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  • ‘O comportamento da imprensa durante a pandemia é uma tragédia’

    ‘O comportamento da imprensa durante a pandemia é uma tragédia’

    Cientista de corpo e alma, Michael Levitt dá a sua visão sobre a influência da política na Ciência. E não duvida que hoje “tudo se resume a política. Nesta segunda parte de uma entrevista exclusiva ao PÁGINA UM, Levitt critica a gestão política e comunicacional da pandemia, lamentando que o resultado seja a “inflação e recessão e uma situação económica má, que vai afetar toda a gente”. Sobre o papel do jornalismo, defende que é sempre crucial, mas critica fortemente a actuação dos media mainstream durante a pandemia. Laureado com o Prémio Nobel da Química em 2013, o reputado bioquímico e biofísico fala ainda sobre as redes sociais e dois problemas que o preocupam: o envelhecimento da população mundial (mas sobretudo o poder dos idosos sobre os jovens) e as alterações climáticas. Esta é a segunda parte de uma entrevista a não perder. Veja a primeira parte aqui.


    Participou, na semana passada, no Congresso Internacional sobre a Gestão de Pandemias, mas por Zoom. Mas já conhece Portugal?

    Conheço um pouco, não muito bem. Conheço Lisboa e o Porto. Conheço o Algarve, razoavelmente bem, porque os meus filhos vivem em Lagos. É um país belíssimo. Gosto muito, muito das pessoas.

    Os seus filhos gostam de viver em Portugal?

    Gostam muito. Vieram de Israel. Tenho dois filhos e cinco netos em Portugal. Tenho uma ligação muito forte com o vosso país.

    Voltando ao tema das alterações climáticas, é algo que o preocupa?

    Sobre as alterações climáticas, há um livro que li de uma autora norte-americana, Naomi Oreskes, chamado The collapse of western civilization [O colapso da civilização ocidental, escrito em parceria com Erik Conway]. Ela escreveu este livro no género ficção: a história é escrita daqui a 300 anos por um historiador chinês. Ele questiona como é que as civilizações ocidentais colapsaram por causa do aquecimento global. A China ficou bem. É ficção. É provocador. Mas tem muito de censura e de não se debater… Também uma incapacidade para agir.

    Faz lembrar algo, não?

    Uma coisa que a China demonstrou durante a pandemia é que consegue tomar decisões difíceis muito facilmente. Nem pensar que se consegueria fechar Nova Iorque como a China conseguiu fechar cidades enormes. Conseguiu fechar Xangai. Não penso que fosse o melhor a fazer-se em nenhum dos locais. Mas imaginemos que subia o nível do mar a ponto de se ter de mover Xangai para um terreno mais elevado, e o mesmo em Nova Iorque. Em Nova Iorque iriam discutir politicamente e chegaria a calamidade. É um livro interessante. Mas depois fiquei desapontado com a autora, porque comuniquei com ela no Twitter, e também em privado, e vi que estava muito assustada com a covid-19. Não via que o seu livro fosse uma previsão do que aconteceu com a covid-19. Penso que tudo se resume a política. Tudo o que Trump tivesse dito, teria de estar errado. Não está certo.

    Michael Levitt com o seu filho David.

    Agora, há a questão do dinheiro que está envolvido na covid-19. Tornou-se num grande negócio, talvez um dos maiores de sempre.

    Mas o dinheiro já se foi, já se gastou. E agora temos a inflação e a recessão, e uma situação económica má, que vai afetar toda a gente. Nos Estados Unidos é interessante analisar, porque o governo mudou a meio da pandemia. Podia discutir-se que muito do dinheiro foi gasto pela Administração Trump. Tenho ligações com os dois lados da política norte-americana e não quero dizer nada. Não quero fazer política. Penso que a política é muito difícil. Penso que é muito mais difícil ser um bom político do que ser um bom cientista. As pessoas veem os políticos pelo que eles são e julgam-nos nas eleições. Vamos ver.

    E também vêem os jornalistas. Participou no Congresso Internacional sobre Gestão de Pandemias, em Fátima, e não houve cobertura do evento por parte de nenhum dos órgãos de comunicação mainstream. O que pensa disto?

    Aquilo que se passa com os media é uma tragédia. O comportamento da imprensa durante a pandemia é uma tragédia. Dei entrevistas à CNN, e depois à Fox. Não me importo de o ter feito. Mas assim que dei uma entrevista à Fox, já mais ninguém me quer entrevistar. Uma tolice. Não fazia sentido nenhum. O que acredito é que os jornais se tornaram muito radicais devido à concorrência dos media online. E os conteúdos online não são melhores. Gosto do Twitter, mas o Twitter mudou muito nas últimas semanas, não sei o que lhe vai acontecer. Penso que algo tem de acontecer.

    Na China, os media são censurados de forma assumida.

    Tenho uma visão global do Mundo. Nasci em África do Sul, vivi em Inglaterra durante muito tempo, vivi em Israel por muito tempo, nos Estados Unidos por muito tempo. Os últimos cinco anos, tenho vivido na China, devido à minha mulher. E questiono-me. Na China, os media são muito censurados, mas as pessoas comunicam, não é como se não comunicassem. Pode desaparecer (o conteúdo), mas ainda assim é dito. Na China as pessoas usam sobretudo o WeChat, que é como o Whatsapp. As pessoas escrevem-me em chinês e leio em inglês. Posso fazer compras com o WeChat. Nunca ando com dinheiro, nem com cartões de crédito. Nunca ando com carteira. Talvez seja porque não há concorrência, não sei. Tal como o WeChat tem o meu código de covid-19. De vez em quando, lá temos de fazer testes. (Tenho pena da coitada da senhora que tem de enfiar o cotonete na boca das pessoas mil vezes por dia.) Mas agora o grande sucesso nos media é o Tik Tok.

    Os media legacy têm afora muita concorrência, em termos de conteúdos e distrações online.

    Penso que ainda estamos à procura da forma certa de termos jornais. Eu ainda subscrevo três jornais: o New York Times, o Guardian, e o South China Morning Post, de Hong Kong, que tem visões muito abertas sobre a situação política na China. O Guardian é apenas uma cópia do New York Times – é aborrecido, tenho de parar de o subscrever. Também subscrevo, no iPhone, o Flipboard, que todos os dias me mostra notícias diversas, de esquerda e de direita, do ponto de vista político. Gosto disso, porque vejo as notícias diversificadas e decido o que gosto e o que não gosto.

    Sente falta de diversidade e de um jornalismo que não seja todo igual e monotemático. É isso?

    O jornalismo é incrivelmente importante. Há pessoas que escrevem no Substack, mas acho enfadonho. Pode discutir-se se jornalismo independente é algo bom de se fazer. Em mundo da Ciência, costumava ser muito importante estar integrado numa grande entidade – Stanford, Cambridge, publicar na Nature –; agora, é menos relevante, mas ainda é importante. Na imprensa, não sei como será no futuro. Vai mudar, mas não sei como vai ser o modelo seguinte.

    E há as redes sociais…

    Sobre o Facebook, acho que não é bom para o Mundo. Gosto do Google, mas acho que vão tentar impingir as suas coisas. Gosto do Twitter, mas preocupa-me o que lhe vai acontecer. Penso que a diversidade é muito importante. Ouvir as pessoas únicas, que pensam, que têm senso comum. E há muitas pessoas como essas. O problema é… Por exemplo, um jornal que me desapontou foi o The Economist. A sua cobertura da covid-19 foi extremamente desmazelada. Tinham modelos que exageravam as mortes em excesso.

    Michael Levitt mostra a sua Medalha do Nobel, em 2013.

    As redes sociais mudaram a forma de usar a Internet. Como vê isso?

    Penso que a maior mudança foi o facto de duas pessoas quaisquer poderem contactar uma com a outra, praticamente a partir de qualquer parte do Mundo, e falar gratuitamente. E isso é algo muito positivo. Nunca tivemos antes. Há 10 anos, teria custado talvez 1 euro por segundo fazermos esta entrevista por videochamada. Hoje, clicamos no Whatsapp ou outra tecnologia, e conversamos.  

    Sobre o futuro, o que é que mais o preocupa?

    Preocupa-me o poder das pessoas mais velhas. O número de idosos no Mundo nunca foi tão elevado. Preocupa-me que tenham demasiado poder. O número de pessoas com mais de 65 anos é muito maior do que o número de pessoas com menos de 30. Das pessoas com menos de 30, só as pessoas com mais de 18 podem votar. Preocupa-me. O futuro do Mundo depende apenas das pessoas mais jovens.


    Veja a primeira parte desta entrevista aqui.

  • ‘As pessoas têm sido assustadas para se tornarem estúpidas’

    ‘As pessoas têm sido assustadas para se tornarem estúpidas’

    Aos 75 anos, Michael Levitt mostra uma energia e entusiasmo contagiantes. Laureado com o Prémio Nobel da Química em 2013, o biofísico com quatro nacionalidades (britânica, israelita, sul-africana e norte-americana) tem sido um dos cientistas de topo a analisar os dados da pandemia com a sua equipa da Universidade de Stanford, apesar de residir agora na China. As conclusões dos seus cálculos e pesquisas, que contrariaram a narrativa oficial, levaram a que chegasse a ser “desconvidado” de eventos científicos. Em entrevista exclusiva ao PÁGINA UM, Michael Levitt lança críticas à ligação da Ciência à política e ao dinheiro. Lamentando os gastos excessivos em vacinas e, sobretudo em testes PCR, defende que essas verbas poderiam ter sido aplicadas no desenvolvimento de energias renováveis para ajudar o Mundo a lidar com a crise climática. A viver atualmente com a mulher em Xangai, Levitt falou ainda da sua forte amizade recente com o conceituado epidemiologista John Ioannidis, uma das “coisas boas” que ganhou desde 2020. E fala ainda da sua forte ligação a Portugal, um “país belíssimo”, ainda mais porque tem dois filhos e cinco netos a viverem em Lagos, no Algarve. Esta é a primeira parte de uma entrevista a não perder.


    Passaram dois anos desde que começou a estudar os dados da pandemia e a assumir posições contrárias às da “narrativa oficial”. Quais foram as consequências para si, para o seu trabalho, para a sua vida, tomar uma via fora do “consenso”?

    É mais do que dois anos. Estou envolvido com a covid-19 desde Janeiro de 2020. São mais do que 1.000 dias, está próximo de três anos. A boa consequência é que comecei a interessar-me muito pela Epidemiologia. O meu campo natural era o da biologia computacional, em moléculas, em sequências, a uma escala microscópica. Tem sido interessante aplicar agora isto a uma escala diferente. Esse foi um aspecto muito positivo. Provavelmente, trabalhei nestes anos mais do que em alguma outra altura da minha vida. É muito interessante fazer o que chamo de “Ciência em tempo real”. Normalmente, em Ciência, faz-se um cálculo, espera-se três meses, verifica-se. Mas para a covid-19 havia uma pressão real do tempo. Mas aquilo que mais me surpreendeu foi a atitude muito difundida de não se querer ouvir ideias diferentes. A Ciência é discordar; os cientistas discordam.

    Houve atitudes dogmáticas…

    Todas as novas descobertas são rejeitadas, inicialmente. Isto é natural, e eu tenho consciência disso; é basicamente assim que a Ciência funciona. E fiquei muito surpreendido quando, a partir de meados de Março de 2020 – estava a trabalhar no tema há quase três meses –, comecei a comunicar com cientistas ocidentais, e muitos não queriam saber. Achavam que eu estava errado ao fazer isto, e que não o devia fazer, não queriam saber dos dados. Basicamente, disseram-me: “não és um epidemiologista, não tornes a nossa vida perigosa”. Penso que havia muito medo. Sinto que essas pessoas estavam muito, muito assustadas.

    Havia muito medo.

    Fosse pelos media ou por epidemiologistas, eles sentiam que estavam assustados e tinham medo que, se eu dissesse às pessoas que deviam pensar mais cuidadosamente… eles pensavam que era pior do que a gripe de 1918. Mas eu compreendi muito cedo, no início, que as pessoas ricas e inteligentes não são prejudicadas. Os pobres, infelizmente, esses têm sido prejudicados, e isso perturbou-me, porque há uma injustiça aqui.    

    Estava sobretudo preocupado, então.

    Estava muito preocupado. Historicamente, primeiro olhei para a China, e inicialmente comuniquei com colegas chineses, e os resultados colocavam os modelos muito, muito bem. Depois houve o modelo do cruzeiro Diamond Princess – que foi como uma experiência com pessoas –, e em seguida vimos que a mortalidade era menos de 0,5% para as pessoas idosas. Tem de se compreender que as pessoas idosas têm sempre mortalidade elevada. Antes da pandemia, na maioria dos países ocidentais, menos de 1% da população morre num ano normal. Se a população for 10 milhões, há cerca de 70 mil mortes em situação normal, mas depende do país. Se tem uma população muito jovem tem cerca de 50 mil mortes; se tem uma população muito idosa tem 100 mil mortes [como era o caso de Portugal antes da pandemia]. Eu defendi que, com a pandemia, as mortes por covid-19 seriam o equivalente a cerca de um mês extra de óbitos. Seria algo como talvez 6.000 mortes extra, ou seja, 8% a mais. E isso acabou por ser verdade em grande parte dos país. Publiquei essas previsões na Medium [uma rede social de debate] em 22 de Março de 2020. Eu não estava a inventar os números! Precisavam ser discutidos. E não foram. Foi a coisa mais triste para mim.

    Ficou desapontado?

    Eu sempre vi a Ciência como algo muito puro. Não sou uma pessoa religiosa, não acredito numa religião em particular. Acredito na maravilha da Natureza; acredito que os seres humanos são a coisa mais fantástica, eu gosto de todas as pessoas. Mas, de repente, a Ciência não importava, e a Ciência é sobre a verdade. A Ciência é, realmente, sobre a verdade, a beleza. A verdade e a beleza: é a Ciência. Se a taxa de mortalidade é de 0,5%, não importa quanto se grite, nunca será de 5%. Não será 50%. E temos de saber qual é a resposta. Outras pessoas chegaram às mesmas conclusões que eu cheguei. A minha resposta foi baseada numa parcela de população muito pequena, 700 pessoas.

    Passou a estar mais em contacto com outros cientistas?

    Uma outra coisa boa que aconteceu foi que eu fiquei mais exposto à comunidade [científica]. Há um cientista em Stanford muito famoso, um epidemiologista, o John Ioannidis. Há agora um documentário maravilhoso sobre ele. Ele é meu amigo agora. Eu não o conhecia antes da covid-19. Ele foi uma coisa boa e importante durante esta pandemia, para mim. Publicámos já artigos científicos juntos. Penso que há pessoas que sabiam que a narrativa estava errada. O problema é que o mal já foi feito; o mal foi feito para pessoas que não estavam bem e para os mais novos. Os mais jovens sofreram imenso. Artistas sofreram; tudo foi fechado. Teatros…

    E era necessário fechar?

    Não era preciso fechar. Em muitos, em muitos países o número de óbitos devido à covid-19 foi similar à de uma gripe má. Talvez similar à gripe A, de 2009 e 2010. Penso que a gripe de 1957 foi muito pior, mas não há bons dados. Precisamos de ter bons dados.

    Michael Levitt com a sua equipa da Universidade de Stanford.

    Mas houve países onde o impacte foi grande…

    Os Estados Unidos são uma excepção. Nos Estados Unidos tem havido algo estranho, porque na maioria dos países europeus a esperança de vida tem aumentado. Nos Estados Unidos, atingiu-se um máximo em 2005 e, a partir daí, está em queda. E isso é estranho. E, nos Estados Unidos, as pessoas que estão a morrer de covid-19 também são jovens, não especialmente os mais idosos. Os Estados Unidos são um caso invulgar e não sabemos ainda porquê.

    Disse que lhe aconteceram-lhe coisas boas durante a pandemia, mas também foi “cancelado”.

    Sou muito resiliente. Um bom cientista está habituado a que discordem da sua opinião. Algumas das coisas que foram escritas não foram simpáticas. Mas, surpreendentemente, não fui afectado. Por exemplo, o John Ioannidis não queria ir, não queria escrever para o Twitter. Eu achei o Twitter muito estimulante. Fiz três ou quatro amigos, não apenas amigos, mas colegas com quem vou trabalhar. A minha personalidade é sempre retirar coisas boas de qualquer situação.

    Mas houve situações difíceis?

    Houve coisas más, e deixaram-me triste, porque foram o reflexo de uma mentalidade estreita e de uma mente fechada. Isso preocupa-me: não é assim que os cientistas devem ser. Nos Estados Unidos, e não só, também em Israel, o problema ficou muito politizado. Se Donald Trump tivesse dito: “temos de fechar tudo e todos”, então os democratas – a maioria dos académicos – teriam dito: “não, não, não, temos de analisar e não fazer confinamentos”. Porque a posição inicial de Trump foi de que “isto não é uma doença muito perigosa”. E eles tomaram a posição contrária. A Ciência não se mistura com a política. E penso que isto é um problema, porque a Epidemiologia é uma Ciência que se mistura com a política.

    Antes, era diferente?

    A Epidemiologia não teve tanta atenção no passado. Os modelos epidemiológicos são muito antigos. Alguns dos números que são calculados não são muito úteis. Toda a gente no Mundo ficou a falar no número de reprodução epidemiológico [Rt]. E esse número é apenas aplicável a crescimento exponencial. Se tem outro tipo de crescimento, o número não faz sentido. Os números de crescimento epidemiológicos são como as taxas de juro dos bancos. Se o dinheiro está a crescer exponencialmente, então vai querer saber se a taxa de juro vai crescer 1% ou 5%. Mas se o dinheiro está a seguir outro caminho, não faz sentido. Parcialmente, o problema é que os epidemiologistas, no passado, queriam assustar as pessoas, de uma boa forma. Queriam que as pessoas ficassem tão assustadas que se iriam portar bem. Não esperavam que o Mundo fosse para um lockdown [confinamento]. Ameaçaram sobre o Ébola, ameaçaram sobre o H1N1. Há um longo histórico de ameaças de epidemiologistas. Penso que se habituaram a fazer ameaças muito sérias, embora as pessoas não as levassem tão a sério.

    Agora, foi diferente.

    Desta vez, talvez. Por razões estranhas. Às vezes penso que, se o primeiro grande surto na Europa não tivesse sido na Lombardia, em Itália, e sim em Estocolmo [na Suécia], as coisas teriam sido melhores. A Itália tem população muito idosa naquela região, que é muito social. Muitas das pessoas mais velhas naquela região morrem todos os anos de gripe; talvez umas 25 mil. Não se vacinam, e vivem uma vida boa.

    Esse surto exacerbou a resposta política à covid-19?

    Uma das grandes lições a retirar é que as pessoas morrem. E morrem naturalmente. Morrer faz parte da vida. Penso que, algures na pandemia, surgiu a crença de que não temos mais de morrer. Mas isso não é verdade. As pessoas morrem, e é assim que a vida é.

    Quais as lições a retirar desta pandemia?

    Precisamos de aprender. Precisamos de aprender que o debate é importante.

    Está preocupado com aquilo em que a Ciência se tornou desde 2020?

    Sim, estou muito preocupado. Espero que seja temporário. Espero que os cientistas olhem para isto com muita atenção. O problema é que está agora tão ligada à política. Especialmente, nos Estados Unidos. A Ciência está ligada à política e ao dinheiro. Infelizmente, as pessoas que recomendaram certas coisas… Foi gasto muito dinheiro em vacinas, mas mais dinheiro foi gasto em testes PCR. Pode argumentar que talvez estejam a mudar a forma como estamos na Ciência. Talvez sejam úteis, mas o teste PCR não tem valor económico. Apenas diz quantas pessoas têm a doença. Se fizéssemos testes PCR todos os anos para a influenza [vírus da gripe] também seria um desperdício. São centenas de milhares de milhões de dólares, talvez mesmo biliões de dólares, que foram gastos em testes PCR. A pessoa que inventou o teste PCR tem um interesse. As empresas que fazem os testes PCR têm um interesse. Estas coisas têm de ser todas debatidas. Ainda espero que haja um ajuste de contas.

    Aguarda que o mundo caia em si e então perceba o que aconteceu?

    Penso que, em parte, as mudanças políticas a que temos assistido, no Reino Unido, agora no Brasil, talvez nos Estados Unidos, mostrem que o público não está contente com as respostas dos Governos à pandemia.

    Considera que a Ciência agora é uma fast science? Hoje, um estudo, um artigo científico leva menos tempo a ser publicado comparando com o passado? Parece-me que muitos foram rapidamente publicados e usados imediatamente por políticos e autoridades para anunciarem medidas…

    O problema é que… Bom, no meu caso, eu quero publicar os meus resultados e conclusões e tem sido muito difícil, ninguém os aceita. Mesmo em publicações onde eu costumava publicar com facilidade. Aquilo que acontece é que os artigos que se encaixam na narrativa são publicados mais facilmente.

    A Ciência é compatível com uma narrativa?

    Há uma narrativa. Preocupa-me que a Ciência não deve ter uma narrativa, porque isso implica que se sabe antes de tempo o que se quer. E tem de se ser muito seguro de si para consolidar uma narrativa. A narrativa forma-se, excluindo tudo o resto. Penso que a Ciência, por definição, não deve ser conduzida por uma narrativa.

    Mas é precisamente o que sucedeu com esta pandemia…

    Por exemplo, as revistas científicas que publicam pesquisa sobre covid-19 ficaram, de repente, muito populares. E depois querem que aqueles autores publiquem ainda mais, mesmo se a pesquisa estiver errada. E isto é muito mau. Talvez estas revistas se arrependam no futuro. Mas entretanto terão a receita da publicação e da publicidade. Se se concluir que a vacina contra a covid-19 tem efeitos adversos, então serão possivelmente processados, tal como os produtores de tabaco foram processados.  Mas continuarão com o dinheiro que já lucraram. Basicamente, no futuro, penso que teremos de ser muito mais inteligentes. As pessoas têm sido assustadas para se tornarem estúpidas.

    E estamos em 2022!

    Desde o início que se perdeu o senso comum. Estou impressionado com Portugal, porque os meus netos estavam em Lagos, mas as escolas estiveram fechadas na altura do Natal de 2020. Em alguns casos, Portugal teve uma atitude mais leve em relação a estas coisas. Na Áustria foi o oposto. As coisas eram muito restritas. Agora, todos desistiram. A China é a grande diferença, mas ali há razões políticas que não compreendo e não se justifica. Curiosamente, todas as pessoas com quem falo, sabem. Todos sabem o que se está a passar. Por isso, não sei o que vai acontecer.

    Publicou recentemente um artigo com o John Ioannidis sobre mortalidade excessiva num vasto conjunto de países de renda elevada. O que pensa que está a acontecer?

    Para se ver a mortalidade em excesso é medir… Se um hospital disser que uma pessoa morreu com covid-19, não sabemos se a morte se deveu 50% à covid-19, se tinha problemas cardíacos, se era idoso. Não sabemos. Imagine que todos os que morreram com covid-19 teriam morrido dois meses mais tarde automaticamente, de forma natural. Quando medisse a mortalidade, no final do ano, teria números normais. Imagine que morriam em Julho, e Julho teve muitas mortes em excesso, mas depois, em Agosto, havia menos mortes. Só se morre uma vez. Quando se morre com covid-19 não se pode morrer devido à idade. Depende de quem está a morrer. A mortalidade excessiva diz: não queremos saber do que se morre, não queremos saber se é de um acidente automóvel ou com covid-19 ou idade avançada; mas olhamos para as mortes de anos anteriores e, com isso, esperamos uma certa quantidade de óbitos. Porque há sempre mortes.

    Pode estimar-se quantas pessoas vão morrer no ano…

    Sim. Se os números forem superiores aos esperados, então deve haver uma razão. Pode-se medir para o ano inteiro. Também se pode medir para cada semana. Por exemplo, em Nova Iorque, na pior semana da covid-19, as mortes em excesso, mortes reais, não as reportadas, foi sete vezes superior ao esperado. Foi uma quantidade enorme. Quer dizer que, por cada pessoa que se esperava que morresse, morreram mais sete, extra. Depois disso, houve menos mortes. Se analisarmos o Estado de Nova Iorque, para todo o período da pandemia, é muito similar à Califórnia, à Flórida e a outros Estados. Os Estados Unidos têm um elevado excesso de mortalidade . Há excesso de mortalidade na Europa, mas é mais como o excesso de mortalidade por gripe em 2009-2010. Há coisas que não entendemos. Mas temos agora um outro artigo, que estamos a tentar publicar, mas está a ser difícil. Enviámos a outras publicações, e eles não gostaram.

    E é sobre o quê, em concreto?

    Mostramos uma forma de calcular as mortes em excesso. Geralmente, dizemos que a mortalidade esperada seria a média de 2017, 2018 e 2019. Isso dir-nos-ia o nível de morte que devíamos esperar. Talvez devêssemos ter escolhido anos diferentes. Assim, pegámos nos países com dados de mortalidade entre 2009 e 2021. E deixámos que o ano com excesso de mortalidade, em comparação, fosse qualquer ano. Só um ano, ou três anos ou cinco anos. Usámos 66 excessos de mortalidade diferentes. E olhámos para todos e encontramos resultados semelhantes. Mas também se vê o excesso de mortalidade que existe em cada ano, não apenas no ano de covid-19. Sabemos quantas mortes em excesso há em 2010, 2011; pode fazer-se comparações. E o que se vê é que, nos países desenvolvidos, na Europa e na América do Norte, o único país onde há excesso de mortalidade, que é pior em qualquer altura dos últimos 10 anos, é os Estados Unidos.

    Voltemos ao estado da Ciência. Quando espera que algo mude? Quando é que um cientista com um Prémio Nobel poderá publicar sem dificuldade?

    Em geral, em Ciência, uma coisa nova e boa não é aceite. Mesmo antes do Prémio Nobel, sempre que eu tinha algo que era novo, era rejeitado. Tem de se lutar. O John Ioannidis publicou, penso, 60 artigos durante a pandemia, mas lutou tanto… Ele é uma pessoa muito especial. Muito inteligente. E não se zanga. Fica chateado. Eu fico zangado, mas não fico chateado. Ele tem muita paciência. Para mim, é realmente um prazer trabalhar com ele. Ele lutou muito… Ele teve artigos durante nove meses a aguardar publicação numa revista científica, e acabou rejeitado. Ele é alguém que foi muito crítico, mesmo antes da pandemia. É alguém que olha para um artigo, e diz: “este artigo não devia ser publicado”. As pessoas estão zangadas com ele. Ele está certo. Felizmente, ele é muito cuidadoso… Enfim, não sei o que acontecerá na Ciência.

    Faculdade de Medicina da Universidade de Stanford.

    Não vê então como será a evolução da Ciência, no futuro?

    Se olharmos para o futuro, por exemplo, para as alterações climáticas – e não me interessa se o aquecimento global é causado pelo Homem ou por explosões solares –, não há dúvidas de que temos um tempo estranho como secas, incêndios, ventos muito fortes, etc.; é uma crise, tal como a covid-19 foi uma crise. Então, aquilo que precisamos aprender é o que temos mesmo de aprender com uma crise. Uma crise, por definição, é inesperada. Mas, durante esta crise da pandemia , as nossas acções causaram mais danos – agora podemos dizer isso com certeza – do que se não tivéssemos feito nada. E isso é muito assustador, porque a quantidade de dinheiro que foi gasto no Mundo para cobrir vacinas, testes PCR, perda de salários e de produtividade, seria o suficiente para fazer uma enorme aposta na energia renovável. Podíamos ter tido um efeito enorme. E não o fizemos.

    Teme que a gestão da crise climática possa ser tão mal gerida como a covid-19, com medidas políticas e económicas erradas?

    Espero que não.

    E com censura?

    Espero também que não. Infelizmente, há dois campos: os que acreditam que tudo é uma fraude; e outros que acreditam que é o fim do Mundo. E eu gostava que estivessem a falar uns com os outros, em vez de dizerem: “nós somos os anjos e vocês são os demónios”. Isto é de loucos. Eu gosto mesmo de debater com pessoas que discordam de mim, porque é mais interessante. Falar com pessoas que concordam conosco… Gostar de falar com respeito e, se se zangar, sair da sala. Mas tentar compreender qual é a atitude do outro. Não convencê-lo daquilo que se está a defender, mas tentar entender o que eles estão a dizer. E, se conseguir entender o que o outro está a dizer, pode ajudar a explicar o que está a dizer de uma forma melhor. Não penso que haja um lado mau e outro bom. É uma mistura.


    Veja a segunda parte desta entrevista aqui.

  • ‘Os psicólogos que instigavam o medo são os mesmos que estão agora a reabilitar crianças e adolescentes’

    ‘Os psicólogos que instigavam o medo são os mesmos que estão agora a reabilitar crianças e adolescentes’

    Nesta segunda parte de uma grande entrevista de Joana Amaral Dias ao PÁGINA UM, a psicóloga fala sobre a sua última obra a chegar às livrarias, Psicopatas Portugueses – Segundo Livro, e revela um novo projecto que vai lançar em breve. Explica ainda como vivemos atualmente numa cultura psicopática, a qual nasceu a partir da cultura maníaca observada nos tempos áureos de Wall Street e que culminou na crise financeira de 2008. Defende que essa cultura psicopática é evidente em muitas das políticas de gestão da pandemia de covid-19 e que muitos dos males provocados à população foram propositados. Admite ainda que gostaria de ver ser feita justiça em relação às crianças e jovens que foram alvos de abusos e penalizados, incluindo na sua saúde mental, devido às medidas desproporcionais aplicadas na pandemia. E sublinha que nunca vai parar de lutar para que essa justiça seja feita, apesar dos desafios.


    Na tua actividade clínica, e em entrevistas, tens falado nos jovens e no impacto que estes anos têm tido nos jovens. Notas algumas melhorias, ou achas que, de facto, ainda se está numa pandemia de problemas de saúde mental, sobretudo nesta camada mais jovem?

    Estamos agora a ver as consequências, porque nestes dois anos e meio houve uma aniquilação das estruturas fundamentais para o desenvolvimento da infância e da juventude. Deixa-me dar-te um exemplo concreto: temos agora nas escolas um aumento brutal de delinquência e de bullying. Já estão a ultrapassar os níveis pré-pandémicos. Houve uma ruptura abrupta destas estruturas organizadoras dos miúdos, e ao rebentarmos com estes pilares… Os problemas estiveram mais ou menos tamponizados durante os confinamentos, mas agora que há um regresso a um determinado ritmo dito normal.

