De onde surgiu o denominado wokismo e a cultura do cancelamento? Jorge Soley, economista espanhol e professor universitário, acredita que o movimento remonta à Revolução Francesa, mas que bebeu muito do regime comunista de Mao Tsé-Tung. Em O manual do bom cidadão, editado em Portugal pela Dom Quixote, Jorge Soley explica as estratégias e mecanismos que os “zelotes wokes” utilizam para silenciar os “hereges” do século XXI, proibindo o debate, humilhando os “transgressores” e impondo a auto-censura. Evocando diversos casos de palavras, livros, estátuas, e pessoas “canceladas”, em Espanha e no mundo, apela para a resistência à ditadura do politicamente correcto, porque “a neutralidade já não é uma opção”. Em entrevista ao PÁGINA UM, Soley disseca este fenómeno, transversal a todo o Ocidente, não esquecendo de falar sobre os “cancelamentos” durante a pandemia.
Há quem critique aqueles que falam do ‘wokismo’ por não definirem, propriamente, o termo. Como deve ser definido?
Não é fácil defini-lo numa frase, porque creio que não seja um movimento unívoco, já que agrega diferentes influências. Mas se tivesse mesmo de o definir, diria que é a crença de que o mundo em que vivemos é estruturalmente horroroso e que temos de o transformar todo desde a raiz. E que quem quer que se oponha é má pessoa. Penso que há muitos aspectos da questão, mas um aspecto comum em todo o mundo ‘woke’ e politicamente correcto é não quererem discutir. Querem cancelar o debate. Eu tenho as minhas ideias, e há pessoas com ideias muito diferentes das minhas, e podemos falar e trocar argumentos; poderão até convencer-me que algumas das ideias que tenho são equivocadas e incompletas, e vice-versa. Mas, no mundo woke, algo muito característico é a eliminação do debate. Porque dizem: “não, se tu não estás de acordo com isto, és má pessoa, és a favor do racismo estrutural, das fobias, da homofobia estrutural, e contigo não se pode falar porque estás do lado errado da barricada”.
No seu livro fala das origens do movimento woke, defendendo não ser fenómeno de agora. Como surgiu?
Creio que é uma confluência de muitos factores e alguns, inclusivamente, contraditórios. Detecto na Revolução Francesa alguns elementos, por exemplo, com o que se passou durante o Terror. É a tal ideia de que todos os que não estão de acordo comigo são inimigos da Humanidade; foi o que aconteceu com Robespierre. Nos dois séculos que se seguiram, foram-se somando novos contornos e, no meu livro, falo da influência da Escola de Frankfurt, de Antonio Gramsci, de Mao. Mais do que Marx, de Mao. Acredito que Mao, Gramsci, e a Escola de Frankfurt são muito importantes para a visão ideológica do mundo woke.
De um modo geral, as pessoas ficam surpreendidas com a comparação que estabelece entre o Maoismo e o wokismo? Acham exagerado…
Bem, sim… O que é que eu encontrei em Mao? Encontrei vários elementos que me parece que são semelhantes ao que estamos a viver agora. Em primeiro lugar, chamou-me a atenção o facto de haver certas ideias não permitidas. Depois, outro paralelismo tem a ver com a Revolução Cultural. E também os fenómenos através dos quais, de repente, as massas se lançam sobre uma pessoa e a destroem. Evidentemente, na altura de Mao isso fazia-se com paus e afastando os professores que supostamente não compartilhavam do movimento maoista. Muitas vezes, havia castigos físicos. Hoje, evidentemente, o linchamento é feito nas redes sociais. Outro aspecto da Revolução Cultural é o exigir que os dissidentes, aqueles que não estão de acordo, se humilhem publicamente. E, para além disso, não basta humilharem-se, ficam estigmatizados para sempre. A escritora J. K. Rowling será para sempre uma “transfóbica”, porque já a rotularam assim. Mesmo que agora se arrependesse, seria igual, não valeria a pena, porque se pedir perdão é uma prova de que estava errado. Se eu cometo um erro, não tenho nenhum problema em pedir desculpa. Mas o que não vale a pena é desculpares-te numa tentativa de que te “salvem a vida”, ou que te perdoem, porque não te vão perdoar. Nem Mao, tão pouco, perdoava. A pessoa ficava marcada para sempre.
Também é professor universitário, e as universidades, no mundo ocidental, têm tido um papel significativo na difusão do “politicamente correcto”. Em Espanha, como é a realidade nas universidades?
Creio que em Espanha, como em todo o mundo ocidental, há alguns casos de professores submetidos a pressões, inclusive sob risco de perder o emprego, por dizerem o que teoricamente não se pode dizer: por exemplo, que há apenas dois sexos, e que a biologia não depende do que alguém pensa, é o que é. No entanto, penso que sobretudo o que procura a ideologia woke não é tanto castigar aqueles que dizem o que é supostamente incorrecto, mas sim a autocensura. E acho que em Espanha há muito medo e autocensura. Com a maior parte dos professores universitários vê-se uma grande diferença entre o que te podem dizer em privado e o que dizem publicamente. Ninguém quer problemas. Então, em privado diz-se algumas coisas, e depois, em público, sobre as “questões problemáticas”, fala-se de uma forma muito cuidadosa, e autocensuras-te. E penso que isso é um empobrecimento enorme para a dimensão intelectual. A meu ver, temos de dizer o que pensamos e argumentá-lo; a autocensura é sempre má. E, nas universidades, a autocensura está muito presente.
Teve algum tipo de represálias ou reprimendas, no seu círculo profissional, por se insurgir contra o politicamente correcto?
Na verdade, não tive problemas graves. Pode haver sempre alguém que te critica ou que te insulte, mas pessoalmente não me aconteceu nada de grave. E também é verdade que, onde estou, quem me rodeia até concorda mais ou menos com o que eu digo. Além disso, digamos, já tenho mais de 50 anos; se fosse um jovem universitário, com 25, 30 anos, teria mais cuidado e iria exercer uma maior autocensura sobre mim mesmo. Com a minha idade, já me autocensuro pouco.
No livro, utiliza o termo “patologização do dissidente”, que consiste em, além de se acusar os críticos das pautas woke de “discurso de ódio”, atribuir-lhes fobias várias, o que permite cancelar o debate de uma forma até paternalista ou condescendente…
Sim, parece-me que são tentativas de cancelar o debate, rotulam qualquer coisa de “discurso de ódio”, ou dizem que és louco e que padeces daquelas fobias. Por este caminho, acaba-se com a liberdade de pensamento e com a liberdade de expressão. Acho que é muito perigoso, e que se deve restringir o consenso do que é convencionado como discurso de ódio. Estritamente, deve ser algo que cause um dano real a outras pessoas. Tudo o resto tem de ser legítimo, numa sociedade democrática, e tem de se poder falar sobre. Na minha opinião, ninguém tem o direito a não ser ofendido. O problema da ofensa é determinar se houve ou não ofensa; é subjectivo, é da própria pessoa. Então, qualquer coisa, até uma pergunta, pode subjectivamente considerar-se ofensiva. Se aplicássemos esse critério, num mundo woke, se eliminarmos qualquer expressão passível de ser ofensiva, acabaremos a não poder falar. Então, acredito que temos que nos poder expressar em liberdade, e isso significará que haverá coisas que ofenderão as pessoas. Têm que se assumir isso nas democracias ocidentais, faz parte do debate poder ser ofensivo. A mim, há coisas que me dizem que me ofendem, mas eu, diante disso, em vez de “cancelar” quem o disse, tento dar-lhe argumentos para fazer a pessoa ver que aquilo que disse é um disparate. Se, ainda assim, a pessoa me quiser ofender, bom, é um problema seu. Mas, enfim, creio que é algo que faz parte da nossa vida em comum, da nossa civilização.
Há um apelo à vitimização?
Sim, agora, parece que o segredo para prosperar nesta sociedade é encontrar um grupo ao qual possas aderir, e onde possas dizer que te vitimizaram, que és uma vítima. Houve um momento em que fazíamos piadas sobre “vitimizar” os gordos, os condutores de camiões, os comedores de pizza. E, o que era uma piada, entre amigos, agora, há quem o reivindique, dizendo que existe uma pizzafobia e que os comedores de pizza – que não comem saudavelmente – são vítimas de uma sociedade que os obriga a consumir. Ou seja, no movimento woke, perante qualquer disparate que te ocorra, é muito provável que se torne realidade – é apenas uma questão de sentar e esperar; se esperares algum tempo torna-se realidade.
Fala também sobre como os “desejos” de certos grupos se transformaram em clamores por direitos. Acha que os wokes instrumentalizam a narrativa dos direitos humanos para conseguirem o que querem?
Sim, eu creio que sim, existem direitos, que são universais e são para todos os Homens. Quando se fala nos direitos das minorias… quer dizer, são os direitos de todos, todos temos direitos! Aqui, o problema desta transformação do conceito de direito, é quando aquilo que eu desejo tem de se converter num direito. Se eu desejo, por exemplo, ter um filho, tenho o direito de o ter. E tenho de o ter, porque se é a minha vontade, então é o meu direito. Quando algo se transforma num direito desta forma… Um direito implica sempre um dever: o dever da sociedade e do Estado de garantir esse direito. Para mim, cada um tem o direito a tentar levar a vida que quiser. Mas não tem o direito a que esse direito lhe seja mesmo garantido, se por si mesmo não o consegue. Porque se o modo de vida a que aspiro envolve ter filhos, mas não os posso ter, eu não tenho nenhum direito a reclamar que, por exemplo, o Estado me pague um ventre de aluguer. O problema dessa inflação de direitos é que, no final, se gera uma inflação de deveres e isso parece-me muito perigoso, porque então, estamos a desvirtuar o que é a sociedade e o Estado para assegurar qualquer capricho de uma pessoa.
Há quem argumente que ser contra o wokismo é ser contra a igualdade de oportunidades. Como responde a esta crítica?
Acho que é o contrário. Opormo-nos ao wokismo é, precisamente, garantir igualdade de oportunidades para toda gente, independentemente do seu sexo, da sua raça, do que for. Nos Estados Unidos, a denominada política de identidade consiste em negar a igualdade para criar os novos privilegiados. Estes privilegiados são os grupos vitimizados. São os novos reis, os “aristocratas” que têm, por exemplo, ajudas do Estado, a quem se reservam lugares nas universidades e postos de trabalho. Os opositores do wokismo estão contra esta nova “artistocracia”; são a favor da igualdade de oportunidades para todos. Para grupos, minorias, todos. É um pouco aquilo que disse Martin Luther King, que sonhava com uma sociedade em que a cor da pele não tivesse importância. Eu creio que Martin Luther King, nisto, tinha razão. Hoje em dia, todos os defensores da Teoria Crítica da Raça, dizem que Martin Luther King era racista. Era um racista branco. Porque, afirmam, a sua visão, em defesa de uma sociedade em que ninguém é discriminado pela cor da pele, é, ao fim e ao cabo, consolidar o racismo estrutural branco. Mas eu acho que estão errados, e estou do lado de Martin Luther King.
Sim, segundo esses teóricos, é possível que um negro demonstre “branquitude”, ao ser bem-sucedido e não se mostrar oprimido, por exemplo. Também alegam que todos os brancos são inerentemente racistas, sem excepção. Trata-se de argumentos circulares e, por isso, de falácias?
Sim; não são, verdadeiramente, argumentos. Como são circulares, no final, digamos, são apenas dogmas de fé. Face a isso, não pode haver um debate racional, porque qualquer coisa que digas, para eles, demonstra precisamente que és um defensor do racismo estrutural. É igual. Não há debate, porque são afirmações dogmáticas e circulares.
Cita vários exemplos de “cancelamentos”, nomeadamente sobre transsexualidade, orientação sexual e racismo. Também houve, recentemente, o tema da pandemia, que mereceu muitos cancelamentos e rótulos, a médicos e investigadores reputados. No seu livro, contudo, acaba por não abordar muito esta questão…
Não sou cientista, por isso, na verdade, nunca me considerei negacionista nem nada, porque não tenho capacidade para julgar. Mas houve de tudo. Houve pessoas que disseram coisas que não se podiam comprovar; mas, depois, havia gente que dizia coisas pelas quais, num certo momento, foram canceladas porque se considerou que o que diziam era uma barbaridade, e que depois se viu que até tinham razão. Portanto, houve esse mecanismo de eliminar o debate com o rótulo de “negacionista”. Algumas pessoas, foram censuradas nas redes socais. E nas televisões públicas de Espanha foram excluídas porque expressaram dúvidas sobre o que dizia o Governo num dado momento. Coisas que, passado um ano, já se podia dizer e estava tudo bem, já não se era considerado negacionista por causa disso. Percebo que há momentos, como os que vivemos com a pandemia, em que havia muita incerteza e ignorância, não sabíamos o que enfrentávamos. Mas, apesar de tudo, há que assumir sempre riscos, é bom que as pessoas possam dar a sua opinião; e que possa haver um debate sobre as medidas, sobre as vacinas, os confinamentos e o seu impacto. Houve, por exemplo, uma pessoa que alertou para os confinamentos, porque poderiam ter um impacto muito negativo entre os adolescentes. E chamaram-no de tudo, disseram que não devia participar nos debates televisivos. E, agora, em Espanha, estamos a viver uma epidemia de suicídios adolescentes como nunca houve. Deveríamos tê-lo tomado em conta. Gostaria de pensar que, no futuro, se tivermos de enfrentar situações parecidas, possa haver mais debate e mais discussão civilizada, e ninguém seja destruído por dizer coisas diferentes das que diz, a cada momento, o Governo e o Ministério da Saúde.
Este livro tem como subtítulo “para compreender e resistir à cultura do cancelamento”. Como podemos, então, resistir e combater este fenómeno?
Devemos combatê-lo de todas as formas. Podemos combatê-lo na nossa vida quotidiana, não cedendo, tendo a coragem de falar com naturalidade e dizer o que pensamos. Acredito que isso é muito importante, que cada um de nós possa dizer aquilo que quiser, e que o diga em público sem ter problemas. Se toda a gente fizer isso, é difícil que nos detenham. E, por outro lado, digo sempre, também, que temos de apoiar os meios de comunicação, universidades, políticos e intelectuais que falam abertamente contra o wokismo. Há que apoiá-los, porque pode ser-se corajoso, mas depois quando te atacam, é difícil. Eu já falei com pessoas que me disseram que se sentiam muito sozinhas por terem falado. Portanto, temos de dizer o que pensamos e, sobretudo, apoiar as pessoas com essa coragem. Há quem não tenha muita capacidade de influência, mas aquelas pessoas que têm, e que falam, devem ser apoiadas; escrevendo-lhes e mostrando-lhes o nosso apoio. Creio que tem de haver uma mobilização para que falemos. E, aliás, que se apoiem, por exemplo, os jornais que publicam entrevistas comigo [risos].
A trágica história da jovem judia Anne Frank percorreu o Mundo e comoveu gerações. Contudo, o famoso Diário da jovem judia termina quando ela e a sua família – o pai, Otto, a mãe, Edith, e a irmã, Margot – e mais quatro clandestinos num “Anexo Secreto” são capturados no final de 1944. Por isso, nada ela escreveu sobre as suas experiências nos campos de concentração. Depois do Diário é a obra que, fruto da investigação de quatro historiadores da Casa de Anne Frank, em Amesterdão, revela os passos que se seguiram. Um dos seus autores, o holandês Bas Von Benda-Beckmann, esteve em Lisboa e conversou com o PÁGINA UM sobre estes oito seres humanos que caíram nas garras do Terceiro Reich.
O Diário de Anne Frank vendeu mais de 30 milhões de cópias. Ainda havia algo mais para dizer?
Boa pergunta. Eu escrevi o livro em conjunto com colegas da Casa de Anne Frank, e uma das nossas missões é contar a história de vida de Anne Frank tão integralmente quanto possível. E este livro foi, obviamente, uma parte muito importante dessa tarefa. O seu diário é muito famoso, e milhões de pessoas em todo o Mundo o leram, mas a história dela não termina aí, certo? E uma parte muito importante começa no momento em que o diário termina. É um período da sua história onde há muitas lacunas, porque já não temos o diário. Até à captura, conseguimos ver pelos nossos olhos o que lhe aconteceu, e a partir daí já não. Houve alguns jornalistas que exploraram este tema e que procuraram testemunhas oculares, e as entrevistaram, o que é significativo, mas mesmo assim não conta a história de forma tão completa como precisaríamos. Portanto, o que fizemos foi tentar reunir todas as fontes disponíveis, como relatos de testemunhas oculares, mas também pedaços de informação que a administração alemã mantém, bem como outros diários e cartas dessa época. Juntámos tudo isso e tentámos reconstruir de modo tão preciso quanto possível aquilo que realmente aconteceu. E perceber também o que é que aconteceu aos outros ocupantes do Anexo Secreto, quais eram as condições nos campos de concentração, e para onde foram levados. Porque assim também vemos a verdadeira importância da sua história, que não é só o diário, mas também o que aconteceu posteriormente, e onde, como e quando é que eles foram mortos.
Bas Von Benda-Beckmann
Nessa tarefa de reconstrução, quais foram os maiores desafios? No livro abordam os problemas que advêm das testemunhas oculares, que muitas vezes providenciam relatos contraditórios, para além do grau elevado de subjectividade.
Sim, é complexo. Aquilo que tentámos fazer foi, entre nós, verificar as fontes. Se temos testemunhas oculares que estiveram juntas na mesma altura, as suas histórias complementam-se ou contradizem-se? E quando alguma coisa é contraditória, qual será a versão mais provável? Portanto, tentámos ser absolutamente transparentes. Há coisas sobre as quais temos a certeza, e aí dizemos “isto foi o que aconteceu”, e outras vezes expomos as diferentes versões do que poderá ter acontecido, de acordo com uma testemunha, e o que poderá ter acontecido, de acordo com outra. E salientamos os pontos em que os seus testemunhos se contradizem.
Houve algum aspecto surpreendente no vosso trabalho de pesquisa? Descobriram algo que não estivessem à espera?
Há um par de coisas muito importantes e inéditas que vieram à luz com esta pesquisa. Durante muito tempo pensámos que Anne e Margot Frank morreram no final de Março de 1945; e através de uma reconstrução cuidadosa do que lhes aconteceu, pelo que relataram as testemunhas que as viram pela última vez, e que falaram sobre as doenças e as mortes de que elas padeceram, conseguimos saber que, na verdade, faleceram mais cedo, no início de Fevereiro. E isto pode parecer um pequeno detalhe, mas eu penso que o simples facto de ser tão difícil reconstruir a vida de alguém nesta situação e descobrir coisas básicas como quando foi o momento da sua morte, torna importante tentar fazer precisamente isso. Houve uma tentativa deliberada de apagar a história destes seres humanos e dos factos sobre o que lhes aconteceu. Portanto, desfazer isso e tentar juntar os pontos é algo que considero muito importante, não apenas por eles mas por todas as vítimas do Holocausto.
Também destacam que alguns sobreviventes mostraram um certo desconforto e ressentimento por a história de Anne Frank se ter tornado tão conhecida, receber tanta atenção, quando é apenas uma entre milhões de vítimas do Holocausto. Como interpreta isso?
Em primeiro lugar, eu consigo compreender esse sentimento, porque é verdade que a história desta família é muito importante, e toda a gente a quer ouvir, mas há também muitas outras histórias que foram esquecidas. E esse ressentimento também existe porque essas testemunhas oculares são entrevistadas e os entrevistadores perguntam-lhes muito sobre Anne Frank e a sua família, quando elas próprias também viveram algo muito dramático e horrível. Mas interessante é observar que estas vítimas não mostram apenas ressentimento, mas também ambiguidade, porque reconhecem a importância de Anne Frank como um símbolo na transmissão destas histórias e como alguém que é importante para espalhar a palavra sobre o que lhes aconteceu.
Quais os motivos, na sua opinião, para a história de Anne Frank, em particular, se ter tornado tão conhecida?
De muitas formas, ainda é um mistério. Penso que ajudou ela escrever realmente bem; portanto, o diário, se o lermos agora, mostra-nos mesmo o crescimento de uma jovem, que escreve sobre as suas emoções de uma forma muito vívida, e acho que isso ressoa em muitas pessoas. A certa altura simplesmente se tornou algo grande, fez-se uma peça de teatro e um filme, e tudo isso contribuiu para tornar a sua história famosa. Mas a pergunta é legítima: porque é que acontece a uma história e não a outra? É sempre muito difícil de dizer, e eu penso que talvez, se falarmos dos anos 1940 e 1950, quando a história de Anne Frank começou a tornar-se conhecida, provavelmente ajudou o facto de o diário não ser sobre o Holocausto. O diário é sobre uma rapariga num esconderijo e sobre a perseguição aos judeus, mas termina no momento em que o nosso livro se inicia. Não só na Holanda, mas noutros países também, não havia muito espaço para contar histórias horríveis sobre as vítimas e sobre o Holocausto em si, logo a seguir ao fim da guerra. O Diário é sobre esperança, e transmite muita positividade, enquanto que, se lermos o que sucedeu depois da sua captura, não existe qualquer espaço para positividade. Depois da sua captura, a história de Anne Frank é absolutamente terrível.
Aborda também as hierarquias que se estabeleciam dentro dos campos, e dos kapos, que eram prisioneiros, alguns deles judeus, que exerciam a função de guardas. Porque é que o regime nazi criou esta dinâmica, em que uns prisioneiros obtinham privilégios e podiam mandar nos outros?
Essa era uma parte da perversão no sistema dos campos, em que se dava a alguns prisioneiros poder sobre os outros, estimulando também que se tratassem mal entre si. A maioria dos kapos em Auschwitz não eram prisioneiros judeus, eram polacos ou presos políticos ou criminosos de guerra. Mas no campo de Westerbork, por exemplo, que foi o primeiro em que os Frank estiveram, aí já eram judeus, porque a maioria dos prisioneiros eram judeus. Mas isto era parte de um sistema mais abrangente de hierarquias, em que eram concedidos “privilégios” a algumas pessoas, o que acabava por ajudá-los a sobreviver aos campos. E os restantes, que não tinham estes privilégios, tinham uma experiência muito mais dura e menores chances de sobreviver. Portanto, era uma parte da realidade da vida nos campos, e penso que também assumiu um papel muito importante nas vidas dos ocupantes do Anexo, porque no caso de Peter van Pels – o rapaz que tinha mais ou menos a idade de Anne –, quando ele foi enviado para Auschwitz, através de alguns contactos conseguiu um trabalho muito bom como carteiro. Portanto, ele não era um líder nem um kapo nem nada do género, mas também estava numa posição privilegiada, porque podia abrir encomendas e tinha de desempacotar a comida e levá-la para o staff da cozinha, e assim conseguia muito facilmente guardar algum alimento para si. E, além disso, estava em posição de ajudar Otto Frank, que ficou doente em Auschwitz e teve de ir para o hospital, onde não havia cuidados médicos, por isso ele foi apenas deixado lá. Otto ficou muito dependente de Peter, que tinha uma posição que lhe permitia andar pelo campo e visitá-lo e dar-lhe comida extra. E isto foi muito importante para a sobrevivência de Otto. Por isso, sim, a posição em que se era colocado e o trabalho que se conseguia tinham um papel preponderante nas hipóteses de se sobreviver.
Também destaca aqueles que eram os primeiros a chegar aos campos, que se tornavam uma espécie de veteranos e podiam deter alguma vantagem sobre os que vinham depois.
Sim, isso é verdade, sobretudo para o campo de Westerbork. Os kapos de lá eram quase exclusivamente refugiados judeus da Alemanha, enviados para este campo durante o final da década de 1930, portanto, antes da invasão da Polónia. Era um campo de refugiados antes de os alemães o tornarem num campo de trânsito para as deportações. Por isso, alguns destes judeus já lá estavam no campo e, quando se tornou num campo de trânsito, eram os prisioneiros mais antigos. E eles conseguiram esses trabalhos mais cobiçados, e como eram alemães, falavam a língua, por isso era mais fácil para os guardas da SS [abreviatura de Schutzstaffel, autoridades do regime nazi] – que eram muitos poucos nos campos –, e para os chefes, trabalhar com eles. Portanto, era muito claro que estes prisioneiros mais velhos se tornaram nesta espécie de classe mais alta, responsável por guardar os restantes prisioneiros.
Portanto, todos esses factores aumentavam consideravelmente as hipóteses de sobrevivência.
Exactamente. E vemos, de uma forma muito clara, no caso de Peter van Pels [um dos ocupantes do Anexo Secreto] que esses privilégios podiam perder-se muito abruptamente. Quando Auschwitz estava prestes a ser libertado, e todas as pessoas do campo foram evacuadas e postas em marchas de morte para os outros campos – Otto estava no hospital e, por isso, ficou para trás –, Peter foi levado para Mauthausen, e aí perdeu todos os privilégios. Passou a estar num novo campo, as regras eram diferentes, e voltou outra vez à estaca zero. E nós também utilizámos a entrevista de outro rapaz judeu da Holanda com o mesmo percurso e que teve o mesmo tipo de posição em Auschwitz, e ele explica o choque que foi perder a posição que tinha, e caminhar na marcha da morte, ser maltratado e agredido. Mal sobreviveu. Esse rapaz sobreviveu, mas Peter não aguentou. O mais trágico é ele ter sobrevivido até à libertação do campo, mas, poucos dias depois, faleceu.
Campo de concentração de Bergen-Belsen, onde Anne Frank morreu em Fevereiro de 1945.
Outra parte que chocou muitas pessoas foi a existência de guardas femininas nos campos, capazes de cometer actos de grande crueldade. Qual era o papel destas mulheres?
Na maioria dos campos, os homens e as mulheres eram separados uns dos outros. Em muitos dos campos, as zonas onde as mulheres ficavam eram fiscalizadas por mulheres. Não eram guardadas apenas por mulheres, mas as mulheres desempenhavam um papel importante nessas áreas.
Para o regime nazi era relevante serem mulheres a vigiar outras mulheres?
Sim, mas não era algo exclusivo dos nazis; era algo bastante comum de se fazer, optar-se por ter guardas femininas a supervisionar prisioneiras. Essas guardas-mulheres foram criadas e treinadas entre os nacionais-socialistas nesta linha de tratamento duro e de radicalização, numa forma muito semelhante aos homens. Acho que esta perplexidade sobre o papel dessas mulheres talvez diga mais sobre o que nós pensamos que elas deveriam ser. Se pusermos pessoas – sejam homens ou mulheres – neste tipo de treino e de pensamento, que vêem os prisioneiros como não sendo humanos como nós, é algo que pode acontecer. De facto, creio que, depois da guerra, as guardas-mulheres em particular foram tratadas como se fossem loucas, enquanto que, relativamente aos homens, se esperava mais que eles fossem violentos sem que isso fosse visto como fruto de alguma perturbação mental. Nos processos em tribunal depois da guerra, vemos que estas mulheres foram frequentemente tratadas como sendo loucas.
A proporção de guardas masculinos e femininos era semelhante?
Não, não, havia muitos mais guardas masculinos do que femininos.
Também é interessante que, como é referido várias vezes no livro, Otto Frank, e outros sobreviventes, não se tenham estendido muito nos seus depoimentos e não falaram sobre as suas experiências com detalhe…
Sim, seria de pensar que Otto Frank providenciaria um depoimento mais extenso. E eu acho que isso de pedir-se às pessoas que nos contem as suas histórias de vida em grande detalhe é algo que nós, como sociedade, só começámos a fazer já depois de ele ter morrido. Portanto, nós vemos projectos como o USC Shoah Foundation, ou o History Project nos Estados Unidos, em que pedem às pessoas para testemunhar durante horas e horas sobre o que lhes aconteceu, mas isso só começou por volta dos anos de 1990. Então, nós vemos com frequência que estes testemunhos mais iniciais não são tão detalhados como os testemunhos posteriores. Creio também que Otto acreditava em contar o que lhe aconteceu, a ele e aos judeus em geral, utilizando o diário da filha. O Diário foi algo ao qual ele dedicou a sua vida. Ele estava disposto a falar um bocado sobre a sua experiência, mas o mais importante sempre foi o diário de Anne, a história dela. De resto, talvez se devesse também a razões psicológicas, e definitivamente terá que ver com o trauma por causa de tudo o que passaram.
Isso obstaculizou de alguma forma a investigação do Holocausto?
Um obstáculo… Sim, por vezes queríamos falar mais sobre o que aconteceu. Felizmente, temos outras testemunhas que tiveram vidas longas e foram entrevistadas já após a morte de Otto, e que complementam a história contando as suas experiências. Alguns amigos de Otto deram testemunhos muito detalhados sobre como sobreviveram juntos a Auschwitz, e como tentaram não desistir. Portanto, sim, tivemos que olhar para outros depoimentos.
Já se passaram quase 80 anos desde o fim da Guerra, e este livro ainda traz novos dados sobre esta já tão conhecida história. Ainda há margem para novas desenvolvimentos no futuro?
É sempre difícil de dizer. Já percorremos um longo caminho, sobretudo quanto ao período nos campos. Surpreender-me-ia se descobríssemos algo completamente novo para acrescentar a esta história, até porque este livro não é apenas o resultado da nossa pesquisa para a Casa de Anne Frank, mas também reúne tudo o que fizemos e pesquisámos durante as últimas décadas. Portanto, seria surpreendente encontrar algo novo, mas nunca temos certeza na investigação histórica. É sempre possível que novas informações se revelem. Por outro lado, nas biografias destas pessoas, que terminam nos campos de concentração, penso que há mais terreno para desbravar relativamente às suas vidas na Alemanha antes de terem sido obrigadas a fugir para a Holanda, e ao período que antecede. Nunca se sabe. Da família Frank, claro, já sabemos bastante. Mas dos outros ocupantes do Anexo e dos ajudantes, acho que ainda haverá mais coisas para contar, sim.
Jornalista veterano, professor universitário – leccionando ética e deontologia no Jornalismo –, Paulo Martins é um nome incontornável na Imprensa em Portugal. É também o autor do livro “O Bairro dos Jornais”, que reúne o património histórico sobre a concentração da imprensa no Bairro Alto, em Lisboa, precisamente o local que é hoje a casa do PÁGINA UM. Numa entrevista, dada na redacção do PÁGINA UM, na véspera do primeiro aniversário do jornal, Paulo Martins fala da História do Jornalismo em Portugal, mas também partilha a sua visão sobre os actuais desafios da classe e a grave crise do sector. Defendendo a ideia do apoio público aos media, critica porém o “mimetismo” que grassa no sector, com os órgãos de comunicação social a fazerem todos as mesmas notícias, com o mesmo ponto de vista. E avisa que a pressa em publicar notícias pode contribuir para a desinformação. Sobre a dificuldade no acesso a informação pública, Paulo Martins ainda alerta: “fazemos de conta que temos uma Administração Pública transparente, mas não temos”. Pode ouvir a entrevista integral (não editada) no PODCAST do PÁGINA UM.
Foi difícil preparar esta entrevista, porque temos tantos temas que poderíamos abordar. Mas começo por te perguntar: de facto, este património da História do jornalismo parece-te estar protegido hoje? Agregaste isso neste livro [O Bairro dos Jornais, publicado em 2018] mas, de resto, parece um pouco disperso e poucas pessoas sabem dele…
Pois, eu acho que os poderes públicos esquecem-se que têm aqui um património importante, até do ponto de vista turístico. Porventura, noutro país em que a imprensa tivesse tido este significado num espaço que basicamente é o Bairro Alto e o Chiado, com uma enorme concentração de jornais, seguramente que já haveria visitas guiadas a antigos espaços. Não faltam aqui na zona edifícios que receberam gerações de jornais sucessivamente, desde o século XIX. Enfim, o Diário de Notícias, naturalmente, porque teve várias publicações, o Grupo do Século… mas outros edifícios, como por exemplo um que fica no Largo de Camões, recebeu pelo menos 20 jornais ao longo dos anos; de curta duração ou de maior duração. Eu acho que esse património devia ser transmitido, isto é, esta é a pátria da imprensa em Portugal. Não há outra, há pouco mais do que isto em termos de dimensão. Infelizmente, já estão poucos títulos aqui e felicito-vos por terem escolhido este espaço para reatar com a história tão nobre do jornalismo no Bairro Alto.
Paulo Martins, anteontem, na Rua do Diário de Notícias, no coração do Bairro Alto, momentos antes de conceder entrevista ao PÁGINA UM
E uma das questões que referes no teu livro, e que ressalta para quem é jornalista, é aquela ligação forte que existia entre política e jornais e jornalistas. Andavam de mão dada. Como é que era antes, e como é hoje?
Há vários “antes”. Dois ou três dados sobre isso. No século XIX, um senhor que foi dos mais dinâmicos jornalistas desta zona, o Rodrigues Sampaio, que tinha o Revolução de Setembro, e depois criou outros jornais, andou com a imprensa de um lado para o outro, a fugir às autoridades e a escapar à censura… Quando teve ele próprio a oportunidade de ser ministro, impôs uma lei da rolha e passou a ser atacado pelos jornalistas, porque seguiu esse caminho. No tempo da ditadura fascista, aconteceu basicamente o mesmo, não é? Talvez seja importante nós percebermos o contexto geográfico. A minha ideia no livro foi partir da geografia para a ocupação do espaço pela imprensa. Estamos a falar de quase 600 jornais que eu identifiquei desde 1850, quando os jornais passaram a ter uma referência específica à redacção, porque até aí não tinham; tinham, eventualmente, a tipografia. E portanto, nesse período, todos os jornais vão-se concentrando aqui. Mas, por exemplo no Estado Novo, tinhas também a Casa da Imprensa, que é aqui na zona, existe ainda hoje, e ainda bem que existe; é uma associação mutualista da área da comunicação. O Sindicato dos Jornalistas, que não é muito longe, na Rua dos Duques de Bragança, portanto ao pé do Chiado. E os serviços de censura, que ficavam em frente do República, ao lado de onde é hoje a Associação 25 de Abril, que teve os jornais do regime – o Diário da Manhã e a Época –, e tinha tido antes um jornal ferozmente republicano chamado O Mundo, que os opositores monárquicos chamavam “imundo”, porque era de uma violência inaudita contra a monarquia. Portanto, há vários momentos de relação com a censura ou com a situação, não é? No pós 25 de Abril, juntaram-se aqui vários jornais, além dos jornais que já existiam, sobretudo vespertinos: O Diário de Lisboa, A Capital, O Diário Popular… foram criados aqui alguns jornais do “contra” no sentido de serem jornais saudosistas do anterior regime, no mesmo espaço onde estavam os jornais claramente colocados no lado oposto do espetro político. E o que mais me chamou a atenção, nesse período do Estado Novo, foi que as cumplicidades e a camaradagem entre jornalistas se sobrepunham às posições políticas. Quer dizer, ninguém aceitava a censura, mesmo os jornalistas que eram próximos do regime, mas havia jornalistas que eram próximos do regime e outros que não eram, e conviviam, passavam material uns aos outros. Isto é, a cooperação sobrepunha-se à competição, sendo que cada um tinha de competir. Posso contar-te, a esse propósito, um episódio muito interessante. Um administrador do Diário da Manhã, que era um jornal financiado pelo Governo do Salazar – portanto, era financiado pelo Estado –, mandou uma carta precisamente a Salazar a dizer que estava com problemas financeiros, porque ninguém comprava o jornal e os poucos que compravam escondiam-no, e que até já tinha tido necessidade de pedir papel ao República, que ficava do outro lado, na rua da Misericórdia, e que era da oposição. E o jornal República fornecia o papel, porque era necessário [risos]. Isto é uma coisa difícil de compreender fora desse contexto, da tal partilha do mesmo espaço. E isso é nítido nas memórias dos jornalistas que eu usei como fonte neste livro, porque não havia nada sistematizado, e o que há é sobretudo livros de memórias dos vários jornalistas.
