo uma coisa que eu não compreendo: exigindo que criássemos uma estrutura enquanto a nível central se mantém tudo igual, para fazer não sei o quê. Assim, só vamos duplicar estruturas, ainda por cima com um financiamento claramente insuficiente. Por amor de Deus, isto não é descentralização.

    Deduzo então que também não concorde muito com o actual modelo das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), que já não é completamente dominado pelo Governo…

    É completamente…

    O presidente e um vice-presidente são agora eleitos pelos autarcas. São órgãos desconcentrados da Administração Pública…

    Eu acho que a presidente da CCDR do Centro [Isabel Damasceno, ex-presidente da autarquia de Leiria pelo PSD] é uma pessoa muito estimável com quem temos tido várias reuniões construtivas. Mas, com todo o respeito pelas pessoas, mais importante do que os modelos são as pessoas, e um modelo de organização funciona bem com as pessoas certas no lugar certo, e qualquer modelo de organização funciona mal com as pessoas erradas no lugar errado. Portanto, sem estar devidamente explorado este modelo de CCDR, quer-se acelerar um processo de regionalização sem estar suficientemente debatido. Tem de haver primeiro uma proposta de regionalização, exaustivamente discutida. Dou-lhe um exemplo: vamos regionalizar com partidos nacionais? Eu não sei que regionalização é essa se vamos regionalizar o país, mas mantendo, à frente das regiões, partidos nacionais. Isso é a verdadeira regionalização? Não sei se é; e eu acho que não é.

    Serão satélites do Governo ou da oposição…

    Mas a nossa Constituição proíbe partidos regionais. Então, como é que nós regionalizamos sem permitir criar forças políticas regionais? Isso não é uma verdadeira regionalização; é um eufemismo de regionalização. Mas por que é que a Constituição tem essa essa alínea que proíbe partidos regionais? Se nós olharmos para a vizinha Espanha começamos a perceber porquê. Nós criticamos o Governo de Madrid pela forma como actuou na Catalunha, mas ninguém foi capaz de dizer que os partidos regionais do tipo catalão são proibidos em Portugal. Estamos a falar de realidades diferentes. Se avançarmos no sentido de uma regionalização com partidos regionais podemos, de facto, daqui a duas gerações, pôr em causa a coesão nacional. Mas eu não sei, com a nossa tradição municipalista e agora desenvolvida com o conceito das comunidades intermunicipais, como é que vamos regionalizar com partidos nacionais. Eu acho que é algo incompatível, porque se queremos uma região a defender os seus interesses, temos de permitir a criação de forças políticas regionais.

    E locais… Nas eleições autárquicas admitem-se movimentos cívicos mas não partidos formais…

    Sim. Por exemplo, há quatro anos quando criámos o nosso movimento independente [Somos Coimbra], este deixou formalmente de existir por lei no dia das eleições, quando fomos eleitos como autarcas. Também é proibido que um movimento independente faça uma coligação com um partido político. Porquê? Isso é uma limitação à democracia. Portanto, vamos aprimorar a nossa democracia, e depois falamos de regionalização. Se não permitimos verdadeiras manifestações de cidadania, então estamos a falar de regionalização com que objetivos? A nossa legislação autárquica nunca mais foi modernizada. Hoje tem seríssimas limitações, eu diria que é pouco democrática. Portanto, a regionalização transformou-se num chavão político, e eu tenho muito receio de chavões políticos.

    Os célebres chavões políticos…

    Muitas vezes dizem-me: ah, as decisões são políticas, isso é político. Pois é, mas a política paga-se com euros, não é? Eu digo sempre: a decisão pode ser política, mas vamos avaliar as consequências económicas, porque depois do 25 de Abril já fomos três vezes à bancarrota. Eu não gostava de ir uma quarta vez. Vamos avaliar as consequências do impacto económico para depois decidirmos então, dentro do critério de não causar mais prejuízo do que benefício – como na medicina, com o célere primum non nocere –, e depois, sim, pôr um uma componente política na decisão.