    Longe da vista…

    As clínicas de saúde mental, como a minha, estavam de portas fechadas. E havia situações em que podíamos observar os pacientes e dar resposta online, mas muitas tinham de ser presencialmente, como é óbvio. Isto da telemedicina e da telepsicologia, é uma teletanga! Isso não existe. Portanto, não havendo cuidados de saúde, escolas, espaços de socialização, ar livre e desporto, o que é que sobrou às crianças e adolescentes? Estarem fechados em casa numa redoma de vidro. Agora é que nós estamos a apanhar os cacos. Muitos miúdos nessa altura descompensaram, foram internados. Muitos foram abusados, agredidos, tiveram de ficar fechados com o inimigo dentro de casa – devo dizer que considero isto um crime contra a Humanidade. Para mim é um dos pontos mais negros desta história, porque de antemão nós já sabíamos – é do conhecimento comum – que a maior parte dos abusos e crimes de sangue acontece no primeiro anel das crianças. Portanto, espancamentos, homicídios, abusos sexuais, pedofilias, negligência, isso é tudo no primeiro anel. E, se estas crianças não vão à escola, ao centro de saúde, à junta de freguesia, ao centro desportivo, quem é que as sinaliza? Quem vê que estas crianças precisam de ajuda? Não há. Portanto, por ordens do Estado, estas crianças ficaram fechadas com os seus agressores. Foram, então, sujeitas à maior tortura que já se julgou possível.

    Joana Amaral Dias, fotografada por Júlia Oliveira.

    Houve quem avisasse sobre esses riscos.

    Nesse aspecto, eu tenho muito a dizer. Como se nota, até tenho demais, sobre a gestão da covid-19 nestes dois anos e meio. Mas isto é absolutamente imperdoável, porque o Estado sabe disto. O Ministério da Saúde sabe disto. O Ministério da Educação sabe disto. O Ministério da Segurança Social sabe disto. Todos sabem que as crianças não podem ficar fechadas com os seus agressores, e que a única maneira que nós temos de ajudar estas crianças é deixá-las circular. Deixá-las ir à escola, que é onde vemos as nódoas negras… E agora que voltaram às escolas e aos centros de saúde, é que nós vemos que elas estão todas destruídas. Absolutamente destruídas. Perguntam-me: mas como é que é possível este nível de bullying juvenil agora?

    E houve países que não fecharam as escolas e que têm agora melhores indicadores de gestão da covid-19 do que Portugal, por exemplo. E já há estudos que comprovam que foi um erro enorme fechar escolas. Portanto, aquelas teses de que era algo imperativo, caíram por terra…

    Entre todas as medidas, a que teve menos impacto no controlo da covid-19 foi justamente o fecho de escolas. Foram medidas estéreis e improdutivas. E, claro, já tenho falado com muitos professores, e se estivesse um aqui, dir-te-ia também que há aqui muitas aprendizagens, situações que são irrecuperáveis. Eu, como psicóloga clínica, sei que há janelas de desenvolvimento óptimas e que, se, efectivamente, a aquisição de competências e conhecimentos não é feita nessa altura, ela é irreversível. Ou seja, perde-se para sempre essa onda. Ela não regressa. Eu estou realmente muito focada nesta parte do trauma, porque se essas aprendizagens foram perdidas – como na Matemática, no Estudo do Meio e outras –, há, contudo, uma centelha de esperança que se possam recuperar. Mas se a criança está traumatizada, se foi violada todos os dias pelo avô, se foi espancada todos os dias pela mãe ou deixada à fome todos os dias pelo pai… essa centelha de esperança morreu. Portanto, não é só pelos ossos do ofício que eu coloco aqui a tónica, mas porque esse aspecto é anterior e é basilar.

    Se os vários ministérios sabiam desta situação, não deveria haver agora uma intervenção de gestão de crise, em que se gastassem alguns milhões – tal como se gastam noutros lados? Um investimento para ajudar crianças e colocar psicólogos nos centros de saúde, nas escolas, e onde for necessário…

    Vejo que tu ainda estás de boa fé. Isso seria o passo seguinte normal, se os governantes, os responsáveis e os decisores tivessem instituído estas medidas por erro. Se eles próprios, ao engano, mas crentes de que estavam a seguir as melhores práticas, e de que estas medidas de fechar negócios, escolas…

    Era para o bem comum.

    Para o bem comum. Se eles tivessem estado enganados, e se agora se tivessem apercebido que realmente houve coisas desnecessárias; tinham a tal desculpa de que foi a primeira vez. E agora corrigiam o erro. Mas tu ainda estás de boa-fé a achar que eles se enganaram. Eu não acho que eles se tenham enganado.

    Fizeram de propósito?

    Desde Março de 2020, mantenho a minha posição – casmurra! [risos]. E estou receptiva a que me desmintam de que isto foi feito deliberadamente. Repito: o objectivo desta gestão insana da covid-19 era abrir uma cratera nos regimes democráticos. E ela já aí está, em carne viva. Foi feito intencionalmente.

    Foi visto como uma oportunidade?

    Sim, uma oportunidade, para derrotar o pouco que ainda sobra dos regimes democráticos, que já estavam ameaçados.

    Isso explica porque é que não seguiram por exemplo as práticas comprovadas cientificamente e com estatísticas, como foi o caso da Suécia?

    Explica sim. E explica, porque neste momento não vão investir em nada na Educação, não vão reabilitar ou recuperar nada disto porque não querem saber, não se importam com isto. Eles veem isso como efeitos colaterais da sua missão principal, que era fazer a tal cratera na democracia. Mais ainda. Um exemplo concreto na minha área: havia uma task force para a vacinação e havia uma task force comportamental. Não é por acaso, porque efectivamente há vários níveis belicistas – e não é por acaso também que tivemos em Portugal muitos fardados a intervir nesta questão da covid-19 –, mas o centro é a guerra psicológica. Vacinas e psicologia, foram as duas task force. Eram os dois grandes motores desta narrativa. Isto é muito importante, ter esta noção. Na task force da Psicologia – a comportamental –, eles tinham vários fascículos que saíam regularmente com as guidelines para os agentes no terreno. Portanto, eles tinham a task force comportamental com os seus documentos e divulgava a metodologia a ser empregue.

    Um programa…

    Havia um programa. E nesse programa – e eu denunciei isso na CNN Portugal –, eles instigavam directamente ao medo. Voltamos à história da amígdala. Era uma decisão do Governo fazer a gestão e o controlo das medidas sanitárias para instigar medo na população. Isto era assumido. Normalmente, perante uma situação de emergência, a psicologia de intervenção e de crise recomenda que a primeira coisa a fazer é manter a calma. A primeira coisa que nós fazemos quando chegamos a um cenário de acidente é fazer o abaixamento da tensão e manter a ordem e a tranquilidade junto das populações. Se um colega meu tiver de ir buscar alguém que saltou para a linha de metro, a primeira coisa que lhe vamos fazer é justamente o abaixamento da tensão e dizer às pessoas que estamos a controlar a situação – não vamos lançar o caos e o pânico, e dizer que sim, que o mundo vai acabar!

    Mas isso é o que foi e tem sido feito.

    Exactamente. Na task force recomendava-se que se instigasse directamente ao medo! Os meus colegas psicólogos – porque eram psicólogos que estavam a trabalhar nessa task force comportamental –, que instigavam o medo, são os mesmos que estão agora a reabilitar crianças e adolescentes. É a mesma equipa. Isto tem de ser denunciado. São eles que agora estão a combater a delinquência juvenil e os problemas de integração na escola, o aumento do bullying… São as mesmas pessoas! Eu denunciei isto na CNN, mostrei esses boletins, que estavam na Internet; eu fiz questão de os imprimir. Mostrei-os, e dois dias depois eles desapareceram da Internet, os links agora estão vazios.

    O PÁGINA UM confirma. Aliás, conseguimos recuperá-los da Internet e disponibizá-lo novamente em Janeiro passado

    É preciso perceber que não houve boa fé, nunca! Com todo o respeito, algumas pessoas ainda podem estar com um certo grau de ingenuidade, mas eu sempre achei desde o princípio que isto era feito de uma forma psicopática, deliberada, com um objectivo claro e usando instrumentos de manietação e de mesmerização da população, que levaria a um determinado fim. Haveria efeitos colaterais, pessoas que se iam suicidar, que iam à falência, miúdos que iam ficar analfabetos aos 10 anos… mas isso eram pequenas contrariedades, empecilhos que iam surgir. Aquilo que interessava era chegar à cratera na democracia. Pronto! E por isso é que não vão reabilitar ninguém, por isso é que as equipas são as mesmas e não querem saber destas desgraças e efeitos perniciosos que aconteceram com a covid-19 e estão muito para além dos mortos e da mortalidade excessiva. Há aqui, de facto, uma série de consequências sociais que vão perdurar durante décadas. Para mim, isto foi um plano friamente gizado desde o início.

    Mas acreditas que pode haver justiça algum dia para estas crianças?

    Como disse no princípio, estou expectante mas apreensiva! [risos] Gostava muito que existisse justiça, e luto por ela também todos os dias. Mas sei que este combate é profundamente desigual. Estou disposta a continuar a terçar armas, a tentar que outras pessoas também estejam nessa luta. Eu parti para esta luta sabendo que a probabilidade é muito magra – não de eu ganhar, porque eu não ganho nada com isto, só perco, mas de haver reposição da verdade, do bem, do belo, do justo.

    Nunca pensaste simplesmente desistir desta luta contra estas medidas e ficar em silêncio?

    Não. Desistia e ia para onde? [risos]. Não, prefiro morrer.

    Publicaste agora um novo livro sobre psicopatas. E já disseste publicamente que os maiores psicopatas não são aqueles que tens estudado e referido nos teus livros. Depois do que disseste agora, acreditas que, de facto, existe mesmo essa tendência psicopata de algumas pessoas que estão por trás da gestão da pandemia, ou dizes isso apenas em tom de brincadeira?

    Não, não digo a brincar. Costuma-se dizer, e a frase já é muito antiga: o homem é o homem e as suas circunstâncias. As épocas também criam perfis psicológicos. Costumo dizer aos meus alunos, e é um exemplo muito gráfico, que já foi moda, na Europa, as pessoas matarem-se. Já houve uma vaga de suicídios na Europa, muito induzida pelas elites, de escritores e artistas. Era uma tendência, as pessoas porem termo à vida. Portanto, se foi possível haver uma moda deste tipo, é fácil perceber que as pessoas são também as suas circunstâncias. Quando foi a crise do Lehman Brothers e a derrocada do sistema financeiro, vejo que a pandemia ainda engaja com essa narrativa e a necessidade de repor alguns meios e riqueza de baixo para cima…

    Transferência de riqueza?

    Sim. Porque essa mossa nos mercados financeiros, de facto, foi poderosa. Foi responsabilidade deles, mas foi significativa. Mas, nessa altura, houve estudos internacionais que mostravam que havia uma cultura maníaca – não psicopática, mas maníaca – que rodeava toda essa questão das Bolsas Financeiras, de Wall Street. E, dentro dessa cultura maníaca, havia várias questões associadas, desde o consumo de cocaína, à compra de serviços sexuais em barda por muitos correctores de Wall Street. Enfim, havia vários indicadores.

    Fazia parte da cultura da maníaca…

    Sim. E, como psicóloga clínica e criminóloga, vejo também isso como a semente da cultura psicopática que nós atravessamos agora. Porque existem vários tipos de psicopatas mas, provavelmente, aquele que nós mais devemos recear e aquele que é mais canibal, são os psicopatas com esta vertente maníaca.

    Porquê?

    Eles devoram tudo à sua passagem, tudo. Tudo o que estiver à frente, vai; é imparável. Na altura, eu ainda estudei um bocadinho desta cultura maníaca – longe de mim imaginar o que se seguiria. Aliás, debrucei-me sobre isso num outro livro meu, no Sonhos públicos. E, agora, quando apareceram estes sinais em Março de 2020, realmente fiquei bastante preocupada. Porque quando olhei para os números da transferência de riqueza – e nós estamos perante a maior transferência de riqueza da História da Humanidade –, é estranho realmente como é que a esquerda, outrora tão preocupada com as desigualdades do Mundo, assistiu a isto impávida e serena, porque só isso deveria ter-lhe feito disparar todos os alertas vermelhos. A mim fez-me disparar. Se eu já achava que esta gestão da covid-19 não fazia sentido nenhum logo em Março de 2020, então quando comecei a ver essa transferência de riqueza: alto e pára o baile! Então, estamos efectivamente perante a cultura maníaca a cristalizar-se num funcionamento psicopático. E o que é o funcionamento psicopático?

    No teu recente livro, a segunda parte de Psicopatas portugueses, descreves sobretudo psicopatas de sangue, pessoas que assassinaram. Estes, de que falas agora, são bem diferentes…

    O psicopata mais comum não mata, não precisa de matar. O psicopata mais comum é aquele que pura e simplesmente se dedica à tal instrumentalização e manietação do outro, para que o outro seja apenas um escravo seu. A partir do momento em que o psicopata está à frente de outra pessoa, ele só pensa numa coisa: como é que esta pessoa me vai ser útil para as minhas necessidades, desejos e vontades? Sexualmente, materialmente, logisticamente… Se um psicopata for interlocutor de alguém, ele está desde o primeiro momento a sacar informação, todos os dados, tudo o que lhe for possível para depois o usar contra aquela pessoa, para poder depois escravizá-la e só vai sobrar no fim a carcaça. Isto é o funcionamento psicopata. Os psicopatas têm uma prevalência de 1 em 10 na população normal; portanto, todos nós conhecemos algum psicopata. Claro, nem todos são tão sofisticados, nem todos são tão carnívoros como este perfil que eu estou a descrever; alguns são um bocadinho mais suaves. Mas todos nós conhecemos algum. Acontece que quando nós chegamos às cúpulas de poder – e isto também já está amplamente estudado –, e nas esferas do poder financeiro, científico, económico e político, essa prevalência aumenta. E porquê? Porque ter poder sobre o outro é aquilo que respira um psicopata.

    Ou seja, não conseguem ver as pessoas como seres humanos…

    O psicopata está sempre a exercer poder sobre o outro, é o que ele faz. Através da mentira e da manipulação, é o que ele faz desde que se levanta até que dorme, e provavelmente a dormir também. O comum mortal está orientado para se divertir, brincar, amar e, às vezes, também para ter poder – o poder de transformação, que é diferente do poder sobre alguém. O poder sobre o outro é o que dá gozo ao psicopata, porque é aquilo que o satisfaz. Portanto, os psicopatas têm uma prevalência muito superior nas esferas de poder, porque o poder é o seu código genético.

    E há estudos sobre isso…

    Exactamente, há muitos estudos sobre isso. Nós também podemos às vezes querer o poder, e não tem mal nenhum; o poder para fazer algo é saudável; precisamos de mudança, flexibilidade e transformação, e tudo isso é o poder para. Mas nós conjugamos isso com outros objectivos na nossa vida, como referi. O psicopata só tem uma coisa na sua cabeça, e por isso é que tem muito espaço e muitos recursos, porque só isso é que lhe interessa e só investe nisso – que é o poder sobre o outro.

    Mas se nestes dois anos, estes psicopatas sentiram o sabor deste “sangue dos crimes” que foram cometidos, agora não vão querer abrir mão… Já se nota um grande à vontade na sua conduta, é isso? Agora estão agarrados a este “sabor a sangue”?

    Quando os psicopatas estão muito cheios de si próprios e as suas partes narcísicas e maníacas estão extremamente ao rubro, muitas vezes já não se preocupam tanto em não deixar rasto. Como dizia o Freud, acabam por deixar o cartão de visita no local do crime. Já não tapam as pistas, deixam muitas dicas… Por exemplo, não fazem actas [caso da Comissão Técnica de Vacinação para a Covid-19], que é uma coisa básica, não lhes custava nada. Ou, então, não cometem erros boçais deste género de pôr no boletim da task force comportamental a assumir que estão a instigar ao medo.

    Já não têm medo?

    Um psicopata não tem medo. Isso é uma das coisas que o distingue. Uma pessoa quando vai saltar de pára-quedas sente o coração a bater e a adrenalina a subir. O psicopata não sente nada. Pode esfaquear a avó e se medires os batimentos cardíacos, o mar está flat. Portanto, não há medo, e o facto de não haver medo é muito perigoso. Porque o medo tem estes efeitos que discutimos hoje, mas também é protector. Se eu vir um leão e não fugir, estou tramada. Mas os psicopatas quando estão numa fase muito narcísica, deixam rasto, e não se preocupam em deixar provas para quem vier a seguir investigar. Mas, mesmo assim, se for encurralado, o psicopata tem dois caminhos: ou mata-se, ou mata. Normalmente é isso que acontece. Porque é que nós temos, como falo nos meus livros, psicopatas que mataram de forma absolutamente gélida e arrepiante, e a seguir se mataram? Porque não podem perder a face. Esta é a dimensão narcisista, maníaca, do psicopata… Ele nunca irá para a prisão, nunca enfrentará a justiça. Nunca vai dar parte fraca, ou levar com ovos na cabeça. Portanto, prefere matar-se. Para se perceber o que é um psicopata: o último condenado à morte em Portugal matou a mulher, o filho, a empregada, limpou a casa toda, e a preocupação dele era aparecer em tribunal imaculado. Com as calças engomadas, o colete perfeito, e ficou zangado quando a forca não funcionou bem nesse dia, porque aquilo era desagradável. Enfim, quando o psicopata está encurralado, as opções são extremas. E por isso é que eu disse que o combate é desigual. Porque agora, eles, ou matam, ou matam-se.

    Havendo investigações, começando a existir mais dúvidas na população, e mais pessoas a questionarem o que tem estado a ser feito e as reais intenções por trás de determinadas políticas, algumas dessas figuras de poder poderão sentir-se encurraladas? Porque há aquela ideia de que pessoas que estão no poder jamais poderiam ser psicopatas, porque estudam, vêm de boas famílias…

    Isso não tem nada a ver. Estão encurralados, estão parcialmente encurralados.

    É preocupante, porque como referiste, temos a indústria farmacêutica, as grandes tecnológicas, a Comissão Europeia, o governo dos Estados Unidos… Apesar de haver muitas pessoas que estão a despertar para algumas situações, o que é certo é que eles também têm a comunicação social a puxar para o seu lado. Poderão alguma vez sentir-se encurralados?

    Sim, poderão sentir parcialmente. A primeira coisa que farão, antes de chegar ao tal extremo, é a fuga em frente. Portanto, pôr mais uma camada nesta narrativa. Por isso digo, é a minha perspectiva, que isto desde o início foi feito de uma forma deliberada e premeditada. Porque como a cratera da democracia está lá, possibilita que, caso seja necessário, se meta outra dose numa narrativa extrema e mutante, e facilmente entra. O portal já está aberto.

    E a crise económica, que foi criada pelos confinamentos, ajuda a isso.

    Quando as pessoas estiverem com fome, e a inflação estiver ainda mais galopante do que já está, e houver mais do que latas de atum com detectores de roubo; quando já estiver tudo a ferro e fogo, as pessoas talvez se esqueçam um bocadinho da covid-19. Não digo que não [risos]. E não estarem tão preocupadas com máscaras, nem com a verdade e com a mentira, mas com comer… A crise económica pode ser a tal camada suplementar… ou uma crise nuclear. Qualquer coisa. A imaginação é o limite. A partir do momento que existe essa cratera gigante, cabe lá muita coisa dentro. A minha luta desde o princípio foi essa. Façam lá a gestão que quiserem da covid-19, mas não toquem nos nossos direitos, liberdades e garantias. Claro, vozes de burro não chegam ao céu; andei a lutar contra moinhos de vento. Mas, por isso é que eu tive sempre esta preocupação. Eu lembro-me de estar em Março de 2020, ainda na CMTV, a dizer isto: protejam os grupos de risco – as pessoas que têm mais de 60 ou 65 anos –, que é aí que se concentra a maior parte das comorbilidades. A covid-19 não ataca tudo e todos, e já sabíamos isso.

    (Fotografia: Júlia Oliveira)

    E a tua voz vai ser usada no futuro de uma outra forma? Que projectos é que podes ter, o que é que podemos esperar? Retomar a carreira na política?

    Da política nunca saí. Faço política de outra maneira, porque cheguei à conclusão, na minha intimidade, nestes últimos anos, que não nasci para estar na vida politico-partidária, pelo menos tal como ela existe agora. Pode ser que se invente outra coisa, entretanto; e se se inventar, estou receptiva. Mas pelo menos não agora. Mas eu continuo a fazer política, de manhã à noite, todos os dias. E gosto. Gosto muito porque é natural, é inevitável para mim. Quanto aos meus projectos, eu andei todo o último ano a ensaiar um registo um bocadinho diferente, que é um misto entre Michael Moore e o Borat. Comecei a ir para a rua, com uma intervenção nas praxes no jardim do Campo Grande, porque as pessoas preocupam-se muito com o bullying mas aplaudem o bullying nas universidades. É um paradoxo social curioso e perigoso. Portanto comecei a fazer essa intervenção nas praxes e depois continuei. Até lhe chamei A Nova Variante. Entrevistei pessoas, comentava algumas coisas, ia para rua… Fui ao McDonald’s jantar a recusar-me a entregar certificado de vacinação; inscrevi-me num ginásio e fiz o mesmo também, entre outras coisas. Não só sobre a covid-19. E diverti-me imenso a fazê-lo; as pessoas gostaram muito, tive milhares de visualizações, e vejo que as pessoas estão receptivas a este tipo de intervenção, que não existe em Portugal. Então, não posso revelar tudo, mas decidi que este ano vou dar-lhe um formato um pouco mais consistente. Apurei o que funcionou melhor nessa experiência e vou dar seguimento a este tipo de intervenção agora durante este ano lectivo. Vou andar nesse modo, meio Borat, meio Michael Moore.

    E onde é que podemos acompanhar-te? Vais divulgar nas redes sociais?

    Sim, em formato de vídeo, e tenho a certeza que as pessoas vão gostar muito. Vou abordar sempre estes temas vistos como radicais na nossa sociedade – como a liberdade de expressão, a não aceitação de medidas avulsas e arbitrárias, a recusa da vacinação, a abordagem monoteísta da guerra na Ucrânia… Sempre a fazer um contraponto; lá está a minha costela de jornalista, e talvez também um bocadinho palhaça, como o Borat. Os temas serão variados. Estou mesmo prestes a arrancar agora em breve, mas devo dizer que na preparação, o receio que não existissem temas suficientes para fazer isto durante um ano, foi, infelizmente, infirmado. Existem temas e de sobra. E eu gosto de estar na rua, é para a rua que eu vou.

    Transcrição: Maria Afonso Peixoto

    Fotografias: Júlia Oliveira

    Edição: Pedro Almeida Vieira

  • ‘Estamos na antecâmara dos regimes totalitários’

    ‘Estamos na antecâmara dos regimes totalitários’

    Acutilante, irreverente, incómoda. A psicóloga Joana Amaral Dias não hesita em pôr constantemente o dedo na ferida e a denunciar o que considera serem injustiças e políticas erradas. Activista política e escritora, tem sido uma das vozes críticas sobre a forma como Portugal tem gerido a pandemia de covid-19. Tem também denunciado a censura crescente, dentro e fora da Internet, não poupando fortes críticas à atuação da comunicação social nos últimos dois anos. Nesta primeira parte de uma grande entrevista ao PÁGINA UM, a ex-deputada conta como a sua família foi ameaçada devido às suas posições públicas. Diz que parte da população está hipnotizada, ou mesmerizada, como prefere dizer. E avisa que estamos já a caminho de passarmos a viver em regimes totalitários na Europa.


    Já se pode fazer um balanço sobre a gestão da pandemia, em Portugal e em outros países? Como vês os últimos desenvolvimentos?

    Podemos fazer não um balanço, mas um balancete. Talvez ainda não tenhamos terminado esta fase, e há quatro ou cinco pontos que eu penso que devem estar inclusos nesse balancete. O primeiro é que Portugal fez uma gestão absolutamente calamitosa da covid-19, porque somos dos países que tem números mais impressivos de mortes registadas por covid-19, mas somos também um dos países que tem maior excesso de mortalidade. Inclusivamente, alguns números que eu considero particularmente sensíveis no que diz respeito à mortalidade materno-infantil. Por outro lado, simultaneamente, Portugal é dos países com maior taxa de vacinação, e eu acho incrível como é que não se estabelecem relações – não digo nexos causais, mas pelo menos correlações – e não há um debate amplo, aberto e franco sobre esses elementos. Porque talvez ainda não possamos chegar às tais conclusões finais, mas penso que já ia sendo altura de haver espaço na nossa sociedade para fazer esse debate. Portanto, é com perplexidade e, sobretudo, muita apreensão que eu reparo que a mordaça e a censura que vem sendo agravada desde Março de 2020 ainda perdura. Esse é um aspecto.

    E há outros…

    Sim, há um mais amplo e não apenas nacional. Nestes últimos anos houve uma alteração profunda daquilo que são as regras na democracia. Ao nível dos direitos, liberdades e garantias abriram-se alçapões, debutou-se um regime de excepção que não é revogável e não é reversível. Pelo menos, não de uma forma tão simples. Isso não sarou nem fechou de uma forma assim tão linear quanto isso, e que podem ser aproveitados, ou pelos mesmos que os criaram ou por outros. E isso gera também muita preocupação. A parte da censura que eu falava há bocado. Embora tenhamos sido apodados de negacionistas, conspiracionistas, chalupas, etc., a verdade é que o Tribunal Constitucional, quer em Portugal quer noutros países, já nos vêm validando e dando razão. De facto, a Constituição da República Portuguesa foi atropelada e esmagada neste processo. Vejo com muito maus olhos e com muita apreensão esta alteração das regras no regime democrático. E, por outro lado, vejo que ao nível europeu e internacional – Estados Unidos, inclusivamente – as informações que vão sendo libertadas, por exemplo, agora mais recentemente, sobre a Pfizer ter lançado no mercado a vacina sem ter feito a devida testagem para garantir que ela não prevenia a transmissão…

    E com esses acórdãos do Tribunal Constitucional, julgas que existirá uma tomada de consciência?

    Essas notícias e este tipo de informação e de dados continuam também a ser abafados, a não ser debatidos e a ter as devidas consequências. Isso preocupa-me. Portanto, estou apreensiva e expectante. Não sei se este Inverno nos vai trazer, de novo, outra vaga de covid-19, ou se agora vão assumir que há gripes e que há outras doenças que afinal nunca desapareceram. Mas, de qualquer maneira, mesmo que não consigam voltar a impor a narrativa “covid” pura e dura, como ela foi em 2020 e 2021, e até 2022, o resto está lá. Tomara que esteja errada, mas tenho para mim que esta narrativa “covid” serviu sobretudo para isso: para abrir esta cratera no regime democrático. E, portanto, esse aspecto está feito, check. Foi alcançado por parte destas forças, muitas delas não eleitas, e que seguir-se-ão outras narrativas, outras novidades, digamos assim, para os quais a cama está feita, o terreno está fertilizado.

    Até porque já se criam estratégias e programas para futuras pandemias. Ou seja, já está essa porta aberta, essa brecha, para voltar a violar a Lei e a Constituição.

    Acho que o solo está fertilizado para pandemias ou para outras coisas quaisquer. Porque quando falamos na retirada de direitos, liberdades e garantias essenciais, como o direito ao trabalho e a teres a tua porta aberta, ou à saúde, e teres assistência médica independentemente de estares vacinado ou não estares vacinado, o direito a visitares os teus familiares, etc… Quando falamos da supressão ou da negação desses direitos, essa supressão depois pode ser aplicada a muitas situações. O portal está escancarado para pandemias ou para qualquer outra invenção que lhes ocorra ou que na sua mente, seja necessária.

    Neste momento, há pedidos para uma maior transparência, nomeadamente em torno dos contratos de compra das vacinas. A Procuradoria Europeia está a investigar. Vai haver essa investigação, vai apurar-se efetivamente por que motivo há tanto secretismo, tanta opacidade, não só na compra dos contratos? Também agora se sabe que não existem actas das reuniões da Comissão Técnica de Vacinação da Direcção-Geral da Saúde (DGS), que é algo um pouco estranho.

    Esta parte da censura, de facto, casa bem com a opacidade. A censura é um instrumento de transformar certas partes do discurso e da intervenção pública opacas, mas da própria ação dos agentes políticos e dos governantes também opacas. Portanto, a censura tem estes dois lados. Eles autocensuram-se, autobloqueiam-se, não há transparência, não há prestação de contas. Ou seja, todos estes mecanismos que fazem parte de uma democracia madura e de regimes democráticos avançados. Portugal nunca esteve propriamente no pelotão da frente no que diz respeito a essas boas práticas. Esteve sempre na cauda, e continua, noutros sectores que temos vindo a falar, além da questão da covid-19, destas matérias sobre a participação em empresas, nomeadamente em empresas que fazem negócios com o Estado. Nota-se bem que nunca conseguimos estar na dianteira. Mas, neste caso específico das vacinas, isto passou todos os limites. Lá está, a tal cratera que foi criada. À “pala” da desculpa das patentes, que enfim, já era uma desculpa de mau pagador, porque se era serviço público, a União Europeia não tinha que pagar estas vacinas três vezes: pagar para financiar a investigação e o desenvolvimento destas vacinas, e depois pagar para as comprar, e depois pagar para ressarcir as pessoas que tiveram problemas com efeitos secundários adversos, etc., etc.

    A questão das patentes foi pouco abordada pelos media. Tal como os efeitos adversos das vacinas…

    As patentes deviam ter sido levantadas, e nós devíamos ter todos direito a saber e a conhecer a composição precisa destas vacinas, algo que até hoje continuamos sem ter acesso e esta é que é a verdade pura e dura. Não sabemos qual é a composição destas vacinas. Portanto “à pala” disso, da proteção da indústria farmacêutica, foi dito que os contratos tinham que ter várias cláusulas que funcionassem efetivamente como sombras e biombos, o que não é justificado. E isso perdura até agora, até hoje. A semana transata foi fértil em boas notícias, para quem tem estado nesta luta já há tanto tempo, porque faz parte, essa questão também está inclusa. Mas esta comissão (especial sobre a pandemia de covid-19 no Parlamento Europeu) já está a lidar com dificuldades. Albert Bourla, CEO [presidente executivo] da Pfizer, teve o desplante de se recusar a depor perante uma instância que, para todos os efeitos tem poderes judiciais. É como aqui, uma comissão parlamentar de inquérito no parlamento português à Assembleia da República. Portanto, vejamos, um bom caso para ilustrar o nível ufano a que estas personagens se acham e se posicionam. Pode dar-se ao luxo de não ir depor. Estou expectante justamente por isto, porque houve alguns avanços, mas sou moderadamente otimista e também estou apreensiva. Porque houve um concílio de interesses muito forte. A grande indústria farmacêutica teve uma alteração dramática nestes últimos dez, quinze anos.