Paulo Martins, e o seu livro O Bairro dos Jornais, na redacção do PÁGINA UM, com os jornalistas Elisabete Tavares e Pedro Almeida Vieira
E escreves também sobre jornais que nasceram com propósitos políticos, digamos assim.
Claro, claro. Sobretudo no século XIX… E já não falo sequer dos jornais da chamada propaganda republicana, que a partir do ultimato de 1880 passaram a ser ferozmente anti-regime de uma forma que nós hoje ficaríamos impressionados com a ética que poderiam ter, se é que tinham alguma [risos]. Portanto, eram de uma violência enorme contra a monarquia; espalhavam boatos e aquilo a que nós hoje chamaríamos “desinformação”, que sempre existiu. Mas os jornais nessa época, no século XIX, eram, em grande parte, jornais criados por partidos ou por tendências dentro dos partidos, que muitas vezes eram criados para conduzir um deputado ao poder, por exemplo, e depois desapareciam. Há um episódio que me contam, em que o jornalista em causa, que se chamava Alberto Bramão, confessa nas suas memórias que a certa altura lhe mandaram escrever um texto violento contra um político, que era director de outro jornal. E ele escreveu, e nem sequer assinou, porque na altura não se assinava. Depois descobriu que era mentira, e ficou revoltado por ter escrito uma coisa que lhe encomendaram e que era mentira, e então demitiu-se do jornal. É uma coisa espantosa, porque ele não tinha sequer de assumir aquilo, não assinou, não é? Mas, a certa altura, ele dizia uma frase fantástica sobre o episódio, que era: “o capitão manda e o marinheiro obedece”. Portanto, ele estava disponível para escrever por conta de qualquer tendência política, era o ganha-pão dele.
Mas há uma ideia, se calhar, em algumas pessoas, de que, antigamente, havia um jornalismo puro, e que hoje é que está muito diferente… Só lendo o teu livro e a história do jornalismo se percebe que não era assim. O jornalismo caminhou muito e hoje tem qualidade [em comparação].
Não era assim nem tem de ser. Eu acho que a discussão é um bocadinho diferente. Eu costumo defender, até do ponto de vista académico, que a independência do jornalismo não é todos fazermos de conta que não temos partido nenhum. É assumirmos as nossas posições, e sermos julgados com base no conhecimento público dessas posições.
Aliás, há jornais que editorialmente se assumem…
Exactamente, e assumindo-se editorialmente como sendo de uma área política ou de outra, não significa que sejam menos profissionais. Podem seguir as mesmas regras, e devem seguir as mesmas regras. O jornalismo é, basicamente, como dizem dois autores americanos, uma disciplina de verificação. É um método, e se cumprimos todos o método havemos de chegar a resultados semelhantes, não iguais, porque isto não é matemática. Felizmente, não é? [risos] Mas não tem nada a ver com o posicionamento político; quer dizer, a ideia de que somos muito independentes e, portanto, não tomamos posição nenhuma… O facto de não tomarmos posição é, em si, uma posição. Portanto, não faz sentido fazermos de conta que somos independentes. O que é que eu quero dizer com isto? Que, basicamente, eu prefiro os poucos jornais que na fase democrática da nossa História, desde 1974, assumiram posições [políticas], claramente do ponto de vista editorial; por exemplo O Independente. Era claramente um jornal à direita e assumia-o. Eu trabalhei n’O Independente e sempre fui de esquerda e nunca me ocultei, e ninguém me obrigou a ser diferente. Do ponto de vista editorial, seguia a sua linha, e os jornalistas faziam o seu trabalho. E depois O Diário, que era próximo do Partido Comunista e assumia essa condição. E as pessoas compram, ou lêem, e acreditam… Ninguém é independente, ninguém está “de fora”… Nós somos cidadãos também. Em tempos, um jornalista chegou a dizer que era tão independente que nem sequer votava. Isso é um disparate absoluto, não é? Eu prefiro os jornalistas que assumem a sua posição, clubística, política, partidária, se a têm. E depois nós julgamos em função disso; não vale a pena fazermos de conta. E nessa altura ninguém fazia de conta, porque todos tinham essas posições mais ou menos marcadas.
E contas também como havia todo um rol de publicações satíricas e de crítica, ou seja, havia uma multiplicidade de exemplos que não têm muito a ver com aquela ideia de jornalismo puro e objectivo, que se calhar existe numa camada da população que não conhece a História do Jornalismo.
Não, os jornais muito cedo se estratificaram internamente. O repórter era o coitado que estava à porta da esquadra a ver se conseguia alguma coisa, e que tinha uma arte específica para isso, que não era a mesma que a do redactor. Ele levava o material e o redactor escrevia em português. Ou seja, basicamente dava forma jornalística às informações dispersas. Mas há outro aspecto muito interessante, do qual eu tomei consciência quando investiguei para o livro, e eu digo isto um bocado na brincadeira, mas é verdade: só mais tarde é que surgiram os vespertinos, mas, logo no século XIX, os escritores trabalhavam nos jornais para ganhar dinheiro à tarde, e de manhã escreviam contra os jornais [risos]. Por exemplo, Eça de Queiroz tem belas peças contra os jornalistas, pelos quais ele não tinha grande consideração, mas ele escrevia para os jornais para ganhar dinheiro. Sei lá, o [historiador e político do século XIX] Oliveira Martins foi director de um jornal… Repare, o caso do Oliveira Martins é muito interessante, porque o jornal estava no edifício onde fica hoje uma seguradora, no Chiado, em frente à boca do metro, do outro lado. E eu tive muita dificuldade em perceber onde é que, afinal, era o jornal, porque na época, toda aquela rua era a Rua Garrett. E agora aquela parte é o Chiado, não é? E esse jornal tem uma história giríssima, precisamente no período em que Oliveira Martins era director e acontece o Ultimato inglês, e os jornais todos – monárquicos e republicanos – tomam posição contra o Governo por se ter posto de cócoras perante a Inglaterra. E o jornal chamava-se Repórter. Então, eles decidem que o jornal deixa de chamar-se Repórter, porque não pode ter um nome inglês [risos]. E muda de nome, e muda-se para o Bairro Alto. E o jornal era muito afirmativo em termos políticos. Montes de escritores de renome escreveram nos jornais. Depois, mais tarde, na fase do Estado Novo e da Primeira República, foi a mesma coisa. Por exemplo, uma grande figura do Estado Novo, que é aliás o ideólogo do ponto de vista cultural, que é o António Ferro, escreveu em vários jornais, incluindo O Diário de Lisboa. A memória que temos d’O Diário de Lisboa é que era um jornal contra o regime, mas nos primórdios tinha o António Ferro entre os seus colaboradores. O Almada Negreiros… enfim, essa é outra vertente, que é, tínhamos muitos jornais humorísticos, como O Sempre Fixe, O António Maria. Os jornais do Bordalo Pinheiro foram quase todos no Bairro Alto. Ele escreveu, fundou e fechou vários. O António Maria era do nome António Maria de Fontes Pereira de Melo, que era o ministro, que queriam criticar e militantemente criticavam sempre nos seus desenhos. Mas depois tinhas os jornais sindicais, por exemplo. Entre os jornais humorísticos, O Sempre Fixe, que era propriedade d’O Diário de Lisboa, era desse pequeno grupo, onde o Stuart Carvalhais foi dos mais geniais a escrever, e depois, mais tarde, o João Abel Manta. Portanto, também temos uma geração de caricaturistas que eram jornalistas, não eram uns tipos que sabiam umas coisas de desenho. Eram jornalistas que se exprimiam de outra forma. Uma das coisas mais fantásticas que descobri foi sobre a Rua da Barroca. A certa altura, no início da República, havia dois jornais anarquistas, que se digladiavam entre si a propósito das linhas do anarquismo. Eu não consegui perceber qual era a diferença, mas eles percebiam [risos]. E eram muito violentos nos editoriais, um contra o outro. A certa altura, os dois directores tornaram-se amigos, porque A República, como definitivamente rompeu com o movimento operário, meteu os dois na prisão do Limoeiro; e eles tornaram-se amigos, depois de terem sido presos [risos]. Portanto, há esses episódios interessantes que mostram como as coisas foram evoluindo nesse sentido… Por exemplo, um jornal que existia mesmo no largo do Chiado, chamado A Verdade, era assumidamente salazarista, o director era salazarista, mas onde escreveu, ainda bastante tempo, um senhor chamado Humberto Delgado, na fase em que ele próprio era salazarista. Nesse mesmo edifício, entre 1918 e 1922 ou 1923, existia um jornal chamado Imprensa da Manhã, que militantemente incentivou a Noite Sangrenta de 1921. Claro que não tinha a noção de que ia dar no que deu, mas incentivou, fez reportagens juntamente com os assassinos, uma coisa inacreditável. E, como as coisas correram mal, no fim os assassinos foram à redacção do jornal dizer: “então, como é que é agora?”. E eles tentaram tirar-se de fora, mas tinham escrito várias reportagens, não só a incentivar, como a acompanhar a Noite Sangrenta. O redactor-chefe, como se chamava na altura, desse jornal era o Esculápio, que ficou conhecido como um dos grandes repórteres. E era, de facto, um grande repórter, mas foi quem incentivou aquilo tudo. Era uma história que não se conhecia. Eu é que, digamos, juntei peças, e é um caso em que um jornal activamente tem uma posição política, que dá em sangue; claro que eles não previam isso. Imagina o que é fazeres uma volta com um side-car a acompanhar as pessoas que estão a apanhar os políticos que estão à mão, na casa deles. É uma coisa terrível.
Era, nesse sentido, a minha pergunta. Porque hoje há qualidade, na medida em que há regulação, cursos universitários para jornalistas. Estamos num mundo completamente diferente desse jornalismo, e existe um código deontológico. Há aqui uma série de travões, digamos assim, para que algumas coisas não possam voltar a acontecer?
Há, mas vamos lá ver: o código deontológico é de adesão voluntária, não há sanções, aparentemente. Eu gostava de chamar a atenção para isso, porque ouço muitas pessoas das ordens profissionais… Ou seja, melhor dizendo: em regra, as ordens profissionais – não estou a generalizar, porque seria injusto –, quando actuam do ponto de vista disciplinar por razões deontológicas, é porque já houve notícias sobre os casos, o que eu acho gravíssimo, porque têm condições para serem transparentes, e dizerem que estão a investigar este médico ou este advogado. E ninguém sabe. Eu posso ir a um médico que está a ser punido pela Ordem, e não sei, não é? Sabem eles, entre eles. No jornalismo não há uma Ordem, felizmente; eu fui dos que batalhei contra a Ordem. Não há nenhuma sanção directa sobre o exercício profissional, sobre o salário, não se pagam multas. Mas se eu, enquanto jornalista, for objecto de uma queixa ao conselho deontológico do sindicato, e o conselho deontológico apreciar e confirmar que eu violei uma norma, publica no site do sindicato: “o Paulo Martins violou o código”.
E isso afecta a credibilidade.
Isso é pior do que uma multa! Porque uma multa, eu pago e ninguém sabe; ali, o meu nome profissional fica marcado e ninguém sabe. Portanto, eu gostava que esse exemplo fosse seguido por outras entidades que tanto falam. Não é de originalidade portuguesa, é assim em vários países. A maior parte dos sindicatos tem instrumentos deste género. Depois, há a lei, mas a lei precisa de alguns aperfeiçoamentos. Mas também é preciso termos em conta uma coisa que “baliza” a intervenção regulatória: nós estamos a falar de um campo muito sensível. Não é a entidade reguladora do sector eléctrico, não é? Qualquer intervenção de uma entidade reguladora na área da comunicação pode ser sempre encarada como uma intervenção censória, mesmo que não queira ser. Portanto, é mais delicado, é mais difícil intervir. Ou então acontecem coisas como este absurdo da decisão sobre o Ricardo Araújo Pereira, que não tem o mais pequeno sentido. Primeiro, o Ricardo Araújo Pereira convida para o programa dele quem ele quiser. Segundo, a SIC não tem que andar à procura de quem aceite entrevistar alguém, porque as pessoas têm autonomia para o fazer, não é? Eu acho que o Ricardo Araújo Pereira respondeu bem, se ele fosse jornalista tinha o dever de ouvir todos e de falar com todas as áreas; para aquilo convida quem ele quer. E tem esse direito, aquilo é um programa de entretenimento. Portanto, isto para dizer que é fácil intervir em programas de entretenimento, dizendo estas coisas sem jeito [risos]. Intervir nos conteúdos, obviamente que não pode acontecer. Ou seja, há aqui sempre alguma limitação.
Tu és um jornalista com muita experiência, um veterano que conhece o sector por dentro na sua versão moderna e pós-democrática, e também tens muita experiência no jornalismo desportivo, que se calhar ainda é o que agrega muito do que era o jornalismo de uma certa época...
Isso tive há 30 anos [risos].
Mas, hoje há, de facto, uma globalização; há esta força que é a Internet, as redes sociais, e a forma como as agências de notícias tiveram de se adaptar. E surge o churnalism, ou a reciclagem de notícias, com o risco de uma notícia não rigorosa, de repente, ser espalhada por todo o lado. Uma vez que também és professor investigador, o que te surge quando vês a forma como tudo isto funciona, sem haver balizas? Porque todos os dias nós vemos notícias replicadas assim…
[pausa] Os jornalistas, se continuarem a privilegiar a rapidez na difusão da informação em vez do rigor, vão sempre contribuir para a desinformação, ainda que involuntariamente. Eu acho que, ao contrário do que acontecia, se calhar há 20 anos, não há nenhuma justificação para nós sermos rápidos a transmitir. Repara: uma coisa é teres uma grande investigação e quereres divulgá-la. É a tua investigação, promoves, muito bem. Outra coisa é eu ter uma notícia e querer transmiti-la a correr, e não sei se ela está confirmada. Isto não faz nenhum sentido, porque tu hoje tens muitos mais meios de acesso à informação. Hoje não falta informação; falta é garantir que é verdadeira. E, portanto, a nossa preocupação deve ser transmitir só quando tivermos a garantia de que posso “dar a cara” por esta informação. Os jornalistas que ficaram na História por causa do caso Watergate têm um princípio muito interessante: o jornalista deve apresentar a verdade disponível no momento – que é: o que hoje é verdade, e eu tenho condições para dizer e pude chegar a esta conclusão, amanhã pode não ser, porque houve uma evolução ou há um dado que eu não conhecia. Mas eu tenho é de ter a honestidade de dizer: até aqui é isto que eu sei. E não tenho nenhuma necessidade de correr. Para que é que eu corro? Para escrever que uma pessoa morreu, e afinal não morreu, como ainda recentemente aconteceu? Isso não tem nenhum sentido. Antes, nós dizíamos “li no Diário de Notícias”, ou “vi na RTP” ou na TSF, seja o que for. Hoje dizemos “vi na Internet”. E isto é destruidor para o jornalismo. Repara, eu não tenho nada contra as pessoas hoje se informarem de outra maneira, o papel está em desaparecimento, temos outros meios de transmitir a informação. Mas o único antídoto que eu conheço para a desinformação não é de quem emite, é de quem recebe. O destinatário é que tem de confirmar, ver outros sites, porque mesmo os órgãos de comunicação mais prestigiados também estão vulneráveis à desinformação. Hoje, para se fazer desinformação eficaz usa-se precisamente o órgão prestigiado, porque as pessoas acreditam. Eu costumo usar este exemplo quando falo com os meus alunos, para se perceber que este fenómeno não é novo, só ganhou volume. Quando as forças da chamada coligação internacional invadiram o Afeganistão, o The Guardian, prestigiado jornal inglês, publicou na primeira página uma fotografia de um soldado inglês no Afeganistão que tinha sido enviada por um leitor benemérito. A fotografia era fortíssima, fantástica. Então, descobriu-se que tinha sido propositadamente enviada, que era um Action Man, e que a fotografia tinha sido tirada em cima de uma mesa com um bocadinho de musgo à volta para fazer de conta que estava num cenário de guerra. E o jornal desfez-se em desculpas. Porque é que se vai atrás do leitor que enviou? Hoje todos vão. O dito jornalismo do cidadão. Tu publicas fotos das cheias, mas não tens a certeza se as fotos são de hoje ou de há 10 anos, mas é o contributo do leitor. Então, e se a coisa der para o torto? É o jornal que divulga, e é o leitor que é responsável? Se calhar o leitor usa um pseudónimo [risos].
Agora, todos os meios de comunicação social replicam notícias de agências, que podem até conter incorreções graves, mas também “lavam as mãos”; dizem que isto é da agência, que não lhes cabe confirmar, só replicam. Como investigador, vês uma forma de sair deste modo de fazer jornalismo? O jornalismo passa por verificar, não?
Estamos a falar de duas realidades diferentes. Uma agência tem como missão enviar informação para os seus clientes, que são os órgãos de comunicação. E, portanto, se os órgãos de comunicação cumprem o seu dever de dizer: “isto é uma informação que veio da agência”, estão a imputar a uma fonte que consideram credível. O problema é quando usam material da agência sem o citar, e se a coisa dá para o torto dizem que foram os outros. Como aconteceu precisamente com a notícia da morte do historiador José-Augusto França, em que órgãos de comunicação, que foram atrás do que o Público escreveu – e antes de o Público ter pedido desculpa, e bem, pelo erro que tinha cometido –, não o citaram, e depois disseram “nós dissemos o que o Público disse”. Isto não é aceitável. Mas o problema de fundo é que os órgãos de comunicação estão a atravessar uma crise financeira, de tal modo, que têm de inventar receitas. E convencionou-se a ideia de que um título muito chamativo é mais replicado… e infelizmente nós estamos a contribuir para as pessoas terem como actividade replicar títulos, em vez de lerem notícias. Nós, jornalistas, contribuímos para isso, e contribuímos há muitos anos. A certa altura começou a dizer-se, e bem, que se escrevia imenso e que as pessoas não tinham tempo para ler tanta coisa, que tinha que se procurar escrever menos, sintetizar. Muito bem. A certa altura, sintetizamos tanto que já não dizemos nada que possa ser mais do que hard news.
E visões diferentes. Hoje sente-se falta de visões diferentes. Tirando algumas excepções, há uma sensação de que é tudo muito parecido?
É mimetismo. Mimetismo que, infelizmente, se incentiva os jovens a jornalistas a terem, porque os órgãos de comunicação criaram um sistema, e não é só cá, que é: “estamos todos a marchar no mesmo sentido”. Se um marchar fora da linha estabelecida vai ter de justificar por que não está a marchar como os outros. E, portanto, o mais cómodo é: “eu vou atrás”. E estamos todos a contribuir para visões uniformes da realidade; se cometermos um erro, os outros também cometem, porque estamos a caminhar no mesmo sentido… aquilo que mais me preocupa é isso. Talvez fosse a hora dos poderes públicos perceberem que nós temos que olhar para o jornalismo como um bem público. De cada vez que se fala em apoio público, é do Estado, mas não é do Governo. Há sistemas de apoio à imprensa na Europa que são completamente transparentes. Por exemplo, na Áustria é em função do número de jornalistas, ninguém pergunta qual é o partido ou a área política do jornal. Mas nós temos essa relutância, não queremos apoios do Estado, a começar pelos directores. Mas porquê, se o Estado apoia tanta coisa? Se apoia a Web Summit, e áreas da Economia que entende que são importantes, porque não apoiar a imprensa? Isso está mais do que assumido, por exemplo, naquilo que nós tanto queremos seguir, que são os países nórdicos. Todos os países nórdicos têm modelos de apoio à imprensa, porque entendem que é um bem público e portanto tem que ser apoiado.
Se calhar há aquele receio da politização, mas que acontece na mesma, sem os fundos [risos].
Acontece, por exemplo, com a publicidade institucional que é distribuída, aí sim, arbitrariamente pelos Governos. Que pode haver – não digo que haja – a suspeita de que beneficiam quem é benigno para o Governo, e prejudicam quem não é benigno. Estas acusações não são novas, são muito velhas [risos].
Era melhor haver algo que tornasse mais transparente, digamos assim…
A transparência é sempre a melhor receita. Qual é o problema de um jornal dizer “nós recebemos do Estado este dinheiro”? Toda a gente fica a saber, e se eu, enquanto consumidor da informação, achar que o facto de receber do Estado torna o jornal menos sério ou menos independente, o que é que hei-de fazer? Não compro. Eu costumo dizer que a independência é poder escrever e dar a cara pelo que escrevo sem nenhuma pressão interna ou externa, porque no limite sou eu que vou a tribunal se as coisas correrem mal, não é o director nem o proprietário. Porque se eu não dependo do Estado, eu dependo do anunciante. Em que medida é que o anunciante influencia o meu trabalho? Pode não influenciar directamente, mas o jornalista pode não ter consciência de que está a fazer um trabalho que foi previamente encomendado por alguém.
E sobretudo quando há jornalistas cada vez mais jovens nas redações; aquele jornalista veterano já é uma espécie rara…
Sim, isso desapareceu… Voltando ao livro O Bairro dos Jornais, porque é que havia relativamente pouca concorrência na altura do Estado Novo? Porque os jornalistas tinham, do ponto de vista laboral, obrigação de trabalhar cinco horas para poderem trabalhar no Jornal da Tarde e no Jornal da Manhã ao mesmo tempo. Isto é, de manhã trabalhavam para o da tarde, e à tarde trabalhavam para o da manhã, cinco horas em cada sítio para terem um salário minimamente digno. Depois as coisas evoluíram. Nos anos 1970 já os salários tinham evoluído positivamente e avançaram bastante. Mas, nessa altura, era assim. O grupo dos jornalistas não era assim tão numeroso. Aliás, há uma história que eu não resisto a contar e que tem a ver com essa cumplicidade que se criava nos jornais. A certa altura, no tempo do Estado Novo, há um caso ou outro de jornalistas que foram punidos ou presos pelo que escreveram. Regra geral, não era por isso, mas porque estavam envolvidos em actividades consideradas subversivas e tinham problemas com a polícia por causa disso. Então, um dia, a PIDE foi buscar ao Diário Popular o Mário Ventura Henriques, que era da oposição, do Partido Comunista. Portanto, levou-o preso, e o administrador do jornal chamou um outro jornalista e disse-lhe: “vais à secretária do Mário Ventura Henriques e tiras tudo o que possa comprometê-lo, e levas tudo para o Diário da Manhã, que aí a PIDE não vai porque é do regime”. Isto foi o administrador que disse! Ou seja, isto é a solidariedade que se sobrepõe ao resto. Os jornalistas que foram presos por razões políticas, foram libertados, voltaram aos jornais, e durante o período de ausência os jornais continuavam a pagar-lhes os salários. O que era mal visto pelo regime, mas continuavam. E era assim, naturalmente. Portanto, as solidariedades sobrepunham-se às divisões políticas. Por exemplo, um jornalista que era o Félix Correia, que era admirador do Hitler, e era do regime naturalmente, tem dois episódios interessantes. Um é no dia em que um jornalista n’O Diário de Lisboa tinha acabado de ser libertado, no tempo do fascismo; e, quando chega ao jornal, a primeira pessoa que lhe vai dar um grande abraço é o Felix Correia, que era do regime. Então, o Félix Correia escreveu vários textos apologéticos do nazismo, do Hitler e do Mussolini n’O Diário de Lisboa, antes da guerra. Depois da guerra, o regime quis distanciar-se, naturalmente, do nazismo e do fascismo italiano. E resolveu compilar em livro as crónicas que tinha publicado n’O Diário de Lisboa e a censura disse: “não dá”. E ele disse: “mas eu já publiquei isto e agora foi à censura?”; e disseram-lhe: “sim, mas as coisas mudaram, portanto agora não podes publicar o livro” [risos]. Eu acho uma coisa muito curiosa. No pós-guerra, o regime quis aproximar-se dos Aliados, e, portanto, não dava jeito nenhum.
Voltando à memória nas redações. Eu tive a sorte de trabalhar com jornalistas que cobriram a passagem para a democracia, o que é de uma riqueza incrível. Tu também conheces bem as redações de hoje, que são muito diferentes. E os jovens jornalistas encontram hoje pouca memória. E, mesmo pesquisando no Google, não se encontra toda a informação e não se vai aos centros de documentação onde antes tínhamos que ir buscar a informação.
O problema é que os jornalistas jovens chegam à redacção e não só não têm a memória dos mais velhos como não têm quem os apoie. São logo atirados às feras. Passam logo a ter que escrever várias notícias por dia sem apoio nenhum. Eu sou membro da direcção editorial da revista Jornalismo & Jornalistas, que está disponível online, e na edição que está mesmo prestes a ser disponibilizada, nós entrevistamos o Fernando Dacosta, que é este ano o Prémio Gazeta do Jornalismo. E ele conta como lhe dava prazer ser orientador dos estagiários, porque achava que aprendia sempre qualquer coisa nova com a malta que aparecia. Isso já não existe. Quem é que ajuda um estagiário hoje em dia? Quer dizer, aquele estagiário passa por ali, depois vem outro também muito barato, e o que interessa é encher páginas. Isso é muito preocupante para a democracia, porque nós precisamos de jornalismo interventivo e que ajuda à reflexão. Jornalismo que trabalhe para o interesse público e que satisfaça o direito de todos nós à informação, que no fundo é, basicamente, ajudar-me a tomar decisões. Ora, eu não consigo ser ajudado a tomar decisões quando as notícias são feitas sem contemplarem várias vertentes e visões, que, aliás, é uma exigência deontológica, tal como o rigor, já agora. O Código Deontológico fala em rigor, e convinha que fosse preservado. E, portanto, nós estamos, de facto, a alimentar um negócio que obviamente está em crise. E eu não estou a defender que os jornais não devessem dar lucro, claro que têm de dar lucro, não é? Ter um jornal como o Público, que é alimentado por um grupo e que dá sempre prejuízo, é inédito e não acontece com frequência. Felizmente, tem um mecenas, enfim. O Fernando Dacosta, já agora, também conta nessa entrevista – ele foi um dos fundadores do Público, também – uma história. Numa reunião, num espaço público, ou seja estavam várias pessoas, questionaram o Belmiro de Azevedo, o líder histórico da Sonae, proprietária [do Público], sobre o dinheiro que ele estava a gastar ali, e ele respondeu qualquer coisa como: “antes de eu ter um jornal, eu era conhecido pelo Belmiro dos supermercados, agora, com o jornal, eu sou convidado para as universidades e passei a ser uma pessoa importante. Ora isso também custa dinheiro!”. Portanto, para ele era um investimento social, sem precisar de meter a unha no jornal, de fazer censura. Repare, o jornal diz, sempre que escreve sobre a Sonae, que é proprietária do Público, e muito bem! Sempre a transparência, lá está.
Temos tido dificuldade, como jornalistas no PÁGINA UM, em encontrar, sim, transparência em algumas entidades, até da Administração Pública. Era expectável que no século XXI, quando deveríamos poder ter acesso a mais informação, houvesse este fechar do acesso de jornalistas a informação por parte de entidades públicas?
Não é só os jornalistas, é também os cidadãos. Os jornalistas, pela sua função, têm de ter. Nós, em Portugal, temos uma tradição de fechamento, de ocultação, da ideia de que a Administração Pública não tem de divulgar informação. E, do ponto de vista legislativo, fomos caminhando, felizmente no sentido contrário: tudo é público, excepto aquilo que não pode ser divulgado por razões de privacidade, segurança nacional. O problema é que, na prática, a teoria é outra, como alguém dizia. Por exemplo, o meu querido amigo José António Cerejo, um extraordinário jornalista de investigação, já teve problemas, várias vezes, em ter os documentos que formalmente deveriam estar no Portal Base, mas depois está rasurado aquilo que importa. Ele chegou ao ponto de ter, por exemplo, um contrato de uma Câmara Municipal com uma empresa e o que estava rasurado era o nome da presidente da Câmara e o nome da empresa. Portanto, isto não é nenhuma transparência, isto não é divulgar informação; é escondê-la. Mas a União Europeia fez a mesma coisa, quando forçada a divulgar informação sobre os contratos de compra das vacinas [contra a covid-19] e a quem tinha comprado as vacinas, divulgou o contrato menos o valor. Ou seja, o valor ficou apagado! Ou seja, nós gostamos muito da transparência, mas é quando é com os outros, connosco não dá. Eu acho isso preocupante. Repara: hoje, nós podemos fazer extraordinários trabalhos jornalísticos, apenas com dados públicos, que são cruzados. Não estamos a ir por debaixo da mesa, nem às escondidas, não, são dados públicos. Nós sistematizamos porque é esse o nosso trabalho, enquanto jornalistas. Se alguém percebeu que, quantos mais dados públicos tem, mais prejudicado pode ser, isto é preocupante. Porque é para o cidadão! O Portal Base existe para todos nós, incluindo os jornalistas, mas não só.
E no Portal Base é muito comum estarem os contratos, mas sem os respectivos cadernos de encargos. Ou seja, o contrato remete mais informação para o caderno de encargos, o qual não está acessível.
Exactamente. Nós fazemos de conta que temos uma Administração Pública transparente, mas não temos. Não temos, de todo. E, pior do que isso: depois, mesmo quando os tribunais decidem num determinado sentido, as entidades continuam a ignorar, continuam a fazer de conta.
E recorrem das sentenças.
Recorrem e desrespeitam mesmo, no limite.
E recorrem usando dinheiros públicos. Como é um jornal pode ir continuando a gastar…
Essa é a maior arma do poder, seja ele qual for, pode, o poder económico, político, clubístico, já agora – têm muito poder. Essa é a maior arma: processos por difamação, a pedirem 20 milhões de euros de indemnização.
Para silenciar.
Para silenciar. Isso rebenta com um jornal. Nós, felizmente não temos jornalistas presos por difamação como até há pouco tempo até na União Europeia existia. Até na União Europeia, casos desses existiam. Nós não temos casos desses. Mas depois temos essa arma: eu meto um processo de 20 milhões de euros, obrigo o órgão de comunicação social a contratar uma equipa de advogados caríssima sem garantias de sucesso. É muito complicado.
É o chamado SLAPP [Strategic Lawsuit Against Public Participation].
É uma forma de pressão como outra qualquer. E é normalmente de pressão mais silenciosa. Eu gosto de ouvir quando há uma reportagem, alguém vir anunciar que vai processar porque é sinal de que não vai processar coisa nenhuma. Anunciou e depois não processa coisa nenhuma, não há processo judicial. Os que ficam calados e vão fazer esses pedidos de indemnização brutais é que sabem que estão a… Aliás, convém dizer que um antigo presidente do Supremo Tribunal defendia abertamente isso: “vão onde lhes doem”, disse uma vez publicamente. Quando se sentirem afectados pela comunicação social, peçam indemnizações brutais que aí é que lhes dói – para destruir a comunicação social, objectivamente.
Falando de silenciamento, de repente muitos jornalistas descobriram que existe censura nas redes sociais. Houve agora o caso no Twitter mas também há casos no Facebook. Eu, por exemplo, tive a minha conta bloqueada durante um dia e agora está escondida durante um mês por partilhar uma notícia de um jornal português sobre uma sentença de um Tribunal em Portugal. É uma forma das “big techs” destruírem a reputação de um jornalista ou de um órgão de comunicação.
Elisabete, isso dava outra entrevista. Faço um ponto prévio, que é uma declaração de interesses: não faço parte de nenhum desses clubes, não sou do Facebook, nem do Twitter. Porque não resistiria a não participar em debates, a responder, e depois não fazia mais nada na vida, portanto, não faço parte. Mas salvaguardo o seguinte: o Twitter, o Facebook – agora, a Meta -, são empresas privadas. Na casa dos privados entra quem os privados querem. É o mesmo princípio do Ricardo Araújo Pereira. Eu percebo o desconforto de jornalistas que escreveram contra o Elon Musk – e independente do que penso do que Elon Musk possa estar a fazer ou não no Twitter, não é isso que está em causa – o Twitter tem o direito de dizer que só queremos estes sócios. Não é uma entidade pública, é uma entidade privada. Tinha acontecido o mesmo com Trump. Têm todo o direito de fechar. Se quisessem, podia fechar a porta a Ronaldo ou a outro qualquer. Nós não podemos exigir liberdade de expressão a uma empresa privada. Quer dizer, não se trata sequer de ter liberdade de expressão ou não. Trata-se de fornecer um dispositivo tecnológico para tu te expressares. Esse é que é para mim o problema de fundo, que é quem fornece a plataforma para tu te expressares não tem nenhuma responsabilidade sobre o que tu publicas. Tu, eu. Como é que podes responsabilizar alguém que transmitiu discurso de ódio, desinformação – desinformação já matou gente, como sabemos. Como é que podes responsabilizar se as plataformas que dão a bicicleta para pedalares, dizem: dou a bicicleta, mas não tenho nada a ver com o pedal. Isto não pode ser. Em algum grau – e estão a discutir isso nos Estados Unidos – as plataformas têm de ser responsabilizadas porque senão, no limite, nós não conseguimos responsabilizar ninguém porque vamos descobrir um perfil falso, uma pessoa que usou um pseudónimo,… não vale a pena. As redes sociais, genericamente, essas plataformas, nasceram com aquela ideia muito nobre de que “agora temos aqui uma plataforma de opinião e de participação cívica e de participação cidadã”. E hoje têm a participação cidadã, o discurso de ódio, a mentira. Incluindo, por exemplo, nos comentários dos órgãos de comunicação – a mesma coisa. O jornal Público criou um novo sistema de moderação dos comentários em que primeiro as pessoas são testadas. Rapidamente se percebeu – e eu gostaria que o Público reponderasse isso – que aquele espaço já esta lixo como os outros todos. Porque quem quem fazer isso, primeiro porta-se bem, e durante algum tempo, para depois fazer o que lhe apetece: racismo, xenofobia, discurso de ódio, tudo passa por ali. O Público pode dizer: “não tenho nada ver com isso, é de quem comenta”. Eu olhos para aquilo e a maior parte não são nomes verdadeiros, são nomes inventados para participar, vou responsabilizar quem?