    Já que fala dos investimentos, como avalia a situação do iParque, o vosso centro de Ciência e Tecnologia? Temos ali 30 hectares e 34 lotes para instalar empresas. Quantas lá estão neste momento?

    Estão poucas. O projeto do iParque autolimitou-se um bocado no seu início ao restringir os investimentos à área tecnológica e da saúde. Algumas empresas que se poderiam lá instalar ficaram impedidas por não caberem neste conceito devido às condições dos financiamentos europeus. Depois, esteve parado durante vários anos, e agora está outra vez a procurar desenvolver-se, até porque esteve tecnicamente falido por dívidas ao Novo Banco.

    Qual era o valor da dívida?

    Da ordem dos quatro milhões de euros. Com a falência do Banco Espírito Santo, e a criação do Novo Banco, grande parte da dívida do iParque foi vendida a fundos, e assim perdoou-se talvez 75% da dívida, o que permitiu que a Câmara repusesse o equilíbrio financeiro. Mas quando se diz agora que o iParque tem contas equilibradas, deve dizer-se que sim, mas porque nós todos, portugueses, pagámos a dívida.

    Sente sinais de mudança no iParque?

    A fase II tem agora interessados. Eu diria que há grandes critérios para um empresário seleccionar o investimento: a localização e as acessibilidades. Nós temos boas acessibilidades longitudinais – não tanto transversais –, uma boa universidade, um bom hospital, uma boa localização geográfica. Temos, no essencial, tudo o que é necessário para um empresário investir, e com potencial imenso. Por exemplo, fala-se pouco – se fosse em Lisboa seria certamente diferente –, mas temos em Coimbra a sede em Portugal da única empresa unicórnio nacional, a Feedzai. Temos muita procura. Aquilo que nos diziam os empresários é que nem valia a pena ir a Coimbra. A ideia que se instalou é que tudo esbarrava na Câmara, e agora as pessoas já perceberam a mudança.

    Pode então perspectivar-nos onde se estará daqui a quatro anos? Quanto daqueles 34 lotes do iParque estarão ocupados?

    Eu não me comprometo. Não sou eu que vou comprar os lotes, não tenho dinheiro para isso, mas estamos a trabalhar…

    Então eu reformulo a pergunta: porque está a dar um destaque ao papel fundamental da Câmara na atracção de investimentos, o que seria um insucesso?

    Não meço isso no caso do iParque.

    Eu queria que determinasse uma métrica. Por exemplo, que consegue ter 10 lotes ocupados, ou 20, para ficar satisfeito…

    Aquilo que nós queremos é aumentar, ano após ano, o investimento empresarial em Coimbra.

    Isso é muito vago.

    Claro que é vago. Não tenho uma métrica para dizer: olha, agora vamos vender mais seis lotes do iParque e ficamos contentes.

    Os investimentos também não devem traçar objetivos e ter métricas?

    Métricas que dependem de nós, sim. Para captar investimento, por exemplo, há tantos a tantos factores imponderáveis, como vimos com a pandemia da covid-19. Agora, a guerra na Ucrânia também, que vai “comer”, se nada mudar, seis milhões de euros do nosso orçamento. Veja-se o aumento do custo dos materiais, da energia e dos combustíveis. Somos uma cidade com 100 autocarros por dia a circular.

    Qual o impacte desse acréscimo no orçamento camarário?