    Não foi apenas o sector farmacêutico…

    Foi todo o capitalismo, mas isso nota-se mais numas áreas do que em outras. No sector farmacêutico, até há dez ou quinze anos, havia muitos pequenos e médios laboratórios, produziam medicamentos, vacinas, etc… Houve aqui uma alteração radical deste caminho do capitalismo para um sistema monopolista. Também aconteceu na big pharma. Os pequenos e médios laboratórios foram todos engolidos praticamente por quatro ou cinco grandes empresas que existem neste momento, nesta área. Portanto, deixaram de existir esses pequenos e médios laboratórios, deixou de existir uma sã competição e concorrência e passou a haver apenas dois ou três suppliers [fornecedores], como eles gostam de dizer no mercado. O que desvirtua aquilo que o capitalismo tinha de melhor. [risos] Porque na minha perspectiva, se alguma coisa o capitalismo tinha de salubre, era justamente a competição e a rivalidade. Depois, tinha muitos inconvenientes também, na minha perspectiva, muitas coisas que precisam de ser dirimidas, e precisam de ser cinzeladas, mas das poucas coisas boas que tinha que é de facto haver competição, isso desapareceu. E neste momento, no sistema monopolista, é o que se verifica. No big pharma isso nota-se muito, e no big tech também. Esta conjugação de interesses que houve durante a pandemia, entre proteger os quatro ou cinco grandes grupos económicos que estão em franco crescimento, como as grandes tecnologias e as grandes farmacêuticas, teve como um dos resultados de facto o insuflar destes agentes a ponto de se acharem que podem não responder no Parlamento Europeu. Portanto, volto a dizer, estou expectante, mas apreensiva, o meu otimismo é muito moderado.

    Em todo o caso, há aqui um avanço, no sentido de haver escrutínio sobre um tema que, por exemplo, a maioria dos principais media nem sequer toca. A comunicação social, o facto de não querer escrutinar este e outros temas, levanta preocupação?

    Eu vejo isto com muita preocupação porque, na verdade, a covid-19 enfraqueceu quatro ou cinco outros poderes importantes na sociedade mundial. Enfraqueceu o poder médico, nós sabemos que o poder e o prestígio da classe médica é muito importante. Era muito importante, mas foi claramente enfraquecido. Hoje sabe-se que há estados nos Estados Unidos onde os médicos vão perder a sua liberdade de ir contra, ou de questionar, aquilo que são as decisões políticas. Mas isso já se adivinhava antes, alguns médicos podem olhar para isto agora com admiração, mas é evidente que se não o fizeram atempada e oportunamente, agora vão pagar caro as consequências. Portanto, o poder médico vergou-se perante o poder político. Vamos lá ver a sequência e olhar do grande peixinho para o pequeno peixinho. O grande poder económico vergou o poder político, o poder político vergou o poder médico, e vergou também o poder da comunicação social.

    Como viste esse “vergar” da comunicação social?

    A comunicação social teve, outrora, uma função primordial de watchdog, de escrutinador, de fazer a pergunta incómoda, ser a pedra no sapato… Eu não sou jornalista, embora trabalhe na comunicação social há mais de vinte anos, e, portanto, sou um bocadinho jornalista, digamos assim, e tenho já uma costela por aquisição. Mas, de facto, como se costuma dizer, se a pergunta não for incómoda, é só propaganda. Se a pergunta não for difícil, é só publicidade. O papel do jornalista é justamente ser chato! É ser, de facto, inconveniente. Se o jornalista não é inconveniente, não é jornalista. É assim que eu leio, na minha experiência de trabalho e como cidadã. As duas coisas. O jornalismo abdicou de ter esse papel, e, portanto, tal como os médicos, se inicialmente abdicou desse papel para não se prejudicar, achando que se fosse na corrente era mais fácil, agora provavelmente vai pagar cara essa fatura, tal como estes médicos, que já começa a aparecer estas situações, que agora não podem levantar “grimpa”, caso contrário, “levam na cabeça”. E, portanto, o grande poder económico engoliu o poder político, o poder político por sua vez devorou o poder médico e da comunicação social. Ou seja, ao fim ao cabo, o tal regime monopolista que se vinha desenhando na transição do século XX para o século XXI, neste momento está de pedra e cal, é assim que eu vejo.

    Como um padrão que se vai repetindo, estaremos numa época em que estão de novo a surgir regimes totalitários na Europa? Vai por ondas, um bocadinho como as crises financeiras. Estamos nessa fase ou podemos travar e impedir que isso venha a acontecer?

    Não, nós não estamos num regime totalitário, na minha perspectiva. Nós já vivemos num. Há quem diga que nós já estamos a viver a Terceira Guerra Mundial, e que estes movimentos que vamos vendo na Rússia, Ucrânia, Taiwan, vão aparecer na História, um dia, como a antecâmara da Terceira Guerra Mundial. Não sei se isso é verdade ou não, mas sei que estamos na antecâmara dos regimes totalitários, isso eu já tenho mais certezas. Porque a chamada transição digital, que também já está em curso, tem sido feita contra os cidadãos. Tudo aquilo que era benéfico, tudo o que era vantajoso para as populações nessa transição digital, nomeadamente os processos de descentralização, têm sido fortemente atacados. Ou seja, aquilo que eram os processos de descentralização da informação, há cada mais censura nas redes sociais. Aquilo que têm sido os processos de descentralização da moeda, há cada vez mais ataques à criptomoeda, e por aí fora. Ou seja, aquilo que podia representar uma mais-valia para a cidadania e para a participação cívica, está a desaparecer na transição digital. E aquilo que era benéfico para os grandes poderes centrais e para o tal regime monopolista, está a ganhar raízes. Refiro-me, nomeadamente, à possibilidade de haver um euro digital; refiro-me, nomeadamente, à tal narrativa única e ao unanimismo.

    O tal consenso que não existe, o falso consenso.

    Eu não sei se ele é falso, ele parece como unanimista. Não sei se é falso. Falso pressupunha que havia aqui uma vontade e valores de fazer de outra forma. E aquilo que há é, de facto, uma postura unanimista, mais do que um consenso, é unanimista. Portanto, todos numa só nota, afinados por um só diapasão. E essa transição digital parece-me que é sobretudo centralista, monopolista. Ou seja, engrossando esse caudal totalitário, para responder à tua pergunta. Portanto, eu acho que nós estamos definitivamente já na pré-história do tal regime totalitário. Embora eu repudie e não me reveja na maior parte das coisas, ou em nada, da extrema-direita, na verdade eu não acho que isso seja a grande ameaça neste momento. Acho que isso são espantalhos que são colocados no campo para que o cidadão mais incauto ache que ali é que está o perigo e o risco, mas o risco não está na extrema-direita. Pode estar ali algum risco, mas o verdadeiro risco não está aí. Está nos senhores do mundo, no tal 1% ou 2% que detém quase toda a riqueza mundial e se apresentam como invencíveis.

    Aliás, o principal ataque à população, que foi a maior campanha de discriminação e segregação depois da II Guerra Mundial e que veio da Comissão Europeia – que não é de extrema-direita -, com a criação do certificado digital. E que já se sabia que não tinha qualquer base científica.

    Sim, já sabíamos e agora confirmámos. E estamos a falar de poderes não eleitos, convém sublinhar de novo. Como Ursula von der Leyen, e outros. Estou a dar este exemplo porque ela é casada com uma pessoa muito importante na indústria farmacêutica e as suas comunicações com as várias farmacêuticas estão também sob investigação, que – lá está –, é algo que devia ser absolutamente translúcido. Mas ela não foi eleita, portanto há aqui uma mistura também perigosa até nesse nível, de pessoas que nunca foram a votos.

    Tens sido uma voz muito activa. Sofreste alguns ataques, insultos, injúrias. Como é que está agora a situação? Já te dão razão?

    O meu caso é um bocado particular, porque quando eu cheguei a esta questão de 2020, já vinha com muito traquejo e muitos haters, ameaças de morte e muita maledicência, boatos e mentiras. Portanto, eu já vinha com uma bagagem grande, e isso foi bom para mim, porque ao contrário de outras pessoas que passaram a ser vozes dissonantes a partir de Março de 2020, eu já vinha levando “porrada” desde que cheguei à esfera pública, há quase 25 anos. Não é que eu faça de propósito, mas acabei por estar sempre um bocadinho contra a maré. Algumas vezes, se calhar de uma forma errada ou involuntária, mas a verdade é que já me tinha acontecido muitas vezes. O meu pai brincava comigo e dizia: “Joana, tu até do Bloco de Esquerda conseguiste ser expulsa!” O que não é verdade. Eu não fui expulsa, saí pelo meu próprio pé; fui eu que entreguei a carta a revogar a minha militância. Mas, pronto, ele dizia isso com piada, porque eu sempre fui muito contestatária. Portanto, em Março de 2020 eu já estava preparada, já tinha um bom sistema imunitário para aguentar [risos].

    Mas atingiu níveis mais elevados durante a pandemia, certo?

    Chegaram até às ameaças de morte, e a dizerem que me iam internar e decretar-me como louca. Eu tenho esses e-mails todos guardados. Eu sei que muitas pessoas têm aproveitado para se vitimizar, desde o almirante Gouveia e Melo, e outros, mas na verdade isso aconteceu com muita gente. Ameaçaram a vida dos meus filhos, a minha carreira profissional… Mas isso aconteceu sempre, desde o início, e eu não dou grande importância, não dou muito crédito nem tenho medo disso. Sempre achei que devia era ignorar e prosseguir, os cães ladram e a caravana passa. Tenho essas comunicações guardadas, feitas quer por telemóvel, quer por e-mail, e também pessoais, que essas não pude guardar, mas as que pude, tenho-as arquivadas. Tenho esse acervo, mas nunca quis fazer nada de especial em relação a isso.

    Mas chegaram a ameaçar-te pessoalmente, cara-a-cara?

    Sim, sim. Na rua, e também em contextos semi-privados já me fizeram várias ameaças. Mas, como te digo, seja pela minha personalidade ou formação profissional, a verdade é que não estou para perder tempo com isso. Houve um ou outro caso muito particular que eu tive que dar resposta e perder um bocadinho de tempo com isso, mas o meu tempo é escasso. Eu quero alocar os meus recursos àquilo que eu valido como sendo prioritário na minha vida, e o recurso mais precioso que nós temos é o tempo, definitivamente. E, do ponto de vista da minha intervenção no espaço público, não quero perder tempo com haters, e aliás, não lhes respondo aos e-mails nem nas redes sociais. Mas, para dar um exemplo mais concreto, cheguei a ter colegas meus de profissão que não me conhecem de lado nenhum e arranjaram o meu número, sabe-se lá como, a ligarem-me a um domingo às 16h e a aconselharem-me a retirar posts ou a ameaçarem-me veladamente, portanto a interromper o meu descanso dominical e as horas de família com isto. Eu guardo essas comunicações religiosamente, mas só para o caso de um dia mais tarde ser necessário. Mas não perco tempo com vermes.

    Aliás, para ligarem a um domingo, sendo psicólogos…

    São tácticas de pressão, e que estão amplamente estudadas pela psicologia. Aliás, se há coisa que para mim foi evidente desde o primeiro momento com a covid-19, foi que estávamos perante a utilização de alguns dos principais instrumentos e técnicas da psicologia – social e experimental – não ao serviço das populações, como elas devem estar, mas contra as populações.

    Foi uma guerra psicológica…

    Isto é uma guerra psicológica. Nós estamos perante vários níveis belicistas, mas este faz parte do centro dessa guerra. Aliás, o medo e a angústia de morte são as principais emoções humanas, das mais antigas que nós temos. O cérebro humano é um fóssil vivo, porque nós temos todas as camadas, desde a reptiliana, depois das aves, dos mamíferos, dos primatas superiores e depois uma parte do cortéx frontal – que permite processos de tomada de decisão complexos, que é exclusiva do homo sapiens sapiens. Mas estas camadas estão lá todas, e quando nós activamos partes muito primárias do nosso funcionamento, que salivam perante emoções muito fortes como a morte e o medo… não há medo mais forte do que o medo de morrer, como é evidente. Aliás, todo o medo é o medo da morte; ele pode depois aparecer colorido de outra maneira no nosso pensamento, mas todo o medo é o medo da morte. Portanto, quando nós activamos principalmente isto, estamos a manipular e a manietar os cidadãos da forma mais primal e mais agressiva que se pode fazer. E foi isto que foi feito com a covid-19. Nós estimulámos directamente a parte mais arcaica do funcionamento humano, e depois isto tem muitos floreados do ponto de vista das técnicas psicológicas, mas foi efectivamente isso que aconteceu.

    A tua formação em Psicologia terá ajudado…

    Eu lembro-me de ser muito miúda, quando tinha uns 19 anos, e numa aula da faculdade de Psicologia Experimental – que era uma das minhas favoritas –, ter dito ao meu professor: “eu espero que isto nunca seja usado contra as pessoas!” Porque são autênticos superpoderes, e não é para “puxar a brasa à minha sardinha” da Psicologia, mas a Psicologia tem superpoderes. Basta dizer que nós conseguimos hipnotizar pessoas. A hipnose não tem nada de mágico ou sobrenatural, é simplesmente induzir um estado que está entre as ondas cerebrais Alfa e Beta, que não é da consciência nem é onírico, está entre ambos. E onde nós conseguimos telecomandar as pessoas; telecomandar no sentido literal da palavra. A hipnose tem várias técnicas e meios. Dou um exemplo com o qual, enfim, penso que toda a gente está familiarizada, que são as mensagens subliminares na publicidade, e que emanam de conhecimentos científicos da psicologia. E, portanto, há várias maneiras de o fazer, e que foram empregues não para o bem – como aliás já vinha a acontecer, porque já se tinham aberto várias caixinhas de pandora que deviam ter ficado fechadas –, mas desta vez abriram a caixinha toda e soltaram-se as serpentes. Eu acredito que nada na sociedade deve existir se não for para servir o bem comum, e se não for para servir os povos. A Economia só faz sentido se for para servir os povos, a ciência só faz sentido se for para servir os povos. E aqui ela está a ser empregue exactamente no sentido oposto.

    Dirias que uma boa parte da população portuguesa e europeia está hipnotizada?

    Está mesmerizada, que é uma palavra que eu resgatei do nosso vocabulário científico. Franz Anton Mesmer foi a primeira pessoa muito antes da hipnose clínica experimental, que depois foi desenvolvida pelo Charcot e pelo Freud, entre outros. E enfim, hoje em dia é utilizada para muitos meios. Há pessoas que até, seja por motivos médicos ou religiosos – como as testemunhas de Jeová  –  não podem querer ou não podem ser anestesiadas e faz-se uma hipnose para poderem ser sujeitas a intervenção cirúrgica. A hipnose é poderosa. Mas a hipnose clínica experimental ganhou consistência com Freud e Charcot, mas foi Mesmer que foi um dos seus pioneiros e é definitivamente um marco nessa área. Mas eu gosto dessa ideia de mesmerização da população, porque não é uma hipnose individual como ela é aplicada no contexto clínico-experimental; é uma hipnose em grupo, e com recurso a várias técnicas complementares e coadjuvantes. Portanto, eu decidi resgatar este termo – mesmo internacionalmente com os colegas com quem vou trocando experiências e impressões – da mesmerização, que dá um pouco a ideia da amplitude e da profundidade da hipnose a que fomos sujeitos. Por isso, a resposta é sim [risos].

    (Fotografia: Júlia Oliveira)

    E isso explica, se calhar, como é que algumas pessoas consideradas racionais, cientistas e matemáticos, conseguem não questionar algumas regras e noções que são tão disparatadas e, logo à primeira vista, se consegue perceber que não têm racionalidade nenhuma…

    Sim, há uma parte que nós percebemos que é absurda, não é? Eu, sobre isso, acho duas ou três coisas. Acho que o absurdo faz parte dos regimes totalitários. Esses regimes sempre misturaram a sua missão absoluta e definitiva com medidas contraditórias e estapafúrdias para baralhar e confundir as populações e alargar os seus poderes. Portanto, há aqui elementos que foram ziguezagueantes, e, aparentemente, um sortido escaganifobético de medidas durante a covid-19. Pessoas que foram multadas por comerem gomas na rua… As pessoas podiam estar todas no calçadão na Marginal ao mesmo tempo, mas a praia estava vazia. Coisas assim esquizofrenizantes, que algumas pessoas dizem: “ah, isto é absurdo e contraditório”. Se calhar, algumas dessas medidas foram sem querer, mas algumas que eram aparvalhadas, era de propósito, justamente para “quebrar a espinha” em definitivo.

    As pessoas, na generalidade, aceitaram todas as restrições…

    Quem aceita coisas aparvalhadas, aceita tudo. E, portanto, esse princípio totalitário não é novo. Eu também não sou historiadora, da História das Ditaduras, mas sei o suficiente para saber que isto não foi inédito. Quanto ao facto de haver pessoas informadas, racionais, inteligentes e dotadas de espírito crítico, que aceitaram de uma forma amorfa todas estas medidas, é preciso dizer que algumas aceitaram porque receberam dinheiro. E isto é importante sublinhar, e já é público. Nós sabemos que houve influencers sanitários que fizeram isso. Aceitaram porque, efectivamente, foram subornadas – a palavra é essa. Houve um suborno e há aqui uma história paralela de corrupção e de crime que importa ser levantada. Há bocado, falávamos sobre isso, cláusulas opacas, mentiras… Há aqui esta parte que importa perceber, esta é a primeira camada. Depois, noutra camada: houve pessoas que tiveram uma fala dúplice. O seu discurso público era uma coisa, e depois na reserva da vida privada era outra. Isto encontra-se muito facilmente.

    Voltamos à Psicologia…

    Sim. Por exemplo, algumas experiências na Psicologia, que têm sido muito badaladas por causa da covid-19, são aquelas da pressão de grupo, em que convencemos o grupo grande de pessoas que o segmento de recta A, que é pequenino, é maior do que o B, que é muito maior. É uma coisa básica e concreta, uma experiência clássica da Psicologia Experimental. Mas, as pessoas que acabam por dizer que o pequenino é que é o grande, sabem intimamente qual é o maior e o mais pequeno, apenas dizem o mesmo que os outros para não se chatearem! Porque não estão para enfrentar a pressão de grupo e da autoridade, e querem fazer parte do rebanho. Portanto, esses que tiveram um discurso duplo são outro grupo. E, finalmente, há os que são inteligentes e racionais, mas que ficaram de facto com a amígdala cerebral inflamada [risos]. Há muitas pessoas que, quando activaram essa parte reptiliana do cérebro, embora sejam inteligentes e racionais, não têm uma estrutura de personalidade suficientemente robusta e capaz para aguentar o embate dessa angústia extrema da morte. E que depois de terem embarcado, logo em Março de 2020, nessa nave de loucos do receio de que íamos todos morrer com covid-19, não conseguiram voltar atrás.

    Algumas não terão querido dar o braço a torcer…

    Não conseguiram admitir que estavam erradas. Outras já não conseguiram desengajar dessa profunda angústia de morte. A angústia de morte é uma coisa poderosíssima. Lovecraft, que é um dos meus escritores favoritos, dizia que o medo é a única emoção que importa. Eu dantes discordava um pouco dele, agora começo a dar-lhe razão [risos]. Até mesmo pessoas eruditas sucumbem. Mas, isso para mim também não foi uma novidade, porque eu trabalho com a personalidade. O que é que eu faço todo o dia como psicóloga? E, mesmo na história da humanidade, por exemplo, sabemos que os nazis ouviam Mozart. Portanto, as pessoas podem ter dinheiro, beleza, cultura, erudição, mas se não tiverem uma personalidade, se não tiverem valores, essa hombridade e carácter, acabam por sucumbir. E foi o que nós vimos a acontecer.

    Fotografia: Júlia Oliveira

    Transcrição: Maria Afonso Peixoto

  • ‘Estamos na época da não-verdade’

    ‘Estamos na época da não-verdade’

    Professor de Filosofia na Universidade Católica Portuguesa, Mendo Castro Henriques é autor de várias obras sobre filosofia, cidadania, história militar e ficção histórica. Foi Diretor do Departamento de Defesa Nacional do IDN e Prémio de Defesa Nacional em 2018.

    Nesta Conversa com Nuno André, são abordados sobretudo os conflitos armados no Mundo, mas com especial destaque para a Guerra da Ucrânia.

    Castro Henriques defende que estamos a assistir à “Terceira Guerra Mundial, com as características da era digital”. Avisa que “o que está a acontecer na Rússia é a desagregação” e critica o facto de hoje existir gente que “sabe de tudo” e que proliferam os especialistas em “Rússia” e em “guerra”.

    Esta é a transcrição da entrevista, a que pode assistir aqui.


    Professor Mendo Henriques, ainda que em Portugal a filosofia seja uma das disciplinas transversais a todos os cursos, nem todos chegam a filósofos. Afinal, nós estudamos filosofia ou aprendemos a filosofar?   

    Aprendemos com os outros, sobretudo, porque sem diálogo não há partilha, sem partilha não há autocrítica e sem autocrítica, o nosso pensamento pouco vale. E dentro do que devemos fazer quando somos instados por nós próprios a prestar um testemunho, naturalmente que são os acontecimentos do dia-a-dia, não a espuma dos dias mas as tendências profundas que mais nos impactam. E era inevitável que um acontecimento como a invasão trágica e injusta da Ucrânia pela Federação Russa me tivesse chamado a atenção dado os meus interesses anteriores.    

    Entrevista integral de Mendo Castro Henriques pode ser vista no cana P1 TV

    Ainda que nos tivéssemos cruzado nos corredores da Universidade Católica, a verdade é que foi na sequência desta aproximação, que acaba por ressurgir uma obra que estava focada precisamente na nova sociedade ou no pensar-se o novo mundo num período de pós-pandemia. Mas a verdade é que ainda não estávamos no pós-pandemia, ainda não tínhamos ganho uma batalha que ainda não sabemos bem contra quem, e começa logo esta guerra entre a Rússia e a Ucrânia.   

    É mais do que uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia. O mundo mudou em 24 de Fevereiro, pode-se dizer que foi um dia que mudou o mundo. Muitas vezes aplicava-se à União Soviética ou à Rússia: 7 dias que mudaram o mundo, por causa da Revolução de 1917. Neste dia, foi um dia que mudou o mundo. Porquê? Porque vieram ao de cima tendências que já existiam, e que é a tendência da escalada para os extremos.

    Há um autor que nestes assuntos históricos e militares é um nome incontornável, o alemão Carl Von Clausewitz, enfim, que escreveu talvez o mais clássico tratado pela guerra. E o que ele diz é que antes da guerra, a humanidade, as sociedades, têm uma tendência de subir até aos extremos. E o que nós vimos na madrugada de 24 de Fevereiro, na televisão… Quando dizemos nós é porque estamos numa sociedade de informação, em que podemos estar a 4 ou a 5 mil quilómetros de distância ou mais, mas a televisão e o mundo digital, põem diante de nós a tragédia dos bombardeamentos, dos mortos, da violência, a subir até aos extremos. Portanto, com maior ou menor capacidade de antecipação, havia correntes minoritárias que diziam que ia acontecer uma invasão.

    A maior parte das pessoas dizia: não, ainda mal saímos da guerra do covid e vamos entrar noutra desgraça? Mas foi exactamente isso que aconteceu. E, mais do que uma guerra entre duas nações, como se está a ver… Porque Putin não aplica sequer a força toda que tem contra a Ucrânia, tem uma espécie de trunfo na manga, que são as armas nucleares, o que obriga à chamada guerra híbrida: sanções económicas, operações militares, pressões psicossociais sobre as populações, campanhas. Mas não é apenas duas nações que se enfrentam, é mais uma nação que está a ser vítima de uma guerra entre dois princípios, o da autocracia e da ditadura – podemos dizer, totalitária que, neste momento, é representada por Putin – e os princípios daqueles que defendem a liberdade, que também têm as suas fragilidades, mas que não se pode aceitar esta violência.    

    Entretanto, mais do que ser um mero espectador, sentiu a necessidade de ter um papel mais interventivo, mais activo em termos sociais porque na realidade, passa a partir de uma certa altura a escrever umas crónicas. Foi um sentido de dever, para contribuir de alguma forma para o esclarecimento, para motivar, o que é que deu origem a essas crónicas?   

    Eu diria mais que foi um sentido de angústia, de tentar – uma vez que eu fui director do departamento de Defesa Nacional e tenho vários livros de história militar, portanto para mim era relativamente normal seguir os acontecimentos militares… Mas a angústia, a preocupação que tudo isso me causava, levou a que eu tentasse investigar para além do que se sabia de imediato. E, no dia 10 de Março, eu já tinha feito um escrito anterior de apreciação conjunta que tinha feito circular e, não sei já em que circunstância, a partir de 10 de Março passei a fazer uma crónica diária num jornal digital e em papel, Do Portugal Profundo. Portanto, isto é também uma homenagem ao Portugal Profundo, que ainda funciona, o jornal de Oleiros, e ao seu director, o Paulino Fernandes. E portanto, todos os dias, durante dois meses, havia uma crónica diária sobre assuntos transversais à guerra.   

    Esta obra Crónicas da Invasão na Ucrânia, assumidamente à distância e agora aqui uma provocação que é: porque é que ousou falar de uma guerra pela qual diretamente não passou? Ou seja, não esteve na Ucrânia, não esteve na Rússia, não viveu aqueles momentos, apenas os conhece através dos meios de comunicação social, com tudo o que há de bom e de mau, de redutor ou de amplificador. Terá sido demasiado ousado ou não?   

    Bem, não é bem assim. Eu estive já na Rússia em conferências há anos atrás. Na Ucrânia, estive só na fronteira do Siret (fronteira da Roménia com a Ucránia na zona de Siret). Esta é uma guerra de princípios, não é uma guerra apenas de territórios. Não é preciso, digamos assim… Quando eu estive no campo de refugiados da Ucrânia-Siret já não havia refugiados, portanto, não senti o peso dessa desgraça, mas sabemos, convivemos, temos outros contatos e temos, sobretudo, a partilha do sofrimento humano que é… Temos aqui um povo que está a ser agredido. Se há vítimas, nós temos que nos identificar com a vítima. E, nesse sentido, uma vez que nas áreas da cidadania e da filosofia política a guerra é um fenómeno que eu já tinha tratado mais do que uma vez, era uma base a partir da qual depois eu fiz esse conjunto de crónicas, que aliás continuo a fazer, agora não com a mesma intensidade porque o contexto é outro.   

    Uma das crónicas toca num dos pontos-chave que é o Papa Francisco. O Papa, que numa das vezes que se dirige ao patriarca Cirilo diz, e passo a citar: não percebo nada irmão, não somos clérigos do Estado, não podemos usar a linguagem da política, mas sim a linguagem de Jesus. Ou seja, este assumir de um Papa que, de facto, não percebe nada de questões políticas… O Papa não “percebe de nada”, mas pelos vistos muita gente “percebe de tudo”. Quer dizer, possivelmente, há aqui uma parte de humildade ou de estratégia de comunicação.   

    Isso é irónico: o Papa é capaz de perceber mais do que nós os dois juntos.   

    [risos] Mas a questão é, porque é que nós de repente temos tantos especialistas em “guerra”, tantos especialistas em “Rússia”, mas, na verdade, só acertam depois das coisas acontecerem, porque muitos também diziam que não iam haver invasão… Ou seja: como é que nós podemos acreditar naquilo que as pessoas dizem nas televisões, na rádio, a internet? Não estou a pôr em causa o que aqui é dito, porque é um ponto de vista partindo de uma experiência muito particular e pessoal.   

    E além disso, com um cenário que eu penso que é assumido, que é a prazo, o que nós podemos chamar a derrota do regime tirânico de Putin, e, portanto, a manutenção da Ucrânia independente. O Papa Francisco tem uma importância, como figura mundial que é, e como figura de referência moral para além de autoridade religiosa.

    Mas no caso da Ucrânia, naturalmente que as figuras centrais são, do ponto de vista religioso, os patriarcas das várias Igrejas envolvidas, e aí está a haver evoluções, o assunto não está fixo. Já se sabia antes, que a figura do patriarca Cirilo, da Igreja Ortodoxa Russa, é uma figura muito controversa, acusado, nomeadamente, de corrupção. Teve já sanções, na sexta vaga das sanções europeias, depois foram-lhe retiradas. E, de facto, não é fácil – os seus defensores não são de boa rés moral.

    Um caso que ainda não foi falado, por exemplo, na televisão portuguesa – mas eu recebo essas informações directamente -, era o número dois da Igreja Ortodoxa Russa, o patriarca Hilarion, que há cerca de um mês atrás foi removido de todos os seus cargos. Eu cruzei-me com ele em Lisboa e, mais tarde, em Moscovo. Nunca se pronunciou directamente a favor da invasão e foi substituído pelo agora chamado bispo António, e foi removido para Budapeste.

    Estes movimentos de fundo dentro da Igreja Ortodoxa Russa mostram que Cirilo não está tão triunfante como parece, e isto é uma boa imagem de tudo o que se está a passar na Rússia. Portanto, há uma fachada que se pretende afirmar como triunfante, a partir de Moscovo e de São Petersburgo, dos grandes centros de poder. Mas, depois, a maior parte do que se chama Federação Russa é um conjunto de povos e de sociedades, que alguns nem falam directamente russo, têm as línguas e as culturas próprias. Fazem da Rússia um Império que se está a desagregar, e, por isso, uma das minhas últimas crónicas aqui no livro é “Porque é que a Rússia é o último Império colonial europeu”. Nós não estamos habituados a ver assim porque julgamos que um Império tem de ser ultramarino, tem de ter o mar como foi Portugal, Espanha e a Inglaterra. Na Rússia, o que há pelo meio não é o mar, são estepes a dividir Moscovo e São Petersburgo de territórios muito diferentes.

