“Devemos trabalhar com o que é nosso porque só as coisas da
nossa terra é que estão dentro da nossa compreensão.”
João Paulo Borges Coelho
As duas sombras do rio
Que lindo. E que bom. Que sensação tão agradável, esta, de termos orgulho nos nossos dirigentes. Acabámos de saber que o Presidente da República vai visitar a Ucrânia em 2023[1]. Enfim, claro, eu sei. Eu sei que este é um daqueles gestos relativamente fáceis de executar, e muito provavelmente também fáceis de programar para serem vistosos[2]. Mas que se lixe. A malta precisa. Pão e circo. A crise vai dura. Para todos os efeitos, estes gestos são tão bonitos, e vamos lá, por muito que possam ser demagógicos,[3] na verdade, na verdade temos de admitir que são também, antes de tudo o mais, tão indiscutivelmente corajosos que não é qualquer um que tem envergadura para eles[4]. É perante gestos destes que esperamos um eclipse momentâneo diante da vitória da Argentina no Campeonato do Mundo[5], e até um novo pico para a moral do esfalfadérrimo dirigente das Nações Unidas[6]. Mas, se o nosso PR quer visitar a médio prazo resistentes e heróis – não vai visitar já as nossas Urgências Hospitalares porquê? Eu sei que já falei nisso antes, mas entretanto o pesadelo não desapareceu. E há hospitais que nem Urgências têm. Sempre gostava de saber para onde é que os Bombeiros da região levam aquelas macas que estão sempre, sempre, sempre, sempre a chegar[7]. Enquanto houver Bombeiros, não é[8]? Senhor Presidente?…
… Falei-vos de formas de acudir aos pacientes que não foram, como é evidente, nem da escolha nem da responsabilidade do pessoal hospitalar que as executa. Percebia-se muito bem pelo tom das dezenas de mensagens e perguntas que os leitores me mandaram que quase ninguém acreditou em mim. Ou estava a gozar, ou estava a inventar, ou pronto, para efeitos de encorajar à leitura estava a recorrer indecentemente a tudo quanto era figura de estilo excessiva. E claro, estava a falar de mim. Aquilo foi um fait-divers. Não aconteceu a mais ninguém.
Mas sabem uma coisa?, a minha vida é minha e eu não sinto nenhuma espécie de interesse em andar para aqui a partilhá-la com centenas de pessoas que não conheço. E, se não gosto de falar da minha vida, ainda gosto menos de falar das minhas doenças. Só me faltava agora começar a despedir-me de toda a gente com o fatídico “então boas melhoras”. Não, eu só falo destas experiências quando percebo que elas estão a estender-se aos portugueses em geral. E ali, nas Urgências de Évora, onde ficávamos semanas a fio nas nossas macas à falta de camas nas enfermarias, os portugueses não eram só os que estavam doentes, como nós. Eram também os nossos cuidadores.
Os médicos, enfermeiros e auxiliares faziam o seu trabalho com muito carinho. Mas debatiam-se com uma tal falta de meios, aquilo ali era tudo tão extremo, que todos os dias tinham de recorrer a uma corda feita de lençóis cortados em tiras para amarrar as mãos de uma senhora à maca. Era para a protegerem de si própria. Senão, ela arrancava a algália, tirava a fralda, coçava-se até fazer sangue, desaparecia – e não podia estar sempre alguém ali ao seu lado.
Portanto, eles mantinham a máquina a funcionar com o que tinham à mão e sabiam usar.
Pelo menos com uma senhora.
Chegava a ser com duas ou três.
No fim disto tudo, os turnos eram muito lentos. E ficavam muitas pessoas a dormir em hotéis. Quando se passam dez dias numa Urgência, ouvir os telefonemas dos outros transforma-se muito depressa numa rotina. E admirar a sua dedicação também. Desculpem, mas eu vim de lá a admirá-los, mesmo.
E a considerar que mereciam ser condecorados pelo PR, seriamente.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Reparem que eu escrevi “vai visitar”, e nunca na vida “tenciona visitar”. Já ninguém duvida da seriedade do PR quando ele nos transmite as suas intenções.
[2] Reparem que, mesmo assim, nunca escrevi “demagógicos”. É evidente que o nosso PR já há muito que conquistou o nosso respeito.
[3] Pronto, lá saiu o palavrão. Para esta frase fazer sentido, tinha mesmo que sair.
[5] Vamos lá ver, eu gosto imenso de bola, e o Campeonato do Mundo é pura adrenalina. Mas sobrelotar as notícias com a vitória da Argentina – porquê? Temos alguma ligação especial com a Argentina que eu não esteja a ver, na minha imensa ignorância? Esta vitória é bastante mais simpática do que a alternativa de ter ganho a França, mas, insista-se: a Argentina é um país com o qual não temos nenhuma relação de proximidade que justifique tanta berraria portuguesa. E está bem que todos os directores de informação têm necessidade de encher os chouriços dos seus canais, mas neste momento o Mundo está cheio de notícias grosseiras que se vêem muito bem, e reparem que ainda nem o Eduardo Cabrita nem a mãe da pequena Jessica, dependendo do gosto de quem está a ler-me, começaram sequer a ser adequadamente fustigados na praça pública.
