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  • Um desassossegado mundo de escuridão e de amor

    Um desassossegado mundo de escuridão e de amor

    Título

    O último minuto na vida de Saramago

    Autor

    MIGUEL REAL

    Editora (Edição)

    Companhia das Letras (Junho de 2023)

    Cotação

    20/20

    Recensão

    Quem somos? O que somos? Que sorte nos reserva o Destino? Para onde vamos, no fim, quando a noite cai sobre nós, e as folhas, amarelas e esmaecidas, se desprendem das árvores e atapetam o chão, anunciando-nos um percurso desconhecido?

    A epígrafe com que abre o romance – “O último instante da vida é o que revela o sentido e a razão de toda a existência.” (1993: 34) –, retirada da obra In Nomine Dei, remete, explicitamente, para o tema da morte. A morte que a todos ceifa, independentemente da vontade, das riquezas que havemos, ou da influência social que possuímos. 

    Muitas culturas veiculam a importância da passagem da alma para o outro lado. Segundo a tradição clássica pagã grega, as almas eram transportadas num barco que atravessava os rios Estige e Aqueronte, no reino de Hades, deus dos Infernos. Irmão do Sono (Hipnos) e da Morte (Thanatos), o velho timoneiro tinha por nome Caronte. Entre nós, enquanto tradição judaico-cristã, Gil Vicente mescla as crenças suprarreferidas, expondo, alegoricamente, o momento em que as personagens em cena acabam de expirar. No cais, as barcas do Anjo e do Diabo aguardam as almas recentemente falecidas para as conduzirem ao Além, de acordo com o seu comportamento e as atitudes reveladas enquanto seres viventes. Inúmeras outras crenças aludem a um julgamento pós-morte, em que as almas são obrigadas a confrontar-se com os seus erros ou com as suas boas ações. Entre os egípcios, Anúbis e Hórus tinham por incumbência levá-las para a Sala da Dupla Justiça, onde o supremo Osíris, Máat (deusa da verdade e da justiça) e quarenta e dois juízes julgavam as ações dos recém-falecidos (LAMAS 1972-73). 

    Paul Ricœur (t.II, 1984 : 145) chama a atenção para o romance hodierno, cuja voz narrativa tende a converter-se numa pluralidade de centros de consciência irredutíveis a um denominador comum. Numa oscilação contínua entre o delírio e a realidade, o romance de Miguel Real subverte, parodicamente, a circunstância de revisão íntima da existência. A personagem José Saramago visualiza, num fio de consciência ininterrupto, o ecrã que projeta a sua vida, o seu passado, mas numa idealização ante-mortem, i.e., revê a sua existência como se de uma projeção se tratasse, num dialogismo com a vida – a real (ainda que ficcionada) e a ficcionada (agora tornada real). 

    Na esteira da narração de um ser que, ante a iminência do fim, para apaziguar a alma das dores corpóreas da enfermidade que o mina, redige as lembranças que abarcam a sua duração existencial, como sucede em Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, o narrador deste romance memorialístico apresenta, in ultimas res, uma ótica especial – a sua. O discurso enunciativo – autodiegético – vai, assim, expondo e revelando ao leitor uma análise dicotómica das experiências vivenciadas: as que habitam o seu universo interior e as que têm ancoragem real e pulula(ra)m o (seu) universo exterior.

    O livro em foco expõe, como dissemos, o momento que antecede a morte. Uma morte concreta e particular. Não nos deparamos, todavia, com uma perspetiva irónica e humorística, como a veiculada em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Nem com visões místicas, excecionais, sem suporte real, como as recriadas nas telas de Hieronymus Bosch, Marc Chagall ou Paul Gauguin. Ao invés. Deparamos com (um)a recriação de um universo íntimo, que nos faz seguir o caminho dos sonhos – por mais empedernidos se mostrem –, aquele que nos acompanha do nascimento à morte, e revisita oitenta e sete anos de uma vida comprometida com a escrita literária e a denúncia da injustiça social.