Já para não falar dos bots que é um dos grandes problemas das redes sociais…
Pois, isso já é mais complicado.
Aí já estamos a falar de máquinas, de uma indústria totalmente diferente.
E o que isso causa. Eu, numa das disciplinas de que sou responsável, no segundo semestre, vou começar a dar agora em fevereiro, que é precisamente “Fundamentos do Jornalismo”, eu começo por mostrar um vídeo de “deep fakes”, ou seja, estás a ver uma pessoa que está a dizer aquilo que nunca disse. Como é que a maior parte das pessoas, que não tem o mínimo conhecimento tecnológico, já não é literacia mediática sequer, mas conhecimento tecnológico, pode perceber que aquilo não é verdade. “Não é verdade? Eu vi a pessoa a mexer o lábio, como não é verdade?”.
Até mesmo jornalistas que vejam um…
Vi uma giríssima que era Trump a falar açoreano, português dos Açores. É fantástico, como brincadeira. Agora, como é que a maior parte das pessoas olha para aquilo? Olha como sendo autêntico. Pode pôr na boca de quem quer que seja uma mentira descarada e acreditas. Estás a ver um vídeo.
E com a inteligência artificial, que pode inclusive substituir jornalistas – daria para outra entrevista -, o Chat GPT…
Vivemos tempos muito desafiantes. Depois, não é só a sociedade que está à mercê disto, são os próprios políticos das varias áreas que hoje vulgarizam o uso das redes sociais para transmitir opinião, para transmitir decisões.
Para fazerem anúncios. Eu aderi as redes sociais porque políticos estavam a fazer anúncios nas redes sociais.
É muito difícil tu travares isso. Claro que não travas, a Internet é, por natureza, libertária. Não dá. Só dá para nós nos protegermos enquanto cidadãos. Eu tenho é que desconfiar daquilo que me estão a dar. Agora terminas a entrevista e tu pões aqui, com a minha voz, eu a dizer mais não sei quantas coisas que eu não disse, não é.
Poderia, mas não vou fazer [risos]…
As pessoas têm que estar alertadas para esta possibilidade, isto pode acontecer. Não é só a reportagem escrita que dizem umas mentiras, é um vídeo em que as pessoas estão a dizer aquilo que nunca disseram e isso é preocupante.
Fotografias: André Carvalho
Transcrição: Maria Afonso Peixoto
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Doutorado em História pela Universidade Nova de Lisboa, João Pedro Marques foi professor universitário e do ensino secundário e investigador do Instituto de Investigação Científica Tropical, além de romancista de créditos firmados. Especialista em História da Escravatura, tem sido uma das principais vozes críticas contra o politicamente correcto em redor das questões raciais de séculos passados. “Descobrimentos e outras ideias politicamente incorrectas“, a sua mais recente obra, integra sobretudo um conjunto de textos publicados na imprensa nos últimos anos onde contraria alguns dos argumentos que defendem a demolição de estátuas ou as alterações da toponímia para apagar algumas figuras da História Colonial. Numa conversa politicamente incorrecta com o PÁGINA UM, com o foco principal na escravatura, mas abordando também o wokismo e ainda Joan Baez e até George Orwell.
Existe a ideia de que foram as revoltas dos escravos que foram determinantes para a abolição da escravatura. Mas no seu livro destaca a preponderância do movimento abolicionista na libertação dos escravos nas colónias, e do papel dos ocidentais nesse processo. E defende que o primeiro país a abolir a escravatura foi o actual Haiti, antigo Saint-Domingue…
Essa opinião está errada. Quer dizer, estritamente falando, está errada. Repare, o jogo aí é utilizar a palavra “país”. É isso que condiciona, deturpa e esconde o que foi a realidade. Os estados do norte dos Estados Unidos da América já estavam a abolir a escravidão. Começaram a fazê-lo na década de 70 [do século XVIII], ou seja, quase 30 anos antes de o Haiti se ter tornado independente [em 1804]. O Vermont, a Pensilvânia, Nova Iorque… A pouco e pouco, esses estados do norte dos Estados Unidos iam abolindo, de uma forma gradual, a escravidão. Mas naquilo que viria a ser o Haiti, já a França tinha abolido a escravidão. Ou seja, o primeiro país a abolir a escravidão, foi a França. Globalmente, foi a França, em 1794, em plena revolução francesa. O comissário francês que na altura estava na colónia francesa então chamada São Domingos [Saint-Domingue], um indivíduo chamado Sonthonax, em 1803 decretou a abolição da escravidão. No ano seguinte, a Assembleia em Paris ratificou a medida do seu comissário e aboliu em todas as colónias da República Francesa. Portanto, o primeiro país a abolir a escravidão foi a França. É verdade que, adiante, no tempo de Napoleão, a medida foi revertida. Em 1802, Napoleão repôs a escravidão. E quando o Haiti se tornou independente constitucionalmente, em 1804, aboliu definitivamente a escravidão nessa região. Mas, como vê, a história é mais complexa do que essa visão taxativa. De facto, os abolicionistas foram decisivos. Sem os abolicionistas, boa parte dos quais brancos, não teria havido abolição. Isto não é uma opinião exclusivamente minha. Muitas colegas historiadores defendem este ponto de vista, mas são quase todos velhos como eu, não é? Anteriores à chegada do wokismo.
João Pedro Marques
E até que ponto é que os próprios africanos colaboraram, eles próprios, com o tráfico transatlântico de escravos? Porque parece ter-se muito a crença de que os ocidentais forçaram essa prática aos povos africanos.
Que forçaram, e que assumem o ónus de todo o processo, não é? Mas não. Foi um negócio, horrível, de mútuo acordo. Aliás, os ocidentais não tinham possibilidade técnica, material, humana ou médica de penetrar em África. Antes dos anti-malários, e, depois, das vacinas contra a febre amarela, a entrada naqueles territórios era mortífera.
Então, eles não teriam sido capazes de levar a cabo este processo sem a colaboração africana?
Não, sem haver um sistema montado, nunca teria sido possível transportar aquele número de pessoas para as Américas. Portanto, foi qualquer coisa feita em colaboração estreita, recíproca, e para benefício mútuo – é uma ideia que é importante acentuar – dos dois lados da equação. Os africanos ganhavam de uma forma diferente daquele que era o ganho dos ocidentais. Os ocidentais ganhavam de uma forma que se convertia em moeda, tinham um lucro económico com todo o processo, com foco no tráfico, regra geral, que não era muito lucrativo. E, depois, aproveitando o trabalho dos escravos nas minas e nas plantações, e por aí fora, nas Américas. Isso, de facto, produzia muita riqueza. O açúcar, os produtos coloniais, produziam muita riqueza. Os africanos que estavam envolvidos no tráfico de escravos também ganhavam. Ganhavam num registo que, para nós, ocidentais, não fazia muito sentido, mas que nas sociedades africanas era muito valorizado. Ganhavam em termos de prestígio e de poder político. Aquilo que os ocidentais levavam para lá, que para nós não tinha um valor por aí além – como têxteis ou tabaco de terceira qualidade, que os africanos adoravam, mas que para nós aqui no Ocidente nem sequer era permitido vender – era escoado para a costa de África e, com esses produtos, os africanos competiam. Distribuíam aquilo e obtinham subordinação e fidelidade política e dependentes. E, portanto, isso era, para eles, do ponto de vista social e económico, muito recompensador. Por isso se envolveram naquele negócio, não foram forçados a fazê-lo.
Já tem salientado que a escravatura é imemorial, e que o que foi, de facto, específico ao Ocidente não foi a prática da escravatura – que sempre existiu –, mas sim a sua abolição. Considera assim que, por parte de certos sectores da sociedade, existe uma desvalorização do papel dos europeus na abolição da escravatura, certo?
Isso acontece porque há uma agenda política. Essa agenda política tem como objectivo – o que é compreensível, e até é louvável e respeitável – elevar as comunidades afrodescendentes e colocar os negros no centro da História.
E isso passa por realçar o papel das revoltas escravas?
Sim, realçar todo o papel dos escravos – negros, muitas vezes – e descobrir e enaltecer heróis entre eles e, simultaneamente, reduzir a importância dos povos ocidentais, dos brancos.
E são os próprios ocidentais a fazê-lo, apelando muitas vezes a um sentimento de culpa, não é? Esse movimento de autoflagelação também acontece fora do Ocidente? É comum todos os povos auto-denegrirem o seu passado e a sua História?
Não, é uma doença específica do Ocidente. Nós não vemos os povos muçulmanos fazerem isto, e estiveram envolvidos no processo escravocrata da mesma forma. Enfim, com variações, não é? No Ocidente importavam-se maioritariamente escravos do sexo masculino, força de trabalho para usar nas plantações do açúcar, por exemplo. No mundo muçulmano importavam-se sobretudo mulheres e crianças. Pela sua capacidade reprodutiva, para haréns e coisas desse tipo. Digamos que são complementares, não é? O que sai através do Atlântico é maioritariamente masculino, e o que sai através do deserto Saara e do Oceano Índico, é maioritariamente feminino. Mas as condições de transporte e de exploração, o quantitativo, são muito equivalentes. E ninguém vê o mundo muçulmano a rasgar vestes e a culpabilizar-se por tudo isso que se passou.
E os asiáticos, por exemplo?
Também. A escravatura é qualquer coisa de intemporal e disseminada à escala do planeta. Desde a Coreia até à América, anterior à chegada de Cristóvão Colombo. Saiu recentemente um trabalho de historiografia importante, uma obra colectiva, que faz o ponto da situação no estado actual dos conhecimentos. Chama-se Cambridge World History of Slavery. E vai desde a escravatura antiga, desde a Mesopotâmia, Roma e Grécia, até à escravatura recente, de final do século XIX, princípio do século XX. E encontra lá muitos países. A Turquia, a Coreia, a Índia, o Japão… Havia escravos em todo o lado.
No seu livro fala também da vontade de activistas antirracistas de reescrever alguns pontos da História. Estão a conseguir?
Eu já não dou aulas no secundário há muito tempo, e já não estou muito por dentro. Dei uma olhadadela nos programas, mas já não estou lá. Mas eu suspeito e receio que os activistas estejam a ganhar, e que estejam a impor a sua agenda a pouco e pouco, subterraneamente. O poder político não se tem pronunciado sobre isso, mas eu acho que eles vão cedendo às pressões. Tal como cederam, tanto quanto se consegue perceber, no caso do Museu dos Descobrimentos.
Foi prometido por Fernando Medina, quando presidente da autarquia de Lisboa… Entretanto, ficou em águas de bacalhau?
Aparentemente. Nunca mais ninguém falou nisso. O assunto discutiu-se em 2018, fazia parte do programa do governo camarário de Fernando Medina. Em 2018 começou a haver muita contestação, por parte de grupos académicos e de associações de afrodescendentes. E a partir daí deixou de se ouvir falar no Museu dos Descobrimentos.
Em paralelo, há quem defenda a construção de um Memorial da Escravatura.
Exactamente, e eu não tenho nada contra um Memorial da Escravatura, desde que não se encha o país de memoriais da escravatura, não é? As coisas têm a proporção que têm. Agora, uma coisa não deve obstaculizar a outra. Um memorial da escravatura, sim senhor. Um museu dos Descobrimentos, com certeza.
Qual seria a importância de um Museu dos Descobrimentos?
Enorme. Os Descobrimentos têm um papel muito importante na História do nosso país, e da nossa identidade como povo. E na forma como os outros nos reconhecem historicamente, não é? Como nos identificam historicamente. Portanto, querer denegrir os Descobrimentos, e apontar só os seus aspectos nocivos, sangrentos e violentos – que todos os grandes processos históricos infelizmente têm –, é algo inescapável e, trágico. Pondo apenas o foco nisso, e querer, inclusivamente, banir a própria palavra… eu acho isso de uma burrice e de um fanatismo indescritível. Isso corresponde, de facto, a subverter as coisas e a aplicar uma agenda política.
Um dos argumentos contra o uso da palavra Descobrimentos é que os nativos não se sentiram descobertos quando os ocidentais lá chegaram…
Como acontece em qualquer relação interpessoal ou internacional. Quando eu encontro alguém, posso sentir-me de uma determinada maneira, e isso não quer dizer que a outra pessoa se sinta da mesma forma. Mas é a minha maneira, sou eu que sou o narrador.
Tem de se escolher uma perspectiva para contar a História?
Pois, não se pode contar a História de todas as perspectivas em simultâneo. Tem de se ter uma perspectiva. E eu não tenho nem devo abdicar da minha perspectiva só porque aquele senhor ali ao lado não gosta, porque não é a dele. Pois não, é a minha!
No seu livro dá até o exemplo do Museu da Liberdade em França…
Exactamente. Houve muita gente na Revolução Francesa que não se sentiu nada libertada, pelo contrário. E não é por isso que deixa de se chamar Museu da Liberdade ao museu sobre a Revolução. E por aí fora, podíamos aplicar isso a muitas situações… Nunca se agrada a toda a gente, é impossível. Mas não é por isso que temos de abdicar de designações.
Critica também a “febre” da remoção de estátuas e renomeações de ruas, por evocarem pessoas que possuíam escravos, pela sua incoerência. Dá até o exemplo da rebaptização de uma rua de Nova Iorque em homenagem a Jean Jacques Dessalines, que mandou matar milhares de brancos após a Independência do Haiti…
Foi o homem que tornou o Haiti independente. Era um general subordinado de Toussaint Louverture, e ex-escravo. Louverture não era escravo. Ou seja, tinha sido, mas na altura em que surge a revolução, Louverture já era um homem livre e proprietário de escravos. Mas Dessalines teve uma rua baptizada com o seu nome, e foi um torcionário. Ao contrário de Louverture, que era um contemporizador e um indivíduo que queria proteger a comunidade branca da colónia francesa que viria a ser o Haiti… queria harmonizar as tensões entre os brancos, os mestiços e os negros. Este Dessalines, não. Era um tipo vingativo, e terá mandado matar cerca de cinco mil pessoas. É isso que eu digo: as perspectivas são, muitas vezes, diferentes e conflitantes.
Mas, supostamente, o objectivo de renomear ruas é expurgar a violência e as atrocidades do passado…
Expurgar a violência dos brancos, não é a violência dos negros. Não se refere a violência dos negros, mas não imagina o que foi a revolta de escravos do Haiti. Eu não lhe vou dizer para não lhe dar pesadelos. Ninguém fala nisso, mas foi uma coisa verdadeiramente aterradora. A tal ponto aterradora que, no mundo ocidental, ficou, durante décadas, a imagem do Haiti como o pesadelo. O pesadelo no mundo colonial era aquilo. De tal modo que, 70 anos depois, aqui nas cortes portuguesas em Lisboa, quando surgiam casos de escravos em Luanda que mataram um senhor, ou havia pequenos tumultos… nunca houve revoltas escravas em Luanda, mas houve uns incidentes na altura, e o assunto foi discutido nas cortes, no Parlamento de então. E ainda se evocava o caso do Haiti, o caso de São Domingos. Portanto, repare bem até que ponto o que se passou lá ficou marcado e impressionou extraordinariamente as pessoas. Os extremos a que aquilo foi levado.
Não houve mais nenhuma revolta dessa dimensão nas outras colónias africanas?
Houve revoltas escravas, mas com aquela dimensão e com aquele nível de terror, não. Porque a própria colónia estava em guerra, e é preciso dizê-lo, porque esta parte não é contada, não é? É contada como tendo sido a revolta escrava que provocou tudo aquilo. Mas não. A colónia já estava em guerra devido à Revolução Francesa, já estava em tumulto e em conflito. Entre os mestiços e brancos, realistas e republicanos. E, quando a revolta surge, torna tudo muito mais complicado. Pior ainda quando os ingleses e os espanhóis intervêm. Portanto, aquilo foi um tumulto de todo o tamanho. E, mesmo quando o país se tornou independente em 1804, e passou a existir o Haiti em vez da colónia francesa de Saint-Domingue, continuou em guerra civil. Entre o norte, do imperador Dessalines, e a parte sul da colónia, onde prevaleciam os homens livres mestiços. Portanto, continuou com uma guerra civil durante imenso tempo. E o país ficou completamente destruído. Ainda está.
E essa revolta teve um efeito dominó no processo de abolição da escravatura? Foi o que permitiu a libertação que viria a acontecer nas restantes colónias?
Não teve. Nenhuma potência quis reproduzir uma coisa daquelas. Aquilo só é explicável no contexto da Revolução Francesa. Se tivesse sido num outro contexto, não teria acontecido, nem se teria propagado daquela forma. O que acontece é um esfarelamento do poder político francês, com todos aqueles tumultos e convulsões. Sem a Revolução Francesa não é explicável. É explicável uma revolta, mas teria ficado confinada, como, aliás, em vários momentos do processo esteve para ficar. Só não ficou porque os ingleses e os espanhóis entraram na guerra, e Sonthonax, o comissário de que falei, precisou de gente para combater. Então, libertou os escravos. Portanto, é um contexto muito particular. A única coisa onde houve uma influência exterior, foi no apoio que o Haiti já independente deu a Simón Bolívar, na altura das lutas pela independência do que viria a ser a Venezuela. Aí, o Haiti apoiou, com soldados. Mas foi a única coisa, não interferiram em nada. No meu ponto de vista, a revolta do Haiti teve um efeito contraproducente para a liberdade das outras colónias, porque o poder político e os senhores tornaram-se muito mais vigilantes e punitivos do que já eram. Não houve nenhuma repetição daquilo nos anos seguintes. O fim da escravidão nos outros países aconteceu décadas depois, e por um processo completamente diferente.
Outra coisa que salienta, é que muitos dos escravos revoltosos, não se insurgiram contra a escravatura em si, mas apenas contra a sua própria condição de escravos. E refere também que muitos deles, como homens livres, adquiriam escravos. Acha que as pessoas, de modo geral, têm noção disso?
Não, isso é omitido. Mesmo na própria revolta do Haiti, é sempre omitido que Toussaint Louverture tinha escravos, que era livre e tinha escravos. É sempre omitido que os líderes da revolta escrava – que foram várias pessoas ao longo do tempo – mas, antes de Toussaint se ter tornado líder, que eram dois escravos chamados Georges Biassou e Jean-François, faziam comércio de escravos.
Escravos negros?
Escravos negros. Mulheres, sobretudo; vendiam-nas para os espanhóis. Isso é tudo omitido, tudo escondido. Não se refere isso porque, lá está, não convém. Não é politicamente correcto dizê-lo. Mas, para um historiador, essa é que é a verdade. Aliás, esses indivíduos nunca se juntaram, depois, a Toussaint Louverture e aos franceses. Continuaram fiéis à Espanha, e, quando o exército da República Francesa no Haiti, comandado por Louverture, foi ganhando a guerra, eles acabaram por sair da colónia. Jean-François foi aqui para Espanha, Cádis, se não me engano. E Biassou foi para a zona do Louisiana. Portanto, os líderes da revolta escrava continuaram a escravizar. E não queriam a liberdade para os escravos todos, era só para eles e para as famílias.
Na verdade, ainda existe escravatura, com particular destaque para África e a região da Ásia e do Pacífico…
Sim, mas repare, a escravatura tornou-se ilegal em todo o Mundo. Não nos podemos esquecer que antigamente era legal. Implicava uma forma de propriedade legalmente reconhecida. Isso agora tornou-se ilegal. Mesmo em países como a Mauritânia, que ainda a praticam, é ilegal. Mas existem é situações de exploração do trabalho e do corpo, escravatura sexual. Por exemplo, eu às vezes vejo números, com mulheres e crianças, coisas aterradoras. Aos milhões. Mas, tudo isso é ilegal. Agora existem formas de exploração do trabalho que são similares. Trabalho forçado, por exemplo, mas a pessoa não é propriedade daquele que a explora. Enquanto que, antigamente, era. Tinham direitos totais sobre a pessoa, inclusivamente sobre a sua prole. Em princípio, legalmente, isso acabou.
Mas o jornal The Guardian, por exemplo, em 2019 reportava a existência de 40 milhões de pessoas em condição de escravatura moderna. Claro que temos de ter em conta o facto da densidade populacional ser hoje bastante superior…
Mesmo assim, comparado com os 12 milhões e meio que terão ido, ao longo de mais de quatro séculos, de África para as Américas, dá-nos ideia da dimensão do problema.
Tem conhecimento de alguns destes activistas antirracistas, que têm condenado diligentemente o passado escravista do Ocidente, fazerem algo para combater o actual flagelo da escravatura moderna?
Não faz parte da agenda deles. A agenda dos activistas antirracistas é, de facto, criar uma narrativa com o homem negro no centro da História. Ainda no ano passado – eu não vi o filme, mas falei disso com o meu filho, que é crítico de cinema no Expresso –, foi lançado um filme chamado A Mulher Rei, que é sobre aqueles regimentos a que os ocidentais chamavam amazonas. Amazonas, por analogia com a mitologia greco-romana. Eram mulheres guerreiras do reino de Daomé, que corresponde ao Benim actual, e existiu mesmo. Foram mesmo reais essas amazonas, essas mulheres guerreiras, que eram um regimento que fazia parte da Guarda do reino… e eram temíveis em combate, até porque os homens, os ocidentais, como os soldados franceses, tinham algum retraimento em matar mulheres. E, portanto, sofriam baixas enormes em combates com elas. O cavalheirismo do século XIX… [risos].
Interessante, é engraçado isso…
É, não é? Mas, de facto, elas eram terríveis, e muito resistentes fisicamente, tinham uma grande capacidade de sacríficio… Mas, no filme, são representadas como combatentes contra o tráfico de escravos. E o reino de Daomé era um cerne do tráfico de escravos! Portanto, a História está completamente pervertida.
Isso acaba por transmitir uma mensagem, apesar de ser ficção.
Passa a mensagem dos negros a combaterem o tráfico de escravos, quando era o contrário, o reino de Daomé vivia disso. Era um reino guerreiro, guerreava os povos em redor, escravizava-os e vendia-os aos ocidentais.
Estes episódios de reescrita do passado que se têm sucedido de diversas formas, levou-o, inclusivamente, a fazer uma comparação com o livro 1984, de George Orwell. Acha mesmo que está a haver essa manipulação da História?
Sim, uma reescrita. Em 1984, o protagonista Winston Smith, do Ministério da Verdade, tinha a função de reescrever as notícias do passado para que elas se ajustassem ao presente. Isto é um pesadelo. Então para um historiador, é um duplo pesadelo. Mas para qualquer pessoa, não é? Porque se perde a noção da espessura do tempo, da diferença, que é para isso que a História serve, para explicar a diferença.
Não é para julgar?
Não, não é para julgar, isso é os tribunais. E, de facto, o que está a haver hoje em dia, na narrativa histórica, mas não só, é um esforço de reescrita inclusiva, de textos do passado. Pense, por exemplo, que já houve propostas – e que penso que foram levadas avante em certos estados norte-americanos –, de reescrever certas passagens de livros. Por exemplo, o livro do Mark Twain, todas as partes que têm uma linguagem…
Considerada racista…
Sim. É óbvio, aquilo passava-se numa sociedade racista! Portanto, as personagens falam como falavam as pessoas daquela altura. Agora, tem de ser corrigido. Corrigido, suprimido, adaptado ao tempo. Até dei, num artigo para o Diário de Notícias, a propósito das demolições de estátuas e da correção da linguagem, o exemplo de Joan Baez. Baez ainda é viva, mas foi uma cantora de intervenção muito famosa na década de 60. E, em 1971, ela teve uma música de muito sucesso chamada The Night They Drove Old Dixie Down. Ela descreve a noite em que o Sul perde a guerra civil, a bandeira é arriada, o general Robert E. Lee rende-se… E refere Robert E. Lee, comandante das tropas do Sul. Essa letra hoje em dia seria proibida! Isto é aterrador, nós pensarmos que a rainha do progressismo na altura, que era ouvida em todos os campos universitários e estava na primeira fila da contestação e do espírito revolucionário, hoje em dia seria banida.
Ou “cancelada”, como se diz hoje em dia…
Seria cancelada. É impressionante, não é? Isto é pior que 1984.
No seu livro também aborda a pressão que os historiadores hoje sofrem para se conformarem com essas posições. Por outro lado, há alguns historiadores que defendem mesmo este tipo de práticas expurgatórias do passado. No seu círculo, vê mais colegas coniventes com essa ideologia, ou outros que pensam de forma igual a si?
No meu círculo – que é uma coisa restrita, até porque estou fora da Academia já –, são sobretudo aqueles que concordam comigo, muitos dos quais não se pronunciam, por razões que eles saberão. Agora, vejo, fora do meu círculo, muitos historiadores activistas e que escrevem sobretudo no Facebook e nas redes sociais. Vejo, nesta área das ciências sociais e humanas, um grande activismo nas universidades. Activismo da parte de uns, silêncio da parte de outros.
E também há activistas que não são historiadores…
Muitos, eu diria que são talvez a maioria, não é? Antropólogos, sociólogos, jornalistas… Eu diria que a maioria não são historiadores. Há dois ou três historiadores que têm uma intervenção, os outros estão mais discretos. Não se metem muito nisto.
Já começou a estudar a escravatura colonial há mais de trinta anos. Quando é que começou a dar-se conta deste movimento revisionista dessa época da História, que se iniciou nos Estados Unidos?
Para mim foi um bocado surpreendente, digo-lhe com toda a franqueza. Comecei a dar-me conta, e escrevi sobre isso, num livro que publiquei em 2006 chamado Revoltas Escravas. Foi a primeira edição desse livro aqui, que depois veio a ser traduzido nos Estados Unidos e em Inglaterra. E, depois, foi reeditado em Portugal no ano passado. Mas, em 2006 dei-me conta do peso disto em França, porque um colega meu francês, que se chamava Olivier Pétré-Grenouilleau, começou a ser alvo de uma pressão enorme. Queriam expulsá-lo da universidade e por aí fora. Ele ainda me pediu para que eu testemunhasse a seu favor, e eu acedi. Portanto, na altura, eu apercebi-me disso em França e nos Estados Unidos, e escrevi: Deus queira que isto nunca chegue cá! Deus não me fez a vontade [risos].
Chegou a todo o lado [risos].
Eu sabia que iria chegar cá, mais cedo ou mais tarde. Mas, quando chegou, fui colhido de surpresa. E chegou em 2017, na sequência da ida do presidente da República ao Senegal e das declarações que ele fez sobre a escravatura, e sobre Portugal ter abolido a escravatura. E, aí, de repente, houve um sector da opinião pública, ligado sobretudo à extrema-esquerda, que caiu em cima dele. E aí eu percebi a dimensão que aquilo tinha. Fui-me apercebendo. Já mais recentemente, em 2017, cheguei a escrever um artigo no Público onde contei a história do meu colega Olivier Grenouilleau e a pressão enorme que os grupos de activistas de afrodescendentes exerceram, com ameaças à família e por aí fora. E sabe porquê? Porque ele deu uma entrevista em que disse coisas deste género, que para qualquer historiador são óbvias e evidentes: o objectivo dos negreiros não era matar pessoas, era transportá-las vivas, se possível, para o outro lado do Atlântico. Por causa disso, acharam que ele era um perigoso racista, e exerceram imediatamente pressão para que fosse expulso da universidade. Isso gerou, de uma parte dos historiadores franceses, um movimento de solidariedade. Outros historiadores franceses antagonizaram-no, mas os mais prestigiados, diria eu, puseram-se do lado dele e criaram até um movimento chamado Liberté pour l’Histoire, em sua defesa.
A pressão agora é tal que, se fosse hoje, talvez esses historiadores já não tivessem coragem de se insurgir em defesa de Grenouilleau…
Se fosse agora já não seria assim, mas aqui já estou a especular. Em Portugal não tem sido assim, porque isto é um debate que dura desde 2017, portanto já vai para seis anos, e têm sido pouquíssimos os historiadores que se têm pronunciado.
No seu caso, tem-se pronunciado bastante. Isso tem-lhe valido muitas críticas?
Sim, sim, este mês já saiu até um artigo meu no Observador sobre isso [Não conseguem cancelar? Difamem]. Nas redes sociais, sim, sou um alvo a abater [risos]. Mas eu acho que posso bem com isso.
Carlos Guedes é muito mais do que um jovem lisboeta de 25 ano: é o rapper Estraca, que se destaca pela sua irreverência e pelo carácter interventivo e político da sua música, que contraria a tendência de pensamento único numa sociedade amorfa. Em entrevista ao PÁGINA UM, Estraca fala sobre o seu novo trabalho “Propaganda“, lançado hoje. Assumindo-se como um defensor de um mundo livre, critica a apatia de muitos dos seus companheiros, rappers e músicos de hip-hop mais experientes, perante as ameaças à democracia e à liberdade. Nesta entrevista, que também está disponível em versão podcast não editada (ver ligação em baixo), Estraca fala ainda da censura que sentiu quando lançou o seu single “Jornalixo“, e deixa um alerta contra a intolerância e a cultura de cancelamento.
Acabas de lançar Propaganda. Fala-nos sobre este teu novo tema.
Fala um pouco sobre o caos que se vive no Mundo, a situação actual do Planeta, com foco na propaganda e em toda a manipulação [que existe].
Manipulação por parte de quem?
Dos propagandistas [risos].
E quem são esses propagandistas?
Os meios de comunicação social, a publicidade…
O que se passa no mundo, na tua óptica, para te levar a escrever sobre esse tema?
Tanto esta situação da guerra [da Ucrânia], como tudo aquilo que se passa dentro dos estabelecimentos de ensino. Acho que vivemos tempos perigosos no que toca à propaganda, que é cada vez mais intensa, e por isso decidi falar sobre isso na minha música.
É uma música de intervenção, uma das essências do rap. Como vês esta vertente interventiva no rap e do hip-hop em Portugal, actualmente?
A intervenção, tanto no hip-hop como noutros géneros musicais, tem sido um pouco esquecida. Acho que, de certa forma, até propositadamente. O hip-hop nos anos 1990, por exemplo, tinha um papel muito mais interventivo na sociedade, e de repente tornou-se a música pop. Eu acho que isso também foi um “trabalho”, com o intuito de, de algum modo, acabar com essa parte mais interventiva, pois o hip-hop tinha um peso muito grande em movimentos anti-sistema. Hoje, acho que existe uma falta muito grande da música de intervenção, tanto a nível nacional como internacional. Por isso, também acho importante o meu papel.
E por que existe essa falta? É porque as pessoas não querem ouvir, e por isso não vende, ou por falta de vontade dos rappers?
Eu acho que é um pouco pelas duas coisas. Há pessoal que está mesmo completamente desligado; e se calhar preferem rimar sobre outro tipo de assuntos, e não sobre estes assuntos tão dramáticos e pesados, mas que têm de ser falados de certa forma. E, por outro lado, também é a parte monetária; se calhar pensam que se rimarem sobre isto, não vão tocar aqui ou ali, não vão vender tanto, a editora X não vai querer trabalhar com eles. Eu acho que essa parte também passa a ser um problema, e por isso também hoje não temos tanto hip-hop e tanta música de intervenção, por causa desta barreira. Mas é assim…
Sentiste alguma desilusão, nestes últimos três anos, por outros rappers, incluindo aqueles que tens como referências, não estarem numa linha tão crítica como a tua?
Epá!, sim, porque até tinhas certas pessoas que pensei que tivessem um sentido mais crítico em relação a tudo isto, e que de repente deixam-se levar facilmente pela narrativa. Pessoas que criticavam os media, e que depois deixaram-se levar pela propaganda. Obviamente, de certa forma, fiquei um pouco desiludido, não é? Mas pronto, cada um tem a sua opinião, e acho que nessas opiniões divergentes, nós não sabemos qual é a correcta. Cada um luta por aquilo em que confia, e em que acredita. Eu luto por aquilo em que acredito e confio. E pronto, acho que é assim…
E há um ano, em 2021, lançaste o Jornalixo. Desta vez, falas sobre a propaganda. Portanto, tens esta temática muito forte sobre a importância da comunicação social na disseminação de uma narrativa. O que é essa narrativa veiculada pelos órgãos de comunicação social?
É o medo, projectar o medo constante nas pessoas. E, através do medo, conseguirem actuar noutros aspectos. Uma sociedade com medo facilmente é manipulada e controlada, não é? Acho que é esse medo constante que eles tentam propagar nas pessoas. Não sei se respondi à tua pergunta.
Sim; mas mais especificamente, o quê? Há um ano, quando lançaste o Jornalixo, qual era o grande foco problemático na tua intervenção? Em que é que te focavas?
Quando lancei o “Jornalixo”, era na altura em que tinha rebentado a pandemia, e sempre foi uma situação que eu achei demasiado estranha, tudo aquilo que estava a acontecer. E de repente, é isso, tu começas a ver que aquilo que os media tradicionais dizem são mentiras, não é? Mentiras atrás de mentiras. E isso faz-te questionar. E, de certa forma, como a música (e o rap) é a minha maneira de me expressar, achei que era a maneira mais rica de passar a minha ideia. E acho que foi útil para as outras pessoas também, e para não se sentirem sozinhas, porque naquele momento havia muita gente… aqui em Lisboa, por exemplo, há e havia muitos grupos com o mesmo pensamento, mas recebi mensagens de pessoas que estavam em vilas mais isoladas, no campo, e que estavam ali sozinhas com aquele tipo de ideia. E, de repente, viram que existe muito mais gente com aquele tipo de ideia, que foi algo que os media também sempre tentaram ocultar um pouco. A quantidade de pessoas que existe com esta ideia, e que conseguem ver para além. Então foi mais por aí.
Tiveste medo de lançar um tema como o “Jornalixo”? Tiveste alguma ansiedade em relação ao que pudesse acontecer, e à controvérsia?
Não. Eu quando o lancei estava “super”, mesmo de consciência tranquila, porque eu não lanço nada em que não confie e não acredite. E quando se tem confiança e tu acreditas, não tens de ter medo. Então, simplesmente lancei, e aquilo que viesse, vinha. Por um lado, houve bastantes críticas, mas por outro também consegui agregar mais pessoas e ter mais ouvintes, até. Por isso, houve aqui dois lados; um mais positivo, e outro menos positivo, como tudo, como todas as outras músicas. Há pessoas que começam a ouvir, há outras que deixam de ouvir. Mas é isso: não tive qualquer receio quando lancei. Se eu acredito, porque é que eu não hei-de dizer? Para não ser rotulado de X ou de Y? Não: se eu acredito, eu vou dizer. Não tenho de ter medo, até porque tenho bastante confiança naquilo que eu sou e nas minhas ideologias, e no meu pensamento.