    E o que está a acontecer na Rússia é a desagregação, por via das sanções e da insatisfação das populações, dessa unidade Imperial que o Kremlin. O grupo de poder de Moscovo tenta segurar por todos os meios, através de uma guerra híbrida com uma grande fachada, misturando verdades e mentiras, mas que todos os dias cede mais um pouco.   

    Aliás, cada vez mais nos apercebemos de que a mentira tem sido, talvez, uma das permanentes estratégias russas. Vladimir Putin dizia publicamente que não havia guerra nem invasão, negando permanentemente. Mas quando a pessoa é descoberta na mentira e permanece na mentira, podemos perguntar se será que para ela é uma verdade relativa que criou na sua cabeça?   

    Pois, não é bem isso, é mais complexo que isso. A mentira caracterizava mais, sobretudo, o período final soviético, em que se mantinham aqueles que alvos da aurora do comunismo, de que iríamos a caminho de uma sociedade sem classes, mas infelizmente as prateleiras dos supermercados estavam vazias. Era preciso filas para as compras, os gastos eram militares, a derrota no Afeganistão e, na época de Gorbachev, na década de 80, já se sabia que aquele sistema estava falido e falhado. Aí sim, era a mentira.

    A Rússia passou por uma fase de capitalismo selvagem que também não correu da melhor maneira: nos anos 90, foram aí que nasceram os famosos oligarcas. Hoje em dia, já não existem. Continua a haver grandes bilionários, mas totalmente dependentes do Estado. Na década de 90, havia oligarcas com poder político próprio, que é isso que é um oligarca. Hoje, há apenas super-ricos, mas que dependem do Kremlin – é diferente.

    Esse sistema que se montou – e que veio dar o reforço permanente das posições de Putin -, levou a que no 24 de Fevereiro mostrasse a sua face de agressão externa. É importante seguir (figuras de relevo na Rússia). Normalmente, os comentadores não seguem as figuras de oposição russa, como, por exemplo, Vladimir Kara-Murza, preso desde 7 de Abril. Ele tem uma frase que diz tudo: a agressão externa é o outro lado da repressão interna. Ou, como diz o próprio Navalny, quem começa por manipular eleições acaba por se apoderar do poder todo e, depois, acaba por invadir, como fez na célebre entrevista à Time. Navalny, também ele preso, condenado, enfim…

    Estas e outras figuras menos conhecidas mostram que temos que perceber que a Rússia não vive num regime de mentira, vive num regime em que não há nem mentira nem verdade. E isso é que dá ainda mais passividade à população russa, que não sabe. Aquela que só se alimenta da televisão (sobre o) que se está a passar e que é pior que a mentira, é o pôr em causa que haja verdade.   

    Entretanto, nas suas crónicas, percebemos que considera que Putin já perdeu a guerra. Para um perdedor, ou para quem perdeu a guerra, não está há demasiado tempo ainda na frente de batalha?    

    Perdeu a guerra, mas ainda não perdeu todas as batalhas. E, como eu disse desde o princípio e como dizem os especialistas, às vezes, pessoas menos conhecidas, como Gleb Pavlovsky – que foi um dos colaboradores dele… Ele tem sempre um trunfo. E um trunfo é aquela mala que o acompanha, que tem lá várias ferramentas e uma das ferramentas chama-se armas nucleares. E, portanto, tudo o que Putin faz é sob esta ameaça: “eu estou a usar algumas das minhas ferramentas, nem sequer todas”. É uma guerra que não pode ser analisada como a Segunda Guerra Mundial ou outras.

    Nós vimos, no final de Julho, o Dia da Marinha Russa e houve um desfile extraordinário, com milhares de homens, dezenas de navios, uma fachada, como se não houvesse guerra. O que é que estão ali a fazer em São Petersburgo, todos satisfeitos, a comer gelados e a ver passar os navios, em vez de estarem na guerra? Ora bem, esta esquizofrenia aparente faz parte do sistema russo para mostrar que isto é apenas uma operação militar especial. ” A Ucrânia, para nós, não é o mais importante”. Putin não está em guerra só com a Ucrânia, está em guerra com o que ele chama o Ocidente Global, nomeadamente os Estados Unidos, a NATO, mas também aqueles países que apoiam – importantíssimos – o Japão, a Coreia, Singapura, Austrália, enfim, que ficam fora do que é o Ocidente no sentido geográfico. Há mais de 50 nações que dão apoio, quer humanitário, quer militar, à Ucrânia. E, portanto, isto é uma guerra mundial, uma Terceira Guerra Mundial, com as características da era digital. Não é uma guerra entre dois nacionalismos, mas sim entre um Império que se está a desfazer a pouco e pouco, e uma nação cada vez mais convicta das suas razões e a chorar os seus sofrimentos, mas que não se deixa abater porque já tem muita força interna.   

    Muitas foram as obras que filosofavam a partir da guerra, a guerra sempre serviu de exemplo para muitas vezes se fazer filosofia. A humanidade pode repensar – olhando agora para esta guerra e para as consequências – é o momento para termos uma ferramenta útil ao ser humano, ou tudo isto é inútil?   

    Não, a guerra não é bem para se fazer filosofia. Isso seria desmerecer o sofrimento humano e a violência, que é o centro da guerra. A guerra é uma ocasião para nós percebermos, mais uma vez, como disse Clausewitz, que a humanidade está sempre a ser puxada para os extremos. Como disse também, aliás, René Girard – um autor muito importante -, que estamos sempre à procura de um bode expiatório, e a guerra é uma forma de uma nação inteira achar que a culpa é dos outros, e, portanto, lançar a violência sobre os outros. Ora, esse ciclo fatal – do bode expiatório, da violência-, não é propriamente só o pensamento que o pode travar.

    Precisamos de recursos mais fortes. O que podemos, sim, é pensar essa questão e, depois, perguntarmos uns aos outros que instrumentos é que podem parar esta violência. Curiosamente, as operações militares são um dos meios de travar a tendência para a violência absoluta. Porque a violência absoluta, ainda para mais numa era nuclear, até custa pensar – que é o uso de armamento nuclear. É um assunto do qual nem queremos falar. Mas tem de ser pensado porque ele existe e há uma possibilidade remota de ser utilizado.

    E, por isso, é que até agora, mesmo um tirano como Putin e a sua camarilha, e do lado ocidental a NATO, têm feito todos os esforços para dizer que há aqui linhas vermelhas que não se podem cruzar. Portanto, a guerra corre dentro de certas limitações. Todos os dias há trocas de impressões se podem dar mísseis de longo alcance ou de curto alcance, se são armas ofensivas ou defensivas… É até estranho ver toda esta guerra que não sobe até aos extremos. Mas não sobe até aos extremos porque os extremos são quase insuportáveis e são quase impensáveis. O que nos faz dizer que, portanto, tem que ser contrariada a tendência para a violência absoluta, por atitudes como a importância do direito internacional, a importância de ajudarmos a vítima, que é uma atitude moral. E também para os que crêem, a importância da oração e da religião como forma de que haja paz. Todas estas ferramentas são necessárias para que não haja a escalada até à violência final.   

    Esta guerra em concreto, por acaso, não pega no argumento Deus, que muitas vezes é justificação para muitas guerras. Deus ou a salvação do Homem. Onde é que está Deus no meio disto?   

    Bem, não concordo com a afirmação porque, do lado russo, precisamente – e as minhas crónicas fazem alusão a isso- há uma enorme manipulação do argumento religioso. Precisamente, o patriarca Cirilo e uma parte da Igreja Ortodoxa Russa são completamente favoráveis à guerra, abençoam a violência, é o que se pode dizer. E isso, a todos os níveis. Portanto, a guerra é feita em nome de Deus no lado russo. Do lado ucraniano, pelo contrário, há uma separação muito clara entre o político e o religioso. O presidente Zelensky, que é de origem judaica aliás, tem sido de uma grande sabedoria, porque jamais o veremos a invocar argumentos religiosos ou a fazer manipulação religiosa da defesa daquela população ucraniana. Portanto, são duas atitudes completamente distintas e, sem dúvida, que a Igreja Ortodoxa Russa vai pagar caro esse invocar do nome de Deus, digamos assim. Ao contrário da parte ucraniana, que separa perfeitamente essas duas.   

    Mas a Rússia, com a sua capacidade extraordinária, que sabemos, com os espiões e a tecnologia que tem, se quisesse verdadeiramente matar Zelensky, já não o tinha feito?   

    Isso pode-se dizer de muitas maneiras. Se se quisesse matar Putin, não seria talvez impossível. Houve tentativas, como é conhecido, logo nos primeiros três dias de guerra, mas aí tem que se perceber que os russos sofriam de um enorme complexo de superioridade face ao que eles chamavam a pequena Rússia, esse desprezo que havia. Quando se diz os russos, é os russos de Moscovo e São Petersburgo, não será o conjunto dos povos que compõem a Rússia. E eles agora aprenderam, digamos que ficaram com o nariz a sangrar e esse complexo de superioridade desapareceu. As perdas russas são realmente inimagináveis, discute-se os números exactos mas são na ordem das dezenas de milhares. Os russos aprenderam, ao longo destes quatro meses, que os povos são iguais, estão a aprender. À medida que isso chega à população russa – porque hoje em dia, com meios digitais, vai levar um bocadinho de tempo até percolar essa impressão. Mas isso vai ajudar, de facto, a desfazer o coração do Império.   

    Falou há pouco no facto de este livro e as crónicas terem sido publicados pelo jornal de Oleiros, era também um reflexo de uma intervenção neste Portugal mais profundo. Quando assistimos, em qualquer meio de comunicação, tivemos sempre o mesmo registo. Ou seja, poucas foram as vezes que ouvimos alguém a explicar de uma forma clara a visão russa. Parece que toda a gente está do lado dos ucranianos. De facto, esta é a posição correcta, ou deveríamos ter quem nos explicasse a partir da visão russa e daquele que é o outro lado? Não temos porque não chegamos lá ou porque simplesmente não temos gente para falar desse lado?   

    Bom, há um defeito que inquina a maior parte dos comentadores, que é a geopolítica. Isto é, a ideia de que um país é uma entidade fixa e que, portanto, pode-se falar “a Rússia, a Ucrânia, os Estados Unidos, Portugal”. Mas quando dizemos “a Rússia”, quem é a Rússia? São os 140 milhões de pessoas? O Kremlin? Os 10 ou 15% que são contra o regime? As populações ricas da área de Moscovo, São Petersburgo? Ou os habitantes de regiões pobres, que aliás são mandados para a guerra e que muitas vezes se alistam porque não têm outra hipótese? E depois há nomes que aparecem, por exemplo, vêm invocar Kissinger, um dos criminosos internacionais à solta, um homem que disse que a Indonésia podia ficar com Timor ou que Portugal podia ficar soviético em 1975 ou, então vamos bombardear o Camboja… E são estas figuras da geopolítica – Kissinger é o mais conhecido, ainda está vivo e que, de uma forma vergonhosa, até recebeu o Prémio Nobel da Paz. O [também laureado com o Prémio Nobel da Paz] vietnamita recusou-se (a aceitar) porque achou que não era paz nenhuma.

    Portanto, nós vivemos destas figuras ilusórias que é suposto terem muito conhecimento, muita prática e que andaram lá no terreno, mas andaram lá no terreno a fazer maldades e a servir interesses internacionais. E, portanto, quando se diz “a Rússia”, em vez de dizermos que é uma unidade, temos que decompor a sociedade nos seus elementos, e para isso é preciso conhecimento disto tudo e partilha com outros. E, quando decompomos, vemos que sim: há partes da sociedade russa que estão a apoiar esta jogada de poker de Putin. Putin deixou de ser um jogador de xadrez racional – isto é dito por Garry Kasparov, o campeão do mundo de xadrez, portanto, de xadrez ele percebe um bocadinho. E ele diz que não tem nada de xadrez, é uma jogada de poker. É criar o caos e a confusão, e isto tem muito a ver com o que se chama a guerra híbrida e com o modo de operar do Kremlin: “Vamos criar a confusão e depois logo se vê como é que vamos gerir”. E, portanto, todos os dias eles ameaçam outro país, os bálticos, a Polónia, o Cazaquistão, nunca se sabe para onde é que aquelas mentes vão virar. Porque é esse caos, essa indistinção da verdade e da mentira… já não estamos na época da mentira, de facto, estamos na época da não-verdade, que é muito mais complicado do que a mentira. Portanto, quem gera não-verdade, está disposto a fazer jogadas de poker, a criar o caos à sua volta para depois se aproveitar.   

    Um dos pontos que os ucranianos apontam é que a Europa, parece que só a partir de 24 de Fevereiro é que acordou para uma guerra que já existia. Andámos esquecidos, a ignorar e agora de repente lembrámo-nos porque depois da covid era preciso ter algum tema bombástico, literalmente? E correndo o risco de passar à história, continuando a invasão, acabaremos por pôr de lado porque a certa altura cansa e haverá outros temas mais interessantes para falar. Há esse risco de continuar tudo igual e assobiarmos para o lado sem mudar radicalmente a nossa forma de ser e de estar?   

    As sociedades funcionam através das minorias activas. Havia uma minoria muito pequena preocupada com a Ucrânia. Houve, aliás, em 2014, as sanções porque se percebeu que o povo ucraniano, já desde 2004 – primeiro com a revolução laranja, mas depois com o Euromaidan (Primavera Ucraniana) em 2013 e 2014 – tinha dado uma prova muito forte de que queria afirmar a sua autonomia.

    A sociedade ucraniana continua cheia de problemas, tinha os mesmos problemas da Rússia, de oligarcas poderosos que prejudicavam a transparência política. Têm vindo a corrigir esses problemas, aliás por pedido da União Europeia. O dossier de adesão à Europa é, sobretudo, a correcção dos problemas da transparência, da justiça independente, e, portanto, evitar a corrupção económica. Tem sido esse o maior obstáculo e o presidente Zelensky e a sua equipa… Aliás, mesmo que Zelensky desaparecesse, ele poderia ser substituído porque tem pessoas extraordinárias na sua equipa… É um povo que, de facto, se está a afirmar. E, portanto, o que no 24 de Fevereiro ficou à vista de todos é que, tendo Putin dado um passo maior que a perna, então toda a gente acordou, porque, como é que é possível, em pleno século XXI, que a violência chegue a este ponto? Aí já não foi só uma minoria activa que ficou consciente, mas a população de um modo geral aderiu e continua a aderir de uma forma muito significativa em mais de 50, 60 países – de que a Ucrânia tem de vencer esta guerra porque é uma guerra de princípios e, nos princípios, não podemos ceder.   

    “Amanhã é outro dia” é o título do livro. É uma esperança no depois do agora?   

    É, e a autora da capa, a Isa Silva, quando eu lhe pedi, disse-lhe que a capa tinha de transmitir, ao mesmo tempo, a mensagem de que a violência está em curso, mas que amanhã é outro dia. Isso aconteceu logo desde a primeira crónica que eu fiz, que é mais pequenina, e depois eu tinha de fechar e ocorreu-me essa expressão. A partir daí, todas as crónicas fecham com a expressão “amanhã é outro dia”, e, portanto, era o título natural do livro.    

    Em tom de conclusão, sendo um especialista em questões militares e de segurança, e um teórico no campo da filosofia, qual é que é o risco de este livro não poder ser entendido pelo cidadão mais comum sem conhecimentos técnicos? Ou seja, é um livro de fácil leitura, ou técnico que só um especialista é que vai poder entender?    

    Não, são crónicas de jornal, portanto, são feitas com um vocabulário jornalístico, isto é, não é preciso ir ao dicionário para saber o que se diz. Acontece, sim, que para sair das generalidades, muitas vezes eu entro em pormenores, quer do ponto de vista politológico, quer em alguns pormenores tecnológicos, até porque eles são falados na televisão todos os dias… Os famosos mísseis de Javelin que travaram a ofensiva sobre Kiev, nos finais de Março e princípios de Abril… Como agora se fala nos sistemas Himars, que estão a permitir destruir as bases da retaguarda e logísticas dos russos, e como se continuará a falar de outros armamentos, que é uma parte, enfim, inevitável da guerra.   

  • ‘Um bom romance não é feito de heróis’

    ‘Um bom romance não é feito de heróis’

    Miqui Otero garante que é sempre “muito pessimista” e que parte do pressuposto que os seus livros “não vão valer nada”. Mas o escritor, jornalista e professor universitário viu o seu mais recente romance, “Simón”, receber, em Espanha, o prémio Ojo Critico em 2020. É também o primeiro livro do autor catalão, de 42 anos, a ser editado em português, pela Dom Quixote. O PÁGINA UM aproveitou a ocasião da vinda do escritor à Feira do Livro de Lisboa para uma descontraída conversa em que se falou de “Simón” e de todo o tipo de heróis: desde os mais clássicos e literários, aos mais reais e comuns.


    Os romances contam histórias e realidades objectivamente mas, como tudo o que é arte, também há um grau de subjectividade na sua interpretação ou na forma como cada leitor percepciona o que lê. Para si, como autor, de que é que realmente trata “Simón”?

    Creio que uma das coisas que faz um romance, pelo menos um romance desta tradição realista, é analisar um momento histórico e uma sociedade, através dos olhos e do coração de um personagem. É uma boa maneira de abordar, por exemplo, os problemas num lugar e num tempo. Combinam-se as duas coisas. É sobre como a personagem vive determinados momentos históricos. Portanto, trata de problemáticas objectivas, mas que cada pessoa vive de forma subjectiva. E é isso que combina “Simón”, tenta ser um romance que parece que arranca como sendo a história de um menino que se está a formar e atinge a idade adulta, mas o que pretendi com este romance é fazer uma análise do que se passou neste período de quase quatro décadas.

    O intervalo temporal em que se desenrola a história da personagem principal, Simón, coincide com as quatro décadas em que cresceu e viveu em Barcelona. Pode dizer-se que a vida de Simón foi buscar muito daquilo que viu e viveu?

    Sim. Eu acho que quando estamos a passar pelas coisas na nossa cidade e no nosso país, pensamos sempre que são menos importantes do que as coisas pelas quais passaram aqueles que viveram antes de nós. Os romances que se passam em Barcelona, de escritores de outras gerações, falavam da guerra civil, do pós-guerra, da transição da ditadura para a democracia… e, quando eu tinha 22 anos e morava aqui em Lisboa e já escrevia, pensava sempre: que período mais aborrecido! Não há maneira de ter material para conseguir escrever um romance aqui!

    Agora, os tempos que vivemos não são aborrecidos…

    Não, agora é menos aborrecido, podia ser um bocado mais aborrecido! Mas, o que é necessário, é o tempo. Enquanto eu vivia os Jogos Olímpicos de Verão em Barcelona, não via aquilo como algo que pudesse dar um romance. Mas quando o tempo passa e se olha para trás, percebe-se que foi um momento muito importante para a cidade e para o país. Era um país que estava a tentar não ser associado com a ditadura franquista, que queria apresentar-se como um país moderno e recebia fundos europeus, como um adolescente que queria viver as coisas pela primeira vez… e tudo isso, de repente, me pareceu interessante. Foi uma altura de mudanças muito repentinas na cidade, algumas boas e outras más, porque deixaram de fora muita gente. Muitos vizinhos foram expulsos. Então, depois comecei a pensar que aquela altura não era assim tão pouco literária, tinha interesse. E a única coisa que se tinha passado era o tempo, para que eu fosse capaz de olhar e entender aquele momento. E o romance vai desde a inauguração do Jogos Olímpicos de 1992 até aos atentados nas Ramblas, em 2017. Pareciam-me dois bons momentos para começar e terminar o romance, porque foram muito diferentes. Os Jogos Olímpicos foram uma altura de fé no progresso, no futuro, na modernidade… eu lembro-me de quando tinha 11 anos, e as pessoas estavam todas muito excitadas, como se estivessem embriagados, havia uma embriaguez colectiva [risos]. Viam tudo como se fosse bom, pensavam que iam ser enormes, o centro do mundo. Com tudo o que isso tem também obviamente de mau. E o romance termina com os atentados porque foi uma altura drasticamente diferente, Simón já tinha mais de 30 anos e já tinha passado por uma série de decepções, e o sentimento que se vivia na sociedade era exactamente o oposto daquele do vivido durante os Jogos. Era uma sociedade muito mais individualista, Barcelona estava muito dividida pelo movimento independentista e vivia episódios traumáticos, como os do atentado, e com uma crise económica global. Então, respondendo à pergunta, pode ver-se como um livro de História que fala de experiências de vida, ou como um romance que fala de um personagem que de algum modo define esse tempo e o acompanha e o segue, bem como à forma como vai vivendo e como sente as coisas ao longo dos anos.

    Simón começa por ser “o nosso herói”, e depois passa a ser “o nosso anti-herói”. Afinal, o que é que ele é?

    Não sei. Acho que há certos conceitos que se têm de redefinir de alguma maneira, creio que um bom romance não é feito de heróis. Na Antiguidade Clássica, se virmos as odisseias gregas, são pessoas que cometem erros, que estão a servir um ideal, mas que, querendo regressar a casa, vão vivendo a sua vida [risos]. Eu fartava-me de rir, porque Ulisses queria voltar a casa, mas chega a uma ilha e está com uma mulher, que não é a sua, durante oito anos… depois, vai para outra ilha e apaixona-se por outra mulher. Num capítulo, vai para uma ilha em festa e fica nessa ilha em celebração durante um ano inteiro, num castelo. Então, ele nem sequer corresponde à ideia de herói que temos hoje em dia. Não acredito numa heroicidade imaculada. Os romances mais actuais não podem jogar com esse tipo de heroísmo, porque é mentira. Seria propaganda, não seria literatura. Então, para mim, Simón é um anti-herói porque se engana constantemente, porque duvida, às vezes faz coisas boas para interesse próprio e, outras vezes, não tem intenção de fazer mal, mas faz indirectamente. E, para mim, isso é mais interessante. No livro, Simón está obcecado pelos romances dos séculos XVIII e XIX onde, aí sim, se apresentavam os heróis espadachins, ou outros que tais. Eu chamo-lhe ironicamente herói, e por isso coloco a expressão em itálico, porque ele é um rapaz que vai cometer erros ao longo da vida e vai-se enganar ainda mais porque, ao ler tanto, no mundo real irá deparar-se com uma realidade que não é como nos livros. Então, ele é um herói até ao momento em que passa a ser um anti-herói. E acho que os anti-heróis são muito mais interessantes do que os heróis, do mesmo modo que as derrotas sempre serão muito mais interessantes do que as victórias.

    Vamos poder ver Simón no grande ecrã?

    Isso nunca se sabe. Estão a trabalhar nisso, mas já com o meu romance anterior, compraram os direitos de autor para uma série e depois não se concretizou. Não sei o que vai acontecer, porque envolve várias etapas que não dependem de mim. Com Simón, está em processo, mas não sei como acabará. Se me perguntar se existe um projecto para que isso aconteça, sim, há um projecto para uma série.

    Simón conferiu-lhe uma maior projecção, tendo sido editado em várias línguas. Sente alguma pressão para que o próximo livro exceda o sucesso deste?

    Não [risos]. Eu sou sempre muito pessimista, parto sempre do pressuposto de que os meus livros não vão valer nada. Dizem que preparar-nos para o mal é a melhor maneira de enfrentar o pior. Então, não sinto nenhuma pressão, até porque não sou um atleta. Os atletas, quando saltam de uma altura, nas seguintes Olimpíadas têm que ir mais longe, mas com um escritor não é assim. Não é sobre tentar escrever mais romances de sucesso, é sobre tentar escrever o que tenho para dizer no momento. O romance que estou a escrever agora será mais breve, mais pequeno e terá outro estilo. Simón conta uma história que segue um longo período de tempo, é amplo e fala sobre muitos temas. Agora quero fazer algo diferente, um pouco o contrário. Sem a pretensão de ser mais nada, nem mais do que este foi.

    E está com menos tempo para escrever? Em Maio passado, anunciou que após seis anos como colunista para o jornal El Periodico, iria fazer uma pausa de alguns meses. Qual foi o motivo?

    Houve situações diferentes. Com os meus romances anteriores, tinha os meus leitores, mas com Simón houve uma mudança muito grande, um salto de leitores enorme. Então, isso também fez com que o trabalho de promoção em Espanha durasse vários meses e isso rouba tempo, mas também espaço mental para me concentrar no que quero escrever. Depois, tenho dois filhos, uma menina com dois anos e um menino que acaba de fazer cinco. Durante todo este último ano tive duas criaturas em casa, e uma ainda estava a aprender a andar e a ir contra as coisas, com aquela atitude de bebés de um ano que parecem os teus amigos embriagados [risos]. Levantam-se e caem de repente, tentam explicar-nos algo incompreensível, estão a chorar e depois riem-se… são como os nossos amigos embriagados, os bebés. E o de quatro, estava numa fase de perguntar-me tudo, perguntar-me metafísica. “Papá, o que é um buraco negro?“; e perguntas sobre meteoritos e dinossauros [risos]. Bom, tudo isto é exigente, e acaba por levar muito tempo também. Tenho também muitas colaborações em rádios, dava aulas, tinha muitos compromissos acumulados, e dei-me conta de que não estava a conseguir escrever. Então, de repente, numa manhã escrevi um e-mail, parei com tudo e pus-me a escrever. E agora já tenho avançado com o meu novo livro. Depois do mês de Outubro, em que estarei na Alemanha, já termino o romance.

    Também é professor universitário na Universidade Autónoma da Catalunha…

    Sim, isso foi outra coisa que também parei na Primavera. Por volta de Outubro ou Novembro, voltarei a dar aulas. As aulas que dou são de escrita criativa e jornalismo literário, e também faço um workshop de escrita de romances pequenos, de 60 páginas. Depois, tenho um projecto com um escritor mexicano, Juan Pablo Villalobos, em que ensino escrita criativa num bairro problemático de Barcelona que se chama El Raval e tem 70 ou 80% de imigração, do Bangladesh, Paquistão, latino-americanos também. Um dia, eu e o Juan Pablo começámos a falar de como gostaríamos que esses jovens nos explicassem como é a sua vivência na cidade e organizámos uma espécie de curso em que a cada ano é publicado um livro. Então, isso também me tem ocupado bastante tempo, porque é como ensinar a escrever a jovens de 14, 15 anos, que têm vidas difíceis em muitos casos.

    Foi o jornalismo que o levou a ser escritor ou já era escritor antes de ser jornalista? Como é que se definiria, qual é realmente a sua paixão?

    É a literatura, os romances. Estudei jornalismo porque era o que muita gente estudava, e a única coisa que eu sabia fazer na vida era escrever, então pensei: como é que posso ganhar a vida com a única coisa que sei fazer? E, por isso, tornei-me jornalista e trabalhei como jornalista durante uns anos. Assim que pude, deixei as redações, estava farto de estar sentado em redações todos os dias. Por volta dos 28 anos abandonei o jornalismo e já não voltei mais às redações. Depois, ainda continuei a fazer algumas entrevistas e reportagens, e agora já faz tempo que não exerço jornalismo. No entanto, é algo que continua a interessar-me bastante. É uma profissão excitante, necessária e útil para a sociedade, mas a minha paixão é escrever ficção. E desde que eu era criança, com seis anos, voltava da escola para casa para almoçar das 13 às 15h, e tinha uma espécie de loucura, de que a cada meio-dia tinha que escrever um conto. E quando não o terminava, ficava doido! Escrevia compulsivamente como o Stephen King, e ficava torturadíssimo quando não conseguia escrever. Escrevi inúmeros contos entre os seis e os 10 anos. Foi uma vocação desde muito cedo. Sempre gostei de escrever.

    A certa altura, no romance, chega-se ao dia do referendo sobre a independência da Catalunha e há uma passagem que refere que uma personagem via todo esse processo “como uma sã rebeldia“, e outra como um “golpe de estado“. Como catalão, qual é a sua visão sobre o movimento independentista catalão?

    Não vejo de nenhuma dessas formas. Eu digo que o pai de Simón pensava de uma maneira e o tio de outra para mostrar como os dois extremos pensavam nessa altura. Considero que foi um período de encantamento, como que um truque de magia. Nas primeiras páginas do livro, sobre a inauguração dos Jogos Olímpicos, falo de quando foi acesa a chama olímpica com uma flecha e toda a gente achava que a flecha caía no lugar onde se acendia a chama olímpica. Foi um truque. As pessoas estavam dispostas a acreditar em qualquer coisa. E, na época do processo independentista da Catalunha, havia muita gente que acreditou em qualquer coisa. Mais uma vez, havia uma fé nesse projecto, que era uma fé acrítica. As pessoas não criticavam nada, havia um nacionalismo cego. Metade da população acreditou nesse ideal, efectivamente, de uma maneira cega. Metade, porque a população estava dividida, era 50-50. Confiou-se cegamente em como uma Catalunha independente era melhor, confiou-se em políticas baseadas em promessas, mas que não estava realmente preparadas. E, quando tudo deu o berro, alguns fugiram. Portanto, há toda essa questão, por um lado. Agora, se é legítima a aspiração de uma Catalunha independente? Creio que sim. Se merece um diálogo maior por parte do estado espanhol? Claro que sim. Mas, isso faz com que eu valide tudo o que foi dito pelo partido separatista da Catalunha? E a forma como a maior parte da população interpretou? Não, e parece-me triste.

    Porquê triste?

    Parece-me triste porque depois o que fizeram foi esbarrar-se com a realidade. Uma realidade em que não tinham pensado porque foram enganados. Então, não me parece que seja uma história entre bons e maus. Parece-me, por um lado, que houve uma atitude quase infantil e irresponsável de nos levar para algo que se sabe que não vai ser bom. E por outro lado, no caso do estado espanhol, houve uma reação tardia, e em alguns momentos violenta. Foi prejudicial, porque era um tema que se podia ter dialogado. Portanto, não me sinto num lado nem noutro. E estas reflexões eram coisas em que eu pensava enquanto se passava tudo isto na Catalunha. Tornou-se numa sociedade bastante dividida. Agora, já está muito mais calmo… Mas a mim, o que me custava mais de todo aquele processo é que, naquele tempo, definiam-te unicamente em função disso. Apresentavas-te num lugar e era: és independentista ou não és? És independentista ou unionista? E isso parecia-me muito…

    Simplista?