    Logo na segunda página do livro, os pensamentos do protagonista demonstram a negrura que tinge os apressados segundos que antecedem a sua partida do mundo terreno. Na esteira de antigos filósofos, como Lucrécio, para um ser ateísta e descrente, o fim surge envolto num niilismo irredutível. Mais trágico que o apresentado na Bíblia, o livro dos livros, que anuncia a morte, a moldura do nada – o pó a que retornamos. Porque os humanos são seres-para-a-morte, como sublinha o filósofo Martin Heiddeger : “a morte é isto, um túnel de forro preto que envolve o meu corpo, acolchoando-o” (2023: 14), lemos no enunciado que descortina o pensamento de Saramago.

    Perante o relativismo aristotélico que albergava a noção de verosímil como categoria estética e convencional, o lugar da literatura revela-se, na contemporaneidade, como um hipotético discurso de “verdade” ou de “realidade autenticamente real” (YVANCOS 1993: 65) . Obra caleidoscópica, o romance em foco apresenta em revista a vida de Saramago, em que, sob a pena de Miguel Real, o escritor galardoado com o Prémio Nobel da Literatura reflete (sobre) o seu último minuto de vida – a vida (re)criada que se contempla ao espelho da vida real. O autor deste romance-memória obriga-nos a saltitar pelas recordações e a invadir o(s) pensamento(s) da personagem: José Saramago criança – serralheiro – empregado de escritório – editor – tradutor – jornalista – militante do PCP – escritor. E homem apaixonado.

    Está dado o mote para a construção de uma diegese que denota uma investigação aturada, minuciosa, repleta de elementos que mesclam vida e arte – a vida de José Saramago e a arte de Miguel Real refletindo e igualando a de Saramago. De facto, o autor deste romance entretece com palavras a riqueza das pequenas memórias – afinal, tão incomensuráveis – albergadas no coração de Saramago. Numa focalização interna, o discurso evidencia o pensamento, os sonhos e o engenho do escritor agonizante. A trama narrativa, entrelaçada num dialogismo inextrincável, sustenta a relação diádica José Saramago-Miguel Real, num jogo de escrita que patenteia a arte literária do autor em destaque e a de Miguel Real, que imita – numa extraordinária perfeição – a poética saramaguiana. Não obstante a mestria literária evidenciada na e pela criatividade da pena de Miguel Real, e em termos estilístico-formais, o livro impressiona, ainda, pela diversidade de temáticas: as memórias infantis de uma vida pobre e esforçada em Azinhaga, no Ribatejo. As questões ideológicas e políticas vivenciadas por Saramago. As ideias por que lutava. As recordações felizes associadas a Lanzarote. 

    Um dos elementos fulcrais na construção da narrativa diegética remete para o vínculo que une José Saramago e Pilar del Río, a esposa dedicada do autor moribundo, cujo nome próprio evoca o seu grande pilar, num percurso afetivo calcorreado por ambos: “os lábios da Pilar tocam os meus, a minha consciência reorganiza-se, ordena-se e emerge a ideia, aquela ideia nova sustentáculo dos meus romances” (2023: 155). É, indiscutivelmente, um percurso de sólido companheirismo. Um percurso alicerçado no e pelo amor. Ciente dessa proximidade, e sensível a essa teia de amor edificada ao longo dos anos, o autor do romance amalgama criador e criatura(s), num claro jogo intertextual: a afeição de Blimunda Sete-Luas e Baltasar Sete-Sóis traduz(-se), afinal, (n)a inabalável relação amorosa de José Saramago e Pilar del Río. A simbiose que o romancista Miguel Real edifica e constrói entre Blimunda e Pilar encontra-se magistralmente concebida. Trata-se, pois, de um encontro mais-que-feliz: “sinto a fragrância do perfume da Pilar” (2023: 14); “esboço o último sorriso da minha vida, desejo tranquilizá-la, à Pilar, ela percebe, afaga-me o rosto com mão de Blimunda-Madalena-Mulher do Médico” (2023: 154). 