[6] António, vá lá. Então? É preciso repetir-lhe que não está sozinho? Não está, mesmo. Nenhum de nós gosta do Putin. É uma praga do Egipto ainda pior do que o Trump, nenhum deles há de ir embora tão cedo, e na realidade ninguém sabe o que é que aconteceu às Pussy Riot. Vamos lá, homem. Lidere-nos. Peitaça para fora.
[7] Estão mesmo. É um sufoco. Vamos concentrar-nos em resolver este dilema, ou quê? Somos ou não somos uma Nação?
[8] Foram os Bombeiros que arrombaram a minha porta e me levaram já inconsciente para o Hospital de Évora. Se o Governo, na sua total frieza de maioria absoluta, escolher mesmo começar a deixar de financiá-los, quem é que vai acudir às pessoas como eu?
“Jesus Maria Corcovan era uma vereda que ia dar ao humanitarismo. Tentava aliviar o sofrimento, procurava mitigar a dor, compartilhava a felicidade. Não existia nenhum Jesus Maria endurecido, ou com pensamentos negros. O seu coração estava sempre disponível para quem dele quisesse fazer uso. A sua energia e o seu engenho estavam abertos a todos os que, nestes dons, fossem menos ricos do que ele.”
John Steinbeck
Tortilla Flat
Pois então, ora muito bem.
Sendo a realidade aquele monstro incontornável que mais cedo ou mais tarde nos apanha a todos nas curvas, também eu acabo de passar pela experiência sui generis de já estar extremamente doente em casa, acabar por ser socorrida pelos bombeiros, e depois ficar a receber o tratamento para a minha colite em cima de uma maca, nas Urgências de um grande hospital, durante os oito dias consecutivos que contribuiram para instalar a minha pneumonia. E atenção, nem imaginam a quantidade de velhinhas como eu que para ali estavam. Exactamente como eu, reitere-se: de batinha aberta atrás e cabelo empastado, de fraldinha e algália, algumas de nós em prantos e outras de nós em brados, todas nós com a nossa dignidade a esquivar-se para cada vez mais longe.
Agora, eu sei que esta descrição confere com todos os horrores que nos contam a propósito do Sistema Nacional de Saúde, mas mete-se-me pelos olhos dentro que seria criminoso deixar a descrição ficar por aqui depois de ter sido pessoalmente chamada a fazer parte integrante de um pesadelo desta envergadura.
Acontece que todas as ladainhas das desgraças da Saúde, tantas vezes recitadas aos ouvidos cansados dos Portugueses, têm um outro lado da moeda, e é absolutamente inacreditável que ainda ninguém tenha dito uma palavra a seu respeito. Porque, desse lado da moeda, de noite e de dia, estão a compaixão, o carinho, a paciência, de todo aquele pessoal encarregue de zelar por nós: auxiliares, enfermeiros, medicozinhos fresquinhos acabadinhos de sair do curso, e ainda maqueiros, bombeiros, meninos sangradeiros – toda aquela gente nos tratava como Jesus tratou os pobres, os pescadores, e as prostitutas. Toda aquela gente levava muito a sério o seu Juramento Hipocrático. Toda aquela gente, por muito que se estafasse, estava impecavelmente organizada para nos acudir. E, depois de percebermos isso, já podíamos respirar fundo e entregar-nos nas suas mãos. Com um alívio imenso, pelo menos do tamanho das nossas dores e maleitas…
… Não estou a brincar, nem a inventar, nem a exagerar. Fiz mesmo o número das velhinhas, 100% by the book: passei tanto tempo naquela minha maca que deu para perceber que as histórias das outras senhoras mal se distinguiam da minha.
E então a narrativa é mais ou menos assim, no que diz respeito às partes que eu recordo[1]:
Comecei por ficar fechada em casa porque seria de loucos ir às Urgências por causa de uma mera intoxicação alimentar. Depois comecei a deixar cair tudo das mãos, e a espalhar cacos por todos os meus cantos. Depois comecei a tropeçar, e depois comecei mesmo a cair. Depois comecei a ter períodos de inconsciência, ao que consta cada vez mais prolongados.
E depois, por fim, um dos meus melhores amigos, a quem eu nunca mais atendia o telefone, assustou-se. Não esteve para mais meias medidas, e chamou logo os bombeiros. Os bombeiros, profissionais de salvar velhinhas, arrombaram-me logo a porta e vieram em meu socorro.
Ainda me lembro de estar a vê-los subir a escada.
E, depois disto, não me lembro de mais coisíssima nenhuma.
Entrei inconsciente no Hospital de Évora, recuperei os sentidos já em cima da tal maca, demorei um bocado a perceber onde estava e a lembrar-me do nome da cidade onde vivo, ainda meti água da primeira vez que me perguntaram a idade[2], e a seguir começaram a passar dias e dias e dias, todos iguais e todos perfeitamente amparados pela tenacidade e pela dedicação das equipas que se iam sucedendo à cabeça do serviço.