Mas essa segurança que sentes de, através das letras do teu rap, exprimires aquilo que verdadeiramente pensas, acontece geralmente no panorama do hip-hop em Portugal? Os artistas escrevem exactamente aquilo que sentem ou escrevem aquilo que acham que conseguem vender?
Acho que existe os dois lados. Acho que existe muito coração no hip-hop ainda; existe muito coração e muita verdade no hip-hop. Mas também a realidade é isso; há muitos artistas que fazem simplesmente, já com o intuito de comercializar, de vender. E aí perde-se um pouco a parte pura e do coração, não é? Aproxima-se mais um pouco do pop, aquilo que é o pop, algo mais artificial. E nos tempos que vivemos, actualmente, acho que isso vê-se muito. Esse hip-hop mais artificial, essa música mais artificial, momentânea. E se calhar perdeu-se um pouco o fazer com coração e com confiança.
Ainda em relação ao tema “Jornalixo”, disseste já que houve um lado negativo. Quais foram as consequências negativas?
Desde comentários negativos, a imprensa a atacar-me, outras coisas que aconteceram também a nível pessoal…
Tiveste censuras em alguma rede social, como o Youtube e o Facebook?
Sim, o Youtube não me bloqueou, porque o que eu estava a dizer não ia contra nenhuma directriz. Estava tudo completamente legal, não é? Não estou ali a incentivar ao ódio nem nada que se pareça, mas simplesmente barraram o alcance da música. Imagina, uma música minha tem 50% de sugestão, que aparece na barra lateral do Youtube. O “Jornalixo” tem 0,01%, não tem quase sugestão nenhuma. Eles bloquearam nesse aspecto. O Facebook não permitiu meter publicidade… Ou seja, existiu esse tipo de censura não-explícita. Não removeram o meu vídeo, porque não podiam fazer isso. De certa forma, eu estou protegido, tenho uma distribuidora digital, tenho uma entidade no meio que também influencia este processo. De certa forma, sim, senti essa censura, e mesmo através de meios de comunicação e de sites mais virados para o hip-hop. E isto quando o hip-hop tem, na sua base, a liberdade de expressão, e de repente a censurarem a minha música, a não partilharem a minha música, a dizerem que a minha música é isto ou é aquilo. Quando eu simplesmente estava a partilhar a minha opinião, que agora, passado um ano, cada vez está mais certeira, não é? Na altura, era para os malucos; hoje, já não são assim tão malucos. E se calhar, olha, esses sites de hip-hop, a que me refiro, até deviam fazer-me um pedido de desculpas. Mas pronto, empatia, tranquilo, sempre na boa… Mas se calhar deviam-me um pedido de desculpas, não é?
Foste então censurado dentro da própria comunidade do hip-hop, que devia defender a liberdade de expressão…
Sim, tive vários rappers a falarem contra, mas muita gente também a apoiar… não a nível das redes sociais, mas por mensagens e não só; e outros artistas, e não só da área da música, mas mais na vertente da música africana, que me deram o “props” pela música. Mas tive muita gente – e pessoas que já andam aqui há muito tempo na cultura hip-hop – que, de repente, esqueceram-se da parte chamada liberdade de expressão, e daquilo que é o hip-hop. Eu tenho 25 anos, e estamos a falar de pessoas que já estão há muitos anos nisto, e de repente esqueceram-se das bases daquilo que vestiam, da camisola. E parece que tiveram uma amnésia. Mas pronto, é isso. Solidariedade [risos].
Tens 25 anos, portanto, és bastante jovem, e os mais novos sentem maior necessidade de aprovação social. Custou-te essa reprovação dos teus pares, ou foi uma situação que conseguiste ultrapassar bem?
Sim, consegui, ultrapassei super-bem, e até tive bastante apoio, mesmo muito apoio das pessoas nas redes sociais. Quando havia um comentário menos positivo, parece que tinha logo pessoas a irem lá [para apoiarem]. As pessoas também sentiam aquela necessidade do tipo: “este é dos nossos”. Houve aqui uma força que se agregou, e por isso senti-me bem, tranquilo. E depois da música ser lançada, ainda me fez mais sentido do que antes de ser lançada, porque vi o impacto que teve, as proporções que tomou, e as vidas que se calhar salvou, não é? Porque acho que também teve esse papel muito importante; de repente, as pessoas viram que não estavam sozinhas e que somos bastantes com o mesmo tipo de pensamento, e na mesma luta. E isso é importante.
O “Jornalixo” foi o primeiro tema de forte intervenção política, ou já tinhas tido esta apetência para esta temática?
Epá, sim. Já tenho bastantes temas com intervenção mais política. Tenho o “Suicídio Político“, o “Terra Nostra”, o “Sociedade“, que é de há sete ou oito anos… Sempre tive este papel mais interventivo, muito a nível político, embora não só. E, por exemplo, o “Suicídio Político”, na altura em que o lancei, há uns cinco anos, também ganhou proporções, mesmo a nível político. Até no CDS. O hip-hop tem esse poder, não é? Que é chegar lá. Eles ouvem. E isso ainda dá mais pica, tu saberes que os intervenientes da tua música ouvem a tua música, que a tua música chega até eles.
O CDS?
Já não sei se era o CDS ou o CDU, já não me lembro. Mas sei que foram dois partidos, porque eu meti um bocadinho de vozes, que tirei de entrevistas. Até tinha o Mário Machado, porque eu falei do PNR e de terminar com o PNR. E o Mário Machado disse: “prefiro um antifascista que se exponha do que um nacionalista de sofá; este aqui tem-nos no sítio”. Eu não fiquei contente com esse elogio, por ter vindo da pessoa que veio, não é? E senti que também foi um pau de dois bicos, porque depois daquilo… fiquei “ele agora está a espalhar isto, partilhou na página dele e agora vai chegar ao pessoal que o ouve”. Mas pronto, de certa forma, acho que o “Suicídio Político” foi o passo que eu dei que me fez pensar: “pá, isto chega até eles, e pode ganhar proporções muito grandes”. E eu, na altura, fui apresentar essa música à Cidade FM, uma das rádios mais ouvidas em Portugal, e estava a tocar essa música às 6 horas da tarde. Lembro-me de ter feito a gravação do programa e estar depois a descer a Avenida da Liberdade, e os taxistas estarem a ouvir a Cidade FM e estava a dar o “Suicídio Político”. Opá!, é uma vitória muito grande, porque tu, com música de intervenção e com a letra que é, conseguires tocar nem que seja uma vez… então à hora de ponta, numa das rádios mais ouvidas de Portugal, é incrível. Enquanto há artistas que se for preciso ficam tristes se a música deles tocar só uma vez na rádio, porque querem tocar todos os dias ou todas as semanas; eu toco uma vez, já fico contente. Mas é isso, são papéis diferentes. Cada um tem o seu papel, cada um faz a sua arte, faz o seu trabalho. Uns interessam-se mais pelo prazer das visualizações; outros interessam-se mais pelo prazer de dar prazer aos outros e de lhes trazer uma mudança. E pronto, cada um sabe do seu papel e do que tem a fazer aqui.
Sempre foste uma pessoa com esse lado interventivo e crítico, ou foste-te tornando assim? Como é que isso se desenvolveu em ti?
[pausa] Eu sempre fui assim bastante crítico no que toca à minha música; desde os meus 13 anos que comecei a fazer hip-hop, e comecei a ouvir hip-hop de intervenção. Não com o Valete, nem Sam the Kid, mas através de rappers locais do meu bairro, que falavam sobre o quotidiano do bairro e os problemas que existiam naquela comunidade. Então, comecei por ouvir esses rappers e identificava-me com aquilo. E comecei também a tentar fazer umas rimas, e depois usava o hip-hop quase como um diário; falava dos problemas do vizinho do lado, dos problemas que eu vivia em casa e no bairro. De certa forma, sempre tive esta atitude mais crítica e interventiva. Durante esse tempo, e desde os meus 13 anos, já fiz muita coisa. Já cantei em beats de kizomba, de kuduro, de jazz, já cantei com fanfarra… Já tive aqui várias misturas, que acho que são super-importantes e fazem parte de mim, porque eu sou essa mistura. Nasci no meio da mistura, de tudo, desde ciganos, pretos, brancos. E acho que a mistura, a culturalidade, é das coisas mais bonitas que pode existir. E então em Lisboa, que nós temos isso tão presente, e devíamos dar mais valor a isso, não é? Nós podemos ir a um Martim Moniz comer num restaurante nepalês, e um nepalês passar-nos a cultura dele. Podemos ir comer a um indiano, a um chinês, a um cabo-verdiano ou a um angolano. E isso é a coisa mais rica que existe. Temos a sorte de poder ter as várias culturas situadas numa única cidade, como é a cidade de Lisboa. Já me desviei um bocado da pergunta… mas é isso, eu sou também um bocado dessa mistura toda, e sempre tive este pensamento mais crítico comigo.
Portanto, és uma pessoa que tem uma abrangência grande em termos de conhecimentos da multiculturalidade; sabemos que estudaste artes do espectáculo, e depois tiveste umas experiências fora de Portugal. Esse teu lado também originou este espírito de intervenção, pelo facto de conheceres culturas muito diversas…
Sim, sem dúvida. Essas viagens… Vou começar pelo princípio: eu sempre andei ali na escola do bairro.
Qual era o bairro?
No bairro da Cruz Vermelha, no Lumiar. Na Musgueira, ou Alta de Lisboa, ou Lumiar… aquilo tem muitos nomes. E então, sempre andei ali na escola, e de repente surgiu a oportunidade ir estudar para o Liceu Passos Manuel, para o Bairro Alto. Logo aí foi uma abertura muito grande, porque estava habituado a estar dentro daquele muro invisível que existe à volta dos bairros sociais. Ainda hoje existem esses muros, que tu não vês, mas que existem. Mas consegui sair dali e ir para a escola do Bairro Alto; depois, entretanto, apareceram-me esses projectos, a Música para os Direitos Humanos, através dos Farra Fanfarra e dos Kumpania Algazarra, essa malta. Fui para a Sérvia, Israel, Palestina, Itália, França, muitos países… e, sem dúvida, foram processos muito intensos para o meu crescimento e para a minha evolução como pessoa e como artista, porque é óptimo veres esta diferença cultural e de modos de vida, diferentes pensamentos. Adoro pessoas que têm pensamentos divergentes dos meus, e que possa debater com essas pessoas de forma aberta, por mais diferente que seja o seu pensamento; pelo menos tentar entender o que é que a leva a pensar assim. E eu gosto muito dessa divergência, a nível cultural e de pensamento, acho que é muito bom.
Chegaste a fazer parte de um projecto que mistura o jazz com o hip-hop, a banda JAZZOPA. O que é que essa experiência te trouxe?
Foi muito bom, porque, é isso, eu vivia por trás daquele muro invisível que era o bairro, e depois estava a participar num projecto de jazz com hip-hop. Eu não tinha noção nenhuma de música, muito menos de jazz, que me parecia música de elevador, então pensava: “o que é isto, pá?”. De repente, “dó, ré, mais groove, menos groove”, e eu disse: “pá, estes gajos estão a falar chinês, não estou a entender nada do que eles estão a falar”. Ou seja, é o choque, e o não saber, porque não tive acesso. E, de repente, são portas que se vão abrindo, e sem dúvida que foi muito importante esse projecto. E também a OPA – Oficina Portátil de Artes, com o Francisco Rebelo e com o Carlos Martins… Conhecer esta variedade toda, essas portas que se começaram a abrir, epá!, foi óptimo. E essa banda de jazz foi mais uma das evoluções, um crescimento.
Voltando agora novamente ao “Propaganda”. Achas que o politicamente correcto está instituído no hip-hop em Portugal, e que tu és politicamente incorrecto?
[risos] Sim, sim, porque é isso, acho que as pessoas têm muito medo, não é? De serem julgadas, e acho que, actualmente então, as pessoas não estão a evoluir, estão a regredir ainda mais. Onde é que está a tolerância, de aquela pessoa ter um pensamento diferente do meu, e eu respeitar a opinião do outro? Parece que agora é: “ah!, não, não vou dizer isto, porque senão vou ser atacado nas redes sociais”, ou ser julgado, ou cancelado, que também está muito na moda.
Esse cancelamento, ou diminuição de visibilidade nas redes sociais, como disseste que te aconteceu com o Youtube, é também uma limitação para a própria liberdade criativa do artista. Porque se têm uma boa fonte de rendimento através dessas plataformas, quando começa a haver esse cancelamento, obviamente que há uma redução do vosso rendimento. Assim sendo, não será por uma questão de subsistência que muitos artistas alinham no politicamente correcto?
Sim. Epá!, olha, o PÁGINA UM também é um desses exemplos, não é? Com tanto jornalismo que existe, que é politicamente correcto, podemos dizer que o PÁGINA UM faz um trabalho diferente, e obviamente isso tem as suas penalizações. É como eu, também, na minha música, fazendo o papel inverso, do politicamente incorrecto. Obviamente, existem penalizações, mas tu tens de estar é bem decidido daquilo que queres fazer. Queres ser honesto contigo? Queres-te agradar, queres fazer aquilo que tu sentes? Ou queres agradar o outro e seguir ordens dos outros? Acho que é a decisão que está em cima da mesa. Depois, uns escolhem por um lado, outros escolhem pelo outro. Obviamente que escolheres um lado ou o outro faz diferença a nível económico, ao final do mês. Uma pessoa tem de andar aqui numa luta completamente diferente. É aquilo que eu estava a dizer: se uma música tocar uma vez na rádio, para mim é uma vitória; se calhar, para o outro, se a música tocar uma vez, ele fica triste. Acho que implica tudo isso, que são penalizações, mas de certa forma é o que me move. O que me faz fazer isto é esse politicamente incorrecto, não é? Ter esta atitude.
Se fosses na mesma linha que os outros, mais mainstream, estarias melhor financeiramente?
Claro que sim, claro que sim. Se fizesse, talvez, uma música a falar de amor, constantemente… E acho que falar de amor é super-importante, falar de festas… acho que o hip-hop é muito abrangente nesse aspecto, tirando a parte da intervenção, que está cada vez mais falida. Mas o hip-hop permite-te ouvir um som de festa, ou de amor, ou de intervenção. Eu se for para uma discoteca, não quero estar a ouvir o “Propaganda” nem o “Jornalixo”, não é? A mim apetece-me ouvir uma música para relaxar, para dançar. Eu acho que é muito importante existir esse leque de sonoridades e de temas. Sem dúvida que a parte interventiva é muito importante, ainda mais nos tempos actuais, e está em escassez. E, obviamente, se eu fizesse outro estilo musical… O meu pai costuma dizer: “eu só vou a um concerto teu quando comprares um acordeão” [risos]. Ou seja, há estilos de música que são muito mais favoráveis para tu estares numa televisão, música mais fácil que não faça as pessoas questionarem-se e pensarem. Isso eles até agradecem e até te pagam para tu ires fazer isso. Agora, quando tu tens um papel contrário, é muito mais complicado, é uma luta diferente. Posso não ganhar tanto como ganha o meu colega que faz outro estilo de música, mas ao mesmo tempo, eu tenho uma satisfação, que é dormir de consciência tranquila, e saber que estou a fazer o correcto. Uma vez numa entrevista, já há muito tempo, quando tinha para aí 14 anos, com a Joana Dias na Antena 3, eu disse-lhe: “eu não quero ter muito dinheiro, desde que eu tenha uns “trocozinhos” para fazer aquilo que eu gosto e ter a minha vida tranquila”. E, passado este tempo, e depois de tudo o que passei, continuo com o mesmo pensamento. Eu acho que o importante é fazer aquilo que eu gosto. A parte monetária é, sem dúvida, importante, porque é o que nos faz sobreviver. É preciso arranjar um equilíbrio, “entre a guita e as palavras”, como eu digo numa música. É uma luta constante. Uma luta mais complicada, mas acho que no fim de contas vale a pena, pelo menos para mim; e para mim a noite tranquila é muito importante.
E essa “guita”, como tu lhe chamaste, vem também muito do circuito dos festivais. Sendo tu tão interventivo em questões tão fracturantes dos últimos três anos, sentiste relutância das organizações dos festivais em convidarem-te?
Eu estive no MEO Sudoeste, mas essa [presença] já estava marcada antes do “Jornalixo” ser lançado. Mas fui; tudo super normal, não me meteram na melhor slot, não é? Mas estive ali, num dos maiores festivais do país. Antes do “Jornalixo” já tinha lançado o “Terra Nostra” e o “Suicídio Político”, entre outras músicas interventivas e com esta perspectiva mais política. E toquei no Super Bock, já toquei no Marés Vivas, já foi a terceira vez que estive no MEO Sudoeste… Quase todos os Verões costumo ir a um, dois ou três festivais grandes. Estive este ano também no Summer Opening na Madeira, que é o maior festival da ilha. Por isso, acho que posso dizer que, para a música que eu faço, até tenho várias portas abertas, porque acho que, de alguma forma, mesmo os promotores se calhar também sentem uma certa pica de me terem lá a tocar. Não sei, não sei… E até porque acho que aquilo que eu falo não é mentira. E se calhar também é por aí, eu não digo nenhuma mentira, não é? Eu tenho muito cuidado naquilo que digo, nas frases que uso na minha música, e cada vez mais. Se calhar tenho essa noção hoje, que não tinha há cinco anos. Hoje consigo ter essa percepção, da força e da influência que tem a minha música. Então, tenho de ser cuidadoso na abordagem e no conteúdo; por isso tento sempre estudá-la muito bem antes de a meter cá fora. E por isso, acho que os próprios promotores também devem perceber [risos].
Também não fazes só rap de intervenção, tens uns temas mais românticos…
Sim, sim, e que eu acho que é super-importante também. A minha vida não é só isto, não vivo o dia todo rabugento a falar dos problemas do Mundo, não. Quando acordo de manhã, gosto de ouvir um bom reggae, e samba, gosto de ouvir kizomba. Tenho também problemas amorosos, tenho problemas familiares, tenho tudo, não é? E a minha música é isso tudo, porque a minha música é o meu reflexo. E por isso, tenho várias músicas, desde umas a falar mais de uma relação bem-sucedida ou não… Abordo sempre vários assuntos e tento ter essa preocupação, mas todos verdadeiros. Acho que a minha música é isso, e se não for assim, para mim não faz sentido. Se for para escrever algo encomendado, epá!, não. Tem que ser algo que eu esteja a sentir naquele momento, algo em que eu acredite.
E, apesar de fazeres músicas muito políticas, não te identificas com nenhum partido? No espectro político, da esquerda à direita, assumes alguma posição, ou não te colocas nesses termos?
Não me coloco nesses termos, porque acho que esses termos servem simplesmente para dividir ainda mais a sociedade e as pessoas. É como um clube de futebol, como a religião. Todos esses temas servem simplesmente para dividir as pessoas. “Ah!, porque eu sou de esquerda e ele é de direita, então vamos andar à porrada uns com os outros”, ou porque ele é do Benfica e eu sou do Porto, ou porque ele é católico e eu sou judeu… Ou seja, eu acho que todos esses temas foram impostos à sociedade para a dividir, e eu não me rotulo com nenhum desses slogans de esquerda, de direita ou de centro. E até porque não acredito em nenhum deles, e não tenho fé em nenhum deles [risos].
Mas neste tema “Propaganda”, falas num assunto que também divide algumas pessoas, que é a Nova Ordem Mundial. Alguns acham que é a solução, e outros estão muito preocupados. Qual é a tua sensibilidade em relação a esta questão da Nova Ordem Mundial?
Epá!, Nova Ordem Mundial é conversa de chalupa, desculpa lá [risos]. Estou a brincar. Acho que temos de olhar para isto com preocupação, e fazermos aquilo que estiver ao nosso alcance para que grande parte daqueles que são os objectivos não sejam concretizados. Seja eu, através da minha música e da minha arte; seja o outro, através do direito; a médica, o jornalista… Cada um de nós ter esse papel activo, para que grande parte daquilo que eles tencionam aplicar através de toda esta Nova Ordem Mundial…
Mas que objectivos são esses ,em concreto, que falas em “Propaganda”?
Eu no “Propaganda” sou bastante abrangente nos temas que abordo, mas, por exemplo, a ideologia de género, que é ensinada na escola… Eu sou a favor de um mundo livre, onde toda a gente possa ser respeitada e acho que a escola poderá ter esse papel, sem dúvida alguma, de ensinar o respeito, seja branco, preto, gay, árabe. Respeitar tudo e todos. Mas quando falamos em crianças de oito anos, que estão em desenvolvimento, em fases cruciais das suas vidas, e implementarmos ideologias, que são proibidas até pela própria Constituição, não é? Acho que não é bom. E esse é um dos temas que eu abordo.
Achas que há um ataque à liberdade, como nós a conhecemos depois do 25 de Abril?
Sem dúvida, e cada vez mais.
Tens participado em manifestações, nomeadamente nas mais recentes que se fizeram por causa das alterações à Constituição, certo? Portanto, és contra a mudança da Constituição?
Sim. Acho que qualquer cidadão, no seu perfeito juízo, devia estar contra a alteração da Constituição sem o seu consentimento. Porque a Constituição serve para proteger o povo, e se o povo nem sequer pode opinar sobre essa mudança… Porque eles falam nisto com um arco-íris sempre por trás. É como um título que eu vi num jornal que dizia: “alteração na Constituição para alargar os direitos”. É sempre como se fosse algo bom, e as pessoas acham que é pelo bem delas. Ou seja, acho que as pessoas nem têm bem a noção da gravidade. Porque se calhar 70 ou 80% da população nem sabe o que é a Constituição da República, nem sabe os direitos que tem, não é? Porque é que a escola não ensina isso e não tem este papel? É uma coisa super-importante, uma criança ou um jovem que está a crescer saber dos seus direitos.
Não é para isso que servem as aulas de cidadania?
Exactamente, exactamente. E por isso, obviamente, sou contra essa alteração da Constituição, e acho que qualquer cidadão no seu perfeito juízo também deverá ser contra: tirando os nossos líderes e todos aqueles que tencionam mudá-la, com certeza, com outros motivos por trás. E acho que, mesmo eles, não acreditam que estão a fazer o correcto [risos].
Julgas que a propaganda, de que falas neste novo tema, é uma forma de limitar o conhecimento do cidadão e do povo em relação a esses assuntos? Por exemplo, quanto à alteração da Constituição…
Claro que sim, porque só existe um único pensamento e tudo o resto é inválido, não é? Tudo o resto é rotulado. O único pensamento que importa é o da máquina da propaganda, é o único que vale.
No teu single “Planeta Novo” falas de lutar por uma utopia. Que utopia é essa? Qual é a visão que tens para o Mundo que gostavas que se realizasse, e que acreditas ser possível?
Eu acredito perfeitamente na mudança, e por isso é que faço as minhas músicas, também para ajudar nessa mudança. A utopia é um mundo mais justo, com mais igualdade, com respeito uns pelos outros, e pelas opiniões dos outros, onde todos possam viver de forma livre e tranquila. É esse o Mundo que eu vejo para os meus filhos e que quero para eles. Um mundo onde eles possam expressar-se da maneira que quiserem; onde haja liberdade de expressão e que escolherem aquilo que querem ser não seja um problema. Que haja esse respeito entre as pessoas e as comunidades, e a culturalidade seja vista como algo bom, e não como algo mau. Que possamos viver todos num único Mundo, sem fronteiras e sem líderes, e vivermos nas nossas comunidades. E acredito que é possível. É uma utopia, mas como já dizia o Zeca Afonso, se a utopia é inalcançável, então vou morrer a lutar por essa utopia. É mais ou menos isso.
Falaste no Zeca Afonso… Achas comparável a música de intervenção antes do 25 de Abril e esta que tu fazes? O intuito final, que é o de alertar as pessoas para aquilo em que tu acreditas…
Sim, sem dúvida. São tempos e formas de expressar diferentes, mas acho que ambas têm o mesmo intuito, que é de contracultura, do politicamente incorrecto. Apesar de naquela altura não existir a liberdade de dizer as coisas tão directamente, como eu as digo hoje; mas, sem dúvida, que podemos olhar como música de intervenção. E tanto o Zeca como outros artistas.
Qual é o teu público? Como disseste, tens 25 anos e fazes rap, que está mais conotado com os jovens, mas os temas que tu abordas geralmente não são motivos de preocupação para a juventude…
Epá!, o meu público é acima dos 75 anos [risos].
Vais dar então concertos em lares de terceira idade e aos velhotes, todos com as bengalas…
[risos] Não, mas é um público mais velho, tendo em conta o que se vê no hip-hop, que se tem a ideia de ser música de jovens… Pelo menos a nível de estatística, do que eu tenho acesso nos meus sites e plataformas, a maior parte está entre os 25 e os 35, 40 anos. Depois, é dos 40 aos 50. E a percentagem que me ouve dos 18 anos para baixo é a mesma que me ouve dos 70 ou 75 para cima, o que é engraçado. É uma percentagem muito pequena. Por isso, acho que, por aqui, o meu target, digamos, são jovens adultos.
Porque é que achas que os adolescentes não te ouvem tanto? Porque ainda não estão tão virados para causas?
Sim, e eu acho que é essa despreocupação na cabeça do adolescente. Há um ou outro que possa ter esse interesse… Eu, na altura do liceu, tinha uma professora de História de Arte e as aulas dela eram uma seca, então logo às 8 horas da manhã, eu adormecia quase sempre, e ela dizia que tinha de fazer relatórios em todas as aulas. Então chegou o final do período, ela pediu-me o relatório, e o relatório que eu tinha era sempre sobre o final das aulas, em que ela falava sobre política. Ou seja, na altura ela também me deu esta vontade de saber mais sobre política, e estar mais envolvido com essa parte. Mas em miúdo também era mais despreocupado, acho que faz parte da adolescência, não é? Então penso que seja por aí que não prestam tanta atenção. Mas acho que a minha música poderá ser intemporal, e se calhar daqui a um tempo vão ouvir. A minha música é para ficar, não é uma música que amanhã já ninguém se lembra. Por exemplo, o “Planeta Novo” já saiu há cinco anos e ainda hoje vai continuando a aumentar em visualizações, gente a partilhar e a comentar… Por isso, acho que é transversal às gerações, é uma música para a História. E esse é o meu trabalho quando escrevo.
Eras um adolescente rebelde?
Não [risos]. Epá!, mais ou menos. Eu quando vivia no bairro sempre fui assim um bocado mais traquina, tive as minhas coisas, que fazem parte… Mas decidi escolher outros caminhos e, felizmente, sempre tive esta luz que me foi guiando. E sempre tive oportunidades, também, que às vezes não existem. Eu tive essas oportunidades, e soube agarrá-las, e as coisas foram acontecendo. Mas sim, quando era miúdo era um bocado mais traquina.
Actualmente, os adolescentes e jovens adultos estão muito virados para o activismo ambiental. Há pouco dizias que escreves aquilo que sentes e gostas. Mas se alguém viesse ter contigo e te pedisse que fizesses uma música sobre a questão ambiental. Ao perceberes que há um público que está activamente a lutar pelo ambiente, farias isso?
Eu sou-te sincero. Sem dúvida alguma que devemos cuidar da Natureza e do nosso Planeta. Mas esta urgência, obviamente que acho que é desnecessária, e fico ainda mais espantado quando vejo entrevistas a essas activistas, em que lhes perguntam o que é que eles estão a fazer, e muitos deles não sabem responder. Faz-me lembrar quando eu era miúdo e fazíamos greves e íamos para manifestações… “Estão a manifestar-se sobre o quê?”, e nós: “ah!, é só para não ter aulas” [risos]. Acho que também existe muito isso. E depois também vi alunos que foram formados para aquele tipo de causas… Ou seja, é tudo muito estranho. Acho que devemos, não só hoje, ontem ou amanhã, mas sempre, ter atenção ao nosso Planeta e saber cuidar da Mãe Natureza e dar bons exemplos. Mas toda esta urgência é em demasia. Porque tu ouviste falar do buraco do ozono, e de repente já não se ouve falar. Ou seja, é sempre narrativas novas. E se fores ver, a Europa já esteve congelada em tempos. Eu estive a ver uma reportagem muito interessante que falava sobre umas décadas, e às vezes séculos, mais frios, outros mais quentes, e outros mais amenos… Isto é cíclico, não é? Nós já tivemos uma Europa completamente gelada, e já tivemos uma Europa a escaldar. E quando tu vês estes historiadores e pessoas certificadas a falar sobre isto, tu questionas-te: então qual é a preocupação, não é? Porque essas mudanças de temperatura, e tudo isto é cíclico. E, se calhar, nem os nossos avós viram esta alteração, mas se calhar os nossos bisavós já passaram por tempos mais quentes ou mais frios.
Achas que esta narrativa da emergência climática se pode equiparar à da pandemia?
Se a gente for aprofundar a Agenda 2030 das Nações Unidas, tudo isso está lá explícito, por outras palavras e com “arco-íris”, mas está lá. E, por isso, acho que é questionável e devemos questionar, tal como com a pandemia, todo este alarido à volta das alterações climáticas. É super-questionável, não é? E mais uma vez, é o que eu digo, devemos sempre dar o nosso melhor para com o Planeta, ter uma atitude cívica correcta. Mas não com urgência, como cortar nas palhinhas, como se as palhinhas fossem o problema do Planeta. Ou cortar com os combustíveis fósseis, e depois ter carros a bateria, onde a produção, se for preciso, ainda polui muito mais. É isso, acho que existe aqui um exagero que vem, de certa forma, para implementar algo, mais uma vez.
E é um pouco disso que falas no “Propaganda”, esta tentativa de controlar a opinião pública com base numa narrativa?
Sim, basicamente, é isso. Falo um pouco sobre estes temas todos, e acho que é importante também meter as pessoas a questionarem-se, a discutirem, e tenho ali coisas que foram mesmo propositadas para abrir uma discussão entre as pessoas. Eu não digo que estou certo, nem que a outra pessoa está certa, mas acho que é muito bom discutirmos abertamente, e no final irmos beber um café os dois, ir sair à noite e divertirmo-nos, não é? Não é por isso que eu te vou odiar, não é por isso que eu te vou matar. Temos de nos respeitar uns aos outros, sermos tolerantes. Acho muito importante o respeito pela opinião do outro, e pela diferença. Porque se nós queremos a igualdade, não podemos querer só a igualdade para a nossa casa, mas para a de todos. Para mim, isso é que faz sentido. Ouve-se muita gente a falar em igualdade e liberdade, mas só querem igualdade para o seu pequeno grupinho. Como as feministas, não é? “O corpo é meu, quem manda nele sou eu”, mas depois são a favor de vacinação obrigatória. Acho que estes tempos, estas coisas que estamos a passar, vão ser super-importantes no futuro para o crescimento da sociedade e para a evolução do ser humano, olhando de uma forma mais optimista.
É o mais recente documentário da jornalista Catarina Neves. Ainda não acabei acompanha o processo criativo dos artistas plásticos do Manicómio, um atelier onde pessoas especiais criam a sua arte, a expõem e a vendem. Além de pretender acabar com o estigma da saúde mental, o trabalho de Catarina Neves documenta as inspirações, os métodos e a criatividade de vários artistas com quem conviveu durante seis meses. Documentarista há dez anos e jornalista há 28, Catarina Neves começou a carreira na rádio e a experiência mais longa tem sido na SIC, onde tem acompanhado vários acontecimentos internacionais, como a guerra na Ucrânia e as eleições em Angola. Tem 50 anos e é natural do Barreiro. Filma por gosto e por achar importante documentar momentos únicos da criação artística, onde mostra tanto o talento como a fragilidade dos artistas. Os documentários acompanham todo o processo, desde a conceção da ideia até à exibição ao público. A sua vasta experiência e formação académica em teatro colocam-na numa posição privilegiada para mostrar o artista no seu lado mais puro. É o caso de Ainda Não Acabei sobre o projeto Manicómio, de Sandro Resende e José Azevedo. A propósito da exibição do filme no MAAT, na próxima segunda-feira (dia 21 de Novembro), o PÁGINA UM conversou com a realizadora sobre a sua experiência em documentários, sobretudo focando os processos criativos das artes.
O Manicómio é um projeto que, segundo os seus criadores, tem logo, no seu nome, uma provocação. Foi esta provocação que te levou a fazer este filme documental?
Também, mas não só. Foi o meu grande interesse por processos criativos, por acompanhar a criação em várias áreas, sobretudo na área teatral. É o que eu mais tenho feito, mas as artes plásticas, até pela novidade, são altamente desafiantes. E depois também por ser amiga do Sandro Resende há mais de 20 anos. Vi-o começar no Hospital Psiquiátrico Júlio de Matos, onde ele seguiu e segue, ainda que agora não de uma forma tão intensa, os doentes mentais que eram encaminhados para as artes plásticas. Através desse trabalho, encontravam formas de vida que lhes permitiam, inclusive, sustentarem-se – e essa é uma grande questão que move muito o Sandro Resende. Como eu acompanho os seus trabalhos há mais de 25 anos, tenho visto a sua grande vontade, energia, criatividade e, sobretudo, a grande capacidade de ter uma ideia de que, por mais louca – e aqui podemos fazer imensas piadas a partir dos termos loucos, loucura, manicómio – que fosse, ele conseguia torná-la real. E isso para mim é altamente estimulante.
Quando começaste a idealizar este documentário?
Ele fez-me o desafio, em 2019, de acompanhar durante algum tempo o trabalho no Manicómio. Aliado ao facto de o conhecer, foi o acompanhamento de um processo criativo nas artes. E depois há este impulso que eu tenho para o registo, que eventualmente poderá ser histórico. Nós estivemos seis meses com aqueles artistas. Como eu costumo fazer nos documentários, a ideia é acompanhar a criação do princípio ao fim. Neste caso, como são artes plásticas, estive a acompanhar o barro, a pintura e o trabalho do tecido. Acompanho os processos desde o momento em que o artista se coloca perante o objeto vazio – o material de construção –, e depois tem a ideia, põe em prática, executa e cria o objeto artístico.
E quando estás a filmar, não tens o receio de acabar por intervir, de uma forma positiva ou negativa, no processo artístico dos outros?
Tenho, e tento controlar esse risco, que é também, até certo ponto, o impulso. Porque são tantas horas, tantos dias, semanas e meses que, a dada altura, achas que já fazes parte daquilo também. Achas que já podes mandar o teu bitaite [risos] sobre que materiais usar ou para onde ir. Mas eu, para ser honesta, sinto mais esse impulso quando acompanho processos criativos na área do teatro, por ser uma área que me é mais próxima.