    Cerca de 4% do orçamento; é um impacto brutal, porque a capacidade de investimento próprio da Câmara é muito baixa, rondando os cinco ou seis milhões de euros. A diferença entre as receitas e as despesas correntes é muito pequena. Aquilo que podemos fazer é captar investimentos. E estamos numa fase de transição entre dois quadros dos fundos estruturais: o Portugal 2020 acabou e o Portugal 2030 ainda não começou. Quando aqui cheguei, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) já estava alocado, e perguntaram-nos apenas se tínhamos projectos maturados na Câmara, porque aí poderia ser que entrasse. Mas não há. Um dos nossos problemas era não ter projetos em desenvolvimento a nenhum nível, excepto aqueles relacionados com a rotina diária da gestão autárquica. Isso mudou. Já me disseram dos serviços que nunca trabalharam tanto como agora. Imprimimos outro ritmo, também com a informatização e digitalização. Nos processos de urbanismo ainda não está completado, mas a digitalização sim. Se eu tiver um processo por despachar mais de 10 dias fica registado. Tem havido uma maior pressão para uma aceleração processual, e tem sucedido com a participação dos trabalhadores da Câmara, a quem eu tenho de estar reconhecido e agradecido.

    Um cunho pessoal?

    Temos aqui muita gente de valor, que estavam numa organização completamente disfuncional. As pessoas não falavam umas com as outras. Agora, fazemos reuniões que juntam directores de departamento para discutir problemas, e ouvir as suas opiniões. Isto não era feito antes. Trabalhar com as pessoas, envolve-as, e ganha-se com isso, porque têm muito conhecimento e muita experiência. E isso depois atrai investimento. O parque industrial de Taveiro está cheio, o de Eiras está praticamente cheio, o iParque em desenvolvimento. E não temos muito mais. Há ainda lotes industriais que podem ser vendidos, mas a infraestruturação é muito deficiente, mas podemos sempre inverter agulhas. Não temos dúvidas que Coimbra vai crescer em termos de investimento empresarial, mas sem métricas quantitativas. 

    O impacto da pandemia agudizou a situação do comércio e dos serviços também em Coimbra. A Baixa já sofre de problemas de segurança. Como pretende revitalizar aquela zona?

    A Baixa foi abandonada ao investimento por parte da Câmara durante muitos anos. Com a colaboração negativa da autarquia concentrou-se na Baixa quase todos os apoios sociais da cidade. Não se resolveram os problemas das pessoas e criou-se sim um problema social na Baixa, que é necessário inverter. Isso é um trabalho de fundo. Queremos, por exemplo, reabilitar a entrada da Rua Direita, que está degradadíssima. Apesar da Câmara deter a maioria dos activos imobiliários daquela zona, há um proprietário que tem criado obstáculos numa zona essencial. Antes, a autarquia nunca tentou um diálogo. Aquilo está assim há anos. Já não me lembro de ver o início da Rua Direita de outra maneira. Agora, já dialogamos com um representante do proprietário, e está a correr bem. Eu próprio já me disponibilizei para ir falar com o proprietário, que vive em Poiares. É o nosso interesse de resolver o problema; não tenho nenhuma questão em ir falar com o próprio.

    Conversa de médicos: José Manuel Silva com o psiquiatra Pio Abreu, antes da entrevista.

    Para a reabilitação da Baixa de Coimbra vai ser preciso uma espécie de Polis?

    Chamo-lhe um Plano Marshall. É preciso investimento e a Câmara tem de dar o exemplo, resolvendo as questões que estão sob sua responsabilidade directa. Estamos também a desviar para a Baixa muitos eventos culturais; para a Praça do Comércio, por exemplo. Qualquer pessoa fica deslumbrada com o potencial daquela praça, que basicamente estava ao abandono por parte da Câmara, e os empresários viam a autarquia a não responder às solicitações para lá dinamizarem eventos. Agora já respondemos. Em qualquer cidade espanhola, a Praça do Comércio seria uma plaza com vida 24 horas por dia. Nós estamos a pensar também poder adquirir um edifício na Baixa – há vários à venda, o que não é um sinal muito positivo – para dar um exemplo de investimento e criar um espaço co-work. Queremos trazer os estudantes para a Baixa, criando ali residências. Estamos a distribuir agora as pessoas com carências habitacionais por outras zonas da cidade, dando-lhes apoio condigno. Não podemos concentrar todos os problemas na Baixa. Vamos repensar a videovigilância e melhorar o policiamento. O seu potencial é imenso.

    Fotos da entrevista: António Honório Monteiro