    Simplista, sim, e triste também. No livro, até há uma frase que tem a ver com isso: não somos só uma coisa, somos aquilo que trabalhamos. Nós não somos a nossa opinião sobre um tema. Uma pessoa tem tantas faces como o fogo. E, na altura, se alguém não se alinhasse com nenhum dos lados, era mal interpretado, porque isso era visto como um sinal de cobardia, como se não se quisesse posicionar. Mas não é verdade porque, pelo contrário, estaria a posicionar-se sim, e num lugar pouco cómodo, porque estava diante do vazio.

    E acha que é assim com todos os temas, no geral? Ou é algo mais notório no caso de Espanha, com a questão da independência da Catalunha?

    Não, eu acho que acontece com muitas outras questões também. Primeiro, acho que é um sinal dos tempos, e não é apenas uma questão espanhola. Por exemplo, se pensarmos em como funcionam os algoritmos das redes sociais, que polarizam as opiniões e tentam acicatar conflitos já existentes, porque é isso que move o mundo. É esse o estado de coisas em Espanha e em todos os países. Em Espanha, é evidente que há desde sempre uma tensão entre conservadores e reformistas e, muito claramente, há desde logo duas Espanhas diferentes que nascem do conflito da guerra civil. Há progressistas e, por outro lado, pessoas que não dizem que são franquistas, mas na verdade têm padrões mentais que vêm daí. São como duas equipas.

    Que escritores tem como referências? Tendo já vivido em Portugal, algum deles é português?

    São tantos, e menciono tantos neste romance, que nem sei por onde começar. Há escritores que foram fulcrais na minha formação, que li quando era adolescente e que são importantíssimos para mim e estão todos em Simón. Alexandre Dumas, Balzac, Stendhal… Há um que é uma referência pessoal e ao qual volto muitas vezes quando quero entender algo, que é Charles Dickens. Mas, obviamente, há muitas mais, e leituras mais actuais, como romances dos últimos vinte anos, por exemplo. O meu preferido será provavelmente “A Breve e Assombrosa Vida de Oscar Wao”, de Junot Díaz, um tipo dominicano. Ou, antes, recomendava o poeta chileno Alejandro Zambra, que escreveu muitos romances nos últimos anos. Depois, nos meus vinte e poucos fui muito influenciado por escritores americanos. Também tive uma fase de literatura latino-americana. Muitos escritores de Barcelona também me influenciaram, e com os quais hoje me comparam, o que me deixa muito feliz porque são mestres para mim. E, desses, destacaria Francisco Ledesma, Eduardo Mendoza… Por fim, quanto aos portugueses, bem, obviamente li muito Saramago. Li o “Viagem a Portugal” porque estava a viajar por Portugal, e que começa a olhar o Douro, numa aldeia perto da aldeia da família da minha mulher, que é um povoado do lado de lá da fronteira espanhola. Também já li Valter Hugo Mãe, mas faltam-me ainda ler outros autores contemporâneos. Enfim, são mesmo muitos os autores que poderia citar como referências.

  • ‘O país está a saque’

    ‘O país está a saque’

    Em Portugal, não há uma separação de poderes tal como exige a Constituição. Assim, vivemos num Estado totalitário, sempre em função do chefe do partido que está no poder. Para Paulo de Morais, não existe em Portugal uma verdadeira democracia mas antes uma partidocracia. Nem a justiça nem os media escapam ao controlo político e económico, segundo o presidente da Frente Cívica, que alerta que há uma tentativa de controlo dos media por parte de António Costa. Paulo de Morais não duvida que a maior parte dos órgãos de comunicação social do país estão condicionados e operam sob o controlo de grandes grupos económicos e interesses políticos E avisa que o objetivo é que exista uma sociedade desinformada, para que seja mais facilmente manipulada, o que tem gerado um pensamento único e uma narrativa única de comunicação junto da população. Paulo de Morais garante que a corrupção está mais sofisticada e faz parte do ADN do regime em Portugal. E assegura que os portugueses “estão reféns de pagar rendas a grandes grupos económicos que lhes são garantidas pelo Estado” em diversos sectores, incluindo o da energia.


    Começo por lhe colocar uma pergunta um pouco desafiante: vivemos num Estado totalitário, em Portugal?

    Vivemos, mas não é de agora. A democracia portuguesa já não tem desculpas. Porque, antigamente, dizia-se que era uma democracia jovem. Só que, neste momento, a jovem democracia portuguesa tem mais tempo do que a velha ditadura. Portanto, a desculpa de que é jovem já não serve. Mas o que é facto é que nós, neste momento – embora reforçado por haver maior absoluta… Tem sido sempre assim: em Portugal, não há verdadeiramente separação de poderes. É um problema crónico. Isto porquê? Porque o poder executivo é liderado normalmente por um primeiro-ministro, que é simultaneamente o chefe do partido. E, enquanto tal, como chefe de Governo, manda no Executivo, o que está correcto, não tem problema nenhum. Mas, sendo chefe de partido, e pela lógica que nós temos – que é uma partidocracia, não é verdadeiramente uma democracia – o chefe de partido manda também no Parlamento.

    Neste momento, deveria ser o Parlamento a fiscalizar o Governo, mas não é assim que acontece. O que acontece é que é o Governo que manda no Parlamento. Porque o primeiro-ministro, pelo facto de ser secretário-geral do Partido Socialista, controla a maioria parlamentar e controla absolutamente o Parlamento. Portanto, o Parlamento é um instrumento da acção executiva, não existe verdadeiramente um poder legislativo independente em Portugal. Não bastasse isso, em Portugal – e este é um problema que não é só deste primeiro-ministro nem só deste Governo – o poder judicial depende muito do poder executivo. Porque os meios que a justiça tem são disponibilizados por quem? Quem é que paga o orçamento do Ministério da Justiça? É o Parlamento, através de uma proposta do Governo. Isto não é um problema só de António Costa, mas também de Pedro Passos Coelho, de António Guterres, de Cavaco Silva, de Durão Barroso, de todos… Nunca houve coragem de dar capacidade financeira ao poder judicial para ser autónomo.

    Portanto, o poder judicial não é autónomo nos tribunais, o procurador-geral da República é nomeado simultaneamente pelo primeiro-ministro e pelo Presidente da República que, infelizmente neste caso, e noutro, tem sido também instrumentalizado pelo primeiro-ministro. Além disso, a própria polícia de investigação criminal, está uma parte na judiciária, que é relativamente mais independente, mas também há investigação criminal na GNR ou na PSP, que dependem do ministro da Administração Interna. Então, resumindo e concluindo, o chefe do Governo manda no poder executivo, até aí muito bem. O chefe do Governo manda no poder parlamentar, péssimo. E o chefe do Governo manda parcialmente no poder judicial.

    Depois, um quarto poder que seria a comunicação social, os media e o espaço público, que poderia servir como escrutinador dos outros três poderes. Esse também está maioritariamente debilitado e dependente de um conjunto de interesses económicos, que por via da corrupção estão muito ligados ao poder executivo; e também por uma prepotência que tem havido nos últimos tempos, nomeadamente deste primeiro-ministro, de tentativa de controlo dos media. Não foi só ele que o fez. Aliás, temos em democracia uma triste história de primeiros-ministros que foram tentando controlar a comunicação social, e digamos que António Costa é mais um dessa triste lista. E, portanto, há uma tentativa grande de controlo dos media. Não de censura formal, mas tentativa de controle do alinhamento da comunicação social, a generalista, enfim, a que nós sabemos…

    A clássica…

    A clássica. E os canais de informação também estão muito condicionados. Não queria estar aqui a particularizar para não ser indelicado, mas o que é facto é que a comunicação social maioritariamente – não totalmente – está controlada pelos grandes grupos económicos e pelos grandes interesses políticos, que estão ligados aos grandes grupos económicos.

    Portanto, resumindo e concluindo, a separação e interdependência de poderes de que fala a nossa Constituição, não se verifica. Havendo toda esta concentração de poder no líder do poder executivo, de facto, nós temos um estado totalitário, sempre em função do chefe do partido que está no poder. Mas isto não acontece apenas com o Partido Socialista, aconteceu com o Partido Social Democrata. Acontece mais, obviamente, com quem está no poder mas, de alguma maneira, os partidos que estão na oposição e que alternam no poder, também têm a sua quota de responsabilidade nisto, como é evidente.

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    No seu entender, esse cenário que descreve e este problema que já é estrutural, favorece que haja esta corrente de pensamento único a que assistimos hoje em Portugal, e este maior controlo daquilo a que se chama uma narrativa que assenta na ideia de que o Governo não é responsável por quase nada do que tem acontecido, por exemplo, nos últimos dois anos?

    O pensamento único, ou quase único, para ser mais rigoroso, tem sido também uma característica da sociedade portuguesa dos últimos vinte e tal anos. Porque como os interesses económicos capturaram a política, naturalmente tem que haver uma narrativa de comunicação que desvie a atenção dos portugueses dos verdadeiros problemas. Ou seja, no momento em que se discute o Orçamento de Estado, por exemplo, para falar de um instrumento importante da governação e da vida económica de um país, nunca se discutem os verdadeiros problemas que decorrerão daquele tipo de Orçamento de Estado. Em todas as discussões de Orçamento de Estado a que eu assisti nos últimos 15 anos, tudo o que se discute no espaço público é da ordem dos 3% ou 4% do valor do orçamento. Ou seja, só se discutem as questões laterais e marginais. Aquilo que é o essencial, que é onde é que o Estado português gasta o seu dinheiro, em esquemas de corrupção que favorecem determinados grupos económicos, nunca é discutido no âmbito da discussão parlamentar do Orçamento de Estado.

    Para que não se discuta o essencial, para que de uma forma secreta se ande a roubar sistematicamente os portugueses, é evidente que tem de se arranjar uma narrativa comunicacional que distraia as pessoas. Eu excluo daqui a questão da pandemia, que esse efectivamente foi um momento em que se discutiram assuntos que eram importantes para a sociedade. Mas, tirando a questão da pandemia, na maioria dos casos, o que se discute é aquilo que verdadeiramente não interessa aos cidadãos, e é isso que convém a quem governa, porque quanto mais desinformada for a sociedade, mais manipulável é e naturalmente mais se consegue criar uma sociedade acrítica, que leve as pessoas todas no caminho do que interessa àqueles que verdadeiramente têm o poder, ao serviço de um conjunto de interesses económicos e até feudais.

    E esses interesses, diria que hoje estão mais aprofundados e ganharam mais raízes, ou é igual ao que já havia em anos anteriores?

    Sofisticaram-se, e, portanto, agravaram-se. Ou seja, nós passámos de uma fase, há 15 ou 20 anos, em que a grande corrupção se fazia através de favores, de tráfico de notas e de financiamento partidário, enfim, que hoje se continua a fazer. Mas hoje há uma fase seguinte, que é a fase em que o Estado português submeteu toda a sua política económica à criação de rendas para grandes grupos económicos. Hoje, através de mecanismos da mais diversa ordem, o que acontece é que os cidadãos estão reféns de pagar rendas a grandes grupos económicos que lhes são garantidas pelo Estado. Ou seja, quando nós abrimos a água na maioria destes concelhos do país, estamos eventualmente a pagar uma renda garantida a empresas como a DST, a Indaqua, a Aquapor, enfim, uma série delas, que são já hoje detidas por fundos financeiros internacionais e até pagam pensões a holandeses ou a suecos. Ou seja, verdadeiramente, na maioria dos concelhos do país, cada vez que uma pessoa, um cidadão, abre a água, que é um direito essencial – é entendido a nível das Nações Unidas como um direito humano e a nível da União Europeia como um serviço público essencial –, esse serviço público essencial serve para que os cidadãos, através da factura da água, paguem uma renda garantida através de esquemas de parcerias público-privadas a uma determinada empresa, como estas que referi e outras. Ou seja, um cidadão pobre em Matosinhos, abre a água e uma parte do que está a pagar do consumo daquela água, é para garantir pensões ricas a holandeses.

    Pensa que os portugueses têm noção de que as coisas funcionam assim?

    Não têm noção de nada disto. Enfim, dei-lhe o exemplo da água, mas quando ligamos a electricidade estamos a pagar também uma taxa a um conjunto de empresas que criaram sistemas de energia na área das eólicas e das fotovoltaicas, que garantem pagamentos de energia garantida da ordem de três e quatro vezes o mercado ibérico de electricidade… Quando passamos numa autoestrada, estamos a pagar uma portagem a uma parceria público-privada rodoviária que garante rentabilidades de taxas internas de contabilidade de 14% a quem as detém… Ou seja, um português, de cada vez que se mexe, hoje, está a pagar, através destes esquemas – que foram esquemas muito bem arquitectados no plano técnico, muito bem urdidos por grandes sociedades de advogados -, os portugueses estão a pagar rendas sistematicamente a todos estes conglomerados económicos. Ora bem, isto é a Restauração no século XXI em Portugal, do feudalismo pré-revolução francesa, no Antigo Regime. Verdadeiramente, o que acontece é que antigamente havia os servos da gleba, a agricultura era a grande actividade económica. Obviamente, hoje já não há servos da gleba, tanto quanto eu saiba, mas são os servos destes chamados serviços públicos essenciais, que fazem com que nós, os cidadãos além de pagar impostos ao Estado português, o que é legítimo e correcto, pagam no fundo um tributo a estas empresas que condicionaram todo o país.

    Mas sem terem noção disso…

    Não têm noção nenhuma de que estão a pagar rendas. É claro que isto é válido para água, para a electricidade, para as estradas, para os aeroportos. Ou seja, os portugueses, sempre que consomem seja o que for quase, nomeadamente ao nível destes serviços públicos, estão a pagar um tributo para viver em Portugal. E nos outros países não é assim, atenção. Há alguns em que é assim, mas há países em que não é, porque normalmente o Estado defende o interesse dos cidadãos, e quando, por exemplo, um esquema de uma parceria público-privada (PPP) ferroviária, como aconteceu nos caminhos-de-ferro de Londres, se torna penosa e nociva para os cidadãos, quem defende o interesse público, neste caso em Londres, resolveu a PPP e acabou com ela. Portanto, a primeira PPP da era moderna são os caminhos-de-ferro de Londres e também foi a primeira a ser resolvida. Portanto, neste momento os caminhos-de-ferro voltaram ao erário público. Respondendo à sua pergunta, a corrupção sofisticou-se. Hoje, a corrupção está no ADN do próprio regime. Razão pela qual, e volto ao Orçamento de Estado, de cada vez que um é aprovado, cerca de 10, 11 mil milhões de euros, mais de 10% do Orçamento, destina-se a pagar todos estes desmandos de PPP, de subsídios à banca para o Fundo de Resolução. Enfim, é todo um conjunto de dinheiro dos contribuintes que é canalizado para este tipo de negócios perniciosos para a sociedade, para além daquilo que nós depois pagamos no dia-a-dia. Ou seja, os cidadãos pagam rendas a um conjunto de empresas e pagam impostos para depois o Estado canalizar para essas mesmas empresas. O país está a saque.

    Em todo o caso, o Governo anunciou com grande pompa e circunstância uma nova estratégia nacional de combate à corrupção.

    Anunciou, isso é verdade. A estratégia nacional de combate à corrupção, que foi anunciada e publicada noDiário da República em Dezembro e que entrou em vigor em Junho, desde logo não é uma estratégia, não há estratégia nenhuma. No âmbito dessa estratégia, aparece um novo mecanismo que é o mecanismo nacional anti-corrupção, que por sua vez, ao fim deste tempo todo… Repare, a estratégia era muito urgente. A lei foi publicada em Dezembro, entraria em vigor em Junho. Neste momento, o mecanismo anti-corrupção nem sequer existe. Foi nomeada uma pessoa, ainda por cima, que é um juiz já jubilado. Enfim, com todo o respeito pelas pessoas de toda a idade, mas não terá certamente a grande energia e a dinâmica para implementar uma estratégia anti-corrupção, porque não há vontade de combater a corrupção. É claro que tem que haver uma estratégia nacional anti-corrupção, mas não é isso que nós temos. Primeiro, sob o ponto de vista formal, aquele documento não é uma estratégia. Enfim, não vou entrar aqui em questões académicas, mas uma estratégia pressupõe desde logo um conjunto de objectivos, de meios, e a avaliação subsequente. E aqui, não há estratégia, é apenas um documento de boas intenções. Mas documentos de boas intenções, enfim, com todo o respeito, mas estou farto de ver desde sempre. Nós precisávamos de facto era de uma estratégia, que não existe e este documento também não o é. E depois precisamos dos executores dessa estratégia.

    Portanto, não está muito confiante de que as coisas irão melhorar no combate à corrupção?

    Este mecanismo vem substituir o Conselho de Prevenção da Corrupção que, ao fim de 14 anos, não fez nada. Portanto, é difícil piorar, digamos que piorar é difícil. Mas também não acredito que vá melhorar porque não há, efectivamente, vontade. Vamos lá ver: primeiro, o que é corrupção? A Transparency International define-a de forma simples, e é nessa perspectiva social que eu entendo a corrupção, sem entrarmos aqui em pormenores jurídicos ou técnicos. Mas, a corrupção é a utilização de um poder delegado para benefício particular. Estou a traduzir o inglês livremente, mas é a minha tradução. Sempre que alguém tem um poder de delegado público e o utiliza para benefício particular, da família ou da empresa dos amigos, está a incorrer num acto de corrupção. Quem gere a coisa pública, no Governo, no Parlamento ou nas autarquias, tem que pensar sempre que tem um mandato que não lhe pertence, mas que pertence ao povo e lhe é atribuído por um determinado período.

    Em teoria…

    Claro. E tem que representar os seus eleitores, o seu eleitorado, e tem que ser na defesa desses que tem que actuar. Tudo o que saia disto é um acto de corrupção, de maior ou menor dimensão, de menor ou maior gravidade. Portanto, tem que haver da parte de quem dirige e de quem é eleito, vontade de em primeiro lugar defender o interesse do povo que deve servir. Sempre que isto não acontecer, a corrupção instala-se. Portanto, sem vontade, tudo o que se diga que se vai fazer para combater a corrupção são apenas formalismos e panaceias pontuais que não resolvem efectivamente o problema. Enquanto não houver, da parte da classe política, vontade efectiva de combater a corrupção, não é possível combatê-la.

    Mas acredita que com o estado de coisas, digamos assim, que descreveu, é possível algum dia chegar ao poder uma pessoa independente que de facto queira fazer alguma mudança?

    Neste momento é muito difícil.

    Visto que Portugal está refém dos partidos e de toda essa rede de interesses…

    E o problema é que, e isto acontece a nível autarca mas também a nível nacional, os eleitos que vão para o Parlamento, deveriam de ir fundamentalmente com dois objectivos, que são fiscalizar o Governo e criar legislação que favorecesse a população que os elegeu. Estes são os objetivos para os quais eles deveriam lá estar, mas na prática, o que é que eles vão para lá fazer? Apoiar acriticamente o Governo, neste momento, ou combater se estiverem na oposição, mas digamos que não vão fiscalizar a actividade governativa, vão fazer de claque. O Parlamento é um conjunto de claques. E vão garantir negócios e empregos para quem lhes financia as campanhas e quem os apoia com votos. Isto é válido no Parlamento e também em qualquer Câmara. É claro que nas câmaras os objectivos seriam diferentes. O objectivo do autarca deve ser garantir a qualidade de vida e uma boa gestão do espaço público. Mas o que é que faz um autarca-tipo em Portugal? Garante negócios para quem lhe paga as campanhas eleitorais, e lugares para os seus apaniguados do partido que lhe vão garantir a eleição seguinte. A democracia está capturada por todos estes interesses.

    Então, neste cenário desolador que descreve, está explicado também o caos a que nós temos assistido, seja no Serviço Nacional de Saúde, seja na gestão de recursos.

    Claro. Nós comemorámos há poucos dias o 24 de Agosto [Revolução Liberal de 1820]. Quem fez o 24 de Agosto não foi o povo da rua. Foram pessoas como Fernandes Tomás, Ferreira Borges, digamos, o sinédrio no Porto. Mas, cria-se uma junta governativa, e essa junta governativa em 1820, que é o início do nosso regime constitucional, apresenta-se ao povo português com o objectivo de desinstalar uma administração incompetente, cheia de vícios e erros. Portanto, vícios de corrupção e erros de incompetência. E, dizia também esse documento da junta governativa, [uma administração] que nos tira de todos os nossos foros e direitos. Passados 202 anos, estamos nós aqui a conversar e, de facto, o problema mantém-se. Os sucessivos Governos e Parlamentos têm estado reféns de dois factores que dão cabo de qualquer país, que é a incompetência e a corrupção. A corrupção, que nos tira toda a possibilidade de termos um futuro decente e que é, no fundo, a utilização dos recursos de todos para benefício particular, ou seja, quando se utilizam bens que são comuns. Depois, em termos jurídicos, pode-se chamar de tráfico de influências, prevaricação, há muitos crimes.

    Já é um pormenor jurídico…

    Sim, isso são pormenores jurídicos, mas o fenómeno social da corrupção é isto. E, depois, como há que dar lugar aos apaniguados dos partidos, bom, há muitos lugares da administração que não deveriam sequer de existir. Portanto, esses não era nem competência nem incompetência, há uma colisão de competências por existirem lugares que não servem para nada. Mas nos lugares que servem para alguma coisa, que também são muitos, normalmente nomeiam-se os incompetentes do partido que, inevitavelmente, acabam por gerar muitos problemas porque sendo incompetentes, tomam más decisões. Aliás, isso vê-se nomeadamente a nível local, quando se escolhe um boy partidário em detrimento de um competente, isso tem três problemas. O primeiro, é a injustiça que se sente, porque as pessoas ficam revoltadas. Mas esse é o menor dos problemas. O maior problema é que depois um incompetente colocado num lugar vai tomar decisões durante 20 anos, e provavelmente vão ser más decisões, porque só por milagre é que um chefe de um grupo partidário que está habituado a gerir comícios, também é bom a gerir finanças de um município, ou a perceber de condutas de águas pluviais de uma rua. Só por milagre é que percebe disso tudo. Aliás, as partes que normalmente não falham a nível local são as que têm a ver com festas. Porquê? Porque a malta que vem dos partidos sabe organizar festas. Não sabem fazer mais nada! Mas festas, comícios…

    É uma especialidade…

    É. Mas normalmente as romarias não falham, porque isso eles sabem fazer. Agora, gerir saneamento, as finanças da Câmara… isso não sabem. Portanto, a incompetência tem resultados catastróficos. Não bastasse isso, cria-se a ideia, nomeadamente nos concelhos mais pequenos, e depois generaliza-se ao país, de que competência para obter bons empregos ou para fazer uma carreira, não conta nada. Porque verdadeiramente, uma pessoa que tenha um doutoramento no Instituto Superior Técnico, que vá querer ser engenheiro para uma Câmara de um concelho que tem 15 ou 16 mil eleitores, vai perder o concurso para alguém que é do PS ou do PSD, ou da JS [Juventude Socialista], ou tanto faz. E, portanto, obviamente, perdem-se oportunidades de colocar pessoas competentes a fazer aquilo que a população necessita. Portanto, entre esta incompetência que resulta também de um acto de corrupção, e a corrupção propriamente dita, que é gestão de uma forma, aí já competente, mas tendo em vista interesses que não são os do povo, dá-se cabo do património todo de um país.

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    Daí, pode explicar-se porque é que Portugal, por exemplo, está tão bem colocado em termos das universidades no mundo, de termos bons quadros, há sempre esse elogio. Mas depois, na prática, não há lugar para eles na gestão do bem público e dos recursos públicos, devido a essa questão do peso dos partidos.

    Em todas as actividades em que há alguma interconexão entre aquilo que é um mercado e o que é o Estado, não há possibilidade de fazer uma boa carreira em Portugal. Eu estou a dizer isto para dizer que há excepções. Há empresas que vão buscar grandes quadros às universidades, como de engenharia informática, sistemas de informação, engenharia de gestão industrial… Estou a falar destas áreas mais tecnológicas. Põem-nos a trabalhar em empresas em Portugal, mas a prestar serviços para o estrangeiro ou para todo o mundo. E aí a intervenção do Estado, digamos que é cobrar bem ou mal impostos. Portanto, o dano não é muito grande. Agora, sempre que haja uma intervenção do Estado, como seja contratar pessoas para a administração pública, seja de uma Câmara ou de escolas e hospitais, entram factores de perversão, que de facto, não aproveitam devidamente as competências que nós cá temos. Portanto, verdadeiramente, aqueles que conseguem exercer convenientemente a sua profissão e a vocação para a qual estudaram, são aqueles que, ou emigram, ou que trabalham em Portugal para o mercado estrangeiro. Esses estão relativamente libertos destas perversões. Quem trabalha, directa ou indirectamente, para algo que venha a depender do Estado, está sempre dependente destes mecanismos e de facto, não consegue concretizar, que é a maioria. Portanto, tirando aquela excepção, que são aqueles que trabalham em áreas de ponta muito específica, os cidadãos não conseguem concretizar as suas vocações, porque não há uma procura conveniente de qualidade ao nível dos recursos humanos.

    Por exemplo, considera aceitável que Portugal esteja a viver a crise que está a viver em termos de serviços de atendimento de obstetrícia nos hospitais?

    Não faz sentido nenhum. Mas deixe-me ainda voltar ao ponto anterior. Todos os anos, a Transparency International publica o indicador de percepção da corrupção. A percepção não é a da população em geral, é de peritos, do Banco Mundial, do Economist, e outros, sobre a corrupção dos países. E Portugal, em 2000, ocupava, em termos de transparência, o 23º lugar. De 2000 para 2010, passou de 23º para 32º, portanto, foi o país que mais se degradou no mundo nessa década, e é claro que não foi o efeito só dessa década, mas em termos desse indicador. Portugal foi o país que mais se depreciou e, desde 2010, não saiu dessa posição. É sempre 32º, 31º. Quando Portugal estava em 23º, os seus parceiros a nível europeu eram, por exemplo, a Irlanda. Quando está em 32º, os seus parceiros são a Itália e Espanha, cujos níveis de corrupção tão bem conhece. Por outro lado, também todos os anos, a ONU publica os indicadores de desenvolvimento, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que é um indicador agregado de saúde, educação e riqueza. E, já há estudos feitos nesse sentido, alguns nos quais, modéstia à parte, participei, que dizem que há uma forte correlação negativa entre desenvolvimento e corrupção. Dentro da Europa nota-se esse feito até com maior discriminação. Então, dentro da Europa, está provado, através dos números, que quanto maior é a corrupção, menor é o desenvolvimento, e vice-versa. E onde isso se sente ainda mais, é na saúde. Portanto, a saúde é tanto melhor quanto menos corrupção há.

    Portanto, isto é um sinal de que há muita corrupção em Portugal. É uma consequência…

    Exactamente. É uma consequência.

    Hoje em dia, temos sistemas informáticos, inteligência artificial, mecanismos para fazer gestão e operações logísticas sofisticadíssimas, e rapidamente. Portanto, o que é que explica tudo isto?

    Nós, com a evolução do que se chama inteligência artificial, business analitics, entre outros, temos hoje mecanismos, quer de sistemas de informação para a gestão, quer de informática que lhe dá suporte, que permitem melhorar muitos serviços aos cidadãos. Bastará nós pensarmos, por exemplo, que… Se um hipermercado em Portugal fosse gerido como são geridos os hospitais, havia um dia qualquer em que fechava a carne, noutros dias fechava o peixe, e noutros dias não havia ninguém nas caixas. Porque é que isto não acontece nos hipermercados? Porque os hipermercados são geridos profissionalmente por directores, por gestores, que garantem que os turnos são capazes para as necessidades da procura. Porque é que isto não acontece num hospital? Aliás, estamos aqui, há estes problemas na saúde que martirizam as pessoas, e tanto penalizam a comunidade, e curiosamente, nós temos um Serviço Nacional de Saúde (SNS), que está bem colocado a nível mundial. Nós estamos em 25º ou 24º quarto lugar no mundo – agora não sei de cor – no indicador do SNS, à frente do Canadá!

    Portanto, é um problema de organização ou de gestão logística…

    Absolutamente. O que é que acontece? É que ao mesmo tempo que um dos nossos hospitais centrais aqui em Lisboa, numa sala de operações temos a melhor tecnologia do mundo, as melhores técnicas do mundo, os melhores médicos do mundo, os melhores enfermeiros do mundo, e a melhor organização dentro da sala de operações do mundo… Portanto, estamos ao nível dos padrões de top…

    Ao nível técnico de medicina?

    Exactamente, ao nível de organização daquela competência. Só que depois, chegamos à porta, e em alguns hospitais parece que estamos num hospital africano. Porquê? Porque não há organização. Não há uma organização de atendimento, de acolhimento, de recepção. O que tem de se fazer é tirar dos hospitais e das administrações regionais de saúde os boys incompetentes, e colocar lá pessoas competentes que saibam como é que isto se faz. É claro que isto acontece, infelizmente, em quase todos os serviços públicos. Eu viajo muito de comboio, Porto-Lisboa e Lisboa-Porto e, independentemente do número de pessoas, da data do ano, de ser dia de Natal ou o 10 de Agosto, de haver uma catástrofe ou seja lá o que for, as pessoas que estão na bilheteira são sempre as mesmas. Portanto, que modelos de gestão pública são estes? São modelos de gestão pública do final do século XX. Portanto, há todo um conjunto de áreas da administração pública, em que o que há a fazer é dotar as organizações de pessoas competentes.

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    E como é que se pode fazer isso?

    Bem, primeiro tem de se tirar de lá os boys incompetentes. E, depois, em alguns dos casos, há lugares a mais, que têm que ser pura e simplesmente extintos. E depois há um conjunto de lugares que têm de ser ocupados por pessoas que tenham capacidade e competência. Ainda por cima, poder-se-á dizer, como é que vamos avaliar a competência? Pelos resultados. Desde logo, pelos resultados dos utentes. Porque sempre que nós tenhamos um hospital central ou um centro de saúde a receber mal, com um acolhimento desagradável, nem é receber mal porque as pessoas não são mal tratadas. Mas se alguém chega a uma triagem a um hospital e só na triagem demora uma hora, para a consulta vai esperar mais três. E, portanto, se os sistemas que nós temos de acolhimento nas entidades de serviços de saúde portuguesas são maus, têm que passar a ser bons. Mas são maus porque isso também beneficia, e canaliza pessoas para os privados. Ou seja, quem gere assim o Serviço Nacional de Saúde está a destruí-lo em benefício dos privados.