    Tudo isto surge configurado no livro de Miguel Real que agora vem a lume. Porque o último minuto de vida de cada ser, o seu estado de alma, influencia a passagem para o Além, Pilar deseja que o esposo-romancista-lutador morra como viveu: desassossegado, protestando contra “um mundo de escuridão” (2023: 157). O tempo que, impiedosamente, urge na vida de Saramago – o último minuto –, afagado pelo amor de Pilar del Río, determina a sua partida, e parece-nos ecoar, numa convocação tímida e em surdina, as longínquas palavras de sua avó. Não obstante as agruras dos dias e do trabalho árduo – o mundo de escuridão que a memória do neto evoca –, a velhinha ribatejana enaltecia a existência com a ingenuidade dos simples que veem aproximar-se a hora da caminhada em direção ao éter florido: “O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer” (in Pequenas Memórias, 2006: 120). 

    Talvez por influência sua, ou devido à arte demiúrgica de Miguel Real, no preciso momento em que a alma – ou a vontade –, se desprendeu do corpo de Saramago-Sete-Sóis, não se evolou para o céu, nem subiu para as estrelas, porque à terra pertencia, e a Pilar-Sete-Luas

  • O meu nome é Mulher, ontem e hoje

    O meu nome é Mulher, ontem e hoje

    Título

    Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro

    Autora

    SUSANA MOREIRA MARQUES

    Editora (Edição)

    Companhia das Letras (Abril de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Susana Moreira Marques já me tinha, agradavelmente, surpreendido com o seu livro: Agora e na hora da nossa morte.

    Aqui o relato é outro, mas igualmente envolvente e emocional. 

    De Maio de 1948 a Maio de 1950, foi publicado em fascículos, para fugir à censura, o livro As mulheres do meu país, de Maria Lamas. É uma obra considerada um marco monumental do jornalismo que levou a autora a percorrer o país e a contactar mulheres de todos os extratos sociais dando a conhecer aos seus leitores a vida das portuguesas, sobretudo as das zonas rurais, nos anos 40.

    Confrontada com a indiferença do Governo em relação à condição feminina em Portugal, Maria Lamas respondeu que “iria observar como vivem as mulheres portuguesas e confirmar se os seus problemas estão realmente resolvidos” e “imagina que pode ganhar algum dinheiro, imagina que pode provar que as mulheres não estão protegidas pelo país fora como o Governo dizia que estavam, talvez imagine mesmo que pode ajudar à mudança, ainda que não seja claro que aspeto terá essa mudança para as mulheres.”

    Foi assim que decidiu empreender a grande viagem por um Portugal ditatorial, subdesenvolvido e analfabeto. Encontrou miséria, ignorância, superstição, obscurantismo, falta de condições básicas de higiene e de salubridade e falta quase total de cuidados médicos.

    Viajou de autocarro, de carro, de carroça, a pé, de burro, subiu e desceu montes e vales, falou com centenas de pessoas, tirou centenas de fotografias, opinou, interpelou, confrontou, foi mais fundo e muitas vezes comoveu-se e entristeceu-se e quase sempre se revoltou.

    Relatou com realismo a vida das operárias, das intelectuais e das artistas. Fez um retrato pungente que ainda hoje nos impressiona pela magnitude e pela minúcia.

    Em 2022, setenta anos depois, Marta Pessoa, realizadora de cinema, aborda o processo de escrita deste livro, recorrendo aos diários e ao espólio de Maria Lamas, e faz o documentário “Um nome para o que sou”.

    Pede a Susana Moreira Marques, jornalista e escritora, que se junte a ela na reflexão sobre a própria matéria e forma do livro e as leituras e significados que pode trazer, na atualidade.