Exacto. Uma parte dos teus documentários são sobre o processo criativo no teatro…
Eu fiz um mestrado em Estudos de Teatro na Faculdade de Letras [da Universidade de Lisboa] Eu própria participei na fundação de uma companhia de teatro há mais de 25 anos, andei nos palcos… Portanto, sou muito mais próxima dessa linguagem, o que faz, à partida, sentir-me mais à vontade; mas não à chegada. Isso é que é interessante. Como eu me sinto muito mais próxima da linguagem teatral, controlo-me muito mais. E fico muito mais fechada, com menos interação – até porque eu conheço melhor a forma de pensar e de agir dos agentes do teatro. Foi o oposto ao que aconteceu com este processo criativo dos artistas do Manicómio. Porque aquilo, para mim, era estranho: eu não trabalho barro, sou uma desgraça a desenhar, desenho mal o sol, pareço uma criança da quarta classe. Sou muito básica nisso, e sinto-me menos implicada. Portanto, acho que me vinculei um bocadinho mais.
Para tentar perceber melhor esta dinâmica deste documentário e como aqueles que tens feito sobre teatro: chegas ao local com uma câmara, montas as luzes e o teu set para trabalhares. Almoças e convives com os artistas, sejam eles quais forem. Como é afinal esse processo, que implica a existência de confiança, que te permite captares a sua essência criativa sem qualquer tipo de filtro e onde a acção não seja provocada pela tua presença?
Depende dos grupos de trabalho e, mais uma vez, depende das áreas. A mim parece-me que no teatro é mais complexo. Os actores são figuras que percebem a implicação dos seus actos e como se comportam. Eles têm muita a noção do público, porque têm imediatamente o retorno: estão em palco, fazem a sua função e, imediatamente, percebem pelas palmas. Hoje não se usa o patear, não é? Mas há 30 anos, quando não se gostava, pateava-se. Era um sinal de reprovação do espectáculo. Hoje, aquilo que o público faz é sair da sala a meio. Isso é uma forma de rejeitar. O público também se tornou um bocadinho [suspiro] mais hipócrita, não enfrenta tanto o actor, o trabalho. Prefere sair. É um bocadinho a sociedade em geral. As pessoas só se enfrentam em redes sociais, não o fazem cara a cara. Fazem de conta que está tudo bem. Quando eu me envolvo no teatro, é mais complicado. De todos os documentários nesta área, só houve um em que era muito próxima, pessoalmente, do encenador. Eu estive um ano a acompanhar as criações no Teatro Nacional Dona Maria II e não conhecia praticamente ninguém. Conhecia os actores, porque são figuras públicas, mas eles não me conheciam a mim. Não tinha relação com eles.
Em relação ao teu trabalho de documentação do processo artístico no teatro, o que é que já fizeste?
Acompanhei muitas obras no Teatro Nacional Dona Maria II; foi um ano inteiro. Acompanhei o À espera de Godot, encenado pelo Luís Vicente. Aquilo que marca o início desta minha vida paralela foi quando acompanhei o Joaquim Benite, no último ano da sua vida e na sua última encenação, que foi o Timão de Atenas, de Shakespeare. Estive também com o Luís Miguel Cintra, na encenação de uma ópera.
A tua experiência no teatro influencia a forma como os actores se comportam nas gravações do documentário?
Eu conheço muitos processos criativos, e sei que há uma questão de ego do actor, e a sua noção muito forte do público. Eu sei que qualquer opinião de alguém que tem uma câmara – e eles tem muita noção do poder da imagem – pode influenciar. Às vezes, o actor pergunta-me o que eu acho do ensaio. E o que é que eu vou dizer? Vou dizer: “Ai, foi maravilhoso”. E realmente foi maravilhoso. E incho ainda mais o ego dos actores quando eles estão em processo criativo. Acho que isso não traz muito para o processo onde eu nem sequer tenho de interagir. Ou então, eventualmente, não gostei, e até acho que aquilo está tudo muito mal, e sou sincera. E digo: “Eh pá, isto está muito mal, não estás na linha, não estás a captar”. Vou dizer isso para quê? Isso não traz nada.
Nas artes plásticas, isso não sucede?
Na verdade, com as artes plásticas, eu estou muito ausente em termos de conhecimento. O que eu tenho é um conhecimento empírico, de espectador, de ir a um museu ou outro. Nesse caso, a minha opinião nem sequer é muito tida em consideração. Não interessa muito a minha opinião. Portanto, a interação mais pessoal acabou por ser muito na esfera do “está chuva, está frio; ´bora lá beber uma cerveja; como é que te sentes hoje?” No teatro não acontece assim, porque aí a pergunta vai sempre: “Como é que correu este ensaio? O que é que tu achas? Achas que estamos a ir bem?” Exigir um comentário meu é mais do foro profissional. E isso é comprometedor, e pode mudar a temperatura da relação. E eu não quero isso, já basta ter lá a câmara, que já é complexo.
Pode depreender-se pelas tuas palavras que a tua interacção com os artistas plásticos do Manicómio foi mais fácil do que com os actores?
É diferente; não é mais fácil, mas diferente. É mais fácil para mim filmar um processo que eu domino. Eu sei como me comportar em palco. Há coisas tão simples como isto: eu não vou filmar uma peça de teatro com os sapatos de sola. Vou sempre com borracha, porque, se eu tiver de ir para a zona do palco, o que eu não quero é que se oiça o meu andar. Eu não quero que se dê conta que eu lá estou, quanto mais que se oiça. São coisas tão simples como estas; e isso eu domino. É a minha linguagem, são muitos anos a ver e a estudar teatro; criei companhias e conheço a maior parte dos criadores. Eu antecipo comportamentos, feitios e personalidades. Eu evito o conflito ao máximo. Eu quero ser uma mosca. É como aquela história de um criador, que nunca deixava ninguém filmar. Uma vez foi acompanhado pelo seu filho, que é realizador. O filho disse-lhe que ia ser como uma mosca na parede. E ao que o criador respondeu: “uma mosca pode ser muito chata quando voa”. A mosca pode ser muito impertinente, pode prejudicar muito a criação. Eu estou ali, sossegada na parede, a observar e fazer o menos possível.
Na estreia deste documentário sobre o Manicómio, tu e o Sandro Resende falaram da necessidade de fazer cair o estigma da saúde mental. Mas, ao mesmo tempo, não é possível desassociar a saúde mental do artista. Como é que tu vês o equilíbrio ao tentar mostrar a arte pela arte e pelo seu criador, sem colocar a questão da saúde mental no meio do processo?
É um desafio permanente, porque a própria designação “Manicómio”… [pausa longa, sorriso] tem dois lados. Em qualquer língua, sobretudo na Europa, se tu falares no manicómio, se usares a expressão manicómio, é o manicómio, é uma casa onde estão loucos. Portanto, é uma provocação. E o Sandro assume isso. Aliás, há uma parte do filme, quando o Sandro está num debate a falar com várias pessoas e alguém da plateia lhe diz: “Manicómio? Eu não gosto do termo; porquê Manicómio? Isso estigmatiza!” Tem exactamente o efeito oposto. Eu acho que o Sandro quer que se fale sobre [o estigma]. Porque tu estigmatizas menos se falares sobre. Se tu fizeres de conta que não tens um problema, aí é mais fácil relacionares-te com os outros. Não é que isso tenha de ser uma bandeira permanente. Não é que um bipolar tenha de andar com uma faixa a dizer: “Eu sou bipolar”. Não é isso. Mas esconder que é bipolar, se calhar, não vai dar bom resultado, principalmente em relações mais íntimas. E há um contexto médico e de saúde. Qual é o problema? Posso ter diabetes, se tiver diabetes se calhar é melhor não irmos à Feira do Chocolate em Óbidos?… Se calhar é melhor dizer à pessoa que convida: “eh pá, vamos, mas se calhar não consigo participar activamente nessa atividade”.
Houve alguma influência no processo criativo ou durante a captação das imagens por causa dessa questão?
É uma realidade permanente, não é? Aliás, o filme mostra um momento de crise da Anabela Soares. Mas não temos, todos nós… momentos de crise? Eu disse numa entrevista para a SIC que era pessoal [do Manicómio] com distúrbios de personalidade. Os psicólogos e psiquiatras manifestaram-se dizendo que não são pessoas só com distúrbios de personalidade. Há outro tipo de patologias. Pronto, ok, está feita a rectificação. Também me falta um ano para acabar a psiquiatria – estou a brincar, é uma piada que costumo fazer [sorriso. Uma pessoa mete-se a falar sobre tudo e depois mete o pé na poça, às vezes.]
E depois há sempre aquela exigência desses tais peritos e especialistas – estamos pejados de gente assim – que acha que nós temos de saber tudo…
E sobretudo os jornalistas, que são grandes especialistas em generalidades [risos]. Não é fácil tu assumires que tens uma doença mental, não é fácil dizeres que o meu irmão, a minha mulher, o meu filho, são esquizofrénicos. É uma coisa que acarreta uma dor tremenda. Sobretudo se fores um esquizofrénico que tem de ser medicado de 15 em 15 dias, e que fica, no dia da medicação, sem se mexer… Se calhar não é uma coisa muito fácil. Se tiveres uma doença mental que te impede de trabalhar tranquilamente, sem levantar ondas das oito da manhã às cinco da tarde, se calhar também é um problema. És menos por isso? Não, estás noutro esquema, tens outro esquema de funcionamento. É possível viver. E será que nesse viver está implicada a noção de criar receitas para ti próprio, não ser dependente, não ter de viver com uma pensão do Estado, não ter de ser dependente dos teus familiares diretos ou indiretos? É possível, claro – o Manicómio, mostra isso. As condições de trabalho e a forma de reagir e de estar é que são ligeiramente diferentes das padronizadas. Mas se calhar há muita gente que está no padrão e acha-se super infeliz.
No teu filme Ainda Não Acabei há uma cena com a Anabela e o Zé dos Castelos em que falam do suicídio. É algo muito forte, que nos toca. Notei que há uma dosagem entre o que poderia ser dramático, como dar ênfase à parte mais preocupante da saúde mental, com um aspecto extremamente positivo, ao mostrar que são pessoas como qualquer um de nós. Essa dosagem foi propositada?
Ela nasce da realidade observada. Não forcei. Eu acho que se tivesse sublinhado mais os momentos de crise daqueles artistas plásticos, com problemas de saúde mental, teria forçado. Aquilo é mais ou menos o que aconteceu. Existiram momentos de crise que precisavam de contexto e num filme documental, para terem contexto, se calhar tinham de ter voz off – e eu não quis. Tudo o resto, o que tu vês ali, é mais ou menos o que foi a conversa. Os momentos de crise foram aqueles. Acho que não deixei de fora nada de muito significativo. Claro que há uma estrutura narrativa pensada e criada. Claro que há sempre uma manipulação da minha parte. A realidade é uma grande seca, não é? Vamos lá ver, mesmo no Big Brother – que no fundo é aquela grande noção de big brother is watching you –, tu estás ali 24 horas [por dia] a acompanhar pessoas que, por acaso, estão fechadas, e que, por acaso, são escolhidas com perfis muito particulares, para ter interações que podem ser mais potenciadas em termos de televisão… Se tu estiveres a acompanhar aquilo, é um bocado seca. O dia-a-dia não é sempre estimulante, senão não aguentávamos. E um filme documental é um filme que corta a realidade e que depende do meu olhar, depende da minha capacidade de síntese.
A crise não é permanente…
As pessoas [do Manicómio] não estão permanentemente em crise. As pessoas estão controladas, até medicamente. Aliás, há um momento, também nesse debate, em que o psiquiatra diz: “a medicação está tão desenvolvida que faz com que um doente esquizofrénico, que é uma patologia mais complexa e mais pesada, esteja aqui hoje neste debate, e nós nem sequer consigamos ver quem é que tem esquizofrenia”. As pessoas levam as suas vidas normais. Agora, voltamos ao mesmo: conseguem apanhar uma hora e meia de transportes públicos, entrar às oito da manhã, fazer 40 minutos de almoço, sair às cinco da tarde?… Se calhar não conseguem ter esse peso que os “normalpatas” assumem e aguentam. Depois descompensam todos aos 50 anos com depressões más, mas pronto. Mas têm vidas perfeitamente enquadradas.
Explicaste que no teu processo criativo não crias um guião à partida. Começas a trabalhar com uma tela em branco?
Sim. Preciso de perceber o que é que me move, que realidade é que eu vou enfrentar, mais ou menos. Depois, preciso de coisas mais práticas, menos românticas, como condições de trabalho: se tem luz ou não tem, se tem de haver mais planos de interior, etc. Nos processos teatrais, aquilo é mais ou menos sereno: há ensaios de mesa, leitura de texto, discussão de intencionalidade de personagem e o desenho, feito por cada actor, do seu caderno de personagem. Isso é sempre a mesma coisa. Vão para o espaço, normalmente uma sala de ensaios. Ensaiam pela primeira vez: as primeiras descobertas, as primeiras frustrações, os primeiros deslumbres. Depois, passam para o palco. Aí, eu quero muito acompanhar coisas mais técnicas: luzes, cenários, figurinos e os atores no palco. Preciso muitos dos actores no camarim – isso é para mim um dos momentos mais altos da intimidade com o actor. Então, se ele começar a habituar-se a ter-me presente, aquilo entra mesmo numa coisa de descontração. Ao ter-me presente sem palavras, passa a haver um só presente. Aliás, movimento-me pouco e tento fazer o mínimo barulho.
E no processo criativo dos artistas do Manicómio, foi mais fácil?
No processo do Manicómio foi mais complexo. Pergunto-me: o que é que me move? Que artes é que nós temos aqui? Temos as artes plásticas: a escultura, o barro, a pintura, os tecidos, e a fotografia. Quem são as personagens que fazem isto? Seis, sete personagens. Quando é que eles cá vêm, quais é que são as rotinas? E depois há também, e mais uma vez, a questão técnica: por onde é que entra a luz e quando é que começa o dia, porque isso permite-me outro tipo de planos. Tento fazer tudo por tudo para acompanhar o processo desde o início da criação. Por exemplo, no caso dos Zé dos Castelos, não foi possível porque ele tinha começado aquele enorme desenho do castelo em 2019, e eu comecei a filmar em 2021. Ninguém foi ao espaço do Manicómio em 2020 por causa da pandemia. O Zé tem um tempo de trabalho relativamente lento [risos], que ele próprio assume. É mais correcto dizer “demorado”, não é lento, tendo em conta os padrões de criação. Por outro lado, a Anabela cria um monstro numa manhã. Ela chega, tem o barro para trabalhar, amassa-o e numa manhã, em três horas, ela cria um monstro. Finalizado, só falta ir ao forno. O Zé não. O Zé dos Castelos levou três anos a fazer um desenho. Eu não consegui acompanhar, mas isto é fundamental para mim. Eu quero o início porque o que me interessa é mostrar a autodescoberta.
Tu és jornalista há muitos anos e tens uma larga experiência em perceber o enquadramento dos locais onde estás. Seres jornalista ajudou-te muito na criação destes documentários, certo?
Muito. Ajuda muito. O que é que a jornalista faz? Ou devia fazer? [risos] Escolhe um tema, interessa-se por ele, considera que esse tema interessa aos outros e que é importante explicar esse tema. Informa-se, vai à procura das fontes e dos vários protagonistas. Contacta-os. Aprende antes o máximo que consegue, e ouve-os. E depois tenta, da forma mais equilibrada possível, resumir aquilo que os protagonistas lhe disseram, porque não é possível pôr tudo. E tenta ser equilibrado, honesto, deontológico, ouvir todas as partes, etc. E isso é marcante.
Como é que poderá ser a saída e a rentabilidade para uma cineasta independente como tu, num universo tão pequeno que temos em Portugal na criação de um filme documental?
Tens de estar dentro de uma produtora grande. E há algumas em Portugal, que trabalham bem e conseguem mover-se nos meandros complexos dos financiamentos. Em Portugal, tu tens o Instituto do Cinema e Audiovisual, que faz financiamentos regulares, e aos quais tens de te candidatar. E é muito mais fácil para uma grande e reconhecida produtora de cinema conseguir os financiamentos. Depois, tens financiamento da Gulbenkian, que também é complexo de conseguir. A maior parte do restante financiamento vem de entidades privadas. As câmaras municipais também conseguem financiar algumas coisas, mas acima de uma determinada quantia tem de ir à Assembleia Municipal, e depois os vereadores têm de votar. Torna-se um pouco mais complexo. Mas as câmaras também são uma boa e regular fonte de financiamento, se houver muito interesse na temática.
Mas para um realizador independente torna-se ainda mais complexo…
Eu candidatei-me três vezes ao ICA e duas vezes à Gulbenkian, e não consegui [aprovação] nestes últimos dez anos. Portanto, acho que este facto explica bem a coisa. Ganhámos dois prémios do público do Doclisboa com dois documentários diferentes. Foi o público que escolheu. Portanto, acho que o trabalho que fazemos não é alienado do público, porque tem essa marca. E não é nenhuma crítica, de todo. Acho extraordinária a criação de objetos artísticos na área do documentário, que são tendencialmente mais fechados, mas que são altamente estimulantes. Se há espaço onde a liberdade criativa deve existir é no documentário. Na reportagem, é muito complexo, há liberdade criativa q.b., porque há regras, têm de ser seguidas. Aqui, no documentário, tudo é possível. Agora, viver do documentário, fora de uma grande produtora, é muito difícil. Eu diria que é quase impossível. Ou então, não estás em Portugal; vives nos Estados Unidos. Se calhar já é diferente, e consegues reconhecimento, nem que seja pelo Estado onde tu vives.
Trailer do documentário Ainda não acabei.
E o circuito dos festivais? No dia da estreia, uma das “farpas” que lançaste foi relativamente aos festivais e às modas que seguem. Dizias que, infelizmente, a temática da saúde mental e da arte não está enquadrada naquilo que é moda, actualmente…
Há tendências temáticas nos festivais, no Mundo inteiro. A saúde mental é permanente e transversal, mas não está necessariamente na onda, neste momento. E isso sente-se. Eu acho que isso reflecte-se na escolha, ou não. Se calhar, não é agora o momento.
Tens esperança que venha a ser?
Vai ser. A pandemia trouxe para os órgãos de comunicação social a questão da saúde mental. Trouxe de forma muito premente. Isto agora é uma análise altamente subjectiva: estamos todos um bocadinho cansados e os festivais documentais tendem a rasgar e a ir um bocadinho contra. Houve uma altura que era os refugiados, muita coisa sobre o meio ambiente, a questão do aquecimento global. Vamos ver. Se calhar, a saúde mental é para o ano. Mas já não vai dar para candidatar este filme. Pois já é do outro ano… [risos].
Para um realizador independente, o circuito dos festivais é sempre importante para projetar o seu trabalho, certo?
É fundamental, por várias razões. Primeiro, porque estás a ser avaliado pelos pares, enquanto abres para o público fora do circuito comercial. Não tem tanto o peso de teres de encher uma sala e vender bilhetes. Depois, o teu filme é exibido na mostra de filmes documentais onde também te inseres. Isso é muito, muito interessante. Depois, porque há a possibilidade dos prémios. Ser premiado no festival é uma coisa altamente gratificante. E depois, porque tens essa última experiência do teu filme projectado em sala! Isso é incrível! Uma tela de cinema para mim compensa, até certo ponto, a ausência de retorno financeiro.
O que acontece quando Boštjan Videmšek, um dos melhores jornalistas de investigação do mundo, se especializa na crise ambiental grave que vivemos? Um dos resultados é o livro ‘Plano B – Como manter a esperança em tempos de crise climática’, que conta com fotografias de Matjaz Krivic, e que estreia agora a sua edição em português, pela mão da Editora Perspectiva. A obra, que estará disponível nas livrarias na próxima semana, conta com um prefácio de Filipe Duarte Santos, presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável e um dos mais reputados especialistas portugueses em alterações climáticas. De visita a Lisboa, Videmšek concedeu uma entrevista exclusiva ao PÁGINA UM e abordou não só a actual crise ambiental, mas também o eventual iminente fim da democracia no mundo ocidental e a grave crise no jornalismo, que foi observada durante a pandemia de covid-19. Além de jornalista de guerra premiado, Videmšek é tambémembaixador do European Climate Pact da União Europeia na Eslovénia, activista do clima, assessor do presidente da Eslovénia para o Clima, European Young Leader e atleta de ultra-maratonas. Como jornalista, cobriu todos os grandes conflitos e guerras desde 1998. Especializou-se em refugiados, migração e, mais recentemente, na crise ambiental e nas consequências provocadas pelas alterações climáticas. O reputado jornalista escreve no prestigiado diário esloveno DELO e em várias publicações europeias e norte-americanas. Nesta entrevista, Videmšek não tem papas na língua nem põe paninhos quentes: diz que a era da democracia já acabou e estão a regressar regimes autoritários ao Ocidente; está desapontado com a má qualidade dos media mainstream, que alinharam na propaganda e na cultura de cancelamento, promovendo ‘monotemas’ sucessivos. Defende que “é impossível combater a crise climática sem democracia” e que “todos podem mudar individualmente, mas que pôr a responsabilidade em cada indivíduo é um crime contra a humanidade”. Até porque “sabemos quem são os grandes emissores” de CO2.
Fez uma grande mudança na sua vida, de repórter de guerra para algo completamente diferente. Foi fácil?
Sim, foi muito fácil fazer a mudança [risos]. Porque, depois de mais de 20 anos a trabalhar como repórter de guerra, quando iniciei este livro e este projecto, pela primeira vez, em muitos anos, senti-me seguro e confortável. Não tinha de me preocupar com a minha segurança, nem de ter constantemente olhos nas costas por causa de questões logísticas para chegar ao fim do dia são e salvo. Para além disso, não houve um desfasamento cognitivo em relação ao tópico, porque é praticamente o mesmo. É sobre crises. Mas esta é, na minha opinião, de longe, a crise mais importante, não só para o nosso tempo como para as gerações vindouras. Portanto, a abordagem foi mais ou menos a mesma, mas claro, sem a preocupação com a segurança. Foi simplesmente ir a sítios, falar com as pessoas e pesquisar – com tempo e recursos limitados, claro. A última parte do livro foi escrita já durante a crise da covid-19 e isso acabou por alterar o conteúdo. Alguns capítulos não ficaram, porque foi impossível viajar a partir de Março de 2020.
Boštjan Videmšek, na Estufa Fria, em Lisboa, durante a entrevista ao PÁGINA UM. (Foto: Paulo Alexandrino)
Então, sobrou material para um novo livro…
Sim, já está disponível em The Last Two – Os dois últimos rinocerontes brancos do Norte e as espécies funcionalmente extintas –, que é um livro sobre salvar as espécies e é muito parecido com Plan B: How Not to Lose Hope in the Times of Climate Crisis. É muito virado para soluções e respostas. Claro, questiona constantemente, mas também dá respostas. Penso que se tivermos experiência suficiente, conhecimento, tempo no terreno, jornalistas para falar com o público e canais abertos para contar as histórias… se somos reconhecidos publicamente como contadores de histórias, então temos a responsabilidade de oferecer também respostas e soluções, e não apenas perguntas. E essa é a principal premissa ou lógica por trás de Plan B e de The Last Two.
Foi desafiante planear e materializar o livro, logisticamente?
Depois de 20 anos a ser repórter de guerra, tudo é fácil. Passei para uma zona de conforto. Comparando com a experiência anterior, foi como passar de maratonista para ter um trabalho tranquilo à tardinha. Muito mais fácil. Claro que envolveu muitas viagens, e tudo o mais… Mas já não estava num cenário onde as pessoas poderiam querer matar-me! Foi do género: “boa, aqui ninguém me vai dar um tiro! Até me recebem bem!”. Houve alguns casos estranhos em que não fui tão bem-vindo, mas faz parte do trabalho. Se tivermos motivação suficiente, as coisas são fáceis. E se estivermos seguros a trabalhar. No livro, as fotografias, tiradas pelo co-autor, Matjaž Krivic, são de uma beleza incrível. Visitámos sítios muito bonitos. E é gratificante, depois de ver tantas áreas destruídas, cidades arrasadas e caixões, poder ver falésias na Noruega, ilhas incríveis… é completamente diferente.
Um alívio, portanto…
Tenho que dizer que, para mim, pessoalmente, e também como jornalista, foi um escape gigante. Não foi meramente uma decisão profissional, também foi uma necessidade de fazer algo mais calmo. Contudo, falar de escapismo e relaxamento no contexto de uma crise climática é uma grande ambiguidade ética. Por isso, aqui estamos nós numa dissonância cognitiva, que é omnipresente. Especialmente agora, que o foco mudou e foi totalmente destruído. Porque saltámos de um tema para o outro: primeiro, foi a covid-19; depois, a guerra na Ucrânia; e, este ano, está a ser o mais quente e seco. Ontem, no meu país, Eslovénia, tivemos uma temperatura média, durante o dia, de 26.1 graus Celsius. E estamos a falar da Europa Central. Ainda esta manhã, estava a ler as notícias da Grécia, que é o meu segundo país, e as manchetes diziam: “25 graus no início de Novembro”! Isto é um problema. Nós vemos estas temperaturas como uma coisa agradável: assim podemos ir à praia. Mas, na verdade, devíamos estar profundamente preocupados. As mudanças estão a acontecer tão rapidamente que nem conseguimos compreendê-las, e não me refiro só às alterações climáticas. Evolutivamente, não estamos adaptados para estas mudanças, o nosso ADN não é capaz. E é por isso que parecemos tão estúpidos, como espécie.
(Foto: Paulo Alexandrino)
Há décadas que ouvimos falar de uma crise climática, da necessidade de proteger o ambiente, e da poluição, especialmente em países pobres. E também do problema do desperdício. Mas não temos visto grandes mudanças no que toca às políticas. O que é que o leva a crer que será possível fazer algo e conciliando a salvaguarda da democracia e dos direitos humanos com o ambiente e a economia?
Já deu a resposta: é impossível combater a crise climática sem democracia, sem o conceito de direitos humanos e justiça climática. É completamente impossível abordar esta crise alarmante sem a chamada culpa de primeiro mundo, sem responsabilidade… Alguns são mais culpados do que outros, mas todos sofremos as consequências – oficialmente, diz-se que todos sofremos de igual modo, mas não é verdade. É impossível descrever o sofrimento em Sahel, por exemplo, ou das Ilhas baixas do Pacífico. Para nós, que estamos em Viena ou em Lisboa, a situação não é igual. Para nós, o tempo está um pouco mais quente e seco – vai piorar ainda mais, é claro –, mas neste momento ainda estamos numa zona de conforto. Várias partes do mundo já estão a viver aquilo que vai ser o futuro do clima. E este devia ser o nosso principal foco. Mas, ao vermos o que está a acontecer, não estamos a reagir porque ainda existe uma réstia de “pensamento mágico”, de romanticismo e de acreditar que “tudo vai ficar bem”. Mas que raio? Não, não vai ficar tudo bem!
Já existe muita informação, há décadas, mas falta acção.
Temos todos os dados e relatórios a dizer que estamos à beira de um grande colapso. Os últimos relatórios de várias agências das Nações Unidas, da semana passada, dizem exactamente isso. É praticamente impossível atingirmos o objectivo dos 1.5 graus. A este ritmo, estamos a caminho de um aumento global da temperatura entre 2.5 a 2.7 graus, e isso já significa um colapso climático total. E, OK, temos o novo Green Deal e o European Climate Pact, mas é “dinheiro de helicóptero”, foi durante a covid-19 e agora já está meio esquecido, e voltámos aos combustíveis fósseis. O gás natural, que é a principal arma de Vladimir Putin, foi escolhido como o “substituto verde” pela União Europeia, a par com a energia nuclear! Se esta é a solução, então estamos mesmo tramados. Irremediavelmente tramados. E merecemos estar.
Sobretudo, porque existem tecnologias, energias “limpas” que podemos usar.
Sim. Está tudo ao nosso dispor, a tecnologia já nem é uma questão. A energia solar é 10 vezes mais barata e eficiente do que era há 10 anos atrás. A energia eólica… Claro que todas estas tecnologias têm efeitos colaterais, mas nós não estamos em posição de arranjar problemas para todas as soluções. Porque é muito fácil, na nossa zona de conforto, dizer que esta ou aquela solução não são boas o suficiente. Mas isto é uma guerra, e em tempo de guerra não se limpam armas. E toda a gente tem de estar envolvido, até os “culpados” e as grandes corporações.
(Foto: Paulo Alexandrino)
Para mim, que nasci nos anos 70, começar agora a ver-se defender a energia nuclear é um choque total, porque não era algo em que pensássemos, as pessoas da minha geração. E, ainda mais, com a tecnologia que temos hoje. Como é que vê esta solução que está a ser posta em cima da mesa?
Já foi posta em cima da mesa há anos atrás. Não podemos esquecer que França, por exemplo, sempre esteve muito virada para a energia nuclear. Tal como os Estados Unidos, a Coreia do Sul… os pequenos reactores nucleares são um grande negócio, agora. Não me surpreende, porque nós estamos sempre à procura de soluções rápidas. E há os lobbies nucleares. Dizer que é baixo em emissões, é verdade, mas não é de baixo risco. Falar-se em baixo risco no que diz respeito à energia nuclear é preocupante; e os resíduos radioactivos… Na União Europeia, a Alemanha foi sempre a protagonista das políticas verdes. E agora, os Verdes alemães estão a pedir o retorno do carvão a apoiar totalmente a venda de armas. Claro, a Ucrânia precisa de armas, mas temos que salientar que o partido verde mais importante da Europa foi formado numa perspectiva anti-nuclear e anti-guerra e agora estão a fazer tudo ao contrário. Quer dizer, as coisas mudaram. E não haveria Ursula Von der Leyen [na presidência da Comissão Europeia] só não fosse Ska Keller [deputada no Parlamento Europeu] e ‘Os Verdes’ europeus. Isso foi um grande sucesso para os Verdes na Europa, mas onde é que eles estão agora?
Outra coisa que me espantou tem a ver com os carros eléctricos na Europa. Porque, para mim, o que faria sentido seria investir nos transportes públicos e reduzir o número de carros a circular. Mas as políticas dizem que as pessoas têm que substituir o seu carro por um eléctrico, o que significa mais desperdício, para além de implicar a produção de baterias, que é algo que não sabemos como é que podemos reciclar. Comprar um novo carro será a solução? Como é que se pede aos cidadãos para mudarem de hábitos, quando se continua a priorizar o consumo e o lucro das empresas?
Concordo em absoluto com o que disse. É assim que penso também [pausa]. A solução é menos, e não mais, claro! Há vários problemas da mobilidade eléctrica que não estão a ser abordados. Para mim, a questão principal é de onde vem a electricidade. Se vier de centrais eléctricas a carvão ou de energia nuclear, então, é contraproducente. Depois, claro, há o preço. O preço de uma grama de lítio aumentou em 400% no último ano. E isso afecta directamente o preço de um carro eléctrico, cujo custo principal é o da bateria. Os carros eléctricos não estão ao alcance de toda a gente, são caros. É verdade que depois a manutenção é praticamente zero e implica menos gastos, mas em tempos de crise – e vivemos em tempos de crise sob todos os prismas possíveis –, as pessoas não vão optar por um carro eléctrico quando têm de se preocupar em como vão manter as suas casas. É uma má altura para fazer a transição, eu diria.
Então, não são uma solução…
Por outro lado, as grandes petrolíferas estão a viver o melhor momento das suas vidas. A Shell e a Total Energies quase duplicaram os seus lucros nos últimos três meses. Ambas tiveram um lucro de 10 mil milhões de dólares, o que é um recorde absolutamente histórico. E toda a indústria fóssil arrecadou 4 biliões de dólares nos primeiros nove meses deste ano. É o valor mais alto de sempre. Os combustíveis fósseis são os únicos vencedores do conflito russo-ucraniano, e não é apenas no curto prazo. Antes da pandemia, já se conseguia sentir e ver uma transição na União Europeia, com as políticas verdes, havia muito dinheiro a ser alocado… Depois, tivemos Joe Biden a tornar-se presidente, e o New Deal americano. Havia uma ideia de que esta transição podia resultar. Mas nós perdemos o foco com a pandemia, que passou a ser o monotema, e agora temos o monotema da guerra. E eu acho que a crise climática vai dominar as nossas vidas, mas nós não vamos dominar as políticas.
(Foto: Paulo Alexandrino)
Sobretudo, porque os governos, como em Portugal, estão a lucrar com o enorme consumo de combustíveis, por exemplo, e não querem abdicar disso. Os políticos não ganham com o abdicar disso.
Depois de termos tido o ano mais quente na História, não sei o que mais precisamos de saber ou de ver…
Mencionou o lítio. Em Portugal, temos algumas empresas que querem iniciar essas explorações, mas não é fácil, devido aos impactos nas populações e na vida animal. Qual é a sua visão sobre isso. Pensa que pode ser uma solução?
O projeto de exploração de lítio que é abordado no livro, que fica na Bolívia… as duas principais fontes de água foram privatizadas por empresas chinesas que estão lá a trabalhar. Temos estas histórias más sobre o lítio por todo o mundo. Acho que o que se passa na Sérvia também é semelhante com o caso de Portugal: quiseram fazer explorações de lítio mas as populações contestaram. Vemos que esse ativismo na Sérvia foi forte e eu gosto disso, as pessoas não foram na “conversa” porque sabem que não ganham muito com esta transição para a mobilidade eléctrica. Mas há poucos casos assim. O maior problema é que, neste momento, cerca de 70% do fornecimento de lítio é controlado pela China. Portanto, não se trata de uma preocupação ecológica ou ambiental, mas política. A China está a controlar o mercado do lítio. Nestes primeiros estágios de uma Nova Ordem Mundial, isto pode afectar as nossas vidas a todos níveis e não só em termos da mobilidade eléctrica, porque o lítio está presente em todos os nossos aparelhos electrónicos. A história dos chips e de Taiwan… Parece que toda a tecnologia está dependente do que se produz em apenas um ou dois sítios. A globalização tem efeitos colaterais e está a atuar em reverso agora. Vivemos tempos muito interessantes. Este livro foi escrito há dois anos e não o considero muito atualizado em alguns aspectos. Claro que foi escrito na altura em que foi e está feito, mas, sob a perspectiva actual, mudaria certas coisas que escrevi. Eu não tinha como prever a covid-19, nem a questão dos chips. A transição tecnológica agora está num intervalo, e veremos se haverá uma segunda parte.
Boštjan Videmšek e o fotógrafo Matjaz Krivic, co-autores das reportagens que integram o livro Plano B.
E a pandemia trouxe a questão da produção local de bens. Na União Europeia, devem ter percebido que, se calhar, deviam produzir certos produtos, porque seria melhor para o ambiente e também para a economia. Seria mais sustentável e seguro.
Sim, é por isso que eu digo que a globalização está a reverter-se, porque atingiu um limite e agora está a voltar para trás de algum modo… Mas não de um modo “Make America Great Again”. É um processo natural.