    Mais uma vez, os grupos económicos a serem beneficiados.

    Eu julgo que são beneficiados e há dolo nesta atitude. Ou seja, se os serviços públicos de saúde recebem as pessoas de uma forma pouco amigável, é evidente que as pessoas têm tendência a ir para os privados. Bastará ver que hoje, quem tenha ADSE, que é sistema público de saúde, provavelmente numa consulta para uma gripe num hospital privado, paga menos do que a taxa moderadora que pagaria num serviço público. E isto é um exemplo claro. E isto é uma forma de canalizar os cidadãos para os serviços privados de saúde.

    Aumenta as desigualdades, porque há população que não tem acesso ao privado.

    Como é evidente. Mas independentemente disso, há muita gente no Serviço Nacional de Saúde, que de forma voluntária ou não, mas muitas vezes até inconsciente, com as suas atitudes, está a canalizar as pessoas para os privados. Eu dou este exemplo, e poderia dar muitos mais. Obviamente, há aspectos em que isto tem outra relevância, nomeadamente nos casos em que morrem pessoas. Mas no quotidiano, quem lê esta entrevista e qualquer cidadão sabe que se tiver uma dor no pé, uma coisa que não seja muito grave, tem que fugir do Serviço Nacional de Saúde. Quem está no SNS, porque é que não trata disso? Porque muitas das pessoas que são nomeadas são boys partidários. Portanto, eu acho que tem que haver uma luta militante para tirar os boys incompetentes da administração pública.

    Militante de quem, da sociedade civil?

    Da sociedade civil. E tem que obviamente haver da parte de alguns responsáveis, pelo menos, mecanismos de controle da qualidade e de satisfação das pessoas.

    Mas como é que é que se pode mobilizar a sociedade civil num ambiente tão bafiento e opressor como este que descreve, em que há um domínio dos partidos e esta ligação entre partidos, interesses políticos e económicos?

    Eu acho que a solução virá de fora da política. Agora, por que via, não sei, mas tem que vir da forma, vem da opinião pública. Há bocado falávamos dos media que estão muito condicionados, mas tem que haver aqui umas correntes de ar fresco que arejem esta sociedade e comecem também até pelo exemplo a mostrar que há efectivamente coisas que funcionam. Porque, obviamente, que há muitas entidades públicas que funcionam bem, e nós tivemos, apesar de tudo, o exemplo da pandemia enfim isso é uma outra conversa, mas o esquema de vacinação foi um esquema em que o plano logístico funcionou.

    Parecido com o que se faz nos supermercados, na distribuição, levar um produto de A para B, transportá-lo, armazená-lo…

    Há mecanismos, matemáticos nomeadamente, de previsão, que permitem saber quantas pessoas vão chegar ao Hospital de Santa Maria no dia 10 de Dezembro de 2022. Portanto, com esses mecanismos de previsão, há que organizar toda aquela logística por forma a que naquele dia, haja porteiros, enfermeiros, médicos, pessoal da limpeza, para garantir aquele tipo de procura. Os serviços públicos têm que perceber que têm que ser os serviços públicos a condicionarem-se à procura, e não a procura a condicionar-se à oferta. Quando é a procura a condicionar-se à oferta, chega uma grávida a mais e o bebé morre. Porquê? Porque não há oferta. E tudo isto hoje é previsível. Seria imprevisível se houver uma catástrofe, mas no quotidiano, saber quantas grávidas vão aparecer no hospital no dia X, isso consegue-se prever com um ano de antecedência, hoje há técnicas para isso. Agora, é preciso que os gestores destes equipamentos tenham no mínimo esta preocupação. E quem diz destes equipamentos diz os gestores das policias para a rua, e tudo o resto. Não se pode pedir polícias na rua no momento em que há problemas na rua. Tem que se prever quando é que vai haver, obviamente que uma sociedade tem sempre problemas, vai haver sempre conflitualidade. Mas hoje há mecanismos que permitem prever, com uma grande precisão, com uma margem de erro relativamente pequena, qual vai ser a conflitualidade. Isto está mais do que estudado, está estudado até se são dias de lua cheia, ou dias mais escuros que são de lua nova, tudo isto está estudado em toda a parte do mundo. E a transposição dessa tecnologia para Portugal é fácil, porque não é preciso trazer máquinas, basta trazer o software e as pessoas que percebam disso. Portanto, é preciso é usar estes mecanismos, prever quantos policias são precisos na cidade do Porto ou na baixa de Lisboa daqui a seis meses.

    Já que fala nessa questão, como é que vê – e não resisto a perguntar-lhe – o desaparecimento de bases de dados, a mutilação de bases de dados relativos à saúde por parte do Ministério da Saúde? É um caso concreto, específico neste sector, mas mostra que não há transparência e há dados que são escondidos relativamente ao que se passa hoje em Portugal.

    Nós temos sempre dois valores que têm que ser devidamente ponderados, que é a protecção de dados pessoais e a utilização de informação colectiva.

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    Claro, estamos a falar de dados anonimizados.

    Portanto, é perfeitamente possível transmitir toda a informação, e quanto mais informação a sociedade tiver, obviamente mais habilitada está para tomar decisões. E convém transmitir toda a informação, e naturalmente defender as componentes mais intimas e privadas das pessoas. Isto também é completamente fácil de fazer. O problema é que não há, mais uma vez, opinião pública devidamente informada para defender este tipo de transparência. E, por outro lado, os grupos económicos que andam metidos em esquemas, têm grandes sociedades de advogados que andam a defender a falta de transparência. Como acontece por exemplo agora, há uma discussão europeia, nem é nacional, sobre o acesso às contas bancárias no sentido de conseguir identificar branqueamento de capitais, fuga ao fisco, etc. Se deixar de haver esse acesso, é evidente que a maior parte da investigação deixa de fazer sentido. Mas obviamente, tem que haver esse acesso e não pode ser com o argumento de que há um casal que se vai divorciar e que o marido não quer que a mulher saiba quanto tem no banco, que se vai permitir que depois haja grandes entidades bancárias a fazer lavagem de dinheiro. Vamos ver qual é a ponderação e o interesse social em cada caso. Mas infelizmente o que acontece é que o tal marido que não quer mostrar a conta à mulher não tem um grande advogado, e o banco X americano e o banco Y francês têm todas as grandes sociedades de advogados que tentam criar mecanismos de combate à transparência. Mas isto inevitavelmente ía acontecer. Antes do 11 de Setembro, não havia acesso às contas bancárias como há hoje, isso foi apenas porque os americanos quiseram combater o terrorismo e ter acesso quer às transferências que têm a ver com o tráfico de armas ou de drogas, quer também com o financiamento das armas, só isso é que permitiu que começasse a haver um maior acesso às contas no Luxemburgo, na Suíça, etc. Inevitavelmente, os grandes consórcios de corrupção internacionais, também iriam tentar combater isso. Portanto, esta legislação que a Europa está a tentar implementar, resulta da acção de lobby muito forte por parte daqueles que não querem que haja transparência, temos de ser claros.

    E acredita que vão conseguir?

    Eu espero que não, espero que as sociedades civis, nomeadamente aquelas com maior dinâmica, a alemã, sueca, se revoltem contra este tipo de situação. Porque seria muito mau que, com o argumento da protecção de dados pessoais íntimos das pessoas, os polícias judiciários dos vários países deixassem de ter acesso às grandes transferências que vêm do Cazaquistão para as Maldivas e depois para Inglaterra e por aí fora.

    Há a percepção de que esse tipo de operações só existe com criptomoedas, mas não. Já existiam antes todo o tipo de operações financeiras ilegais. O Paulo tem falado de várias coisas e fazer estas denúncias também lhe tem trazido alguns dissabores. Como é que está a sua situação, com os processos de que tem sido alvo?

    [risos] Eu tenho dedicado uma parte da minha vida a lutar contra a corrupção, porque entendo que a corrupção é claramente o maior mal dos país. Se Portugal, não é se acabasse a corrupção porque não acabará, mas se começar a baixar os seus níveis de corrupção, começa a aparecer o desenvolvimento, por razões que já disse atrás. Mas para além disso, a sociedade fica muito fresca, ainda por cima Portugal é um país com 10 milhões de pessoas, que têm todo um conjunto de recursos naturais, sociais, humanos, históricos e culturais, que permitia que todos vivêssemos bem. Tirem daqui a corrupção e deixará de haver gastos permanentes em corrupção, e todos esses recursos serão utilizados no desenvolvimento. Portanto, o combate à corrupção é fundamental. É evidente que todos aqueles que vivem da corrupção, não querem que se combata a corrupção. E tentam de forma sistemática calar quem denuncia este tipo de situações. Em Portugal, sempre que alguém denuncia casos de corrupção ,aqueles que são mais poderosos e que têm acesso, nomeadamente, a recursos financeiros vultuosos, recorrem a sociedades de advogados para tentar censurar quem fala.

    Às vezes, recursos públicos…

    Pois, quem utiliza recursos públicos para tentar calar quem os critica, está a fazer exactamente o que se fazia no tempo da ditadura, que é usar recursos públicos para mecanismos de censura. Mas eu, nos últimos anos, de facto tenho tido um conjunto de processos de persecução e de bullying, quase jurídico, e que normalmente tem a ver com tentativas de me fazer calar.

    Para ver se desiste?

    Para ver se me calam. Não tem resultado nem resultará, mas o facto é que eu já tive processos que me foram colocados por difamação, denúncia caluniosa, ofensa à pessoa colectiva, enfim, várias modalidades jurídicas de entidades tão diferentes como o antigo presidente do Tribunal de Contas, Guilherme d’Oliveira Martins, ou o Luís Filipe Menezes, presidente da Câmara de Gaia, ou a Porto Editora, ou o grupo Leya, ou o vice-presidente de Angola, enfim, tem sido uma série deles. Estamos neste momento em 12 processos que eu já tive em tribunal. É claro que 12 processos com sentenças e recursos, debates instrutórios… Estive dezenas de vezes em tribunal nos últimos 12 anos.

    Portanto, 12 processos. Neste momento não se encontram muitos ainda activos?

    Exacto. Até aqui, felizmente, eu tenho ganho os processos todos. O que é bom para mim, naturalmente, tenho menos incómodos pessoais, mas sobretudo acho que ajuda no caminho da liberdade de expressão. Eu, além da luta contra a corrupção, tenho tido uma luta igualmente resistente na defesa da liberdade de expressão, que é fundamental. Porque os factos que eu vou revelando, alguns são públicos e notórios, portanto nem os estou a revelar, outros estão devidamente documentados. E quando eu emito a minha opinião sobre esses factos, faço-o sempre na defesa do interesse público, sempre revoltando-me contra o mau uso de recursos públicos, e faço-o no uso de um direito constitucional, que é a liberdade de expressão. Portanto, se os factos são verdadeiros e estou a exercer um direito, não posso ser penalizado por isso. É claro que isto não é uma luta fácil porque leva muito tempo, também algum dinheiro… E hoje talvez o que mais me incomoda, nem é tanto a minha luta pessoal e dos que têm meios para se defender, mas sim a luta dos que não têm meios para se defender. Porque de facto, uma pessoa que ganhe o salário médio ou baixo em Portugal e se lembre de criticar alguém poderoso na política ou na economia, corre o risco de levar uma queixa e ver-se a braços com um processo que não vai ter meios para suportar, nem no plano económico, nem às vezes psicológico.

    brown wooden chess piece on brown book

    Portanto, estou sempre preocupado comigo, e não me podem levar isso a mal, mas preocupa-me mais aqueles que não têm capacidade para se defender e que sabem que, se numa pequena terra do interior criticarem, no Facebook, o presidente da Câmara, correm o risco de, na autarquia, serem encostados ou até perseguidos. Por isso é que eu acho muito importante que haja uma transposição rápida para a Lei portuguesa, quer da legislação de protecção de denunciantes, que está feito, foi feito também em dezembro do ano passado, e é importante que todos aqueles que detectem situações irregulares percebam que têm mais do que o direito, a obrigação de denunciar, e não podem sofrer qualquer tipo de represálias. E é importante que quem reconheça situações em que há represálias, as denuncie, que é o que tenciono doravante fazer, desde o momento em que a legislação entrou em vigor. Mas, para além da protecção de denunciantes – que são os que têm que estar envolvidos no caso que leva à denúncia, os players – também dos activistas, pessoas como eu e outros, que fazem denuncias publicas. E hoje há uma directiva europeia anti SLAP, que é Stategic Litigation Against Public Participation, e essa directiva deve ser transposta rapidamente para Portugal, para que quem denuncia publicamente um conjunto de situações, seja protegido, nomeadamente por entidades públicas.

    Quanto aos meus processos, para concluir, neste momento, os que estão em curso são duas queixas que me foram colocadas pelo vice-presidente de Angola, Bornito de Sousa, que têm a ver com o facto de ele ter gasto nos vestidos de casamento da filha, 200 mil dólares, e, naturalmente eu indignei-me com isso, fiz bastantes críticas públicas a esse facto… E apresentaram-me uma queixa crime, em que houve uma decisão de não pronúncia, mas ele recorreu – ilegitimamente, do nosso ponto de vista. E um segundo processo que está ainda bem activo, é da viúva do Américo Amorim e da filha, pelo facto de eu ter criticado a especulação imobiliária a que vamos assistir no local onde está neste momento a refinaria de Matosinhos, que acabou de ser fechada, há cerca de um ano. Esses são os que estão no activo. Os restantes, já terão sido concluídos, mas estamos aqui a falar e não sei se, a qualquer momento, não estará a sair do tribunal uma carta para minha casa. Mas, enfim, eu escolhi este caminho, não estou nada arrependido, e sempre escolherei, com os meios que tenho, a capacidade de poder dizer, em Portugal, aquilo que penso.

    Entrevista transcrita por Maria Afonso Peixoto

  • ‘Eu não sou  vítima, e nunca serei vítima’

    ‘Eu não sou  vítima, e nunca serei vítima’

    Polémico, herói para alguns, vilão para muitos, Rui da Fonseca e Castro ficou conhecido, por antonomásia, como o “juiz negacionista” durante a pandemia – para si, uma falsa pandemia –, incentivando, ainda quando exercia como como juiz em Odemira, à desobediência das normas imposta durante a pandemia, considerando-as ilegais e anticonstitucionais. O Conselho Superior da Magistratura abriu-lhe um processo disciplinar que redundou na sua expulsão em Novembro do ano passado, confirmada há um mês pelo Supremo Tribunal de Justiça. Mas ao contrário de se ver como um derrotado, ou vítima, o agora advogado promete não baixar os braços e clama por uma revolução. Uma nova força partidária parece estar na forja.


    Temos aqui alguém que ainda não tinha aceitado falar à comunicação social…

    Eu tive um período de vários meses, um período longo, em que, pelo menos semanalmente, recebia convites para ir à televisão ou a um jornal para dar uma entrevista. E recusei sempre. Recusei porque achava que não lhes deveria dar essa vantagem, na altura. É óbvio que eles iriam retirar vantagens disso, nem que fosse em termos de audiência. E também serviu como mensagem: eu não preciso do jornalismo, não preciso dos jornalistas. E, portanto, tenho liberdade para decidir se aceito ou não. Essa é a verdadeira liberdade, quando não se precisa. E decidi aceitar o convite do PÁGINA UM. Conheço o trabalho que tem sido feito. Parece-me que tem sido feito um trabalho com independência, e isso para mim é importante. E foi por isso que eu aceitei.

    ENTREVISTA INTEGRAL A RUI DA FONSECA E CASTRO

    Se nós dissermos “Rui da Fonseca e Castro”, se calhar muita gente não vai associar o nome a si, mas se dissermos o “juiz negacionista”, facilmente conseguem identificar o personagem. É de facto um juiz negacionista?

    O negacionismo serve para silenciar, é um mecanismo de silenciamento da discussão, da opinião, da liberdade de expressão. É um obstáculo à liberdade de expressão. A expressão negacionismo foi adoptada directamente a partir do negacionismo do Holocausto, que é um termo extremamente pejorativo, com uma carga negativa muito forte. E, portanto, foi utilizado no contexto da “falsa pandemia”, a partir de 2020, para encerrar a discussão sobre o tema e permitir um pensamento único, uma ideia única que nos era imposta pelo regime, através de todos os seus tentáculos. Nessa medida, eu não sou um negacionista, mas nego que tenha havido ou que haja uma pandemia. Isso eu nego.

    Em que medida que não existiu pandemia? Isto porque o país e o Mundo estiveram parados, as pessoas estiveram infectadas e doentes. Como pode haver uma negação daquilo que foi um facto?

    Como pessoa do Direito, preciso de provas. Se estivéssemos numa sala de audiências em tribunal, precisávamos de provar, por uma amostra da população dita infectada, que cada uma dessas pessoas tinha estado infectada com um vírus novo, que tinha provocado uma doença nova. Aí é que reside a questão. Não há prova em Portugal da existência de um vírus novo. Até pode haver prova, em termos mundiais, da existência de um vírus novo, porque houve três isolamentos virais no início de 2020, com três sequências diferentes que, aparentemente, eram novas.

    Entretanto, dias antes disso, já havia um protocolo de teste RT-PCR concebido pelo Christian Drosten, que foi o protocolo comercializado a partir dessa altura. Antes de ele conhecer os isolamentos, as sequências dos tais novos vírus, em que dois eram parecidos um com o outro e o terceiro era completamente diferente, salvo erro. Eu não sou médico, mas é o que ainda me lembro deste assunto. Portanto, não nego que possa haver um vírus novo, mas estamos a falar de uma pandemia em Portugal.

    Os testes RT-PCR estavam a ser feitos com base no protocolo Christian Drosten, para criar falsos positivos, criar número, para criar uma pandemia. E o teste RT-PCR não é um meio de diagnóstico. Assim, não podem dizer que uma pessoa que tenha febre e que tenha testado positivo, esteja infectada com um vírus novo que provoca uma doença nova. Isso não é prova, nem científica nem numa audiência de julgamento independente, séria. Porque isto nunca foi levado a julgamento.

    No fundo, estamos aqui a falar de uma manobra concertada, de uma teoria da conspiração? Há uma conspiração que fez com que vivêssemos uma “falsa pandemia”? É isto que podemos concluir?

    Há, deliberadamente, uma construção de uma falsa pandemia. A criação de uma ficção de pandemia, isso existiu. Se nós formos analisar a mortalidade em 2020, vemos que, até Março, estava perfeitamente dentro dos padrões normais para todos os anos naquela altura. No dia 16 de Março de 2020, deu-se a primeira suspensão do serviço assistencial do SNS. As pessoas deixaram de poder ir ao hospital tratar-se. Ao mesmo tempo, eram “inundadas”, porque a Direcção-Geral da Saúde (DGS) tornou-se omnipresente, com uma campanha de medo.

    Enfim. Foi a partir de Março de 2020 que tivemos o primeiro pico de mortalidade em Portugal, quando as pessoas deixaram de poder ir ao hospital. E essas pessoas, muitas delas tiveram gripe, outras tiveram pneumonia… A pneumonia em Portugal, na esmagadora maioria dos casos, é bacteriana. Mudaram-se os protocolos hospitalares, as pessoas passaram a ser tratadas com remdesivir, quando muitas das vezes as pneumonias eram bacterianas. O remdesivir é um antiviral que tem reações adversas gravíssimas, em termos de insuficiência renal e hepática. Se fizermos uma radiografia do que aconteceu nos hospitais do SNS durante 2020, vamos ver que muita gente, a partir do quinto dia de remdesivir, começou a ter problemas renais e hepáticos. Enfim, interromperam-se tratamentos oncológicos, o que provocou mortes ao longo do ano com picos no final do ano.

    Esta suspensão de Março durou dois ou três meses, e em Novembro suspendeu-se novamente a prestação assistencial do SNS. E, portanto, ao mesmo tempo em que se criavam os casos com os testes RT-PCR, as pessoas eram incentivadas a ficar em casa 15 dias, isto é um dos maiores sinais de uma sociedade doente. Quando a população se deixa subornar pelo Estado, pelo regime… Eu não chamo Estado, chamo de regime…

    Já vamos a essa ideia que tem da governação do nosso país, mas permita-me uma pergunta: a sua ideia da pandemia já vem de trás, surge logo no início ou depois do famoso confronto, que aliás é a sua imagem, com a polícia?

    O conhecimento que eu tenho da matéria que acabei de expor, que nem sequer é matéria jurídica na sua maioria – mas os tribunais têm que apreciar matéria não-jurídica, é o normal… Não tenho problemas nenhuns em relação a isso, tenho que me socorrer de quem sabe, dos técnicos da área da Medicina, da Ciência, da Biologia, da Genética Molecular. Mas o que eu fui aprendendo, e o que eu sei agora, foi um processo de aprendizagem. Durante estes dois anos, havia coisas que eu tinha dúvidas, que tinha que perceber como é que estavam a acontecer. Portanto, o que eu sei agora não surgiu instantaneamente. Houve um período, no início da “falsa pandemia”, em que eu nem sequer vivia em Portugal, vivia na Alemanha, em Nuremberga. E nessa altura, eu acreditava que havia uma pandemia, e desinfectava as compras do supermercado. A partir de Maio, Junho, mais ou menos, eu comecei a observar no dia-a-dia, algumas coisas que me começaram a fazer duvidar. Eu via que as pessoas não morriam, essa foi a primeira. Para haver uma pandemia mortal, que era aquilo que se proclamava, as pessoas teriam de morrer.

    Portanto, este interesse surgiu inicialmente  numa perspectiva puramente jurídica, como uma preocupação pelo que eu estava a ver, um recuo civilizacional em relação a direitos, liberdades e garantias. Em Fevereiro de 2020, quando eu ainda acreditava que havia uma pandemia, e já se falava em quarentenas obrigatórias, eu gravei um vídeo a dizer, cuidado com esta ideia porque isto é para nos subtrair direitos. Em Portugal, não é possível ficar-se em quarentena obrigatória sem uma decisão de um tribunal. E mesmo para haver uma decisão de um tribunal nesse sentido, o artigo 27º da Constituição tem que ser alterado. Foi a primeira vez que eu falei do Habeas Corpus. Se houver algum médico ou alguma autoridade que imponha a uma pessoa ficar em prisão domiciliária por suspeita de estar doente, essa pessoa tem o direito a requerer um habeas corpus e a ser-lhe devolvida a liberdade. Portanto, esse interesse surgiu logo em Fevereiro e só muito recentemente é que eu descobri que tinha esse vídeo, porque entretanto esqueci-me completamente dele. Mas foi interessante perceber que nem eu próprio já me lembrava bem da minha timeline. Bom, e depois o interesse foi aumentando, até mais ou menos ao final de 2020, o meu discurso foi puramente jurídico. A partir daí, começou a mudar para um discurso misto, político e jurídico. Foi um interesse que foi sofrendo algumas metamorfoses, à medida que uma pessoa progride.

    Mas voltemos então a esse momento, que viralizou e deu origem ao juiz negacionista. O que é que afinal aconteceu? Normalmente temos acesso a poucos minutos daquele momento, creio que a imagem que fica é clara. Mas o que é que acontece imediatamente antes, que dá origem àquele momento de tensão?

    O que aconteceu antes daquilo foi o dia 16 de Abril de 2021, em que eu já tinha um processo disciplinar e fui ouvido pela primeira vez pelo instrutor do processo, o senhor Leitão, desembargador do Tribunal da Relação do Porto. E nessa altura, as pessoas estavam também a manifestar-se pacificamente, e sofreram uma carga policial porque não estavam a usar máscara, o pretexto foi a máscara, é um pretexto…

    Houve então uma carga policial nesse momento?

    Sim, houve uma carga policial no dia 16 de Abril de 2021, por parte daquilo que nós normalmente designamos como polícia de intervenção. Foram detidas 10 pessoas, outras foram para o hospital. Pelo menos uma foi para o hospital com uma lesão grave. Isso foi o que aconteceu antes, na verdade. No dia do meu confronto com a polícia – gravado pelo meio de comunicação social, ou propaganda –, eu sabia o que tinha acontecido antes – como é óbvio, estava lá. E vi, quando cheguei lá, o aparato policial, que era muito maior do que o do dia 16 de Abril. Apesar de estarem menos pessoas, havia muito mais polícia, e ainda mais preparados, penso que alguns até com caçadeiras e com projécteis não-letais, em princípio não-letais. E nesse momento eu fiz logo uma analogia.

    Era evidente que estavam de prontidão, preparados para actuar. E, quando eu cheguei ao local, à rua do Conselho Superior da Magistratura, recebi a informação de que eles tinham ordens para fazerem exactamente o mesmo que tinham feito antes. E eu dirigi-me primeiro a um agente, que não era da força de intervenção, tive uma primeira discussão com ele que não ficou gravada. Depois decidi dirigir-me à porta do Conselho onde se encontrava, aparentemente, um primeiro grupo de polícias do corpo de intervenção, perguntei quem é que estava no comando. Dirigi-me a ele, perguntei o que é que eles estavam ali a fazer, ele disse que estavam a cumprir ordens, depois foi a conversa que se desenrolou. Eu sabia que eles estavam preparados para fazer o mesmo e, naquele momento, fiz o que tinha a fazer para proteger aquelas pessoas e impedir que mal eu pusesse os pés dentro do CSM, aquelas pessoas sofressem violência. Eu não podia arriscar, de maneira nenhuma…

    Já me tinha arrependido anteriormente, de estar a ouvir os gritos no dia 16 de Abril e não ter interrompido e não ter descido. Foi uma coisa em que eu fiz um auto-escrutínio, e penalizei-me muito por não ter ido lá abaixo. Portanto, naquele dia eu não ia admitir que aquilo acontecesse [de novo] e fiz o que tinha a fazer. Faria o mesmo actualmente, quer fosse ou não fosse juiz. Portanto, foi isso. Fiz o que tinha a fazer. Às vezes tem que se fazer aquilo que tem que se fazer, sem pensar muito.

    Nem mudaria o tom, nem mudaria as palavras?

    Não. Não. Esse tom… aquelas pessoas que estão ali de prontidão, que têm um treino específico para aquilo que iam fazer, elas actuam sob voz de comando. Elas não actuam sob argumentos de razão, actuam sob vozes de comando. E foi isso que eles receberam naquele momento, uma voz de comando. Eu teria feito a mesma coisa. É óbvio que alguém sai sacrificado, eu saí sacrificado, o polícia que estava à minha frente saiu sacrificado. Porque ele, naquele momento, provavelmente sentiu-se humilhado. Poderia não ter-se sentido humilhado, poderia não ter aceitado aquele papel.

    Mas corre-se o risco de passar uma ideia de que se pode confrontar um polícia. Neste caso, só o fez porque sendo juiz, efetivamente, está num patamar superior e por isso pode dar ordens?

    Não, não. Isso foi uma coisa que eu tive oportunidade de explicar na minha última audiência pública no CSM. A nossa superioridade nunca pode advir de um cargo ou de uma posição, mas sim do nosso código de valores, do nosso código ético. E com base nisso é que nós podemos dizer… Quer dizer, dizer-se que se é superior ou inferior, é sempre um problema para quem o diz. Mas a nossa posição tem sempre de partir de um código ético, um código de valores. E naquele momento, o meu código de valores era superior ao do daqueles polícias. Aqueles polícias estavam a aceitar um papel que lhes foi dado por um regime profundamente corrupto, que enriquece descaradamente à custa da miséria de uma população. Era isso que eles estavam a fazer. Para bater e deter pessoas pacíficas, era esse o papel que eles estavam ali a receber e que estavam prestes a desempenhar. E, portanto, o meu papel era defender aquelas pessoas. É óbvio que se uma pessoa normal fizer aquilo, arrisca-se mais do que uma pessoa que tiver formalmente uma posição. Mas aquilo tem que ser feito, quer uma pessoa tenha ou não uma posição.

    E agora, além do seu advogado, quem é que o defende? Porque no fundo acabou por ficar isolado, o CSM tomou posição…

    Eu não preciso de ninguém que me defenda. Eu não preciso da defesa de ninguém. Se há algo que eu não sou é vítima, e nunca serei vítima. E é isso que do outro lado ainda não perceberam. Eu não sou vítima; continuarei a fazer o que tenho feito até agora.

    E que lado é esse? Qual é esse outro lado? São os outros juízes? O Governo? Os homens da conspiração

    O outro lado não é o Governo. O outro lado é o regime. E por regime incluo também os partidos com assento na Assembleia da República, e outras entidades… O regime é algo mais lato. É um regime que se instalou em Portugal, formado por uma elite que eu chamo de parasitária, que ocupa o território português, é um inimigo que ocupa o território português. É assim que eu os trato. Eu não lhes devo qualquer respeito, trato-os como aquilo que eles são: inimigos da população de Portugal. Portanto, isso é o outro lado, que se apoderou de todas as instituições do Estado e da sociedade. Na sua área [o jornalismo] sabe que quem distribui a maioria das notícias é a Lusa, que é detida a 50% pelo Estado. Depois ainda há os contratos de publicidade. Não se tem uma comunicação social. Por eu achar que vocês [PÁGINA UM] são independentes, não se pode tomar a nuvem por Juno. E não existindo uma comunicação social, também não existe democracia. Democracia em Portugal, não existe. Portanto, temos um regime formado por uma elite parasitária.

    Pegando na ideia que a nossa verdade e a nossa posição ética e moral nos pode conferir poder para dizer certas coisas, não corremos o risco de estar a incentivar aqueles que estão descontentes, de repente se juntarem para uma revolução contra tudo isto que está instalado?

    Esse código ético dá-nos sobretudo liberdade, e a liberdade dá-nos poder. Não é directamente ao poder, primeiro há a liberdade. Quando nós não temos medo e seguimos um código de verdade e de honestidade… e que não é um dado adquirido, toda a gente tem que saber autojulgar-se porque todos cometemos erros, mas isso não quer dizer que não tentemos diariamente seguir esse código. Ninguém é perfeito, e muito menos eu. Isso que me diz de poder haver, um dia, um grupo de pessoas que possa decidir, que quem ocupa o poder não representa os interesses de Portugal e da população portuguesa, e por isso retirá-los…

    Mas eles foram eleitos democraticamente…

    Não foram eleitos democraticamente. Não há democracia em Portugal.