    Diante da câmara, Susana Moreira Marques procura colocar-se no lugar de Maria Lamas e olhar para o lugar que as mulheres ocupavam antes e ocupam hoje num diálogo e num jogo de olhares. Há o olhar de Maria Lamas sobre as mulheres, o olhar da escritora sobre Maria Lamas e o livro, e ainda o olhar da realizadora (do filme) que se envolve e simultaneamente observa todo este processo.

    Há as imagens e as palavras, de antes e de hoje. “Quando cheguei ao fim da viagem, o que aconteceu foi que, depois de ter gravado a voz off do filme [que estreou em 2022], percebi que o texto tinha uma vida própria e havia muito material ainda, que tinha escrito ou pensado e não tinha entrado, e decidi que precisava de continuar a escrever”, revela a escritora e jornalista.

    E é esta Susana que parte, país fora e nos conta: “Em 1949, eu não existia. Em 1949, poucas pessoas sonhavam que eu viesse a existir. Eu: uma mulher que escreve, que ganha. Em 1949, poucas pessoas sonhavam que eu viesse a existir. Eu: uma mulher que escreve, que ganha o seu dinheiro, que não é casada, mas partilha a vida com alguém, que tem filhas pequenas e, em vez de ficar em casa a cuidar delas, viaja.” E diz-nos:

    “Fazes também, mentalmente, uma lista do que não levas:

    Não levas um marido.

    Não levas o pai.

    Não levas a autorização de um homem para viajar.

    Instruções e ordens alheias.

    Uma série de regras não escritas, mas bem estudadas.

    Não levas percursos interditos assinalados no mapa.

    Nem, no itinerário, paragens proibidas por questões de moral.

    Em 1949, a minha mãe está na barriga da minha avó.

    Em 1949, a minha avó tem 23 anos. Está casada. Tem um filho de um ano. Anda com cargas à cabeça sem se desequilibrar do rio para as fábricas.

    Sei que a minha avó não está entre essas mulheres com quem Maria Lamas acaba de ir falar, mas eu procuro-a.

    Susana Moreira, seguindo, pois, os passos de Maria Lamas também enche cadernos com notas sobre os lugares por onde passa, mas em vez de grandes descrições escreve pequenos apontamentos, frases curtas que nos deixam suspensos e que são pequenos versos de poesia.  

    Na maior parte dos lugares por onde passa repara que mudou quase tudo, “menos a luz”. Já não encontra crianças descalças, nem mulheres a empurrar carroças sempre a meio de um trabalho qualquer, carregando cestos, grandes fardos e cântaros à cabeça.

    Mas encontra outras mulheres (às vezes as mesmas, muitos anos depois) e vai fazendo a ponte entre uma mulher que não aparece no relato de Maria Lamas, a sua própria avó, e a sua própria filha que, ainda criança, a acompanha na contemplação desses imagens antigas. Susana Moreira Marques define-se como uma “mulher à janela” e “alguém que escuta”. É uma mulher que se surpreende e é nesse deixar-se surpreender que começa a sua viagem:

    “Unes pontos no mapa. Observas o desenho. Perguntas se é isso o país. Levas cadernos, canetas, câmaras, instrumentos digitais ou analógicos, mas sempre com a mesma função de registar o que se vive. Levas também um livro. Levas o livro como se fosse um guia de viagem, mas um guia que poderia servir para muitas outras viagens para o resto da vida, oferecendo várias possibilidades e não um só percurso. Leva-lo como se leva uma bíblia, para ter perto da cama quando se descansa, à mão em momentos de grandes dúvidas e receios. Leva-lo como um manual que torna mais fácil a compreensão da vida prática que tem sempre que ser desvendada. Ou como se fosse um volume esotérico, um instrumento mágico, que dará acesso ao que há muito está desaparecido. “

    E é uma viagem enternecedora e que nos ajuda a percebermos melhor o país que fomos e que, em muitos casos, continuamos a ser.