Acredita que os cidadãos podem fazer muito pelo ambiente, quando temos políticos a dar licenças a explorações de lítio, e a dar incentivos que beneficiam as indústrias para produzir carros eléctricos…?
Acredito que todos podem mudar individualmente, mas que pôr a responsabilidade em cada indivíduo é um crime contra a humanidade. Porque sabemos quem são os grandes emissores, e isto de colocar a culpa nos cidadãos… livro Climate Crisis que explica perfeitamente bem como, por exemplo, o lobby do tabaco, através de publicidade, colocou a culpa nas pessoas por fumarem. Primeiro viciaram as pessoas e, depois, é que colocaram o alerta “fumar mata” nos maços, dizendo que era uma escolha que elas faziam. É muito parecido com o que acontece com outras indústrias e com a crise climática, e são indústrias tão poderosas que não podemos fazer nada, é maior do que nós. Isto cria uma ansiedade colectiva e individual, e é a melhor coisa para o status quo.
Em Portugal, durante e depois da pandemia, as grandes empresas cotadas na bolsa tiveram lucros astronómicos. E foi assim em todo o mundo. Portanto, não parece que estamos numa crise económica, de todo. E mencionou o vício e o tabaco, mas o consumismo também é um vício. Tudo isto é algo difícil com que se lidar…
Na minha opinião, o maior desafio é que a tecnologia e as redes sociais reduziram o nosso limiar de atenção. Porque, para fazermos alguma coisa e empreendermos uma mudança, precisamos de foco. O foco é necessário para tudo, desde o amor à criação, e nós não temos.
E a nossa responsabilidade enquanto jornalistas? Porque eu sou jornalista há mais de duas décadas e fiquei muito desapontada com o trabalho dos media, especialmente durante a pandemia. Para mim, foi terrível. E o mesmo com a guerra na Ucrânia… sobretudo os media mainstream, alinham na propaganda e na narrativa dos políticos.
Concordo absolutamente.
O que é que nós, jornalistas em todo o mundo, podemos fazer para transmitir a mensagem de que esta é uma crise real e que tem de ser resolvida?
Primeiro, não podemos fazer cedências a ninguém, nem aos editores nem aos diretores. Se não resultar, paciência. E nunca fazermos de nós a estrela, nesta era da ditadura do eu. Temos que usar o plural tanto quanto possível, para apelar ao conceito de sociedade e de solidariedade. E isso significa estar no terreno com as pessoas, seja na Ucrânia ou num hospital em Bujan. Na minha opinião, temos de estar fisicamente presentes, porque se não estivermos, não pode haver credibilidade. E isso implica correr riscos profissionais, económicos e sociais. Até mesmo culturais, riscos muito pessoais, em que sabemos que, à partida, nestes tempos de opiniões rápidas e de glorificação instantânea, o trabalho de duas ou três semanas de investigação não pode competir com a opinião de trolls. Temos de ignorar isso.
Matjaz Krivic e Boštjan Videmšek
Pensa que a democracia pode ficar em risco mediante algumas medidas que possam ser implementadas para alegadamente combater a crise climática e ambiental? Em muitos países, incluindo países da União Europeia, como Portugal, vimos políticos a aproveitar para reforçarem poderes com a desculpa da covid-19 e a democracia foi afetada em muitos países, como Portugal.
De forma irreversível.
Qual é a sua perspectiva sobre este tema?
Espero que a covid-19 não tenha sido um ensaio. E vivemos tempos que que os regimes totalitários e autoritários estão a regressar. Consegue-se sentir. É extremamente perigoso. A ideia de que boas coisas estão a acontecer na China que afectaram muito a mentalidade ocidental. E temos que admitir que a janela de sociedades abertas, da democracia, das sociedades liberais, é muito pequena. Desde o final da Segunda Guerra Mundial… No meu país, a Eslovénia, é um período de 32, 33 anos. É um período histórico muito curto. Não é a única verdade sobre quem somos. Talvez estes regimes autoritários que estão a voltar a estar vivos de novo, estão mais enraizados do que estamos preparados para admitir. Voltando para a pergunta sobre a situação atual no Jornalismo, estamos na linha da frente para lutar por uma sociedade livre e aberta e para educar. Está completamente certa sobre o que aconteceu na pandemia e aceitámos esta uniforme – não verdadeira – narrativa. Nós (jornalistas) não fizemos perguntas suficientes e, definitivamente, não fizemos as perguntas certas. Por outro lado, sobre a guerra na Ucrânia, com a crise climática, é similar.
E tivemos censura, com cientistas de topo. Pode, de novo – como foi na pandemia de covid-19 –, a Ciência ser desviada por visões ideológicas e políticas no combate à crise climática, no futuro?
Vejo muito disso. Penso que algo horrível está a acontecer. No meio científico. Penso que as redes sociais, através de algoritmos, temos agora a narrativa anti-crise climática a regressar. A solução é uma auto-educação muito agressiva. Não temos tempo agora. É uma batalha, é uma guerra.
Boštjan Videmšek, à esquerda, no Iraque, em 2006. Ao centro, o seu melhor amigo, o jornalista David Beriain, que foi morto no Burkina Faso em 2021. (Foto: Jure Eržen)
Com as medidas implementadas na covid-19, os jornalistas fizeram o oposto, na minha óptica, especialmente sobre a vacinação obrigatória, com os confinamentos, porque existiam cientistas a fazer alertas para os riscos e a apontar que não havia soluções rápidas e fáceis. Muitos media alinharam com a censura, até aos dias de hoje.
E a cultura de cancelamento. E também aconteceu no mundo académico.
Podemos ter a verdadeira Ciência de volta, a racionalidade de volta, e o Jornalismo verdadeiro de volta? Ou vamos permanecer neste lodo?
Não quero mentir. Nesta altura não estou realmente optimista. Sobretudo com a guerra na Ucrânia, o que vejo é que a empatia, a solidariedade, o interesse humano, já não existe. Por outro lado, por exemplo, o Iémen saiu completamente do mapa. Penso que o que aconteceu na covid-19 foi – o que chamo no meu novo livro – a “Revolução Anti-social”. Este é o sucesso de toda a ambição totalitária. É uma prenda para os opressores porque é necessária a sociedade, a solidariedade, para se lutar. Durante a covid-19, vimos a loucura global e, ao nível político, o que vejo é a vontade cada vez maior de oprimir e oprimir cada vez mais. Penso que a era da democracia está praticamente no fim.
A psicóloga Laura Sanches foi, durante a pandemia, uma das vozes mais activas em defesa das crianças e de medidas baseadas na evidência. Esteve contra restrições prejudiciais para as crianças, como o encerramento de escolas e a imposição do uso de máscaras. A Ciência deu-lhe razão, mas continua, ainda hoje, a enfrentar dois processos na Ordem dos Psicólogos, devido a duas denúncias, uma das quais que a acusa de afirmações que nem fez. Apesar disso, a Ordem abriu-lhe um processo na mesma. O seu activismo não espanta: é filha da magistrada Maria José Morgado, rosto do combate ao crime e à corrupção em Portugal, e do fiscalista Saldanha Sanches, falecido em 2010. Nesta entrevista intimista ao PÁGINA UM, também realizada a pretexto do livro que publicou recentemente, Como educar crianças desafiantes, Laura Sanches fala dos muitos desafios que as mães e os pais enfrentam, nos dias de hoje, e ainda aborda a sua decisão de adoptar um estilo de vida mais equilibrado e saudável, que lhe permite acompanhar de perto os filhos.
Existe a máxima de que devemos ser a mudança que queremos ver no mundo. Pareces ser alguém que segue mesmo essa máxima. É mesmo assim?
Sim, eu acho que tento fazer aquilo que prego, como se costuma dizer. E sim, tento tomar todas as opções que, no fundo, acho que me trazem mais qualidade de vida e que poderiam contribuir também para a qualidade de vida dos outros.
Trabalhas na cidade, mas tens um estilo de vida que procura ser mais equilibrado e sustentável, não é?
Sim, as escolhas que fiz… Aliás, eu venho a pé para o trabalho, porque consigo, tenho esse privilégio. Também tive algumas vantagens que me permitiram construir isso, obviamente. Mas todas as opções que fiz também foram em função de conseguir manter isso. Sempre tive consciência que não queria trabalhar por conta de outrem, porque uma das coisas que era importante para mim era estar com os meus filhos em casa. E consegui realmente ficar com o primeiro até aos três anos e com o segundo até aos quatro. Porque tenho essa vantagem, também porque o meu marido consegue articular os horários dele com os meus e, portanto, ou ficava um ou o outro; fomos sempre conseguindo organizar-nos nesse sentido. E isso realmente é uma coisa que eu sempre tive muita consciência, que queria fazer, e felizmente tive essa possibilidade.
E isso interferiu com objectivos profissionais e de carreira?
Sim, atrasou umas coisas [risos]. Mas isso faz parte, não é? Eu, por exemplo, tive duas gravidezes muito difíceis, com enjoos, portanto, foram alturas em que eu fiquei quase completamente parada. Com o meu primeiro filho, consegui estar mais de um ano sem trabalhar mesmo, sem fazer absolutamente nada. Nada, quer dizer, cuidava dele, que já é muito [risos].
Ou seja, na altura não tinhas rendimento.
Sim, tive essa possibilidade. Obviamente, isso depois tem algumas consequências económicas, e não só. Mesmo escrever, por exemplo, eu gostava de escrever muito mais, e às vezes era impossível, o tempo não chega para tudo. Mas eu acho que são opções que, no fim da vida, são as correctas para mim, pelo menos [risos].
E tu, como mãe, estás satisfeita por teres tomado essa decisão. Como profissional e psicóloga, tu vês que, de facto, foi uma boa opção, e sentes que mais mulheres gostariam de ter essa possibilidade?
Sim, sim. A mim, chegam-me muitas mães que conseguiram fazer essa opção – por vezes, lá está, com grandes custos financeiros e até emocionais, porque, apesar de tudo eu tive muita sorte em conseguir articular tudo com o meu marido e, portanto, nunca fiquei completamente isolada. E aquilo que eu vejo é que há muitas mulheres que realmente fazem essa escolha, e que têm de optar entre a carreira e o ficar com os filhos, mas há um lado da vida delas que fica para trás. Eu nunca precisei de fazer isso, porque voltei a trabalhar quando quis. Enquanto eles eram pequeninos, ia trabalhando menos, mas ia trabalhando. Mas há pessoas que têm de desistir completamente, e isso é um peso muito grande. A forma como organizamos a vida, hoje em dia, põe sobretudo em cima das mulheres a escolha entre os filhos e o trabalho. Na maior parte dos casos, não dá para conciliar as duas coisas, e há mulheres que sofrem muito com isso.
E isso depois vê-se na forma como vivem a maternidade e no relacionamento que têm com os filhos?
Claro, porque a certa altura, há mães que ficam completamente esgotadas, cansadas, deprimidas, por só estarem a cuidar dos filhos. Naturalmente, estão menos disponíveis. Antigamente, as coisas eram feitas com muito mais harmonia, num certo ponto de vista. Em alguns aspectos eram muito mais difíceis, mas noutros aspectos, apesar de tudo, havia uma comunidade que suportava as crianças. As mães iam voltando aos seus afazeres com muito mais naturalidade, à medida que os filhos também iam procurando mais essa presença e apoio da comunidade. Essa comunidade perdeu-se. Temos mulheres que ficam isoladas no seu apartamento o dia inteiro, com o marido que chega a casa às 20 horas, com quem às vezes já nem conseguem comunicar, porque estão ali submersas naquele mundo solitário que, hoje, é a maternidade. Estão tão desesperadas quando o marido chega. Por vezes isso também põe um peso tremendo no casal. E, claro, depois as crianças também sofrem, porque têm uma mãe muito mais cansada e menos disponível, esgotada.
E nas empresas, sentes que tem havido uma mudança? Porque houve uma época em que as empresas tinham creches para os filhos dos trabalhadores, mas parece ter havido um retrocesso. Vês algumas mudanças que possam permitir que mulheres que trabalhem a tempo inteiro, tenham uma forma de estar mais com os filhos?
Sim e não. Na verdade, eu contacto com uma população muito privilegiada. As mães que me chegam tiveram, apesar de tudo, possibilidade financeira de optar por ficar com os filhos e, portanto, enfim, são uma fatia privilegiada da população. Eu vejo realmente cada vez mais mães a tirarem uma licença sem vencimento de dois anos, que é aquilo que é permitido, para poderem estar esse tempo com os filhos. Às vezes, isso tem consequências no regresso ao trabalho. Nem todas as empresas encaram essa opção de ânimo leve. Mas quero acreditar que sim, que apesar de tudo, está a haver alguma mudança. Já vou tendo cada vez mais mães que conseguem ir mantendo aquele horário reduzido, porque antigamente conhecia muitos casos de mulheres que sofriam grandes pressões por quererem trabalhar apenas seis horas diárias, enquanto os filhos eram bebés. Agora, até já conheço casos de mães com crianças que já têm mais de um ou dois anos – porque enquanto a mãe está a amamentar a lei permite essa redução de horário – e, de facto, há empresas onde isso já vai sendo aceite, embora muitas vezes aquilo que as mães me transmitem é que nessas seis horas têm de fazer o mesmo trabalho que fazem nas oito! Não sabem muito bem como [risos], mas enfim, têm de espremer ali tudo, porque a responsabilidade não lhes é tirada, não é? É esperado o mesmo delas. Mas, pelo menos, isso já vai sendo permitido. Se calhar, há uns dez anos atrás, nem isso era. Por isso, eu acho que há um progresso, mas ainda pouco para aquilo que era preciso.
A pandemia introduziu medidas, como o teletrabalho, que, apesar de tudo, ajudam os pais e mães que queiram acompanhar mais de perto os filhos. Vês essa mudança como positiva?
Sim e não, depende muito dos casos. Ou seja, em alguns casos, por exemplo pessoas que tenham que fazer uma deslocação grande até ao local de trabalho, é positivo, pois ganham ali às vezes até duas horas por dia. Com o tempo que as pessoas perdiam, isso sim, é excelente, claro que sim. E até há casos em que lhes dá mais margem de manobra nos horários, porque não têm de estar na empresa a uma determinada hora, e isso é uma vantagem. Por outro lado, também se cria a ilusão de que, por exemplo, se a pessoa está em teletrabalho e o filho está doente, não tem desculpa para não trabalhar, porque estão ambos em casa. E, realmente, cuidar de crianças pequenas e trabalhar… E depois o que acontece é que as mães fazem esse trabalho à noite, quando as crianças estão a dormir, com grande peso para a sua saúde mental e física.
Para as crianças, tu vês uma diferença significativa quando têm a possibilidade de ter um dos progenitores a acompanhá-los durante os primeiros anos, em casa, em comparação com as outras, que têm de passar às vezes 10 horas numa creche ou numa escola?
Sim. Mas também depende das escolas. É muito importante para as crianças conseguirem ter essa presença dos pais sobretudo nos primeiros tempos de vida. Nós temos, enfim, problemas que, se calhar, não precisariam de existir se os pais tivessem maior disponibilidade para estar com os filhos. Em Portugal temos um grave problema: somos o país da Europa onde as crianças passam mais tempo na creche. Há crianças de um ano a passarem 10 horas na creche, e isso não é bom.
Que tipo de vínculo as crianças podem criar com os pais quando passam 10 horas num local em que eles não estão?
Há um autor que eu cito sempre, que é o Gordon Neufeld, e que tem um conceito que é muito relevante para esses casos: o conceito da orientação para os pares. O que ele diz basicamente é que as crianças nascem com esta grande necessidade de construir vínculos, de criar relações. E, à partida, essas relações devem criar-se com um adulto, mas para isso o adulto tem de estar presente e disponível. Algo que nas escolas nem sempre é possível, porque com crianças pequenas, se há muitas crianças para um adulto, é impossível o adulto responder a todas as solicitações. E aí quem acaba por estar mais disponível são as outras crianças. E então gera-se aquilo que se chama a orientação para os pares, que significa que passam a ser os outros jovens – isto vê-se muito na adolescência – a grande referência daquele jovem ou daquela criança. E isto vem com uma série de problemas, porque para já, um jovem não é um bom modelo para outro jovem, não é? Hoje em dia nós até vemos que os ídolos da juventude são outros adolescentes. E isto não é um bom modelo de desenvolvimento, porque um adolescente também ainda é imaturo, naturalmente. É suposto que os jovens admirem os adultos, para quererem ser como eles, de certo modo. Se eles vão admirar outros que são tão imaturos como eles, não se ganha muito em termos de desenvolvimento. E depois, por outro lado, os jovens e as crianças nunca podem ser uma boa base de segurança para outras crianças. As crianças até dizem muito: já não és meu amigo, já não gosto de ti, já não vou brincar contigo. O que é que isto faz? Vai provocando algumas feridas, e se aquela criança é a pessoa mais importante da minha vida, vou ter de começar a adoptar uma série de comportamentos defensivos para que aquilo não me magoe tanto. E depois, ao mesmo tempo, isto também faz com que se crie uma distância entre o jovem ou a criança e o adulto, sendo que são os adultos que têm capacidade para ajudar a criança ou o jovem a lidar com as suas emoções, enfim, a sentir-se minimamente seguro. E depois dá origem àquele comportamento, que hoje se ouve muito, de que os jovens já não respeitam os adultos. Nas escolas, um dos grandes problemas é que já ninguém respeita os professores. E é verdade, porque quando o adulto deixa de ser uma referência, eu já não quero agradar ao adulto, quero é agradar aos meus colegas. Quero lá saber do que o professor pensa! E aí gera-se toda uma série de comportamentos… Até aqueles vídeos que eles põem no Youtube, que nós não percebemos. Mas por que raio alguém quer filmar uma coisa destas e pôr no Youtube? Porque agrada aos outros jovens, eles já não estão a tentar agradar aos adultos, não é? A referência deles já não são os adultos, são outros jovens. E isso dá origem a uma série de comportamentos que são prejudiciais.
Ou seja, passou-se do 8 para o 80. Na minha geração, por vezes temíamos os adultos. Era um querer agradar para não ser castigado. E hoje nem se teme, nem se respeita.
Exactamente. Este autor até diz que começou mais ou menos nos anos 60 ou 70 do século passado, este fenómeno de orientação para os pares assim em peso, e agora temos, pela primeira vez, uma geração em que a maioria está completamente orientada para os pares. Antigamente, havia esse problema, por vezes com peso excessivo, da autoridade. Mas, apesar de tudo, isso também tinha alguns benefícios e algumas vantagens. De facto, passámos para o outro extremo, e isso não é bom.
Em termos civilizacionais, estamos a caminhar para uma sociedade mais ou menos orientada para a família? Como é que vês a evolução, sentes-te optimista?
Eu sou optimista sempre. Às vezes digo que sou uma optimista incorrigível [risos]. Tenho esperança que as coisas melhorem, e que a sociedade se torne mais orientada para a família, porque estamos a começar a perceber os problemas de não o sermos. Neste momento, não somos. Somos uma sociedade orientada para os pares; até nós, adultos, já crescemos muitos de nós nessa cultura de orientação para os pares. Hoje, temos adultos que preferem passar tempo com os seus pares do que estar em família e a educar os filhos. A realidade é esta, neste momento. E isso, de facto, não é positivo.
Então, de onde é que vem o teu optimismo?
Porque, pela primeira vez, também estamos a reconhecer esse problema. Ou seja, foi preciso reconhecer que descarrilámos em algumas coisas; noutras coisas também ganhámos, obviamente. Antes, as mulheres não tinham opção de escolher uma carreira sequer; agora sim, e isso é uma coisa positiva. Não quero que as mães voltem todas para casa outra vez sem opção. Mas, de qualquer forma, acho que estamos a começar a perceber também muitas das coisas que se perderam; e a ter essa capacidade de perceber que nos desviámos e descarrilámos em algumas coisas. E, portanto, se calhar há algumas coisas que precisam de ser recuperadas, e há outras que não, que ficaram para trás e que não fazem falta nenhuma.
Mas se calhar também caminhamos para isso porque muitas pessoas, sobretudo nos últimos anos, se despediram, simplesmente porque perceberam que querem ter outro estilo de vida. Vês que em Portugal há esse movimento ou sentes que é do lado das empresas que há mudanças?
Tenho mais consciência do que se passa com as pessoas do que propriamente com as empresas. Mas, de facto, aquilo que eu vejo é as pessoas muito insatisfeitas com este modelo clássico de trabalhar, ganhar dinheiro… As pessoas já procuram mais, querem outras coisas. Estão mais insatisfeitas nesse papel, e julgo que isso também vai originar alguma mudança, as empresas terão de se adaptar. Agora, eu acho que aqui em Portugal há um problema grave: as pessoas têm poucos meios financeiros para fazer mudanças reais na sua vida. A nossa margem de manobra é muito curta em relação a outros países, onde existem mais apoios. Aqui, apesar de tudo, a maior parte das pessoas ainda está a tentar pôr comida na mesa no fim do mês. Portanto, isto também limita a capacidade de pensarmos um bocadinho mais além.
Há pouco referiste a importância de jovens e crianças terem modelos nos adultos. Acontece que temos também adultos muito doentes em termos psicológicos e emocionais. Como vês essa situação? Temos adultos disponíveis para serem modelos e exemplos para os mais jovens?
Se calhar também não temos muitos, não é? Se calhar, porque muitos de nós já crescemos nessa sociedade de orientação para os pares. Aliás, isso viu-se nesta história toda da covid-19. As crianças não foram protegidas, foram atiradas para a linha da frente. A realidade é essa. As crianças tinham de ficar quietinhas para não matarem os avós.
E com máscara.
Exactamente. Não houve preocupação com o impacto que isto ia ter em seres que são mais frágeis, porque estão em desenvolvimento, e não lidam com as coisas da mesma maneira que um adulto. Um adulto até pode cumprir determinadas medidas, sem isso ter um grande peso na sua vida, mas numa criança a mesma medida pode ter um peso brutal. Não houve essa capacidade de dizer: ok, vamos criar algumas medidas para os adultos, se for necessário, e vamos proteger as crianças. Não, o que se disse foi que as crianças tinham de salvar os avós. E a questão até mais chocante de todas se calhar até é a das vacinas, na forma como as crianças foram vacinadas. Em Portugal, felizmente, que eu saiba, a maior parte [menores de 12 anos] não foi, mas a ideia era que as crianças deviam ser vacinadas para uma coisa que não as punha em risco, só para protegerem os adultos. Depois, soube-se que não protegiam nada; mas, enfim, era isso que constava. Portanto, isto é revelador de uma sociedade que não está bem; que está já a deixar de estar em contacto com os seus valores, porque é fruto de uma sociedade orientada para os pares. Uma sociedade que está bem, e em contacto com os seus valores, sabe que precisa de proteger as crianças antes de qualquer outra coisa. As crianças deveriam ser prioritárias. Em todas as medidas, o seu bem-estar devia ser o primeiro a ter-se em conta, e isso não aconteceu.
Houve então uma inversão de valores? Porque numa sociedade saudável, não deviam ser as crianças a proteger os adultos, mas sim o contrário…
Exactamente, porque desde o início que se sabia que as crianças seriam muito pouco afectadas pelo vírus em si; havia era o debate sobre se as crianças podiam transmitir aos adultos, e muita gente que dizia que não, que as crianças nem sequer eram grandes transmissoras. Mas, no entanto, havia toda esta ideia de que se as escolas estivessem abertas, e se as crianças vivessem livremente, trariam o vírus para casa e depois os mais velhos seriam afectados. E, de facto, isso é sinal de uma sociedade que não está muito saudável. A partir do momento em que nós sabemos que há coisas que fazem falta na vida das crianças, que lhes podem deixar marcas…
Aliás, saíram agora notícias que apontam que pessoas morreram devido aos confinamentos, e que, no caso das crianças e jovens, há uma epidemia de saúde mental, para além de tudo o que perderam, em termos sociais e de aulas.
Sim. Eu ainda ouço constantemente pessoas que vêm à consulta das crianças, que têm este ou aquele problema e depois dizem:”Ah, ela também nasceu no meio da pandemia…”. Pois, claro, houve crianças que passaram os dois primeiros anos das suas vidas completamente isoladas.
Não é algo que te revolta? Porque, de facto, as crianças na Suécia tiveram a benção de estar na Suécia, e de não ter sofrido o que as portuguesas sofreram.
Eu acho que nos países nórdicos, em geral, e também na Noruega, há uma outra capacidade de proteger as crianças. São países que até têm já licenças de maternidade um bocadinho mais prolongadas.
Ou seja, já têm uma cultura voltada para a proteção da família e das crianças…
Eu acredito que sim; há um bocadinho mais essa valorização.
Aqui não se valorizam as crianças e os jovens?
Neste caso, eu sinto que não se valorizaram muito, de facto. A partir do momento em que nós temos este problema de ter crianças pequeninas que passam 10 horas ou mais por dia na creche, realmente temos de dizer que não há uma grande valorização da infância. Nos países nórdicos, os pais saem mais cedo do trabalho, vão buscar as crianças à escola. Nós aqui, o normal é vermos os pais a irem buscar as crianças às 19 horas. Isto não é saudável, não é bom para ninguém.
Como jornalista, no início da pandemia, até 2021, senti resistências em poder trabalhar em regime de teletrabalho, quando tinha os filhos muito pequenos, apesar de, muitas vezes, as minhas funções e a tecnologia o possibilitarem. Encontrei uma atitude compreensiva e flexível da parte de alguns editores e directores em relação a poder trabalhar em casa quando os filhos estavam doentes. Era muito difícil conciliar o trabalho a tempo inteiro na redacção com as rotinas da vida familiar. E houve resistência de alguns pares, o que me surpreendeu. Reclamavam se, por exemplo, alguém trabalhava em casa porque um filho estava doente.
É uma coisa que eu ouço muito, de mães que, por exemplo, têm horário reduzido, e que lidam, por vezes, com a pressão dos colegas, porque saem mais cedo e eles ficam lá. Há pessoas que levam isso a mal e ficam chateadas.
Também é um pouco desta cultura, em que a mulher quase é penalizada se está a cuidar de filhos ou se quer ter uma vida familiar.
Da mulher ou do homem. Porque os homens também podiam sair mais cedo e não o fazem porque, de facto, há muito essa pressão. Colocamos muito o trabalho como um valor máximo. Uma pessoa boa é uma pessoa trabalhadora, é uma pessoa que se esforça e que está ali todos os dias… E, realmente, será que isso é o principal?
Ou seja, alguém que gosta de estar com os filhos e que se quer dedicar aos filhos e levá-los ao médico, em vez de ser o avô ou a empregada a levá-los. Essa pessoa é mal vista.
Sim, em Portugal temos muito essa noção. Eu lembro-me até de um estudo, há uns anos, que dizia que em Portugal o part-time é uma coisa muito mal vista. Também com os nossos ordenados, é difícil viver com meio ordenado. Mas a verdade é que, mesmo na mentalidade das pessoas, quem quer trabalhar em part-time é porque é preguiçoso. As próprias empresas não querem contratar ninguém em part-time, porque acham que isso é contratar preguiçosos. Enquanto lá fora, é uma das realidades: quem tem filhos pequenos, às vezes escolhe trabalhar em part-time, justamente para poder acompanhar mais os filhos. E nós cá, nas empresas, nem pensar.
Sim, e apesar da lei prever algumas medidas, há mulheres ou homens que recorrem à lei mas são penalizados nas empresas, e passam a ser tratados como maus trabalhadores. Isso não é justo…
De todo. Nós precisamos de perceber que, para já, quem está em casa a cuidar dos filhos não está de certeza de férias, não é preguiçoso [risos]. Dá trabalho cuidar de uma criança. E sim, precisamos de mudar essa mentalidade.
Como se caminha para mudar estes valores de glorificação do trabalho e de sacrifício 24 horas por dia?
Isso é uma coisa muito portuguesa, aquela ideia de que é preciso estar no escritório das 8 horas da manhã até às 20 horas.
E até pode não se estar a trabalhar…
Exactamente. Por vezes, as pessoas estão lá e não estão a fazer grande coisa. Já tive pessoas que se queixam que estão constantemente a ser interrompidas, porque temos esta cultura de perguntar tudo e marcar reuniões para tudo, e as pessoas sentem que constantemente há interrupções de tudo e mais alguma coisa. Isso é uma coisa muito cultural. Se formos mais para o norte da Europa, já não existe tanto esse problema. As pessoas vão para trabalhar, não vão para conversar ou para conviver, e só estão lá as horas que são necessárias. Aqui, achamos que é preciso dormir no trabalho, quase.
E o optimismo de que falavas há pouco, também é por veres que as novas gerações de pais já têm outra atitude?
Sim, eu acredito que sim. Nunca estivemos tão preocupados com a infância, e com a nossa responsabilidade como pais como hoje em dia. Isso eu acho inquestionável. Agora, até há imensos livros sobre como educar crianças. Por um lado, porque as pessoas também estão muito aflitas, mas também porque, apesar de tudo, têm consciência da sua responsabilidade e do seu papel. Isso, à partida, será bom. Agora, é preciso também que aconteça alguma coisa. Neste momento, acho que ainda estamos, se calhar, um bocadinho na transição de perceber que isto não está a funcionar, mas ainda não somos capazes de perceber o que é que vamos fazer diferente.
E apesar de haver uma muito maior participação da parte dos pais, a esmagadora maioria ainda continua a ser a mulher que trata das refeições, da logística da casa e das crianças.
Sim, e que falta ao trabalho quando as crianças estão doentes, por exemplo. Eu já ouvi mães que me dizem que o marido até ficava em casa, mas depois chega ao trabalho e perguntam-lhe porque é que não é a mulher a ficar. Quer dizer, isso não pode ser …
Pois, é a questão cultural. E tu publicaste agora um livro, Como educar crianças desafiantes. Existem crianças desafiantes ou pais desafiantes?
Porque muitas vezes se leva crianças ao psicólogo, porque têm problemas e mau comportamento na escola, e quando se vai a ver, o problema está mesmo é nos pais.
Exactamente, está na dinâmica que se gerou. Na verdade, aquilo que eu procuro fazer no livro é responsabilizar os pais para perceberem que não são os filhos que têm o problema, mas sim aquela dinâmica que não está a funcionar por algum motivo. Uma boa parte do meu trabalho passa muito por isso. Eu digo sempre que prefiro trabalhar com os pais do que directamente com a criança. Principalmente, quando são crianças pequenas, não faz muito sentido trazer a criança ao psicólogo. E menos sentido ainda faz nós assumirmos que é ela que tem um problema, e que é ela que precisa de mudar alguma coisa; porque se nada mudar em casa, o problema da criança nunca vai ficar resolvido.
E isso acontece muito, ou se calhar mais frequentemente, por exemplo, em situações de divórcios ou de grandes mudanças familiares, como nascimento de irmãos.
Sim, pode acontecer. Grandes transições às vezes são das coisas que causam muita angústia e alguma instabilidade na família. Por isso, às vezes os pais procuram apoio para saber como é hão-de lidar da melhor maneira com isso. Mas não necessariamente. Hoje, há muitas condicionantes que não ajudam, e de facto, por vezes, instalam-se relações entre pais e filhos que não funcionam. E a nossa forma de lidar com isso só vai, em alguns casos, cristalizando cada vez mais essa dinâmica que já não está a funcionar. Por vezes, de algum modo, o nosso próprio comportamento vai alimentando o problema e agravando a situação.
E o adiar também de algumas questões. Escreveste algo que me tocou: “As emoções são um potencial de acção que precisa de ser executado, e quando não podemos fazê-lo na altura certa, é como se o nosso organismo fosse acumulando essa informação, que vai precisar de descarregar mais cedo ou mais tarde, e nem sempre da maneira mais adequada”. Esta passagem serve para situações de crianças pequenas e jovens adolescentes, mas também de adultos.
Sim, claro. Nós, adultos, também acumulamos e deslocamos, muitas vezes, as nossas emoções. Aliás, muitos casos de ansiedade estão associados, de certo modo, a essa falta de capacidade de ir descarregando as emoções.
Mas também porque não há tanto uma conexão com as emoções e até com o próprio corpo.
Exactamente. Na infância aprendemos que certas emoções são perigosas. E isto pode acontecer por muitos motivos: ou porque nunca tivemos ninguém que nos ensinasse a lidar com essas emoções, ou porque os nossos pais reagem muito mal de cada vez que as demonstramos, ou ficam com medo de cada vez que aquela emoção é expressa. Então, vamos aprendendo que há determinadas emoções que não são aceitáveis, e isso coloca-as na caixa das emoções que são “perigosas”. E isso faz com que nos vamos desligando delas, e depois há determinadas emoções que também nos trazem para um estado de vulnerabilidade muito grande. E se tivermos medo dessa vulnerabilidade, então vamo-nos desligando daquela emoção. Para nos desligarmos da emoção, precisamos de nos desligar das sensações que ela provoca no corpo; portanto, esse desligar vai-se acentuando.
As dores de barriga nas crianças, por exemplo…
Sim, por vezes acontece. Se vamos sempre ignorando, chega um momento em que o corpo precisa de nos dar um sinal mais forte de que alguma coisa não está bem. E isso, em várias situações, traduz-se em sintomas físicos, como dores de barriga ou de cabeça. São as coisas mais comuns.
Da tua experiência profissional, vês que vai sendo mais fácil para as famílias terem ajuda psicológica, ou não?
Vai sendo mais fácil, no sentido em que se retirou um bocadinho o estigma e o peso. Há uns anos, só ia ao psicólogo quem estava muito desesperado; hoje, felizmente, já não acontece. Por outro lado, em Portugal temos ainda um grande problema económico. Apesar de tudo, já há alguns seguros que comparticipam as consultas de Psicologia, coisa que antes não acontecia. E antigamente, se alguém conseguisse uma comparticipação, era preciso ter um papel do médico de família. Agora, já não acontece. Mas temos ainda muito poucos psicólogos no Serviço Nacional de Saúde e, portanto, consultas gratuitas as pessoas nem sempre conseguem. E as que conseguem… Já vi coisas absurdas, como pessoas com uma depressão pós-parto que tinham uma consulta por mês. Não faz sentido. Nessa fase da vida daquela mulher, numa altura tão decisiva e tão importante, uma consulta por mês não é nada.
Qual a razão para a saúde mental e emocional não ser vista como prioridade?
Eu acho que começámos a perceber já a sua importância, mas tem sido descuidada. É sempre relegada para segundo plano, porque no fundo os sintomas também não são assim tão óbvios e visíveis. Se eu tiver uma dor de barriga muito forte, é impossível eu ignorá-la. Se eu tiver uma doença qualquer que me provoca sintomas graves, também não consigo viver. Mas se eu tiver ansiedade ou depressão, se calhar vou vivendo, vou conseguindo funcionar mais ou menos. Por isso, é fácil ir varrendo para debaixo do tapete e fingir que aquilo não está ali.