    Para percebermos melhor, como é que não há se a pessoa se desloca à urna e põe lá o seu voto?

    A democracia não é meter um papel numa caixa. A democracia não é isso. Primeiro, tem de haver uma defesa dos interesses de Portugal. Nós vemos que os nossos políticos são pagos, são financiados, muitas vezes, por entidades internacionais, através de várias formas. E eles representam essas entidades. Hoje em dia representam sobretudo um movimento político que é o do desenvolvimento sustentável. É isso que todos representam, e isso não tem nada a ver com os interesses de Portugal. Desde a extrema-esquerda até à extrema-direita no Parlamento, estão ao serviço dos mesmos, portanto não há democracia. Sai um, entra outro e vai fazer exactamente o mesmo. E esse mesmo nunca será a defesa da população nem dos interesses de Portugal. Nós somos uma nação por alguma razão, as nações têm uma importância. Só existe uma nação se existir um núcleo social, que é a família, que seja forte e que se saiba proteger. Que os membros da família se saibam proteger uns aos outros. Nós vimos na pandemia, que os membros de cada família não se sabem proteger uns aos outros, atiraram os filhos para injecções com substâncias farmacêuticas experimentais… Está, e muito, erodido, esses valores estão erodidos.

    Foi por ter esses valores e essa visão do mundo que decidiu ser juiz?

    Não, eu decidi ser juiz há muito tempo, naquela altura ainda não tinha isto tão desenvolvido. Quer dizer, tive antes, num período em que era mais novo.

    Mas acreditava na justiça, acreditava sendo juiz, e sendo justo, podia aplicar essa justiça?

    Os juízes, não sei se as pessoas sabem, e isto é um problema que nós temos também em Portugal… Os juízes e os magistrados do Ministério Público (MP) começam na mesma turma, por assim dizer, no mesmo curso no Centro de Estudos Judiciais, que antigamente, até certa altura, eram 150 candidatos por ano, que eram selecionados em provas. No fim de dois anos de se ser auditor de justiça, tem-se uma classificação, e é em função dessa classificação que se escolhe livremente se se quer ser juiz ou magistrado do Ministério Público (MP). A maioria dos auditores de justiça querem ser juízes. A maioria dos magistrados dos MP são pessoas que não conseguiram ser juízes. Alguns estão lá por vocação, mas a maioria dos magistrados são juízes frustrados. E ao serem juízes frustrados e terem exactamente as suas instalações no mesmo edifício que os juízes acham, através de relações de amizade que depois desenvolvem, que conseguem influenciar as decisões. Isso acontece muito, juízes serem influenciados por amizade com os procuradores da República em relação às decisões que tomam. E o que eu lhe posso dizer é que muitos procuradores cortaram relações comigo durante a minha carreira, que nem sequer foi muito extensa, embora não seja tão curta quanto as pessoas dizem…

    Quantos anos?

    Eu entrei para o CEJ em 2003, tomei posse como juiz de direito em 2005, estive a exercer judicatura em diversos tribunais, inclusivamente aqui no Seixal, até 2011. Em 2011 decidi ir para o Brasil, por relações familiares, e então recomecei na advocacia. Portanto, são sensivelmente seis anos de exercício judicatura.

    Tocou num ponto essencial na sociedade: uma pessoa quando é frustrada a desempenhar seja que função for, principalmente quando tem poder nas mãos, torna-se perigoso. Qual é o risco de agora, depois de ter sido expulso da “Ordem dos Juízes”, ser um ex-juiz frustrado?

    [pausa] Só para lhe responder à pergunta anterior, eu espero que um dia haja esse grupo de pessoas que faça isso, eu espero. Terá de ser um movimento orgânico da população, para fazer isso que referiu, mas eu desejo que isso aconteça. Desejo vê-los retirados de lá, e desejo até muito pior. É bom que as coisas fiquem claras. Mas tem de ser um movimento orgânico. Tem de ser a população a decidir.

    Agora, respondendo aqui à sua pergunta. Uma das coisas que eu li, eu não leio muito sobre mim… Durante estes dois anos, talvez tenha lido uma ou duas coisas sobre mim. Mas uma das coisas que eu li sobre mim foi que houve um erro de selecção no CEJ; que eu consegui de alguma forma contornar os mecanismos de selecção do CEJ. Quem é que o CEJ selecciona? Selecciona pessoas que vêm na posição sobretudo do juiz uma ascensão social, um estatuto social, e também remuneratório. A maioria dos juízes vieram da classe média/baixa, portanto começar a ganhar três mil euros, ou coisa que o valha, acaba por ser um estatuto remuneratório, embora seja ridículo para a responsabilidade de quem está a exercer aquela função. E os pais daqueles candidatos investiram muito neles, quer na faculdade, quer depois nos cursos de preparação para se entrar no CEJ. Os concursos tinham geralmente mais de dois mil candidatos.

    Mas aquelas pessoas, quando conquistam aquilo, ficam agarradas, porque o mecanismo de selecção as escolhe. E, quando disseram que o mecanismo de selecção tinha falhado comigo, de certa forma foi uma das poucas coisas em que a comunicação social acertou. Não porque eu tenha tentado enganar o sistema – não tentei – mas porque eu passado alguns anos estava a sair de livre vontade. Portanto, estava a demonstrar que eu não precisava. Fiz a minha vida como advogado no Brasil a partir do zero, não tinha lá conhecimentos. Portanto, em termos financeiros também demonstrei que não precisava. Quando saí, comecei a escrever livros, tenho vários livros publicados. Vou publicar agora, muito em breve, o próximo. E portanto, eu não necessito da posição, nem como estatuto social nem remuneratório ou económico. Sou livre.

    Depreendo que não há frustração pela decisão…

    Eu não desprezo aquela posição [juiz]. Sempre tive orgulho em ter conquistado aquela posição, ainda que durante um largo período não a estivesse a exercer. Tinha orgulho e gostava do meu trabalho. Considerava-me, no mínimo, honesto a desempenhá-lo. E portanto, não desprezo a função, que é uma das principais de um Estado de Direito democrático. Aliás, é um dos poderes, o poder judicial. Mas fui livre para estar ali, e também para sair quando quis.

    Costuma-se dizer que se tivermos três advogados, temos três opiniões, mas com os juízes não devia ser tanto assim. Porque é que agora o Tribunal Constitucional vem dizer que diversas decisões que se tomaram eram contrárias à lei, nomeadamente questões ligadas à pandemia?

    Juridicamente, não há outra decisão a tomar. Embora se tenha inventado – penso que foi o Supremo Tribunal de Justiça que inventou alguns princípios da harmonização dos procedimentos. E defenderam que mesmo que Portugal tivesse um ordenamento jurídico que não fosse aberto às medidas, por uma questão de harmonização de procedimentos no nosso contexto europeu, tinha que se derrogar as regras. Isso é uma decisão política disfarçada de decisão jurídica, porque a decisão jurídica só poderia ter sido esta. E esta decisão jurídica, eu espero que não tenha sido tomada agora para justificar uma alteração da Constituição. O tempo dirá se foi para isso ou não.

    Nós estamos aqui a conversar de forma calma, pacífica, não sei se é da Natureza [risos]… De facto, o tema é bastante delicado. Mas quando nós olhamos para os temas que vai difundido nas redes sociais, nota-se uma pessoa mais impulsiva. Recorre a palavras duras, fortes. É uma forma de defesa, ou é uma forma de mostrar aquilo em que acredita?

    Não é nem uma coisa nem outra. É por razões psicológicas, nós devemos mostrar à população que não devemos respeitá-los. Eles não merecem o nosso respeito. Quando a população lhes perder o respeito, então estamos a começar a mudar alguma coisa.

    Por vezes quando há grandes discussões, há um argumento muito comum que é dizer: “bom, tinhas toda a razão, até àquele momento”. Ou seja, depois de teres feito aquilo, perdeste toda a razão. Não sente que tenha perdido razão?

    Não, isso são os padrões tradicionais da discussão, que eu também pretendo mudar neste país.

    Há uma vontade de mudar que vem de fundo?

    Sim, sim.

    Podemos subentender aqui o surgimento de um movimento cívico, e eventualmente político, no futuro?

    Pode dizer-se que já existe um movimento cívico e político, porque a Habeas Corpus tem um discurso político ao mesmo tempo que tem uma acção jurídica, não apenas na protecção dos seus membros… Nós conseguimos agora, até foi matéria do PÁGINA UM, o recuo do Corpo Nacional de Escutas em relação ao certificado digital. E foi uma acção que tivemos insistentemente, e eles recuaram. Portanto, nós temos esse papel de estreitar os laços através da solidariedade, que se faz de várias formas e uma delas é através do apoio jurídico aos nossos membros. Mas também temos um discurso político, que é agressivo e vai continuar a ser. E se calhar ainda se vai tornar cada vez mais agressivo.

    Até onde é que isto pode ir?

    Isso é a população que tem de decidir. Nós vamos continuar a fazer o que temos vindo a fazer. Nós só estamos a dar à população o caminho, mas depois é a população que tem que decidir o que fazer.

    As palavras que diz, e as expressões às quais tem recorrido, parece-me que, por vezes, facilmente alguém poderia acusá-lo das mais variadíssimas formas. Pergunto: isso está a acontecer ou porque é bastante cuidadoso e conhece a lei?

    Bom, eu já tenho dirigido os meus discursos a pessoas muito específicas. Não vou dizer aqui, mas toda a gente sabe. Imputo-lhes factos e utilizo designações em relação a essas pessoas, que em geral, em tese, poderiam consubstanciar crimes de difamação. No caso do Presidente da República (PR), um crime contra a sua honra. O facto é que toda a gente sabe onde eu estou, eu não me escondo. Dou a minha morada verdadeira nos requerimentos que apresento em juízo. Numa manifestação, até disse ao Ministério Público a propósito de um crime contra a honra do PR, disse num vídeo que no próximo dia tal ia estar num determinado local, se me quisessem encontrar, uma vez que eu nunca fui notificado. Disseram que tinham aberto um inquérito criminal, eu nunca fui notificado para ser constituído arguido. O que é facto é que eu não tenho conhecimento de quaisquer processos criminais abertos contra mim. E não quer dizer que não haja, mas não tenho. Não sei porquê, mas não tenho. Poderá especular-se, mas será apenas especulação. Em relação ao resto, eu desejo, um dia, desejo mesmo, que a população se revolte, e derrube este regime. Ao desejar isto, não estou a incentivar ninguém, estou a dizer que desejo isso.

    Mas se são todos iguais, saem estes e vêm outros…

    Exactamente, por isso é que eu também já disse, várias vezes, que não vale a pena fazer isso se nós não criarmos uma massa crítica que tenha um código ético. Sem isso não vale a pena haver golpes de Estado, haver isto ou aquilo.

    Mas isso educa-se. Ou seja, eu acredito que por exemplo se pegarmos nas crianças e se lhes conferirmos as ferramentas certas, se as habituarmos a fazerem perguntas mais do que a darem respostas, conseguimos ter uma sociedade diferente. Mas se iniciássemos esse processo hoje, só daqui a 20 anos é que teríamos resultados…

    É o que é, nós não podemos mudar uma sociedade com um estalar de dedos. Pode até ser noutras gerações depois de nós. No meu caso, pode ser depois de eu desaparecer. Não tenho pressa. Trocando aqueles que agora lá estão por outros, que seriam uma amostra da nossa sociedade actual, iria dar exactamente ao mesmo, se não fosse pior. Portanto, nós primeiro temos que revitalizar moralmente a nossa sociedade, formar uma massa crítica que siga um código de valores. E depois a é população que tem que escolher, porque movimentos revolucionários têm de ser genuínos e orgânicos. Não pode haver uma organização por trás.

    Mas se um líder, ou se alguém que comece a inspirar um grupo de gente a tomar certas posições, rapidamente pode ser aniquilado. Acredita que um grupo de pessoas consegue fazer parar o mundo a propósito de uma pandemia, não acredita que mais cedo ou mais tarde o vão por completamente de parte, silenciar ou aniquilar?

    Pode acontecer, isso é um risco que eu corro. Agora já não tanto, mas houve um período em que quase todas as semanas diziam que vinha alguém para me matar. Uma pessoa também se vai habituando a isso. Enfim, eu também vivi no Brasil, e assisti a tiroteios à minha frente, a 50 e 70 metros à minha frente. Era novo para mim, e tive que me habituar àquilo. Portanto uma pessoa vai-se habituando a um escalar da tensão e do risco… Enfim, riscos, eu corro, como é óbvio, mas assumo-os. Sem ser vítima.

    Entrevista transcrita por Maria Afonso Peixoto e editada por Pedro Almeida Vieira

  • ‘Somos um povo generoso, mas não somos solidários’

    ‘Somos um povo generoso, mas não somos solidários’

    Aos 65 anos, a vida de Eugénio Fonseca confunde-se com os valores cristãos e sobretudo com a Cáritas Portuguesa, a que presidiu desde 1999 até ao ano passado. Conhece os meandros da pobreza como ninguém, e nesta conversa intimista com o PÁGINA revela o que lhe foi passando na alma e o que amadureceu na mente.


    Mais de metade da sua vida foi dedicada aos pobres. Podemos dizer que a sua vida se resume à solidariedade?

    Sobretudo a partir dos meus 20 anos, eu diria que a minha vida passou a ser pautada por uma consciência mais correcta do compromisso que assumi de seguir uma pessoa, que se chama Jesus Cristo. E essa decisão tem consequências, naquilo que podemos chamar a dimensão social da fé para dar credibilidade àquilo em que acreditamos. E segundo as orientações da pessoa a quem sigo, não há volta a dar. Temos de nos alinhar com as questões que norteiam os valores do reino que ele anunciou. A verdade, a justiça, a caridade, a fraternidade, de uma forma particular, prestando uma atenção mais direcionada para aqueles que, entre os meus irmãos, são os mais frágeis.

    O Cristianismo passou a assumir um papel central no apoio social. Tendo a Igreja Católica tantos fiéis, não seria de esperar que tivessem conseguido erradicar a pobreza e acabar com as desigualdades sociais?

    Todos sabemos que ao longo da História, o percurso da Igreja nem sempre foi em conformidade com a matriz identitária. Nós, cristãos, acreditamos que, em Jesus, Deus se encarnou para viver a nossa Humanidade. O que nos pediu foi que o seguíssemos, anunciando um reino novo. E a Igreja, ao longo da História, tem-se preocupado mais com a estrutura que surgiu após a ressurreição de Jesus, do que propriamente com o reino que ele anunciou.

    Eugénio Fonseca, esta semana em Lisboa.

    Será então por isso que muitos se aproveitam da pobreza para dela viverem profissionalmente? Ou seja, dando emprego aos membros da estrutura – criando até mais estruturas – tornando-a dependente dos fins sociais?

    Eu não posso pôr em causa esses aspectos, não tenho condições para o fazer, porque isso estaria a entrar no domínio da consciência das próprias pessoas. Mas no serviço aos pobres nunca houve esta harmonia, e foi sempre com metodologias que eram mesmo contraditórias àquilo que Jesus pediu. No Cristianismo, a pessoa é considerada quase como um ser divino: fomos criados à imagem e semelhança de Deus. E nós nunca tratámos a pessoa como tal. E o que se vem percebendo ao longo da História, é que há sempre um conflito que a Igreja tem dificuldade em gerir.

    É irónico pensar que se os pobres atuais desaparecessem do Mundo, aqueles que hoje vivem de fazer caridade rapidamente se tornariam igualmente pobres, sem emprego. Qual é o risco de uma instituição, que se deveria preocupar mais com o espiritual, se transformar numa IPSS universal que passa a assumir como prioridade a gestão de velhinhos, pobres e património?

    Eu não estou a dizer que as instituições sociais não devam existir. Devia haver uma maior planificação para respondermos às necessidades concretas e criarmos uma partilha de bens que fizesse com que todos pudessem ter acesso a melhores condições de vida. Há o risco da tecnocratização, sim. Passámos de uma fase de amadorismo na prática social do compromisso social, para o excesso da norma, e daquilo que os técnicos, porque foram formados assim, trazem para as instituições. À direcção de uma instituição devia competir assegurar a identidade cristã, que não basta diferenciar-se das outras porque têm um crucifixo ou a imagem de um patrono num sítio qualquer, bem adornado. Tem havido algumas tentativas, mas a preocupação pela sustentabilidade financeira dessas instituições também é preciso ter, porque há salários para pagar. É pena que não sejam salários mais justos, embora saiba que as instituições estão a pagar aquilo que legalmente têm de pagar. Mas nós devíamos seguir os princípios daquilo que é o pensamento social cristão, para os validarmos. As nossas instituições sociais poderiam, como as nossas escolas, serem laboratórios, dentro da possibilidade, do que se chama doutrina social da Igreja.

    Na estrutura da Igreja o Eugénio Fonseca é um leigo. Alguma vez se sentiu inferiorizado por não fazer parte do grupo dos clérigos?

    A mim, a designação como tal, não me aflige. As atitudes que depois estão subjacentes a elas é que já me parecem um pouco mais complicadas. Por isso, sim, muitas vezes. Eu digo que estive 40 anos sempre em organizações marcadas pela hierarquia, e eu tinha consciência disso e aceitava isso, e fui sempre fiel a quem era designado para estar no patamar superior àquele que eu desempenhava, embora reconhecesse que às vezes a narrativa que utilizávamos para determinados problemas, não facilitava depois o exercício da missão. Temos um clero que se fixa muito nas questões teológicas e da gestão do sagrado e pouco inseridos no mundo. Isso criou-me algumas dificuldades. Era eu estar no mundo e, com as minhas limitações, tentar fazer passar a mensagem desse reino a que eu pertenço e quero estar inserido e lutar por ele, através de uma instituição que é a Igreja, e que muitas vezes não era compreendido no mundo. E havia algumas tensões e até incompreensões perante aquilo que eu via que a Igreja não estava a acompanhar, para o bem e para o mal, em termos da evolução da dimensão social na sociedade portuguesa.

    Podemos subentender que tomou decisões com as quais não concordava, mas exigidas pela hierarquia da Igreja?

    Algumas vezes tive que o fazer, mas nunca contra a minha consciência. Nunca fiz nada contra a minha consciência, mas algumas vezes fiz coisas que sabia que não eram as metodologias mais acertadas, e recuei naquilo que eu achava que se deveria avançar. Dou-lhe um exemplo. Eu nunca percebi porque é que na Igreja em Portugal, nunca se tivesse posto em prática um modo próprio, o Intimae Ecclesiae Natura, que é uma determinação do Papa. Bento XVI teve necessidade de a criar para explicitar melhor as funções do governo do bispo na área sócio-caritativa. Penso, ainda está por concretizar. As justificações eram que aquele modelo não era aplicável à Igreja e a Portugal. Aliás, a figura do clérigo tem de ser humanizada. Porque trata-se de uma missão que está a cumprir, como eu cumpro a minha missão como leigo; e a expressão “leigo” na língua portuguesa também pode ter outra conotação, mas também não é por aí que se vai criar o problema. Mas deve haver esta harmonização. Veja, os leigos estão sempre, até agora, na vida da Igreja, em concelhos consultivos. As decisões são tomadas pela outra casta que tem, por razões sacramentais, poderes de ordem divina superiores.

    Mas, se a Igreja acredita que é o Espírito Divino que a governa, não será que o sistema actual é o modelo que Ele quer?

    Em muitas das minhas atitudes fecho a porta ao Espírito Santo, por minha acomodação. E aí é que está; penso que é a grande conversão que temos que fazer.

    Esteve ligado à Cáritas em Portugal durante muitos anos, deixou um legado. Como vê a Cáritas? O espelho do amor de Deus?

    Não é. Não quero ser demagógico a dizer que todos somos capazes de amar até à plenitude que o amor exige. Porque temos, dentro de nós, ainda muitas situações que estão em permanente conversão. Não digo que o amor pleno se consiga concretizar com os condicionalismos que advêm da própria circunstância em que vivemos. Há sempre limites que nos condicionam a ter esse sentido do Amor. Amar é dar a vida. Não quer dizer que dar a vida seja só no acto em que alguém é alvejado ou crucificado. Nós damos a vida ao longo dos anos, quando vamos vivendo, e vamos oferecendo essa vida sem perdermos nada. Sobretudo, ficando intimamente mais preenchidos. E como tal, a Cáritas também é uma instituição. Eu sinceramente pensei a Cáritas no seguimento do meu antecessor, que foi um homem ímpar, como cristão e como cidadão. E que parte deste mundo de forma anónima e esquecida. Acho que a sociedade portuguesa e a Igreja terão um dia que lhe fazer o reconhecimento que ele merece, refiro-me ao Doutor Acácio Catarino. A ideia que ele dava da Cáritas era aquilo que eu gostava que a Cáritas fosse.

    Normalmente quem lidera associações e gere muito dinheiro, facilmente vê o seu bom nome e a sua honestidade serem postos em causa. Estou a lembrar-me dos fundos para as vítimas do incêndio de Pedrógão Grande em 2017…

    A Cáritas foi arrastada por aquele processo, que está meio esclarecido. Fizemos uma auditoria, quando eu ainda lá estava, sobre a utilização dos dinheiros, que gerou essa polémica. Não quer dizer que a gestão seja sempre a mais adequada, mas que seja uma gestão dolosa, isso nunca tive, felizmente. Pelo contrário, encontrei sempre gente muito dedicada. O problema é que a Cáritas mantinha, e espero que evolua, uma matriz muito assistencialista. Houve vários programas que tentámos implementar, que não tinham sucesso. Em determinada altura, a Cáritas passou a ter uma maior capacitação de intervenção, a partir da acção dos técnicos, mas as direcções deviam ter também igual capacitação, como eu disse há pouco, no plano das ciências sociais e do pensamento social cristão.

    O poder político, independentemente das cores, reconheceu o seu trabalho. Como é que conseguiu ganhar esse equilíbrio?

    Há sempre o risco de quem está a governar querer que os dirigentes de instituições – sejam elas do âmbito social, cultural ou educativo – estejam em sintonia consigo. E os que estão na oposição, querem que façamos com eles oposição àqueles que estão no poder. Eu tive sempre uma máxima: não tenho filiação partidária nenhuma, nem ideologia nenhuma, porque considero que o compromisso que assumi não é ideológico, é um compromisso de um sentido para a vida, fundamentado em princípios não apenas alicerçados em teorias. Se não forem materializados perdem todo o significado. Portanto, nunca me deixei condicionar porque alguém me prometia alguma coisa em troca de algo.

    Foi por isso que nunca aceitou um lugar como político? Ou nunca foi convidado?

    Não, não aceitei nunca. Várias vezes isso aconteceu.

    Sabemos que é um percurso comum, muitos começam por servir os pobres e depois acabam por servir o Governo…

    Por vezes, há conflitos que podiam ser evitados. Eu sei que uma das acusações que alguns membros da minha Igreja me faziam, era que eu tinha poder na igreja. E a sensação que eu tive é que sempre a servi. Eu nunca fiz nada contra as orientações daqueles que na tal hierarquia estavam acima de mim. A visibilidade que eu tinha não era por interesse próprio, porque ela traz até mais inconvenientes do que coisas boas, porque obriga-nos a termos muito mais cuidado com a forma como estamos, o que dizemos e o que fazemos.

    O Papa tem nomeado mulheres e leigos para lugares que até então estavam ocupados pelo Clero de homens. É isso que devemos exigir à Igreja portuguesa de hoje?

    Eu acho que não devemos entrar na lógica que a determinada altura os partidos políticos quiseram, por causa da tal “igualdade de género” – que não tem nada a ver com a ideologia de género. Eu acho muitas vezes que a Igreja está excessivamente preocupada com esta coisa chamada ideologia de género, que ninguém sabe o que é, nem tem fundamento nenhum. Há por aí umas vozes que atiram para o ar, e pode estar em causa uma coisa que é fundamental, que é a igualdade de género e de oportunidades, independentemente do sexo da pessoa. Eu não sou tanto de dizer que tem que haver X de homens e X de mulheres, essa coisa de régua e esquadro. Têm de estar as pessoas competentes nos sítios certos.

    Os últimos três anos vieram alterar o ritmo das nossas vidas e empobreceram o país. Parece-lhe que a pandemia veio complicar ainda mais o nosso sistema social?

    A pandemia foi mais um acontecimento, não foi a primeira vez que aconteceu algo similar na História. E até tivemos a sorte de vivermos num tempo em que as ciências médicas já estão muito mais evoluídas em comparação com o período da gripe espanhola. A pandemia veio chamar a atenção para a necessidade de uma maior coesão, que aparentemente está intríseca nas pessoas, mas mais por emotividade do que por convicção. Por exemplo, na crise entre 2006 e 2013, muitas vezes apelei aos consensos para não se exigir tantos sacrifícios às pessoas. Chamei-lhes pactos de regime, procurei dar-lhes um nome para que os deputados percebessem ser preciso unirmo-nos e deixar as ideologias de parte. As ideologias não matam a fome. Não se conseguiu aí, mas conseguiu-se na pandemia.

    Temos também os problemas com os nossos idosos que vivem em lares. A falta de condições ideais, para não falar dos maus tratos, continuam a ser um tema aparentemente esquecido ou ignorado…

    Isso veio ao de cima com a pandemia e com a crise económica anterior. Aliás, mal tínhamos saído de uma crise grave, entrámos noutra agora com a história da guerra na Ucrânia. Parece que estamos todos nesta expectativa de que alguma coisa se há-de resolver, e nunca se resolve estruturalmente. Temos sempre governos a governar para as eleições mais próximas. E, portanto, dirigimo-nos mais ao público que sabemos que garante o voto, e às vezes os velhinhos já não estão para isso. Como eles e os sem-abrigos, que são os mais esquecidos. Quanto aos lares, acho que tem que haver um planeamento maior. Eu não sei se todas as pessoas que estão num lar têm necessidade de lá estar ou se é a altura de lá estarem. Existe uma cultura predominante de não valorizar o que já não é produtivo.

    Entretanto, o Estado comparticipa com uma verba se o utente for para um lar de uma IPSS, mas se a opção for um lar privado já não comparticipa. Não haverá neste caso um favorecimento e até um sentido perverso?

    Não vejo nessa perspectiva. O Estado não financia as instituições, são as pessoas através das instituições. E depois temos aqueles que fazem negócio com o mesmo tipo de actividade. Estamos a falar de coisas diferentes. Uma IPSS que tenha uma bomba de gasolina pode ter regalias em termos fiscais em relação a outro que não explora. Não há aqui uma concorrência. Esse debate tem de se fazer.

    person sitting beside white sack

    Existe uma percepção de que as IPSS sobrevivem desses privilégios, das oportunidades, e de que se chega ao final do ano com lucros – ainda que estes não devam existir…

    Não poder ter lucro é um sofisma. Se não tiver lucro, corre o risco de falir. É por isso que eu não gosto do termo “sem fins lucrativos”. Prefiro dizer “excedentes”, e saber o que se faz com eles. Enquanto numa entidade lucrativa, os lucros são para serem distribuídos por aqueles que investiram – e bem –, numa IPSS servem para mais solidariedade.

    No apoio à Ucrânia, cometemos muitos erros. Enviámos toneladas de arroz e de massa que nunca poderiam ser cozinhados, pois não havia gás nem meios para tal. Enviámos toneladas de roupa, gastámos fortunas em camiões que transportaram material que nunca chegaram a ter utilidade. A ajuda não teve a eficácia que todos desejariam. Será que este é um bom exemplo para percebermos que não estamos preparados para sermos solidários?

    Essa foi uma das batalhas que travei. Eram frequentes as críticas nas redes sociais quando eu alertava para essas questões. Somos um povo generoso, mas não somos solidários. A generosidade faz parte da solidariedade, mas a solidariedade obriga a uma série de compromissos que vão para além da generosidade. E depois, ainda por cima, somos um povo, pela sua própria cultura, com uma generosidade mais reactiva do que pró-activa. É uma generosidade que se desencadeia conforme o fluxo de informação que nos entra pela casa dentro. E ficamos com “pena” daquilo que está acontecer, e a forma que temos de aliviar essa pena que sentimos, que muitas vezes não quer dizer compaixão; quer dizer um certo desconforto. Deixamos de usar a razão e passamos a utilizar a emoção. E depois acontece de tudo. Está a dar-me o exemplo da Ucrânia, mas aqui em Portugal acontece muitas vezes. Eu já caí na experiência de organizar uns quantos contentores para países que estavam sob regimes islâmicos. O trabalho de selecção do que era dado, que às vezes davam coisas que não podiam ir, como camisas rotas, sem botões, chouriços enrolados em calças, sei lá, tanta coisa… Eu perguntava-me a mim mesmo se o dinheiro que gastei nisto, somando o tempo, se comprasse lá no destino, movimentava a Economia de lá, gerava dinamismo económico, não empobrecia o país e facilitava mais. As pessoas não percebem que ao dar um quilo de arroz num mercado, se derem esse dinheiro a uma instituição, ela pode ir directamente ao produtor comprar.

    O problema é a falta de confiança nas instituições…

    Pois, é uma falta de confiança que tem de ser mais diluída por uma comunicação social que se empenha muito em estar em cima do acontecimento. Interessa-se no momento em que está a acontecer a morte, o incêndio, o desastre; e depois já não se interessa por saber o que foi feito e as coisas que foram doadas. Nós, para África, numas cheias que fizeram uma devastação em Moçambique, não levámos para lá nada porque em Maputo podia comprar-se as coisas, pois só determinadas províncias foram afectadas.

    Isso leva-me a recordar a velha máxima oriental que defende que em vez de se entregar o peixe a quem tem fome, devíamos entregar uma cana e ensinar a pescar. Porque será que ninguém anda por aí a oferecer “canas” e a ensinar a “pescar”?

    Até o próprio Estado. O próprio Estado, na forma de protecção social, até relativamente às instituições, tem uma dimensão muito assistencialista. O Papa Francisco diz muitas vezes que o diabo tem dois nomes na sociedade moderna: poder e dinheiro. São duas coisas que perturbam qualquer possibilidade de se poder avançar por caminhos mais seguros, tem a ver com transparência. E quando a esse ditado, Alfredo Bruto da Costa dizia que era mal pronunciado, porque não era “em vez de”, era “cumulativamente”. Ou seja, “dá o peixe e a cana”. E depois até se começou a acrescentar o “ensina a pescar”, e, posteriormente, “assegura que haja peixe no mar”. Portanto, está a ver as quatro dimensões fundamentais. Primeiro, intervenção social; se a pessoa tem fome, não lhe vamos dizer para esperar até que lhe arranjemos um trabalho. Não lhe posso dizer, porque se demorar muito tempo a arranjar-lhe o trabalho, não terá forças para trabalhar. Se a pessoa tem fome, há que acudir. Se precisa de pagar a casa, pague-se a casa. É uma parte da intervenção social que não pode terminar aqui. E o problema é quando se fica por aqui.

    Exactamente…

    Dá-se, e até à próxima. Ou então depois faz-se outra coisa. Há uma metodologia no Serviço Social que eu acho muito interessante, mas com uma eficácia que vale o que vale: o encaminhamento, mandar-se a pessoa para outro. Quando se encaminha, enquanto a brasa arde na mão do outro, não arde na minha. Depois, temos a parte, efectivamente, do dar a cana, que é ir às causas dos problemas. E dar uma cana, de acordo com a capacidade que as pessoas têm de pegar na cana, porque se eu dou uma cana muito sofisticada, ela pode não saber utilizá-la e não lhe serve de nada. Por isso, há formas de inclusão social diferenciadas. E nem todas são pela via do trabalho remunerado, porque há pessoas que têm de reaprender hábitos de trabalho que perderam ou nunca tiveram. Portanto, é dar de comer, ir às causas e capacitar as pessoas. Hoje temos pobres com o décimo segundo ano, temos pobres com ensino superior, e até temos pobres que trabalham. Há gente que trabalha, e mesmo assim continua a precisar do peixe.

    Tem sido bastante assertivo e concreto, e não se tem poupado de apontar o dedo aos bispos, aos políticos… Essa posição é fruto de uma maturidade de vida, em que já não tem medo de dizer tudo o que pensa? Porque se fosse há uns anos, se calhar não tinha assumido os cargos que assumiu, porque uma pessoa que diz as coisas tal como pensa, na nossa sociedade geralmente não vai longe.

    Quem ouvir este nosso diálogo, vai dizer que eu vou sempre bater no mesmo, mas, por imperativo de consciência, tenho de o dizer. Até aos meus 20 anos, não gostava dos pobres. Porque vivi numa família modesta, que se sacrificou muito e abdicou de ter casa própria. O meu pai [em Setúbal] abdicou de ter um barco onde pudesse ser mestre, e foi sempre servidor de mestres. Pela mediação de uma professora, e nesta questão da pobreza também é preciso mediações, alertou a minha mãe, que era uma mulher sábia e inteligente, apesar de ter apenas a terceira classe. E disse que eu e o meu irmão não podíamos ir para o mar. E uniram-se esforços, de acordo com os apoios do regime de então, que eram altamente proteccionistas. E as coisas alteraram-se, os meus pais investiram na nossa formação académica, juntando os seus valores, como a honra, a honestidade, a verdade.

    woman walking near concrete house at daytime

    Um marco que ficou para a vida…

    Quando eu começava a ver as pessoas a reclamar coisas, tendo bens mas não tendo investido, a minha referência era sempre a mesma: façam como os meus pais fizeram. Eu tive a minha “estrada de Damasco”, em que me apareceu um homem que se chamava Manuel Martins [bispo de Setúbal, falecido em 2017], e fez-me perceber que até ao nível cristão eu não estava a equacionar bem este tipo de coisas. E colocou-me no caminho. Ele não me deu tudo, mas abriu-me caminhos. E quando me convidou para eu ir para a Cáritas, eu disse-lhe que não queria ir, porque não percebia nada disso. E o facto é que eu gostava mais de ser catequista, animar grupos de jovens…

    Um menino mais fechado na sacristia [risos].

    Eu era aquilo que gostava de fazer, e tinha 20 anos. Nessa altura, até equacionava outro projecto de vida, que depois com ajudas muito preciosas se veio a revelar que não era o caminho da minha própria vocação pessoal. E ele [Manuel Martins] deu-me esta resposta, que é uma resposta estranha. Quando eu lhe digo que não sei nada disso, ele diz “é por não saberes aquilo que és capaz”. E eu questionei-o. “Aquele que sabe fazer está sempre a fazer o mesmo? Aquele que não sabe, porque não sabe, faz coisas que julga que vão resultar, e às vezes resultam, e outras vezes não resultam. Quando resultar, óptimo, é bom para todos. Quando não resultar, tens-me a mim para te ajudar a esclarecer.” E foi daí que eu comecei e que se deu a coincidência, ou a “deocidência”, de haver uma crise grave em Setúbal, e tive de me obrigar logo a arregaçar as mangas. Tudo isto foi um caminho. Claro que a maturidade que se adquire é feita de avanços e retrocessos. Apesar de algumas desilusões e frustrações, eu dou por muito bem empregue o tempo que a Igreja me proporcionou.

    Actualmente, que funções ou trabalho é que está a desempenhar na área social?

    Eu fui co-fundador da Confederação Portuguesa de Voluntariado, à qual sempre pertenci. Eu nunca saí de lá para ir para a Cáritas, simplesmente a minha visibilidade pública aparecia mais pela Cáritas. Agora estou mais dedicado à Confederação Portuguesa de Voluntariado, que representa mais de 600 mil voluntários. É aí que se centra a minha actividade, mas também estou a dar apoio a umas irmãs auxiliadoras da caridade, que estão na minha diocese e que se vão dedicar a mulheres vítimas de violência doméstica. Pertenço ao Conselho Geral do Instituto Politécnico. No último semestre dei umas aulas no Patriarcado, que também é uma coisa que gosto muito e foi muito gratificante. Estou nas ordens honoríficas da Presidência da República, e portanto vou sendo chamado para fazer uma intervenção aqui e acolá. Trabalho não me falta.

  • ‘Os governos estão sempre a falar em princípios, em ideias e actos éticos e morais, mas aquilo em que estão a pensar é em interesses.’

    ‘Os governos estão sempre a falar em princípios, em ideias e actos éticos e morais, mas aquilo em que estão a pensar é em interesses.’

    Esteve para ser somente uma entrevista sobre a presença árabe em Lisboa, a pretexto do seu novo livro, mas rapidamente a conversa com o escritor e historiador Sérgio Luís de Carvalho descarrilou, e ainda bem, para outras visões da História, para a Idade Média, o legado português, o racismo, os “pecados” da Humanidade, acabando nos nossos dias com os males do politicamente correcto e a “cultura do cancelamento”.


    Em Lisboa, tem-se a noção muito enraizada de que foi a presença romana que deu o nome à capital portuguesa, mas, na verdade, o seu nome deriva mais do árabe. Estou a ser correcta?

    Na verdade, as mais antigas referências a Lisboa são pré-romanas. Tão antigas como a origem de Lisboa, que teria sido um castro celta, mas não vamos por aí. Provavelmente, a origem da cidade remonta aos fenícios, que foram um povo que corresponde mais ou menos ao que hoje é o Líbano, e que terão aqui fundado um pequeno porto. Pensa-se que em fenício, a designação de Lisboa significaria qualquer coisa como Porto Seguro, ou Enseada Feliz, e depois mais tarde isso foi de corruptela em corruptela, com os romanos, passou a Olissipo… depois, com os árabes, Luxbuna, e é por isso que a abreviatura de Lisboa é “LX”, embora Lisboa não tenha nenhum X. Mas antigamente tinha. Há uma lenda que diz que Lisboa foi fundada por Ulisses, e de que o nome veio de Ulisses. Ulisseia, Lisboa. Mas é isso, é apenas uma lenda.

    Sérgio Luís de Carvalho, na sua casa, em companhia de Duna.

    Uma lenda será também a história de como os árabes entraram na Península Ibérica? Diz-se ter sido por “convite” do governador de Ceuta que, por causa da sua filha, se terá zangado com um rei visigótico…

    Sim, está a falar concretamente da “invasão” de 711. Bom, no início do século VIII, enquanto o Islão era uma religião relativamente recente, e estava em grande expansão, a Oeste para todo o Norte de África, e a Leste, para a Índia; a monarquia visigótica que dominava a Península Ibérica estava em desagregação. Recorde-se que a monarquia visigótica era electiva, e não hereditária. Quando o rei morria, os nobres juntavam-se para escolher o futuro rei, o que dava origem a problemas porque muitas vezes os resultados eram renhidos, ou na base do suborno. E, o que é facto é que em 711, o reino visigótico enfrentava conflitos internos e o rei eleito, Rodrigo, era contestado por outras fações. Segundo o que se conta, um governador do sul da Hispânia, supostamente descontente com o resultado, terá feito um apelo aos muçulmanos do Norte de África para entrarem no território peninsular, para derrotarem a monarquia visigótica e elegerem-no a ele ou a alguém da sua fação. O que se sabe é que os árabes – nós dizemos árabes, mas na verdade grande parte do exército era composto por berberes, o que rigorosamente não é a mesma coisa – invadiram a Península Ibérica, derrotaram os visigodos e ficaram. Ocuparam toda a Península, excepto uma pequena parte no extremo norte da Ibéria, que corresponde, mais ou menos, às Astúrias.

    Foi, então, um processo mais pacífico do que se pensa?

     Sim, actualmente, alguns historiadores defendem que não se pode chamar bem uma “invasão”, e que houve a continuidade de um relacionamento estreito que haveria entre as elites peninsulares e as árabes, tudo integrado no sistema comercial do golfo luso-hispano-marroquino. Mas são interpretações. Efectivamente, em 711, dá-se a ocupação muçulmana da Península Ibérica, que foi relativamente rápida. Uma conquista rápida, de dois ou três anos, o que para a época, e para um território tão extenso, é muito rápido.

    E como herança, deixaram mais do que apenas as palavras começadas por “AL”, que se sabe que derivam do árabe. Mas não parece saber-se, de modo geral, muito mais do que isso. Acha que o conhecimento dos portugueses sobre o que herdámos dessa ocupação é substancial?

    Não se sabe muito, porque entre nós, como acontece com todos os povos, de facto o conhecimento da História não é muito pormenorizado, é superficial. Esquecemos aquilo que aprendemos na escola. Repare: a ocupação muçulmana da Península Ibérica dá-se, em termos práticos, no 7º ano de escolaridade. Há quanto tempo é que fizemos o 7º ano, não é? Na verdade, os muçulmanos deixaram-nos bastante. A começar, como disse, pela toponímia, por muitas vilas, aldeias e cidades começadas por AL, mas não só. Faro, é outro exemplo. Arroz, azeite, taracena, armazém… são tudo palavras de origem árabe.

    E em tecnologia…

    Sim. Deixaram-nos, também, importantes conhecimentos materiais ao nível das ciências e das técnicas, como a nora e o açude, ou de irrigação. Em termos científicos, os muçulmanos estavam muito à frente dos cristãos do seu tempo. Na Medicina, na Geografia, na Cartografia. Conhecimentos que, mais tarde, nos foram tão importantes nos Descobrimentos. Claro que as técnicas vão evoluindo, e as que temos hoje apenas remotamente se filiam nessas tecnologias que, para a altura, eram avançadas. Hoje, temos a computação, as tecnologias da informação e a robótica, mas não pensamos que, na base disto tudo, está a numeração árabe, que os árabes trouxeram e adaptaram da Índia, e à qual acrescentaram coisas tão revolucionárias como, por exemplo, o zero. Eu não sou da área, mas pergunte a um informático, se o zero não tivesse sido inventado, o que era feito dos computadores? Portanto, esse conhecimento árabe medieval está na origem de muito do que nós hoje temos.

    Se a herança árabe é tão significativa, deverá haver mais motivos para que não seja tão reconhecida.

    Sim, outra coisa que também contribuiu para o olvido, para esse esquecimento, é o facto de que, durante algum tempo, se considerou, numa certa historiografia nacionalista, imperial e colonial, ligada ao Estado Novo, que Portugal tinha sido construído por santos e heróis, de espada numa mão e de cruz na outra. E não foi assim. Isto tem imensas nuances, como todos sabemos. E na Reconquista também houve muitas nuances, muitas alianças entre cristãos e muçulmanos contra outros cristãos e muçulmanos. Mas quis dar-se um pouco a ideia de que, na sua génese, Portugal era uma nação de nós contra os outros. Ou seja, nós, os cristãos, e os outros, os infiéis.

    Ser infiel depende da perspectiva, certo?

    Sim, é sempre caso para perguntar, infiéis a quem? Aliás, curiosamente, no auge da Reconquista, alguns textos árabes também falam nos cristãos como os infiéis. Isso foi criando o mito de que Portugal se fez contra os mouros, quando a realidade é muito mais complexa. Outra coisa que não ajuda, é haver hoje tantas notícias ligadas ao fundamentalismo islâmico que, sendo muito minoritário, dá imensamente nas vistas. Essas imagens fixam-nos e criam de algum modo, talvez subconscientemente, um afastamento, entre nós e aquela versão muito radical do Islão. Todo este caldinho faz com que haja a ideia de que a herança muçulmana é uma coisa muito distante. Cronologicamente, é. Não será, contudo, uma coisa muito difusa e vaga, porque vem até aos nossos dias. Quando nós estamos, por exemplo, a comer alguns pitéus, sobretudo no Sul, mas não só, há que pensar no contributo que os muçulmanos deram para aquilo que nós estamos a saborear.

    Já abordou, noutras entrevistas, alguns mitos difundidos sobre a Idade Média e que se mantêm até hoje. Pode dar-nos alguns exemplos?

    Deixe-me começar a resposta com uma provocação. Já pensou no termo “Idade Média”? “Médio” refere-se ao que está no meio. Logo aqui, há, à partida, um preconceito. Está no meio de quê? Está entre a Antiguidade Clássica, Grécia e Roma, e o Renascimento. O termo é cunhado muito tempo depois da Idade Média ter acabado. Quando os renascentistas começam, já no século XV e XVI, a criar a dinâmica do Renascimento, e fazem uma coisa que é muito comum: para se afirmarem, disseram mal dos que vieram antes. É um bocadinho como os adolescentes que começam a depreciar os pais, porque o pai é velho, tem a mania que sabe e passa a vida a dar conselhos, e a mãe é uma chata porque quer que o miúdo ande com casacos à noite. Então, começa a ser criado o termo Idade Média, que é uma época associada a barbárie, obscurantismo, repressão inquisitorial e dos direitos das mulheres, queima das bruxas, tudo isso.

    Sérgio Luís de Carvalho é autor de 13 romances e de 21 outros livros, sobretudo de História e divulgação histórica.

    Não foi bem assim?

    Não. Por acaso, os renascentistas até omitem que só tiveram conhecimento daquilo que os clássicos gregos e romanos escreveram, fizeram e pensaram, através dos textos que, durante a Idade Média, milhares e milhares de monges copiaram à mão. Porque se não tivesse sido assim, como é que os livros de Platão, de Aristóteles, de Ovídio, de Horácio e de Heródoto, chegariam aos renascentistas? Eles não os foram buscar ao Google. Todos esses livros foram copiados à mão por monges nos seus mosteiros, como se vê em o Nome da Rosa [romance de Umberto Eco], por exemplo. Depois, para se afirmarem, tiveram necessidade de representar aqueles que antes deles viveram como uma cambada de burros, ignorantes e selvagens. Esta imagem, obviamente, é muito exagerada. É verdade que a Idade Média é uma época materialmente dura, sobretudo na primeira metade. Depois, a coisa muda. O crescimento das cidades faz-se, bem como do comércio, surge a burguesia e a cultura cortesã, a cultura de cavalaria… Mas associamos sempre à Inquisição e à queima das bruxas. Aquilo que é curioso, porque tanto em Portugal como em Espanha, a Inquisição só aparece após a Idade Média. Os grandes autos-de-fé que associamos à queima dos hereges também vieram depois. E, imagine-se, em Portugal nunca se queimou nenhuma bruxa.

    A queima das bruxas é, de facto, uma das concepções mais comuns que se tem da Idade Média…

    E há mais. A mulher tinha, na Idade Média, mais direitos do que posteriormente. Por exemplo, na Época Medieval, quando casava, a mulher conservava os seus bens de família, não se misturavam com os do marido. Em casos de violação, desde que fosse uma mulher considerada honrada e de pública boa-fama, e se fizesse a queixa logo a seguir ao acto da violação, a palavra dela era considerada como suficiente para acusar o seu violador. Entre outras coisas. É certo que a Idade Média foi uma altura complicada, mas todas foram. Até vou dizer uma coisa que é uma provocação. Quando havia as fomes cíclicas, isso acontecia porque eles não tinham meios materiais para alimentarem toda a população. E, hoje em dia, ainda há fome no mundo, e temos meios para lhe pôr fim. Então porque é que não pomos? Porque se calhar, por exemplo, muitas vezes, alguns países queimam produtos alimentares para lhes manter o preço. Portanto, qual é a superioridade moral que nós temos para acusar pessoas que tinham de facto problemas, numa época dura?

    Há alguma ideia, de todas as que “desconstrói” sobre a Época Medieval, que costume causar uma maior perplexidade nas pessoas?

    Posso-lhe dar o famoso exemplo do direito de pernada, que é uma das coisas mais míticas de que a Idade Média é acusada. Era um alegado direito que os senhores feudais tinham que consistia em poderem dormir com as noivas dos seus vassalos antes do casamento. É algo que, a todos os títulos, nos parece horrível, e é. Deu origem ao filme Braveheart, e não só. Mas aquilo que é engraçado é que o direito de pernada, criado também em latim como jus primae noctis, nunca existiu. Existia, sim, um acto simbólico em que o senhor feudal, na véspera do casamento do seu vassalo com a respectiva noiva, colocava a sua mão na perna do leito nupcial. Com esse gesto, queria dizer que estendia à noiva, e à sua descendência, o dever de protecção. Os senhores feudais eram obrigados a proteger os seus vassalos. Protegê-los militarmente, quase como uma polícia. Mas, como é que isso passou a ser interpretado? “Ah, o homem queria era dormir com a noiva!”. Portanto, é assim que aparecem estes mitos e se criam estas ideias. Na História, é muito fácil isto acontecer.

    Os romances de Sérgio Luís de Carvalho perpassam a História desde a Idade Média até ao século XX.

    E como é que um historiador “destrinça” a informação para que se chegue à verdade, no meio de tanta subjectividade, mitos e lendas?

    A única forma de um historiador combater preconceitos é através da publicação dos seus artigos, dos seus estudos, e pô-los à venda. Não querendo fazer publicidade dos meus livros, há dois anos publiquei um livro chamado Portugal na Idade Média onde saliento que esta época não foi um paraíso, como alguns românticos do século XIX pensaram, nem foi o inferno que alguns filósofos do século XVIII imaginaram. É algures uma coisa no meio. Não há épocas paradisíacas nem infernais. Entre o preto e o branco, há muitas cores. Portanto, os historiadores podem publicar as suas conclusões. Mas se um filme como o Braveheart, em que esses mitos são reproduzidos, é visto por milhões de pessoas, e os livros dos historiadores sobre a Idade Média são apenas lidos por centenas, as armas são um pouco desiguais.

    Pode dizer-se que vivemos numa época crítica, tivemos a crise sanitária, agora a guerra na Ucrânia, a inflação… Como historiador, como vê o momento presente?

    Aquilo que estamos a viver não é nada de novo, é a continuidade do que já vivíamos antes. Sem querer transmitir uma ideia de determinismo, acho que o que está a acontecer já vem de algumas décadas atrás. Mais especificamente, do pós-Segunda Guerra Mundial, que por sua vez já viera do pós-Primeira Guerra. Há historiadores que dizem, e na minha opinião com razão, que há três guerras que estão interligadas: a Guerra Franco-Prussiana da segunda metade do século XIX, a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. A Guerra Fria veio no seguimento da segunda Grande Guerra.

    Há um contínuo…

    Vem tudo dessa continuidade, das lutas entre potências, entre superpotências que não querem deixar de ter hegemonia, e que estão a opôr-se a outras que podem estar a crescer. É tão simples como isto. Há um filme chamado Reds, muito curioso, com o Warren Beatty e com a Diane Keaton, da década de 70. Conta a história de um grande jornalista americano chamado John Reed, que viveu a revolução russa de 1917 e escreveu uma das obras mais importantes de jornalismo, 10 dias que mudaram o mundo. Reed era marxista e em 1917, quando os Estados Unidos declararam guerra à Alemanha e entraram na Segunda Guerra Mundial, dá uma conferência em que lhe fazem a seguinte pergunta: “caro John Reed, porque é que os Estados Unidos vão entrar na guerra?”. Esperava a pessoa que o questionou que ele desse os motivos “oficiais”, como a luta pela liberdade, pela libertação da Europa, o ataque ao despotismo e à ditadura, enfim, o que se diz. Ele levanta-se e responde “lucros”. Na altura, achou-se que ele estava a ser pouco patriota.

    O patriotismo é sempre apresentado como argumento, e não o dinheiro…

    Curiosamente, depois da Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos foram de facto quem mais lucrou com o conflito, tornando-se na maior potência mundial e substituindo, por exemplo, a Inglaterra. E no fundo, não é isso que sucede? Os governos estão sempre a falar em princípios, em ideias e actos éticos e morais, mas aquilo em que estão a pensar é em interesses. E se nós temos toda a razão para desconfiar um bocadinho das pessoas, porque é que não havemos de desconfiar dos governos e dos estados? John le Carré, que foi agente dos serviços de espionagem ingleses, e no final da Guerra Fria viu um clima de euforia, de que tudo ia correr bem e que a democracia liberal ia triunfar, escreveu um artigo muito pessimista, que conclui com esta frase: “é inútil, todos os governos mentem e os jornalistas dizem sempre mal os nossos nomes”.

    Mesmo assim, ainda há muitas pessoas que vêm os governos como confiáveis?

    Há, há de tudo. Eu suponho que tem tudo a ver com a atitude que temos perante as coisas. Entre acreditarmos em tudo aquilo que nos dizem e não acreditarmos em nada, não sei qual das atitudes é a mais insensata. Se acreditamos em tudo o que nos dizem, acho que vamos ter imensos problemas em escolher um shampoo, por exemplo, porque na televisão todos são excelentes. Se não acreditamos em nada, também teremos muitas dificuldades em comprar um shampoo, porque partimos do princípio de que todos são maus.

    Tem de se encontrar um equilíbrio?

    Sim, e acho que temos de ser críticos. Mesmo que as nossas opiniões possam ir, muitas vezes, contra o pensamento dominante, como acontece hoje. Actualmente, temos pensamento dominante em relação a tanta coisa… como em relação à Guerra da Ucrânia, por exemplo. E, portanto, temos, com a informação disponível, que é muitas vezes incompleta ou adulterada, de ter cautela e avaliar por nós mesmos. E deve ser assim com tudo. Não me parece que o Mundo vá melhorar. Até porque, hoje em dia, o ser humano tem meios para tornar as coisas muito piores. A Inquisição matava judeus, mas havia duas coisas: primeiro, se o judeu se convertesse, não o matava, e eu sei que isto é cínico e cruel. Mas, em todo o caso, havia uma escapatória, que era o próprio judeu ser também cínico. Segundo, a Inquisição não tinha meios de os matar a todos. Passaram-se os anos e vieram os nazis, que já tinham meios técnicos para os matar a todos. E os judeus, aí, não tinham escapatória. Não valia a pena um judeu mudar de religião, continuaria a ser judeu. Nós hoje temos tecnologia para destruir a Terra várias vezes. Coisa que há duzentos ou há trezentos anos, com a mesma maldade humana e com a mesma ganância, não se tinha. Por isso, é difícil ser optimista e esperar que o futuro venha a melhorar. Mas temos, e devemos ter sempre, a necessidade de acreditar em alguma coisa. Infelizmente, acho que a ignorância e a ganância cada vez têm mais meios para crescer, mas temos de continuar a fazer a nossa parte.

    Em nome da luta contra o racismo, algumas pessoas têm defendido, por exemplo, que se deitem abaixo certos monumentos. Como é que vê a “cultura de cancelamento” na História, que alguns movimentos têm defendido, e que parece estar a ganhar terreno?

    Vejo a cultura de cancelamento e o politicamente correcto com sincera preocupação. Primeiro, pelos efeitos que isso traz. Não tenho palavras para essa história do “cancelamento”, quer dizer, “cancelar-se” a J.K. Rowling por ter dito o que disse… mesmo que fosse um absurdo ou um disparate total, que para mim não foi, não vejo qualquer motivo para um acto de censura. Porque é censura. Um grande escritor alemão disse, no século XIX, que quando se começa a queimar livros, acabamos a queimar pessoas. Veja-se o que fizeram depois os nazis. E fico sempre muito preocupado quando vejo esta gente do politicamente correcto a “cancelar”, proibir, censurar, deitar abaixo estátuas… esquecendo-se que aquilo que as pessoas, noutras épocas, pensavam, era diferente daquilo que eles hoje pensam. Esquecendo-se que daqui a uns anos, umas décadas, outras pessoas irão, também, olhar para trás, para achar que o que eles estão a fazer agora também está ultrapassado, e que deverá ser “cancelado”.

    Há paradoxos no politicamente correcto, não é?

    A “cultura do cancelamento” é um acto censório e repressivo em si. E repare na contradição. Pessoas que dizem querer combater o preconceito, a repressão e o obscurantismo, como é que agem? Com repressão, com cancelamento e com censura. Depois, preocupa-me que isto se volte contra as causas que essas pessoas dizem defender. Por exemplo, dizem que são a favor da igualdade de género, muito bem, eu também sou. Dizem que são contra qualquer manifestação xenófoba ou racista, excelente. Mas ao fazerem isto com este exagero, leva a que as pessoas se afastem das ideias que eles defendem. E mais, estão a dar munições àqueles “reacionários” para quem a igualdade de género ou o antiracismo é algo a combater. Essa gente está a ser “municiada” com este extremismo do politicamente correcto. O que significa que esses movimentos da “cultura do cancelamento”, sempre que são levados ao extremo, são contraproducentes. Então, por um lado, são movimentos repressivos, o que é condenável. E, depois, põem certas pessoas mal-intencionadas “municiadas” contra eles. No fundo, dão mau nome a causas meritórias, fazendo com que as pessoas os considerem extremistas e não se queiram juntar a eles.

    Lisboa Árabe integra uma (por agora) trílogia constituído também por Lisboa Judaica e Lisboa Nazi.

    É correcta a dicotomia de que o povo europeu foi, historicamente, o “vilão” e o carrasco, e que os outros povos foram apenas “vítimas”?

    Se nós observarmos a História e virmos aquilo que foram os muitos crimes perpetrados pelo homem branco, podemos dizer que houve actos de vilania, como a escravatura e a exploração de muitos recursos naturais em vários continentes. Mas eu aqui ponho duas questões: primeiro, os povos não-brancos eram santos e anjos? Não sei se podemos ver a coisa assim. Os astecas não eram seguramente, também praticavam a escravatura e o homicídio como ritual. Os escravos que os brancos foram buscar a África eram, normalmente, fornecidos por tribos africanas que caçavam congéneres seus pelo lucro. Então, o que é que homem branco tinha, que os outros não tinham? Meios. Eu não faço História alternativa, mas vamos pôr a coisa assim: imaginemos que outros povos, que não o europeu, tinham os mesmos meios que os europeus para colonizar os outros continentes. Será que teriam agido melhor? Já havia escravatura em África, e nas civilizações pré-colombianas na América Latina. E na Ásia, não havia escravatura antes da chegada dos europeus? Não havia já uma cultura de ocupação de territórios e guerras, na América do Sul, em África, ou na Ásia, antes dos europeus chegarem? Claro que havia! Claro que havia escravatura, agressão, e até fenómenos entretanto desaparecidos no Ocidente, como a antropofagia. Portanto, mais uma vez, digo, entre o preto e o branco há muitas cores. Entre o ónus da culpa de uns e da inocência de outros, não vou por aí. Temos é de assumir aquilo que foi feito de bom, e aquilo que foi feito de mau. Todas as culturas, civilizações e povos tiveram grandes momentos de brilho e grandes momentos de trevas.

    Hoje ainda existe escravatura em vários países… a China, por exemplo, tem campos de concentração para muçulmanos.

    Sim, a escravatura ainda existe, e a China tem campos de concentração. A Espanha teve campos de concentração até à década de 60, durante a ditadura franquista, e foi o país europeu que os teve durante mais tempo. E existem muitos campos de detenção ilegais por esse mundo fora. Estou-me a lembrar, por exemplo, de Guantánamo, onde há indivíduos que são detidos durante várias décadas sem culpa formada. Há campos de detenção onde pessoas foram e são torturadas ainda hoje, por países que se arrogam da prática dos direitos humanos, e que permitem que aliados seus pratiquem aquilo. Isto, para além de muitos estados totalitários e ditatoriais que também hoje continuam a maltratar e a torturar prisioneiros seus.

    E, para terminar numa nota mais positiva, o que é que acha que Portugal fez de melhor? O que é que destacaria do legado português?

    Vai-me perdoar, mas vou começar de uma forma um bocadinho pícara e não quero de todo ser mal interpretado. Há uma frase muito engraçada, que já ouvi no Brasil várias vezes, que é: “a melhor coisa que o português deixou no Brasil foi a mulata”. Esta frase tem uma ideia curiosa por trás, que é a ideia de mistura. Os colonizadores do Norte da Europa não se misturavam com os nativos, não havia essa cultura. Um inglês reproduzia, nas suas colónias, desde a Índia à África do Sul, os seus padrões culturais. Como vestir um smoking para jantar. Eu acho que, com muitas coisas boas e más que os portugueses fizeram, há uma cultura, uma língua e um património que foram deixados. Eu gosto particularmente disto, da capacidade dos portugueses de se juntarem a várias culturas, esse melting pot, em que misturamos a cultura nativa com a cultura europeia. A “mulata” é essa alegoria. Os portugueses, de facto, misturavam-se fisicamente com os nativos. Coisa que os outros povos não faziam tanto. Contudo, o mito de que a colonização portuguesa foi melhor do que as outras, não é bem assim. Mas eu acho que essa noção de mistura e de troca parece-me ser particularmente interessante no caso português, é algo que me agrada, essa capacidade de adaptação. E nós vemos isso. Um português é timorense em Timor, é ugandês no Uganda, é marroquino em Marrocos, é alfacinha em Lisboa e tripeiro no Porto. É uma coisa incrível!