A Direcção-Geral da Saúde tem estado a esconder dados sobre saúde. Alguns só estão disponíveis até 2019, por exemplo sobre as causas de morte e a evolução de suicídios. Noutros países, os dados que existem mostram que tem havido um aumento. Portanto, as pessoas que estão a sofrer do ponto de vista mental podem estar em risco de vida…
A Psicologia ainda é uma ciência muito recente. A verdade é essa. A Medicina, que trata das coisas físicas, é muito mais antiga. Portanto, ainda há aqui algum caminho a percorrer.
Sim. Nunca se falou tanto destas questões, nunca lhes prestámos tanta atenção. Isso, à partida, é bom sinal. Alguma coisa há-de sair daqui.
Em termos civilizacionais, talvez se comece a olhar para esta área com maior acuidade. Durante a pandemia, foste uma voz muito activa, mas também tiveste custos. Sentes que o que aconteceu foi grave, sobretudo relativamente às crianças e jovens?
Muito grave, sim.
Ficaste surpreendida que outros colegas teus não tenham vindo a público defender as crianças? Muito faziam em privado e em grupos de Whatsapp, mas não publicamente. Nem junto da Ordem dos Psicólogos tiveram qualquer tipo de iniciativa.
Sim, muita gente me falou em privado. Aliás, no início quando saíram as normas para as escolas, e tive acesso àquilo que ia ser feito, fiquei logo muito preocupada e consegui reunir com algumas pessoas que eu nem conhecia. As maravilhas das redes sociais! Escrevi um artigo no Público [com Zulima Maciel e Ana Rita Dias, em Julho de 2020] e consegui recolher assinaturas de alguns colegas, mas também de algumas pessoas que não conhecia, e a partir daí conseguimos até enviar uma carta para a Ordem dos Psicólogos. Foram mais de 100 assinaturas, que reunimos num dia ou dois; foi uma coisa muito rápida, porque a situação era de urgência. Portanto, muita gente estava apreensiva e com medo das regras que iam ser impostas e dos seus impactos. Depois disso, parece que as pessoas se começaram a querer proteger primeiro a si próprias, e, de repente, houve um ignorar daquilo que toda a gente estava a assumir que era muito grave. Aliás, na altura falei com toda a gente com quem conseguia falar, até deputados. Todos me diziam que aquilo não fazia sentido nenhum, e que era absurdo submeter as crianças a estas regras; davam-me razão. E, depois, afinal, nada aconteceu, e não se passou nada; foi uma coisa que me deixou completamente estupefacta! Eu cheguei a participar numa reportagem em que a jornalista veio falar sobre as regras que iam ser impostas; eu comecei-lhe a explicar que aquilo não fazia sentido e o impacto que eu achei que ia ter, e ela no fim disse-me: “pois, realmente tem razão, eu nunca tinha pensado sobre isso”. Mas não se passou rigorosamente nada, apesar de as pessoas todas concordarem que não podia ser. Acho que depois, entrava a questão do egoísmo. Isto agora até está um bocadinho na moda, mas havia um autor que dizia que vivemos numa sociedade de narcisistas, e parece que foi um pouco isso que aconteceu. As pessoas ficaram tão preocupadas com o seu umbigo, que aquilo que lhes parecia um absurdo tão grande e que era tão óbvio que ia ter impacto, afinal já não importava, porque afinal era preciso que ninguém tivesse covid-19. Houve até uns investigadores que diziam que todos os efeitos secundários provocados pelas medidas passaram a ser mais aceitáveis do que qualquer morte por covid-19. Tornou-se mesmo uma questão moral; de repente, deixámos de conseguir reflectir e pensar friamente sobre o assunto.
Surpreendeu-te também terem sido tomadas medidas sem base nem evidência?
Sim, claro, embora não fosse bem isso que se dizia, não é? Logo no início, quando isto tudo começou, lembro-me de um artigo da Lancet que dizia justamente isso, que nunca tinha sido tentado assim um confinamento à escala global, mas havia exemplos de pequenos confinamentos, em regiões afectadas pelo Ébola, em que as pessoas ficaram contidas.
Sim, mas no caso do Ébola, a taxa de letalidade era acima dos 50%… Na covid-19, a taxa de letalidade é, em média, de 0,03%, e de 0,07% no caso dos idosos. E são dados do período anterior à campanha de vacinação…
Sim, claro. Mas o artigo concluía que isso tinha um custo tão elevado para a população que só mesmo em situações extremas, e muito limitadas no tempo, contendo pessoas de uma população, muito específica; e mesmo um peso gigante para as pessoas que eram submetidas a isso. Mas, de facto, todos fecharam os olhos e já não interessava nada o que se sabia. Mesmo em relação às crianças. Aqui faço um parênteses na questão das evidências, porque obviamente que não havia estudos que comprovassem os efeitos das máscaras nem do “ficar em casa”. Também não precisamos de estudos para tudo, quando temos modelos. Se temos o modelo de desenvolvimento das crianças, e sabemos as suas necessidades, isso dá-nos alguma previsibilidade. Portanto, se vamos cortar-lhes uma necessidade, isso terá algum impacto, e isso também não foi tido em conta. Esquecemo-nos de tudo.
Desapareceu a evidência científica e os modelos do bom senso. Tivemos campanhas grotescas, como aquelas da DGS a empurrar as crianças para a vacinação, com os trágicos desenvolvimentos a que nós estamos a assistir hoje, com os efeitos adversos e excesso de mortalidade. E criticaste isso, mas tiveste custos pessoais, como se verificou com a postura da Ordem dos Psicólogos contra ti.
Na verdade, sobre as vacinas nunca falei em público, porque nunca considerei ser a minha área, pelo que não acho que tenha muito o direito de me pronunciar sobre isso. Embora, hoje em dia, acho que é do domínio comum que as vacinas não faziam falta nenhuma às crianças. Mas aqui, enfim, é senso comum. Agora, em relação aos efeitos psicológicos das vacinas, sim; aí realmente eu sentia que alguma coisa tinha de ser dita.
Também escreveste artigos, incluindo no Observador.
Sim, sim, escrevi alguns artigos. Sobre as consequências que eu tive… Acho que houve outras pessoas que, apesar de tudo, foram muito mais prejudicadas. Houve aquela altura em que parecia que tínhamos a peste, porque éramos rotulados de “negacionistas”, mas, enfim, acho que se fez uma selecção. Claro que algumas pessoas se afastaram, mas tudo bem, não é coisa que me tire o sono. Apesar de tudo, eu acho que fui até bem recebida pelas pessoas, no geral. Eu participei, por exemplo, no movimento “Assim Não é Escola”, que teve uma boa aceitação, porque as pessoas percebiam que estávamos a tentar proteger as crianças. E isso não estava a ser feito. Portanto, mesmo assim, eu não fui muito atacada; houve pessoas que sofreram muito mais.
Na área da Pediatria e Obstetrícia, mas mais uma vez em privado, houve de facto várias pessoas que apoiaram bastante esse movimento…
Sim. Falei com imensos pediatras, que estavam preocupadíssimos, porque viam o que estava a acontecer nos hospitais. Até pediatras que trabalhavam em urgência, e viam o estado em que as crianças apareciam, e estavam muito preocupados. Mas, de facto, na Ordem dos Psicólogos foi um bocado surpreendente. Porque, no início, quando eu escrevi o artigo no Público, e fizemos a carta aberta, até tivemos uma reunião com eles, e concordaram com tudo. Até depois escreveram uma carta à DGS, mais ou menos focando os mesmos pontos que nós focávamos.
Mas depois…
Depois, abriram-me um processo. Ou, na verdade, dois. E abriram-me dois processos com base em queixas completamente absurdas. Uma, em que o meu nome nem sequer era mencionado, por fazer parte de um grupo, e pelos vistos não podia fazer parte desse grupo. E outra, por uma pessoa que alegava que eu tinha dito coisas nas redes sociais, que eu nem sequer tinha dito.
Mas na Ordem dos Psicólogos abrem-se processos sem averiguar a veracidade dos factos?
Pelos vistos, abrem-se, e isso é uma coisa perfeitamente chocante. Eu fui ouvida na Ordem e aquilo para mim foi completamente surreal. Ainda está em aberto; eu nem deveria falar sobre isso, porque supostamente vem lá a ameaçazinha na convocatória. Se eu falar sobre isto podem pôr-me outro processo, porque isto ainda está em segredo. Mas eu acho que isto é sobre mim; portanto, se há alguém que pode decidir se eu posso falar ou não, sou eu.
Mas vês isso como uma forma de tentar dissuadir-te de falar em público, de continuares a defender as crianças?
Sinceramente, não percebi qual foi a intenção deles. Aquilo que me disseram foi que tinham de averiguar se todas as comunicações são feitas com base científica, e de forma fundamentada.
Deviam começar pela DGS e verificar se as medidas aplicadas nas escolas têm base científica…
Exactamente, a DGS fez muitas comunicações que não tinham base científica. Mesmo isso da base científica é, enfim, uma falácia, de certo modo. Porque lá está, há muita coisa em Psicologia que não tem base científica e continua a ser usada e aplicada, porque funciona com base em modelos. A Psicologia não é uma ciência exacta, é uma ciência humana. Portanto, também podemos prever as coisas com base num modelo. Os estudos que agora saem estão a dar-me razão. Ainda há pouco, saiu uma notícia no Expresso a dizer que aumentaram até os suicídios em crianças, algo gravíssimo.
A Ordem dos Psicólogos, mesmo assim, continua com os dois processos, portanto…
Estão em aberto. O papel das Ordens nunca deveria passar por policiar aquilo que as pessoas dizem. Para dizer a verdade, eu até tenho as minhas reticências sobre a utilidade da Ordem dos Psicólogos. Não sei se era importante termos uma Ordem. No fundo, serve para quê? Para fazer lobbying. Serve para tentar pôr mais psicólogos no SNS e nas escolas; até são coisas que fazem falta. Mas, enfim, a partir do momento em que servem para policiar o discurso das pessoas, aí perdem toda a razão de ser. Uma coisa é a Ordem investigar algo que se passou dentro do consultório, em que alguém tenha ido a uma consulta com um psicólogo e tenha queixas. Aí, pode haver alguma legitimidade para se investigar. Agora, coisas que eu disse, ou não disse, em público… É esse o papel das Ordens, hoje? Mesmo que haja um psicólogo que vá à televisão dizer uma coisa perfeitamente absurda, até que ponto a Ordem tem legitimidade para intervir? Não sei se tem, muito sinceramente.
Como vês o desfecho destes dois processos? Estás optimista ou preocupada?
Não sei. Eu acho isto tão absurdo que nem consigo dizer, honestamente. Não consigo sequer ter uma opinião. Confesso que fui para a audiência completamente descontraída e relaxada, a pensar que era só uma formalidade; pronto, já que me abriram um processo, agora têm de me ouvir. E cheguei lá e percebi que aquilo é uma coisa séria! E aí fiquei um bocado a pensar que estou em algum tipo de mundo paralelo. Isto não está a acontecer.
Como se tivesses cometido um grande delito…
Sim, fui interrogada sobre por que tinha dito e aquilo e como é que tinha dito aquilo. Perguntaram-me 30 mil vezes se eu tinha dito algo que não tinha dito. Acho que a pessoa [o denunciante] afirmou que eu tinha falado sobre a hidroxicloroquina, e queriam saber qual era a minha posição sobre isso. E eu, na altura, disse-lhes que nem tinha posição, nunca falei sobre isso na vida, nem investiguei o suficiente para ter uma posição! Poderia ter, pessoalmente, mas como psicóloga não me compete falar sobre isso em público.
Mas podias ter uma posição. Ou não. Se calhar essa nova PIDE entende que não.
Exactamente, poderia ter uma posição sobre isso, mas nem tinha, por acaso. Porque até li algumas coisas sobre a ivermectina, por exemplo. Há dias até estava a ouvir um podcast sobre a hidroxicloroquina. Se calhar, agora já teria uma opinião, mas naquela altura não tinha. Também ainda nem tenho uma posição muito formada, nem tenho de ter, porque não é uma coisa que me diga respeito, ou que interfira no meu dia-a-dia.
Mas interferiu, deduzo, teres dois processos na Ordem, com a tua serenidade interior, porque ficas preocupada. Pensaste duas vezes se deverias continuar a falar ou não?
Na verdade, nunca coloquei muito essa questão, porque acho que também não me conseguia calar [risos]. Quando recebi as comunicações dos processos, a primeira coisa que me apeteceu fazer foi escrever um artigo sobre aquilo ou ir falar daquilo para algum lado, porque achei tão surreal e tão absurdo, que me apetecia comunicar ao mundo que aquilo estava a acontecer.
Até porque há outros psicólogos que têm vindo a falar, e pediatras também, em relação às crianças. Infelizmente, tivemos alguns pediatras que também receberam processos na Ordem, entretanto arquivados. Mas outras figuras mais conhecidas falaram, como a Joana Amaral Dias.
Apesar de tudo, eu acho que sempre tive muito cuidado. Lá está, nunca iria falar da hidroxicloroquina, porque realmente sinto que não me compete. Não posso tomar posição sobre uma coisa para a qual não estudei o suficiente para conseguir compreender. Portanto, eu sempre falei daquilo que eu senti que conhecia e que era a minha área, e em que eu poderia contribuir.
As medidas tomadas, que foram comprovadamente erradas, como o encerramento de escolas, ou o confinamento, ou a imposição do uso de máscara… fica a pairar como sendo possível que se repitam. Até porque estão a ser feitas alterações ao Regulamento Sanitário Internacional e está em criação o Acordo Pandémico, que confere poderes à Organização Mundial de Saúde, e que levantam muitas preocupações. És das pessoas que temem que estejamos a caminhar para uma sociedade cada vez mais totalitária?
É muito ambivalente, porque, por exemplo, da primeira vez que as escolas fecharam, eu estava completamente crente que, a seguir à Páscoa, reabriam, e não abriram. Pelo menos as do primeiro ciclo, que só abriram em Setembro. Na segunda vez que fecharam, eu não achava que iam fechar. Pensava que nunca o fariam outra vez, e que já se tinha percebido o disparate que foi. E fecharam [risos]. Portanto, já não consigo dar grandes palpites. Já não confio na minha própria opinião.
Tal como as vacinas e o certificado digital. Também não ia haver vacinas obrigatórias e certificado obrigatório para acesso a certos sítios, mas, na prática, houve.
Exactamente. A partir do momento em que vivemos um tempo da nossa vida em que não nos era permitido frequentar determinados sítios, porque não tínhamos um determinado papelinho… Acho que passámos uma linha muito grave e perigosa. A partir daí, se calhar, muita coisa pode acontecer. Porque aqui é completamente irrelevante se nós achamos que as vacinas são úteis ou não; não tem nada a ver com o que se passou. Eu podia acreditar que as vacinas eram a melhor coisa do Mundo, mas não tenho o direito de obrigar a outra pessoa a vacinar-se só porque existem todas as evidências de que aquilo é espectacular. Não existiam, por muitas provas que pudessem existir.
É a tal polícia moral.
Exactamente. A partir do momento em que nós penalizamos os outros pelas suas escolhas pessoais, e criamos divisões na sociedade com base naquilo em que uma pessoa acredita ou não acredita, passámos uma fronteira muito grave. E pior do que tudo: nós passámos essa linha sem grandes protestos, e sem que muita gente se importasse. Eu cheguei até a ter pessoas a dizer-me que também não se vacinaram, mas que não se importaram de não ir aos restaurantes, e a perguntar qual era o problema. Como “qual é o problema”?! É um problema gravíssimo, não importa se a pessoa está vacinada ou não, isso é completamente irrelevante nesta questão toda. Quer dizer, como é que alguém pode aceitar que uma pessoa esteja a ser barrada de um sítio porque tomou uma opção de saúde diferente daquela que acham que devia ter tomado?
Ou a censura de informação verdadeira, por exemplo. Há pessoas que não vêem mal nisso, porque as redes sociais são entidades privadas. Ou mesmo os media, sabemos também que houve e ainda há condicionamento ao nível dos media.
Claro. Há pouco tempo partilhei uma notícia do Expresso sobre a questão das máscaras, porque afinal, com os estudos, a Cochrane chegou à conclusão de que não havia evidência sobre a eficácia no uso de máscara. E partilhei, porque achei realmente muito curioso que a jornalista fosse buscar um especialista qualquer, que respondeu que sim, que fazem e fizeram uma grande diferença. Mas não era para seguirmos a Ciência, com eles diziam? E depois chegavam à brilhante conclusão que foram 70 e tal estudos analisados, mas os estudos não eram assim muito bons. Quer dizer, então se durante este tempo todo não se conseguiu produzir um estudo de qualidade sobre o tema, vamos partir do princípio que o tema não será “estudável” por estes meios, não é?
Parece é que não se quer estudar porque já se sabe o resultado…
Claro, é completamente absurdo dizer que se analisaram 70 e tal estudos e nenhum prestava! Como é que isso é possível?
Aliás, a própria Cochrane terá sido pressionada à posteriori porque, entretanto, tentou pôr um bocadinho água na fervura, mas não está a resultar.
Agora, a questão é esta: partilhei no Facebook, com um comentário inocente sobre uma notícia de jornal, e fui censurada, retiraram-me a publicação sem apelo nem agravo. Que sentido é que isto faz? Estamos a tratar as pessoas como tolinhas, que não conseguem filtrar a informação por si mesmas?
É a questão da infantilização, não é?
Exactamente, é isso que se está a fazer. Estamos a partir do princípio que as pessoas não são capazes. É como aquela história, há uns tempos, do Trump, que disseram que houve pessoas a beber lixívia porque ele falou nisso. Não podemos partir do princípio que as pessoas são todas burras, não é? Está bem, se calhar pode haver uma ou outra pessoa mais impressionável, que vai fazer disparates, com base em alguma coisa que ouviu dizer. Mas isso até pode acontecer a pessoa estar a dizer uma coisa perfeitamente válida e fiável, e haver alguém que interpreta aquilo tudo ao contrário e vai fazer um disparate.
És vista agora como activista, mas acabaste por ser englobada, lamentavelmente, por alguns media como “negacionista” ou “anti-vacinas”. Tens uma herança, porque os teus pais, que fazem parte dos heróis que construíram a nossa democracia, não só pela defesa da justiça em prol dos mais fracos, mas também pelos direitos civis e liberdade. Sentes que também estás a dar agora um contributo, como os teus pais fizeram na sua época?
Eles foram muito mais penalizados, não se pode comparar. Eu não fui presa nem nada que se pareça, o meu pai esteve muitos anos preso. Infelizmente, o meu pai já morreu, por isso nunca saberei o que ele pensaria sobre isto. Mas uma coisa que eu pensava muitas vezes era: “caramba, o meu pai esteve preso tantos anos em luta pela liberdade, para agora de repente estarmos a voltar atrás desta maneira”. Não faz sentido.
Como é que ele veria estas alterações à Constituição?
Quero acreditar que seria veementemente contra todas estas coisas.
Mas sentes que estás um pouco a honrar o caminho dos teus pais, ao fazer a tua parte nesta luta?
Eu não sei se é honrar, ou se foi alguma coisa que me foi incutida em criança, que quando víamos as coisas acontecer não nos podíamos calar; ou se é qualquer coisa minha, não sei. Certo é que, de facto, estamos a ir em alguns aspectos para um caminho muito perigoso, e acho que não podemos ficar calados. Ainda para mais, se sabemos que houve pessoas que sofreram tanto, e que lutaram com grandes custos para a sua vida pessoal, por esta liberdade que agora estamos a pôr completamente em risco, e a deitar fora e a dizer que não interessa, porque há coisas muito mais importantes… A mim custa-me ficar quieta.
Laura Sanches,em 2010, a receber a Comenda de Grande Oficial da Ordem da Liberdade, a título póstumo, ao seu pai, Saldanha Sanches.
Sentes na tua família preocupação pela tua exposição, como uma voz activa, na defesa da liberdade, das medidas com base na evidência e dos direitos das crianças?
[risos] A minha mãe preocupava-se sempre um bocadinho. Mas, enfim, a minha mãe preocupa-se sempre com tudo. Mas é triste, e é revelador, chegarmos à conclusão de que alguém se deve preocupar só porque outro alguém está simplesmente a dar uma opinião, que foi aquilo que eu fiz, não é? Veja-se ao ponto a que chegámos, para que isso seja preocupante. E, se calhar, em determinadas alturas, também pensava que isso poderia ter algum impacto na minha vida profissional. E, se calhar, em alguns aspectos teve, algumas pessoas talvez me tenham começado a ver como “negacionista”.
Provavelmente, como a tua mãe também sofreu na pele as suas posições, não queria que a filha passasse por certas situações.
Claro. Mas, apesar de tudo, pelo menos por enquanto, a coisa ainda não chegou a esse ponto.
Pensas nos teus filhos quando falas e quando escreves?
Muito. Pensava que se não tivesse filhos, não sei se isto me importaria tanto, porque para além de os ver a sentir na pele algumas medidas… O meu filho, quando tinha 10 anos, entrou para o quinto ano e tinha de usar máscara. Isso doeu-me, isso custou-me. O mais pequenino, apesar de tudo, estava mais protegido; no primeiro ano estava em casa e depois, quando entrou para a escola, enfim, era uma escola privada; as medidas eram muito mais aligeiradas. Mas houve coisas que me custaram muito. E não só, também pensar no mundo que quero deixar para eles. Não quero que os meus filhos vivam num mundo onde é possível excluir pessoas de sítios só por tomarem opções diferentes.
E se eles um dia ainda tiverem de fazer lutas, como as que estás a fazer, como vais reagir? Vais querer que eles as façam? Se calhar estás a tentar impedir que tenham de as fazer.
Eles terão que fazer o caminho que tiverem que fazer. Obviamente, nenhuma mãe quer que os filhos sofram. Queremos todos o melhor mundo possível para os nossos filhos, mas tenho consciência de que também escolherão as suas batalhas, e é natural que existam algumas. A vida nunca vem sem desafios, e claro que há momentos mais turbulentos, e há outros que serão mais pacíficos. Mas eu não posso controlar como é que vai ser o mundo quando eles crescerem, não é?
Com aquilo que se passou nos últimos anos, compreendeste melhor ou viste com outra luz a luta que os teus pais fizeram? É diferente lermos e contarem-nos sobre um tempo, e depois experienciarmos uma retirada da liberdade sem motivo válido como o que se verificou…
Sim. O impacto maior que eu vi nisto e que me fez mais impressão – e acho que na altura deles também aconteceria – foi este peso social. Só o uso da palavra “negacionista”, uma pessoa sentia-se quase leprosa em determinados contextos. E antigamente quem estava contra o regime, também se sentiria assim. Obviamente, havia algumas pessoas que apoiavam, mas era aquele apoio por baixo da mesa. Às claras, as pessoas eram mal vistas. Para mim, o mais impressionante, e o que mais me marcou, foi a forma como, de repente, toda a sociedade se pode organizar para encarar daquela forma um determinado grupo social.
E mesmo da parte de pessoas que, em termos intelectuais e de formação, considerávamos civilizadas. Tivemos directores de jornais, editores, jornalistas, a chamar manifestantes e críticos de chalupas. Não têm desculpa para a atitude que tiveram…
Isso para mim foi o mais chocante. E depois, ainda por cima, havia muitas pessoas com quem eu falava, como em restaurantes, que diziam que concordavam connosco, mas não podia dizê-lo a ninguém. Como é que se gerou este contexto em que as pessoas sentiam que não podiam expressar a sua opinião, porque as tornava uma espécie de párias sociais. Muita gente ficava chocada com esta comparação da Alemanha Nazi, mas, de facto, os processos psicológicos foram similares. Foi perceber como é que os nazis levaram a cabo aquilo que levaram com a conivência da população. E os próprios soldados eram pessoas normais, que só estavam a cumprir ordens. E, realmente, era aquilo que acontecia, as pessoas só estavam a cumprir ordens, inclusive nas escolas.
Estamos a falar de pessoas que são pais, e que em público são capazes de atacar outras de forma vil, insultá-las e incentivar ao ódio.
Exactamente; é algo completamente assustador. Por exemplo, em escolas tivemos crianças a brincar em quadradinhos no recreio, porque não se podiam misturar com as da outra turma… E como é que havia adultos a olhar para aquilo e a achar normal, aceitável? Como é que não deram um murro na mesa!
Em termos psicológicos, a sociedade portuguesa é muito conotada como sendo passiva e obediente.
Quando certa vez fomos para uma casa de campo, eu vi o caso de uma pessoa que teve covid-19 na casa ao lado. E a GNR ia lá duas vezes por dia, buzinava e o senhor tinha de vir à varanda para mostrar que estava em casa, e depois iam-se embora. Como é possível? No campo! O homem estava fechado em casa sem ter ninguém à volta. Completamente ridículo.
Para mim, uma situação que me chocou foi receber uma chamada do centro de saúde porque queriam falar com a minha filha adolescente para tomar a vacina. E tem havido essa tentativa de retirar, também com a ideologia de género, a soberania dos filhos aos pais. Isso é uma táctica também muito utilizada em ditaduras…
Mas isso eu acho que também vem um bocadinho desta orientação para os pares e da desvalorização da família e das hierarquias. A noção de hierarquia também começou a ser mal vista na sociedade. E a hierarquia existe, e existe uma hierarquia de pais para filhos. E a partir do momento em que desautorizamos os pais, também se abrem portas para esse tipo de coisas.
Na segunda parte da conversa aberta com o PÁGINA UM, Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, fala dos avanços que nos permitem dar vida e mais esperança às crianças que nascem com problemas congénitos, mas aborda também os desafios e problemas que se colocam na saúde dos mais jovens. Se é certo que existe uma maior capacidade de detectar doenças crónicas mais cedo (e tratá-la com maior sucesso), Amil Dias relembra os factores ambientais e sociais que estarão a contribuir para haver, no futuro, adultos com comorbilidades mais cedo. E alerta também para as dificuldades no processo de transição dos cuidados médicos pediátricos para o “mundo adulto”. Leia também a primeira parte desta entrevista, aqui, que se debruça sobre o vírus sincicial respiratório.
A mortalidade infantil em Portugal diminuiu de forma muito significativa no último século. Chegou a rondar os 6% no final dos anos 70; agora está nos 0,2%, o que é um valor extremamente baixo, mesmo à escala mundial. Atribui essa evolução favorável às vacinas, ao saneamento básico ou ao papel da Pediatria e contributo dos médicos pediatras?
A resposta não é simples. Com as devidas diferenças, é um pouco como na Fórmula 1. Há 30 anos, um tipo mudava o tipo de pneus, e ganhava dois segundos. Ou mudava a suspensão, ou o que seja, e ganhava mais dois ou três segundos. Hoje, fazem investimentos milionários nos túneis de vento, no deflector, enfim, num pisca qualquer, para ganhar um milésimo de segundo. Há 30 anos, foi-nos fácil modificar o panorama da mortalidade infantil sobretudo porque houve um senhor chamado Torrado da Silva, que foi encarregado pelo Ministério da Saúde de ir pelo país discutir com as várias maternidades dos hospitais onde é que havia condições para as criancinhas nascerem com segurança. E este médico viu que não havia condições em muitos sítios, ora porque as instalações não eram adequadas, ora porque o movimento anual não permitia manter competências. E pelo simples encerramento de maternidades de maior risco, e em coordenação com os outros; pela implementação do programa de vacinação infantil; pela criação da especialidade de Medicina Geral e Familiar, conseguiram-se avanços fantásticos.
Mas a evolução tem um limite…
É claro. Quando a curva começa a espremer, a espremer… O básico e aquilo que garante qualidade de vida à grande maioria das crianças, isso está perfeitamente consolidado. Hoje, para conseguirmos um pequenino avanço temos de seguir técnicas muito mais sofisticadas, porque continuam a nascer crianças de elevado risco – sejam os grandes prematuros, sejam aquelas com doenças metabólicas graves. Para conseguir que estas crianças sobrevivam é preciso investimentos tremendos. Há doenças, nomeadamente as metabólicas, em que se necessita de gastar milhões para ganhar uns anos da vida. Portanto, a resposta à pergunta: é possível melhorar, só que é cada vez mais complexo, mais caro e sofisticado conseguir uns pequeninos avanços.
Jorge Amil Dias, presidente do Colégio da Especialidade de Pediatria da Ordem dos Médicos.
Nos casos de doenças congénitas ou metabólicas sabemos que, há uns 20 ou 30 anos, as crianças acabavam por morrer ao fim de uns meses ou de poucos anos, mas agora podem ter uma sobrevida muitos anos. Mas envolvendo uma grande complexidade no sistema de saúde e com um custo brutal, não é?
Por exemplo, a fibrose cística era uma doença que matava as crianças no fim da infância ou no início da adolescência. E hoje chegam à idade adulta. E como esta, há uma lista enorme de situações. Portanto, houve de facto um avanço tremendo, mas essencialmente à custa de medidas básicas que influenciaram a grande maioria da população. De facto, neste momento, para conseguir pequeninos avanços, temos de ser muito mais sofisticados.
As mortes por malformações congénitas eram muito frequentes há algumas décadas. Hoje, com os diagnósticos durante a gestação pode-se fazer interrupções da gravidez se se detectarem problemas. Tem ideia de quantas interrupções se fazem por este motivos em cada ano?
Não, não sei. Existem seguramente dados sobre isso, mas não os tenho… É uma questão mais do domínio dos cuidados obstétricos, e eu não faço ideia dos números.
Diz-me muitas vezes que é contra-natura os pais enterrarem os filhos, mas há um século quase todas as famílias tinham de fazer funerais de crianças. Por exemplo, nos anos de 1930, cerca de 40% das mortes em Portugal era de crianças com menos de cinco anos. Agora, ronda 0,25%, mas existe um medo constante em redor das crianças…
As crianças tornaram-se hoje um bem muito mais precioso do que eram há 50 ou 60 anos. Nessa altura, os casais tinham quatro, cinco, seis, oito, nove, dez filhos; sabiam que um, dois ou três se calhar ficavam pelo caminho, mas os outros iam aguentando. Ajudavam na agricultura ou no comércio; enfim, onde os pais trabalhavam. E, portanto, os filhos tinham este peso também de contribuição social; eram um investimento de retorno relativamente rápido. Hoje, os casais têm zero, uma, duas crianças… Quem tem três crianças, tem uma família enorme. E, portanto, nestas novas circunstâncias, as crianças passaram a ser um bem muito mais precioso. E ainda bem que assim é. E, naturalmente, quando se perde a vida de uma destas crianças, isto é uma tragédia enorme para a família e para a sociedade.
Mas nem tudo está bem com as nossas crianças e adolescentes, apesar dos avanços de que já falou…
Temos, de facto, do ponto de vista social, um problema que me preocupa muito mesmo, e já tentei sensibilizar as autoridades, mas não tive muita sorte… Temos cada vez mais crianças com doenças crónicas, seja a obesidade, seja doenças alérgicas, inflamatórias, endócrinas. Temos um aumento da prevalência de várias doenças que conhecíamos na idade adulta e que hoje vão invadindo também a população pediátrica. Isto quer dizer que daqui a 10 ou 20 anos vamos ter um peso significativo de doenças crónicas em adultos jovens.
Como já sucede muito nos Estados Unidos?
Pois. E o tratamento para cada uma destas doenças é cada vez mais caro. Portanto, daqui a 20 anos teremos um peso de adultos jovens com doença crónica. E com custos de saúde significativos. Provavelmente, todos com declarações de deficiência e redução de obrigações fiscais, e por aí adiante. Vamos ter depois, cada vez mais, uma população idosa com morbilidades próprias e a exigir os cuidados de saúde, os quais têm direito pela vida toda em que contribuíram. Aquilo que há muitos anos era a chamada pirâmide etária, neste momento já é uma pirâmide invertida, e ainda por cima com o peso da doença a começar muito mais cedo. E eu não sei muito bem quem é que vai pagar isso tudo.
Esses problemas advêm sobretudo da nutrição?
Tem a ver com várias coisas. Hoje, nós sabemos muito – não sabemos tudo, mas sabemos cada vez mais – sobre factores precoces de risco. Sabemos que a maneira como se nasce, o facto de se ser amamentado ou não, e o tipo de medicamentos que se toma nos primeiros meses de vida, tem uma influência que pode ir a dezenas de anos de distância. E, particularmente, os dois primeiros anos de vida são um período de extrema vulnerabilidade e de risco, que pode condicionar riscos para crianças em idades mais avançadas, e também na vida adulta. E eu acho que não estamos a investir adequadamente nessa área, e isso devia ser devidamente ponderado.
Em que aspectos?
Por um lado, estamos a formar pediatras hospitalares que conhecem doenças complicadíssimas e sabem fazer coisas sofisticadas, e que competem tranquilamente com especialistas de outros países. Mas, pelo menos metade desses pediatras quando acabam a sua formação, dizem: “eu não estou para esta vida hospitalar tão pesada, eu prefiro ir trabalhar na clínica tal e ganhar a minha vidinha sem me chatear tanto“. E o que vão fazer nessa clínica é pediatria básica, pediatria de prevenção de cuidados de saúde, para o quais não receberam formação sólida, que hoje é possível oferecer. Portanto, estamos a formar profissionais desfasados; ou pelo menos uma parte. É evidente que precisamos de intensivistas, de cardiologistas, enfim, de especialistas de ponta e que saibam tratar coisas complexas. Mas precisamos também de ter a noção que uma boa parte destes médicos vão trabalhar em medicina de crianças saudáveis; e que deveriam ter recebido uma formação cuidadosa para, enfim, tentar minimizar tanto quanto possível os factores de risco de doença crónica. E isto não está a ser feito.
O que é preciso fazer?
Era preciso que os dois primeiros anos de vida das crianças fossem particularmente protegidos através de profissionais que tivessem recebido uma formação específica. Os médicos de Medicina Geral e Familiar são profissionais seguramente excelentes, mas que não receberam essa formação. Os pediatras são médicos excelentes e não receberam essa formação. Enfim, são conceitos que todos nós conhecemos das muitas reuniões e do que estudamos. Mas uma coisa é eu ter esta noção em geral; outra coisa é receber uma formação específica sobre isso. Nenhuma criança fica com uma doença inflamatória do intestino ou uma alergia por ter tomado um antibiótico em determinado momento dos primeiros meses de vida; se não tivesse tomado se calhar tinha morrido da doença infecciosa e a situação acabava ali. Mas, sabemos que estatisticamente, determinadas práticas condicionam um risco maior. E, portanto, isto devia obrigar-nos a ser mais cuidadosos e, enfim, ter sempre esta perspectiva global em vista. E ver o que é que se ganha e o que é que se perde. Por exemplo, a prática que houve, durante muitos anos, de um menino ir à urgência, tinha febre, chorava, tinha o ouvido vermelho e saía com antibiótico, se calhar tem de ser revista. Tem de se ser mais parcimonioso.
Deduzo que, na sua opinião, isso se aplique também às vacinas contra a covid-19, onde teria sido mais sensato uma maior ponderação em relação às crianças e jovens. Foi um dos profissionais de saúde que participou num abaixo-assinado a pedir a suspensão da vacinação de crianças, tendo em conta o risco-benefício…
A história da covid-19… Eu julgo que, neste momento, felizmente, o assunto está encerrado.
Eu não sei se está encerrado. Aqui em Portugal, no caso dos adolescentes e crianças, talvez. Mas noutros países vacinam-se crianças com seis meses…
Não queria ser eu a reabrir essa discussão. Todavia, a história da covid-19… Todos nós fomos confrontados bruscamente com uma situação inteiramente nova para a qual ninguém no Mundo estava preparado. Quer dizer, havia alguns teóricos que tinham imaginado que um dia haveria uma pandemia não-sei-do-quê, mas em termos práticos ninguém estava, e os serviços não estavam, preparados para isto. E, portanto, houve um pânico inicial, e justificável, porque morreu muita gente; mas depois foi uma espécie de formação em exercício. E a situação que nós temos hoje, felizmente, é de as variantes em circulação terem uma alta difusão mas uma letalidade relativamente baixa, embora de maior risco em determinados grupos etários ou com outras doenças. E, exactamente pela mesma razão que se recomenda a vacinação contra o pneumococo ou contra a gripe a determinados grupos etários, para a covid-19 a lógica é a mesma.
Portanto…
Em relação à vacinação da população infantil, houve algum pânico; houve a ideia de que vacinando as crianças se prevenia porque se acreditava que as crianças eram o reservatório da doença, e assim não iriam contagiar ninguém. Aquilo que se veio a verificar, com documentação, é que, de facto, as vacinas não foram testadas para a prevenção da difusão. Isto é, poderiam ter alguma eficácia em evitar que o próprio ficasse doente, mas não impediam que ele passasse a doença aos outros. E, portanto, surgiu o argumento de que vacinando as crianças – por serem responsáveis pela difusão da doença – se controlava a difusão… Agora dizem: “bom, de facto, quer dizer, isto não foi testado“. Neste momento, a lógica das vacinas é a de proteger o próprio. Eu tomo a vacina contra a cólera para não apanhar cólera, se for a um país onde a cólera existe. Esta é a lógica global das vacinas, com pequeninas excepções, como sucede com a da rubéola, por exemplo. Ora, se a doença nas crianças não era um problema grave, então qual era a lógica de as vacinar? “Ah, é para não contagiar“, diziam. Mas, então, afinal o que se viu é que a vacina não impedia o contágio. É preciso que nos falem com verdade. Como se costuma dizer, não nos atirem areia para os olhos.
O Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos tem reunido e falado sobre estas questões, ou não?
Vai desculpar, mas, enfim, esses assuntos internos… Os Colégios de especialidade são órgãos consultivos da direcção da Ordem dos Médicos. E como tal, sempre que os colégios são confrontados com alguma situação, ou por solicitação de corpos directivos da Ordem, ou porque se deparam com alguma situação de preocupação especial, elaboram documentos internos que submetem ao Conselho Nacional e ao bastonário. E depois cabe ao Conselho Nacional apreciá-los, e convocá-los ou não. As agendas de trabalho dos colégios são assuntos que vão decorrendo das condições que existem, mas são submetidas internamente à direcção.
Independentemente de querer falar sobre isso, pode-me dizer se sente que, antes da pandemia, havia maior liberdade de debate e de discussão sobre questões de saúde pública? Tanto no seio da Ordem dos Médicos como fora?
Havia seguramente menos confrontação, porque pisávamos todos um terreno mais conhecido do que esta situação [da pandemia] que, de repente, saiu completamente do controlo. A Ordem dos Médicos provavelmente precisará – na sua renovação, e os seus corpos vão ser renovados muito brevemente – de analisar a transparência do funcionamento. E uma gestão transparente de documentação. Todos os colégios e os órgãos técnicos da Ordem submetem determinados documentos à direcção, e depois cabe à direcção, como lhe disse, aprová-los ou não. E, enfim, gerir as agendas conforme entende que o deve fazer. Mas sempre houve situações em que uns pensavam de uma maneira e outros pensavam de outra. Acontecem seguramente situações em que a opinião desta especialidade é num determinado sentido e a opinião de outra especialidade é num sentido diferente. Por exemplo, a questão da criação da Medicina de Urgência é um assunto que não é pacífico. Os maiores colégios dentro da Ordem dos Médicos têm uma opinião diferente da maioria dos outros colégios.
Hoje pressente-se que há uma espécie de veto de gaveta, que determinado tipo de pareceres chegam ao bastonário e não vão ao Conselho Geral. Isso também aconteceu com os outros bastonários?
Não sei dizer. Eu só conheço a minha “paróquia” [Colégio de Pediatria]. Não tenho uma visão global para ter uma opinião informada.
Mas houve pareceres do Colégio de Pediatria que nunca foram desengavetados?
Repare, há numerosas situações com as quais a Ordem dos Médicos lida no dia-a-dia, onde o ponto de vista de determinada especialidade pode colidir com o ponto de vista de outra especialidade. Por exemplo, em relação à criação de algumas áreas de subespecialidade. Portanto, o conhecimento médico vai evoluindo; costuma dizer-se que um tipo começa por saber quase nada sobre quase tudo, e depois vai sabendo cada vez mais sobre cada vez menos, até que um dia sabe quase tudo sobre quase nada. E o conhecimento médico tem muito disso. Há áreas em que a tecnologia de diagnóstico, de terapêutica, da fisiopatologia, avançou com tal rapidez, e com tal profundidade, que é impossível dominar todos os assuntos. No caso da pediatria é um pouco como a Medicina Interna das crianças. Toda a gente compreende que se um tipo está doente do coração, tem um cardiologista; se está doente da “tripa“ tem um gastroenterologista, enfim; e por aí adiante. A pediatria era vista como a especialidade dos leitinhos e das papinhas.
E não é…
Ora, não é. É uma medicina interna do grupo etário com uma diferenciação extrema em numerosos domínios. E por isso faz sentido, do nosso ponto de vista, que haja médicos que se dedicam mais à nefrologia ou à oncologia pediátricas porque é diferente. E por isso nós defendemos que haja subespecialidades em determinadas áreas em que se justifica. E isto colide com o ponto de vista de colegas da especialidade paralela de adultos, que acham que eles é que vão a todas. E, por exemplo, a criação da subespecialidade de alergologia pediátrica é uma situação de conflito extremo, que chegou até aos tribunais! Há anos criou-se um ciclo de estudos especiais para alergologia pediátrica – portanto para pediatras que se quisessem dedicar-se especificamente a isso e que durante dois anos se dispusessem a trabalhar especificamente nessa formação –, e o Colégio de Alergologia dos adultos tentou impugnar em tribunal. Portanto, há interesses que são contraditórios mesmo no interior da Ordem dos Médicos. E pelos motivos que bem conhece, e não precisa que seja eu a explicar-lhe.
[risos] Bom, na verdade a própria Sociedade Portuguesa de Pediatria, é quase como uma…
É uma federação… e hoje é cada vez mais.
Com idade inferior a 18 anos, em Portugal temos um pouco menos de dois milhões de pessoas, portanto 20% da população. As complicações de saúde em idade pediátrica são assim tantas que justifique tanta subespecialização?
Sim, e numas áreas mais do que outras. Repare; há um número importante de doenças que começam cedo, cada vez mais cedo. Têm a ver com a exposição ambiental, que se vai modificando; mas também com factores genéticos. Se eu pegar no caso, por exemplo, da doença inflamatória do intestino – como a doença de Crohn ou a colite ulcerosa –, num adulto ou numa criança são quadros substancialmente diferentes. A componente genética é claramente mais importante quando a doença aparece aos cinco ou aos 10 anos do que quando aparece aos 40. E é preciso ter isto em devida ponderação. As crianças com doenças congénitas que precisam de transplante de medula óssea – e que são por imunodeficiências – precisam de uma medicação diferente da dada ao tipo que faz um transplante porque tem um cancro. Se não houver este conhecimento específico – e do tipo de medicamentos que se usam antes e depois em cada um destes casos –, os resultados naturalmente não são satisfatórios. Por exemplo, numa área que domino melhor: a colite ulcerosa num adulto geralmente é uma colite segmentar, de uma pequena porção do intestino grosso, enquanto a grande maioria das crianças com uma colite, esta envolve todo o intestino grosso. O risco cirúrgico e de complicações é diferente. Isto é verdade também para as outras áreas.
As crianças e os jovens estão agora menos saudáveis do que estavam há dez ou vinte anos atrás?
Não acho que estejam menos saudáveis. Há mais doenças com expressão precoce; há mais diagnóstico precoce. Portanto, há situações que há uns anos eram diagnosticadas ao fim de cinco ou seis anos de doença e que hoje são diagnosticadas muito mais cedo. Por isso, não tenho uma resposta clara sobre se há mais ou não. Em algumas doenças há seguramente mais, mas em relação a outras há mais conhecimento e, portanto, há uma identificação mais precoce, e há condições de tratamento mais eficazes.
É um bocado como aquela velha piada: não há pessoas saudáveis; só há pessoas mal diagnosticadas…
[risos] É isso…Um tipo são é um doente mal estudado… Deixe-me dar mais um exemplo também muito corrente: a doença celíaca. Os pediatras conhecem a doença celíaca há uma data de anos, e os médicos dos adultos começaram a conhecê-la há muito menos tempo, porque os doentes adultos nem sequer iam ao gastroenterologista. Andavam no reumatologista, porque tinham dores nas articulações; no hematologista, porque tinham anemia; na ginecologia, porque não conseguiam engravidar. Enfim, tinham manifestações que não apontavam para a origem real do problema e andavam noutras áreas. E como este, há vários outros exemplos que se podem citar.
Antigamente, se as crianças e adolescentes não estivessem mesmo doentes, não iam com regularidade ao pediatra.
Claro. Também o facto de haver um acompanhamento não só na doença, mas também na saúde, permite que alguns diagnósticos se façam mais precocemente e, portanto, que haja tratamentos mais eficazes. Em algumas doenças significa que se anda mais tempo a ser tratado, mas também se ganhou alguma qualidade de vida.
As alterações sociais e ambientais – por exemplo, a poluição ou agora haver mais população urbana do que rural – vieram criar uma maior panóplia de eventuais problemas de saúde na infância?
Sem dúvida nenhuma, e há estudos interessantíssimos sobre essas matérias… Há um colega canadiano que se dedica a estudar especificamente a epidemiologia da doença inflamatória do intestino, e que estuda grupos populacionais, tanto da população local canadiana como de grupos de imigrantes; e em que se mostra claramente que os imigrantes da África ou da Ásia quando emigram para o Canadá têm uma prevalência baixa da doença inflamatória intestinal; mas os seus filhos que nasceram no Canadá, e que comem o que comem os canadianos, têm um aumento dramático da prevalência desta doença. Quer dizer, têm a mesma genética, mas têm uma exposição diferente e o aumento da prevalência dessa doença é enorme. Garantidamente que a nossa exposição ao ambiente condiciona toda a nossa biologia. Ganhamos umas coisas, perdemos outras.
Se os agentes ambientais actuarem na fase de crescimento, isso é um factor de agravamento? Por exemplo, é indiferente, ou é pior, começar-se a fumar aos 15 anos ou começar-se a fumar aos 25 anos?
Uma pessoa cresce mais e mais depressa nos primeiros dois anos de vida do que no resto da vida. E, portanto, numa fase de crescimento rápido, se houver, no início da adolescência, alguma doença que influencie a capacidade de crescimento, obviamente que as consequências são muito mais graves. Graves em termos de crescimento.
Sim, mas ao fim de 20 anos a fumar, é indiferente ter começado aos 15 ou aos 25?
O efeito é cumulativo. Determinados estímulos, como por exemplo o tabaco, são irritantes das mucosas, do epitélio respiratório, e causam algum tipo de displasia e de alteração. Quanto mais o agredir, maior é o risco de haver uma linhagem celular que se afasta do que devia e levar a consequências mais graves. É pouco provável que alguém tenha cancro do pulmão por ter fumado um cigarro. Mas se fumar não sei quantos anos, enfim, o risco é real, para além de doenças vasculares e de outras complicações.
Há pouco estávamos a falar sobre a questão dos pais serem cada vez mais superprotectores. Vê que os jovens têm maiores riscos, sobretudo ao nível da adolescência, por exemplo no consumo de álcool ou de tabaco… Onde se deveria apostar mais para que as crianças e os adolescentes venham a tornar-se adultos mais saudáveis do que nós?
[risos] Se eu soubesse responder-lhe a isso em 30 segundos, tinha ganhado o Prémio Nobel… Bom seria que houvesse alguma resposta mágica para isso.
Mas quais deveriam ser as prioridades?
Aquilo que cada um de nós é depende da genética, dos traumas que se teve, dos amores e os desamores que se teve, com o sítio onde se trabalha, com os hábitos que se tem, com o que se come… Enfim, é uma equação tão complexa e com tantas variáveis que não há uma resposta simples. Em relação à acção possível dos pais, se estes forem superprotectores e tratarem o menino como um frasquinho de cheiro, e o menino vive infantilizado durante a vida toda, provavelmente vai ser um adulto inseguro, frágilzinho, que não é capaz de resolver problemas. Se os pais o deixarem ir para a varanda e fazer o que lhe apetecer, corre o risco de cair e partir a cabeça. Portanto, tem que haver senso, tem de haver uma intervenção multidisciplinar em muitos domínios. A questão, por exemplo, dos filmes e da televisão, da extrema violência: é evidente que se uma criança vir uma cena qualquer de violência sozinha, ou se um adulto estiver ao lado e lhe explicar que isto não se faz, e é um disparate porque causou mal a outras pessoas, ela vai aprendendo a contextualizar, vai aprendendo os valores que se devem prezar e o que é a transgressão. Portanto, é necessário que os pais sejam capazes de ajudar os filhos a crescer, mas compreendam que eles crescem. E que num belo dia têm que sair debaixo das saias dos pais.
Mas os filhos cada vez saem mais tarde da tutela dos pais…
A média nacional já ultrapassa os 30 anos [33,6 anos]… Há uns anos, na Escandinávia, aos 10 anos os pais diziam: “ó meu filho, vais lá para o alojamento do colégio e governas-te“. Gostar muito dos filhos é fantástico, mas convém perceber que eles têm de crescer e aprender a ter as suas próprias defesas e a resolver os seus próprios problemas. E, portanto, este equilíbrio, entre o que é prudente fazer e o que é disparatado e infantilizado, é muito delicado. Na pediatria, nós vivemos isso com alguma frequência nos doentes crónicos, quando os passamos para a consulta dos adultos. Se não tiver havido um processo de preparação progressiva – e não estou a falar ao nível dos médicos –, um dia entregamos os doentes aos médicos de adultos e os miúdos caem do céu aos trambolhões. Há anos, eu tinha uma consulta com um colega de adultos para os doentes que cresciam, e um dia ele telefonou-me a dizer que “já está aqui no consultório o fulano e eu lá fui, passei por ele e fiz-lhe uma festinha na cabeça“. Quer dizer, a um bebé de um metro e oitenta… E o meu colega olhou para ele, pasmado, e disse; “olhe que eu não lhe vou fazer isso“. Se não tivermos alguma cautela, os meninos passam para a consulta dos adultos e dizem: “então o meu papá não vem?“, e os pais ficam em pânico.
Nota agora um certo “atraso no desenvolvimento” dos jovens?
É uma infantilização, que é muito generosa num determinado momento, mas depois pode passar a ser um problema. E hoje a transição de cuidados é um assunto muito sério. Eu estive há pouco numa reunião a tratar disso, e vou estar em mais no próximo ano. Por um lado, nós vamos tentando que os adolescentes nessa fase sejam cada vez mais autónomos e que sejam eles a responder em vez de ser o papá ou a mamã; que sejam capazes de conhecer os seus problemas, os medicamentos que tomam… Mas os nossos colegas que tratam de adultos não estão, por vezes, preparados para os receber. E em algumas doenças nem sequer as conheciam, porque havia doenças que matavam na infância e, portanto, nunca chegavam aos dos adultos. Para algumas doenças metabólicas, há médicos de adultos que nunca tinham visto nenhuma.
Não seria então mais sensato que, em vez de haver essa transição para determinado tipo de doenças, o pediatra continuasse a acompanhar esses doentes na fase adulta?
Isso acontece. Há muitos anos, em 1988, fui pela primeira vez aos Estados Unidos a um congresso, e visitei um serviço que atendia jovens com doença digestiva, e perguntei à enfermeira com que idade é que eles faziam a transição para os adultos. E ela disse-me: “olhe, isso realmente é um problema; eles não querem ir e os médicos não os querem mandar, e por isso já combinámos que quando eles forem mais velhos que as enfermeiras têm de sair daqui“. Portanto, isto há 40 anos, não é? Este problema é muito antigo, existe em todos os sítios, e das duas, uma: ou cada um de nós, da mesma maneira que tem um bilhete de identidade, tem um médico que o acompanha até aos 80 ou 90 anos, ou então temos de definir que cada um trata ao seu nível de intervenção. De contrário, qualquer dia temos na sala de espera um bebé de seis meses e um velhinho de 80 ou 90 anos, ambos à espera de ser consultados pelo mesmo médico [risos].
[risos] Aí é que não havia mesmo pediatras… Já agora, há pediatras suficientes, ou estamos com o mesmo problema que noutras especialidades?
Aqui também a resposta não é simples. Serem suficientes ou não, depende daquilo que precisarmos. Eu tive um director de serviço nos anos 1980, que achava que as criancinhas deviam ter pediatra, tanto o filho do pedreiro como do juiz. E, portanto, os consultórios dos pediatras estavam cheios, não só de gente com muito dinheiro como de gente com menos dinheiro. Depois, com a implementação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), o único sítio onde se encontra um pediatra é dentro de um hospital. E, portanto, isso também explica porque é que os serviços de urgência estão atafulhados. Se acharmos que todas as crianças, pelo menos naquele período mais vulnerável, nos primeiros dois anos de vida, precisam de ter um médico com competências específicas de pediatria, talvez haja margem para mais alguns pediatras. Quem achar que os pediatras devem ficar à espera que alguém os procure nos hospitais ou nas clínicas particulares, provavelmente teremos pediatras que cheguem. O nosso problema não é tanto como em algumas especialidades – que têm carência de especialistas – é mais a sua distribuição e é a maneira como o SNS os atrai. Quando acharam, há uns anos, que o SNS devia ser gerido como uma qualquer empresa, a nível de ofertas e atractivos, façam, mas paguem.
Hoje é muito fácil arranjar uma consulta de pediatria no privado, mas no SNS deve ser muito mais complicado, não?
Não tenho também uma resposta muito clara. Depende da forma como cada serviço se organiza, mas julgo que não é muito complicado. Em algumas áreas, provavelmente mais do que noutras, mas desde que haja referenciações adequadas é fácil, mas há áreas em que realmente a resposta ainda é abaixo do que seria desejável.
Qualquer criança e jovem em Portugal tem hoje pediatra e médico de família?
Depende das zonas do país. Como sabe, há uma parte da população ainda a descoberto dos médicos de família. Há áreas onde os serviços são mais estruturados e têm maior capacidade de resposta. Noutras, infelizmente, menos.
Transcrição de Maria Afonso Peixoto
A primeira parte da entrevista pode ser lida aqui.
Presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, Jorge Amil Dias fala sobre o “vírus do momento”: o vírus sincicial respiratório (VSR), que causa uma das mais frequentes infecções nas crianças de tenra idade. Apesar disso, ganhou nas últimas semanas um mediatismo nunca visto. Em entrevista ao PÁGINA UM, Amil Dias faz notar a coincidência no incremento da “visibilidade” do VSR com o desenvolvimento de vacinas pela indústria farmacêutica. Nesta conversa, a primeira parte de uma longa entrevista, Jorge Amil Dias alerta para os efeitos secundários dos confinamentos nas crianças, durante a pandemia, dando o exemplo das hepatites. E diz mesmo que não podemos ter a ideia que conseguiremos erradicar os vírus e viver sem doenças.
Justifica-se o alarme social dos últimos dias sobre os internamentos de crianças por causa do vírus sincicial respiratório (VSR)?
O VSR é uma das várias infeções que todos os anos ocorrem sobretudo nos meses frios, e que afecta principalmente a população mais jovem. Os lactentes e as crianças pequenas, habitualmente. Isto acontece todos os anos. Mas não se consegue ter um perfil rigoroso de cada um dos agentes individuais que causam essas infeções respiratórias. Temos os laboratórios sentinela – uma rede que comunica os seus dados –, mas não existem em todos os hospitais. Por isso, não é certo sequer que todas as crianças com infecções, seja o VSR o agente claramente identificado, e nem é seguro que os laboratórios reportem todos os resultados.
Estamos a falar apenas de crianças internadas nos hospitais…
Sim, mesmo nos hospitais. A identificação de agentes infecciosos – e não só nas infecções respiratórias, também nas diarreias, por exemplo –, habitualmente só se faz quando há um registo epidemiológico sistemático, o que também não é o caso, ou se a gravidade da doença impõe algumas decisões terapêuticas, se será vírico, se será bacteriano. Nessas situações, os dados laboratoriais ajudam a tomar decisões.
Na base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar do SNS, observa-se que, antes da pandemia, tínhamos picos mensais, sobretudo no Inverno, de cerca de 1.800 internamentos de crianças com menos de 5 anos por doenças do aparelho respiratório. Consegue-se saber qual a prevalência do VSR?
Não, claramente não. Seria preciso que as 1.800 crianças tivessem sido submetidas a testes de diagnóstico, e que os laboratórios pesquisassem especificamente esse vírus. Quando se pede um exame bacteriológico, ou um exame virológico, não se pede um exame em abstracto. Se eu mandar fazer um exame numa situação de diarreia aguda para um laboratório, eu tenho de indicar quais os agentes que devem ser pesquisados. E, portanto, os laboratórios pesquisam por três, ou quatro, ou cinco agentes mais relevantes, que podem estar a causar doença naquele contexto. É necessário que a pesquisa seja activa para os vários agentes, e isso nem sempre é feito.
Portanto, somente num quadro clínico já mais grave ou persistente, ou que se agrave, é que se vai fazer esse tipo de pesquisa, certo?
Sim, e nos laboratórios ou nos serviços com recursos para o fazer. Porque nem todos os laboratórios o conseguem.
E todos os hospitais conseguem a identificação do VSR?
Podem não ter. Quer dizer, a tecnologia vai estando cada vez mais acessível, mas não existe de forma sistemática em todos os hospitais, e não é feita de maneira sistemática em todas as crianças admitidas.
Ou seja, não se consegue dizer se a prevalência do VSR é de 10%, de 20% ou de 30% dos internamentos em pediatria?
Não, e os laboratórios mais bem equipados e mais motivados para fazer essa pesquisa encontram-se nos serviços para onde as crianças vão sendo transferidas, conforme a gravidade das situações. Por isso, a amostragem nos laboratórios dos hospitais centrais sofre sempre de um enviesamento, é a ponta do icebergue, porque também têm doentes mais graves transferidos dos outros hospitais, enquanto estes mantêm os doentes da sua zona de residência com um quadro mais ligeiro.
Tem conhecimento de se estarem a realizar agora mais análises para detecção do VSR do que antes, e por isso há um maior número de casos?
É provável. Não tenho uma resposta informada sobre isso, mas provavelmente sim. A tecnologia de detecção vai estando cada vez mais acessível. Antes, há cinco ou seis anos, as técnicas de PCR eram difíceis de executar em alguns laboratórios, mas hoje há kits e uma simplificação de métodos que permite que esteja mais acessível a mais laboratórios.
Em todo o caso, mesmo com enviesamento, pode dizer-se que o VSR causa uma doença banal, ou é uma doença rara que nos deve preocupar?
Claramente, é uma doença banal, muito banal. Como todas as viroses de Inverno, é muito contagiosa; frequentemente contagiosa antes de ser sintomática, o que quer dizer que quando a criancinha tem febre, já contagiou os outros meninos todos do infantário. E, portanto, quando fica em casa, não é para não contagiar os outros, porque os outros já foram todos contagiados.
E também tem uma baixíssima letalidade, certo?
Tem. Mas há grupos de risco, e por isso existe um programa organizado para administrar a essas crianças, nomeadamente prematuros ou com cardiopatias congénitas, uma profilaxia com um medicamento especial [anticorpos monoclonais] para reduzir o risco de infecção. Nesses grupos de risco, a infecção pode ter um carácter mais agressivo e, eventualmente, até fatal. Esse programa para a VSR já existe há anos para esse grupo de risco específico. Não existe ainda, neste momento, uma imunização ou prevenção universal, mas também convém colocarmos as coisas no devido contexto. O ideal seria que ninguém ficasse doente, e todos gostávamos que nenhum de nós, nem os nossos filhos, ficasse doente, mas isso é simplesmente impossível. Se nós erradicássemos todos os micróbios que causam infecção, provavelmente nós também desaparecíamos. A nossa relação de há milhões de anos com o ambiente em que vivemos, e com os micróbios, foi estabelecendo equilíbrios do sistema imunitário, de convivência e de organização que nos permitiu evoluir. Quando desequilibramos essa relação, acontece o que vemos este ano: com o confinamento nestes últimos dois anos, de repente apareceram doenças que, em algumas crianças, tiveram uma gravidade excessiva. Foi o caso das hepatites.
Em todo o caso, durante o período da pandemia, o número de internamentos por doenças do aparelho respiratório em crianças desceu significativamente…
Claro, se as crianças ficaram em casa e não conviviam com as outras…
E também ao nível da mortalidade. De acordo com dados oficiais, desde Março de 2020 até Setembro de 2022, morreram 17 crianças com menos de 5 anos por doenças do aparelho respiratório. No período homólogo anterior, antes da pandemia, morreram 42 crianças. Portanto, a superprotecção ao SARS-CoV-2 fez diminuir também o risco de outras doenças do aparelho respiratório..
Certamente que sim, tendo havido menos exposição…
Então, aparentemente, todos estes confinamentos salvaram algumas vidas. Acha então que esse é o modelo que devia ser sempre usado agora e para todo o sempre? Ou seja, impomos o risco zero.
Não, porque tudo isto tem um preço nas crianças. O preço do confinamento foi terem morrido algumas crianças por hepatites fulminantes e outras a necessitarem de transplantes. E, eventualmente, um aumento de alergias. Enfim, tudo isto é um emaranhado tão complexo de relações e correlações – o sistema imunitário, a genética e o ambiente – que, quando manipulamos um dos factores, não sabemos muito bem para que lado é que a coisa vai desequilibrar. É um bocado como quem joga o Mikado. Por isso é que convém, neste caso especificamente do VSR, ter esta noção sensata. O VSR existe há imenso tempo, anda por cá e todos os anos afecta e infecta crianças. Este ano, não me parece que a situação seja particularmente diferente, porque o que aconteceu foi um pico mais precoce de ocorrência de infecções. Tem havido, em vários hospitais e serviços, internamentos de crianças com VSR.
Mas tornou-se este ano mais mediático…
Este ano, o interesse particular por esta situação, e por este agente específico, tem a ver com a indústria farmacêutica, que se mexeu, e que desenvolveu novas drogas. E, portanto, as coisas começam a ser mais visíveis, porque há quem queira dar-lhes visibilidade.
Sim, pelo menos a Pfizer, a GlaxoSmithKline e a Sanofi têm, ou estão a desenvolver, vacinas… Tínhamos uma doença apenas com um tratamento preventivo por anticorpos monoclonais, e de repente, abre-se um leque de possibilidades de vacinação, provavelmente também em massa. Acha que estas coisas estão relacionadas?
[risos] Cada um de nós terá a sua opinião sobre esse assunto, não é? Se o vírus não apareceu só agora; se ocorre como já ocorria nos outros anos; e se a realidade epidemiológica exacta não era bem conhecida, e agora é mais conhecida, porque o assunto está mais na crista da onda; e se a indústria se interessou e desenvolveu produtos que visam especificamente essa doença; enfim, é como diz o outro: se tem cornos, dá leite, e diz mú; não sei que bicho é que será, mas a gente imagina.
Qual deve ser o comportamento ou a postura das autoridades de saúde relativamente a esta situação, tendo em conta que teremos essas vacinas disponíveis? Vacinar quase 100 mil crianças em Portugal por ano, tendo em conta que são as que nascem durante esse período?
Há várias vertentes na resposta a essa questão. Obviamente que todos gostaríamos de evitar que todas as crianças adoecessem. E, particularmente, doenças infecciosas, se tivermos maneira de evitar. Todavia, se nós déssemos este ano a vacina contra o VSR a todas as crianças que nascem, as crianças não iam deixar de ter infecções respiratórias. Porque o vírus não vai desaparecer. Aquilo que aconteceria era aparecerem no próximo ano mais infecções por adenovírus, ou por vários outros agentes. A natureza vai-se ajustando, e se falta uns, aparecem outros. Portanto, é sempre correr atrás de uma quimera. Então, primeiro: não é possível impedir que as crianças tenham infecções respiratórias. Segundo: devemos implementar um programa de vacinação contra a infecção por VSR, uma vez que estas infecções ocorrem muitas vezes em bebés muito pequenos, que ainda não receberam sequer imunizações? Repare que as imunizações muito precoces são pouco eficazes, porque as crianças têm anticorpos durante os primeiros seis meses de vida de origem materna. Podia ser interessante, e não sei se a indústria irá fazê-lo, termos uma vacina para as grávidas, de forma a que os bebés nos primeiros meses de vida estivessem mais protegidos. Mas, mesmo que isso venha a existir, é natural que as autoridades de saúde façam uma análise, como qualquer empresa faz, de ver quanto é que se gasta e o que é que se ganha com isso. O dinheiro não é inesgotável. Se fôssemos gastar – e isto é um número completamente ao acaso, sem qualquer correspondência com a realidade – 5 milhões de euros, ou 10 ou 20, ou o que seja, na prevenção dessa infecção, é preciso ver o que é que se ganha com isso, porque esse dinheiro faltará para alguma outra coisa importante.
Deve fazer-se uma análise de custo-benefício…
E para isso é que os epidemiologistas e responsáveis pela saúde pública têm sempre de fazer as análises entre o que se ganha e o que deixa de se fazer em alternativa. E essa análise de custo-benefício que tem de ser feita para reduzir o risco. Deixe-me dar-lhe um exemplo: há anos, surgiu uma vacina contra a hepatite A. E aquilo que se verificou é que realmente a hepatite A diminuiu imenso; enfim, nuns países mais do que noutros. Mas fazendo uma análise depois mais minuciosa da evolução da hepatite A, o que se verificou é que aquela diminuição brutal não terá decorrido só da vacinação, mas de melhorias nos saneamentos e na higiene das casas e das cidades. Ora, ao melhorar os saneamentos, não só se melhorou a hepatite A, como uma data de outras situações. Portanto, tem sempre de se fazer uma análise sensata. É muito fácil desatar a berrar a dizer: “vamos agora vacinar as criancinhas todas contra o VSR”; e depois, daqui a um ano: “vamos vacinar as criancinhas todas contra o adenovírus”; e daqui a dois anos, é contra outra coisa qualquer… a biologia e a vida são um bocado mais complexas do que agarrar num único factor e achar que aquilo é que muda a História da Humanidade.
Então acha que aquele anúncio pelo médico Filipe Froes de que corremos o risco de sofrer uma pandemia tripla com covid-19, gripe e VSR, tem justificação de recearmos uma situação dessas?
Este ano provavelmente vamos ter uma maior incidência de infecções, que não ocorreram há dois anos ou o ano passado. Houve um grupo populacional, particularmente de crianças, que não desenvolveram naturalmente imunidade contra esses agentes, sim. É provável que, se não apanharam nos últimos dois anos, apanhem este ano. E, portanto, que haja uma coexistência de vários agentes que as criancinhas de três anos se calhar teriam apanhado no ano passado; e este ano apanham e talvez apanhem mais do que um. Não sou epidemiologista, não tenho dados específicos, mas faz sentido que, tendo havido uma economia de infecções pelo isolamento em que as pessoas estiveram, este ano possa haver algum excesso. E agora, o que vamos fazer? Andar todos de máscara? Lá vamos discutir outra vez se as crianças não ficam com perturbações de desenvolvimento, porque não conseguem ver a cara das pessoas… Salta-se da frigideira para a fogueira, não é?
Ou seja, veria com preocupação se à conta do VSR, agora se impusesse novamente máscaras nas escolas ou nos infantários?
Como lhe disse, a História da Humanidade desenvolveu-se ao longo de milhões de anos, e nós fomos ajustando-nos ao ambiente onde vivemos. E quando desequilibramos bruscamente esta interrelação com o ambiente, criamos riscos. Deixamos de ter os bois e as galinhas a viver por baixo da nossa casa; mas um dos preços que se paga por isso é que há muito mais alergias. Não só por isso, enfim, por vários outros factores. Mas, isto para dizer que há alguns riscos e custos a assumir. Não podemos correr o risco de pensar que qualquer dia pegamos numa ementa e perguntamos às pessoas que doenças é que querem ter. E pronto, dizemos-lhes como hão-de viver…
Aliás, como vê este tipo de política de saúde que é mais puxada pelo mediatismo em detrimento das prioridades reais? Ou seja, antes era o SARS-CoV-2, agora surge o VSR…
É um problema grave. Inegavelmente, em algumas circunstâncias, o mediatismo dos assuntos tem algum efeito. Todos se lembram que, há uns anos, havia uma enorme discussão sobre o tratamento da hepatite C, que era uma coisa caríssima e não podia ser. Até que um tipo foi para a Assembleia da República e deu dois berros ao ministro, e disse-lhe: “não me deixe morrer”. Pronto, a partir daí negociaram condições aceitáveis para iniciar o tratamento com enorme eficácia. Portanto, há momentos e situações em que as autoridades não respondem com a eficácia e a ginástica adequadas, e é preciso que a pressão da opinião pública influencie um pouco as coisas. Mas é desejável que sejam as autoridades competentes que antecipem os problemas e façam os estudos devidos, e expliquem de maneira clara como é que as coisas podem ser.
Mas há limites…
Sim. Eu podia dizer que só podem circular na rua automóveis de topo de gama que tivessem todos os sistemas de segurança possíveis. É evidente que isto iria diminuir imenso os acidentes e a gravidade, mas não está ao nosso alcance fazê-lo. Portanto, temos de gerir entre o desejável e o possível.