Todos os dias vinha sempre uma dupla de uma auxiliar com uma enfermeira, de peso e altura muito bem calibrados, para evitar desequilíbrios, fazer-nos os chamados posicionamentos. Ou seja, nós torcemo-nos todas a tentar dormir, e a dupla repõe-nos direitinhas dentro dos confins complicados da nossa maca, para evitar mais dores musculares. E vêm ter connosco sempre de cara alegre, embora muitas vezes o nosso peso bruto as obrigue a verdadeiros trabalhos forçados. Mais: vêm sempre a tratar-nos por querida, vizinha, meu amor, princesa, e outra coisas assim. Coisas mesmo boas de ouvir no caos aparente de uma Urgência.
Todos os dias vinha sempre um médico muito querido fazer-nos o update da nossa situação clínica com voz de veludo, e explicar-nos, uma vez mais, que só estávamos ainda ali nas Urgências porque não existia, mesmo, qualquer espécie de vaga na Medicina Interna. Isto está assim em todos os hospitais. Não há mais espaço, e não há mais pessoas. Mas os portugueses, abalados pela crise da COVID, e logo a seguir pela crise da Guerra da Ucrânia, andam cada vez mais deprimidos. O que quer dizer que ficam cada vez mais doentes. Mas agora não se preocupe, e tente mesmo descansar.
Todos os dias íamos fazer um ou outro exame, e depois o especialista punha-nos a mão no braço com muito cuidado, e dizia, com toda a sinceridade, então as suas melhoras.
Todos os dias alguém nos levava até à casa de banho, a empurrar a maca com imenso jeitinho. E, depois de lá estarmos dentro, a pessoa lavava-nos e dava-nos um banho. Tal e qual como a Madre Teresa quando lavava as chagas dos párias de Mumbay. Este é o corpo de Cristo.
Todos os dias aparecia por lá o maqueiro Ricardo, que nos brindava com piadas eruditas, tipo, confie em mim que eu sempre fui um homem muito à frente e até tirei logo a carta de condução em 1652 que era para ficar despachado.
O que a Comunicação Social nos diz é uma tanga descarada ao pior estilo tuga da esperteza saloia.
É muito fácil apupar, denegrir, e deitar abaixo tudo o que ainda estiver em pé. Entretanto, em absoluto anonimato e subjugado por faltas de condições orçamentais que o ultrapassam, o Serviço Nacional de Saúde continua a funcionar com a maior abnegação deste mundo. Num País nada espartano e muito pouco dado a heróis, estas pessoas que acumulam horas, e dormem em hotéis para conseguirem acudir-nos a todos por igual, são a verdadeira definição de tudo quanto é estóico e de tudo quanto é heróico.
Então e o nosso Presidente, que gosta tanto de condecorar os seus súbditos? Nem sequer lhes dá uma medalha?
Isto é tudo uma vergonha, uma vergonha, uma verdadeira vergonha![3]
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Disseram-me que houve várias outras, mas a questão parece-me despicienda. Foram todas partes gagas de velhinha.
[2] De certeza que foi por causa do romance que acabei agora mesmo de escrever. A principal protagonista tem 53 anos. Foi isso mesmo que eu comecei por dizer ao medicozinho Emanuel Noivo, quando, na realidade, estou quase a fazer 63. Em troca da gaffe, ele mediu-me a tensão e a temperatura. Sem comentários. Não se pergunta a idade às senhoras.
[3] Estava sempre a repetir a Dona Isilda, que passou cinco dias na maca ao lado da minha.
Nota: O título da crónica “Este é o corpo de Cristo” remete para a máxima que os frades e freiras da Ordem dos Missionários da Caridade (criada por Madre Teresa de Calcutá, em 1950) repetem uns para os outros e para si próprios enquanto lavam os corpos esqueléticos, imundos, e lacerados dos Intocáveis.
“As hienas não merecem respeito algum e falam inglês com sotaques
que soam vagamente a nativos do Médio Oriente.”
Binyavanga Wainaina
Conselhos ao Jovem Escritor Africano
Não deixa de ser intrigante, isto das mentiras de uns longevos dirigentes socialistas um tanto ou quanto metidos a hienas. Com todo o devido respeito, note-se. Mas quer dizer, pois se formam grandes bandos, se organizam as suas manobras a coberto do escuro[1], se a gente as ouve rir sem conseguir vê-las, se se alimentam do trabalho que os outros fizeram[2], se nos enganam tão bem que nem sequer conseguimos distinguir os machos das fêmeas[3]…
…isto é assim: o que parece uma hiena costuma ser uma hiena.
Mas até as hienas assumem logo ali que metem nojo e passam à frente[4]: só mentem na imitação de escroto que caracteriza estas fêmeas e mais nenhumas, que é para deixarem bem claro que naqueles bandos são elas quem manda[5], e mais: são sempre elas as últimas a rir[6]...
… É verdade que, na nossa cultura, começámos por memorizar imensos preceitos, mínimos e sensatos, que nos permitissem conviver sem nos comermos vivos logo todos uns aos outros. É por isso que decorámos na escola[7] regras básicas tais como não matarás, ou não cobiçarás a mulher do próximo [8], e tal. Mas por favor, reparem neste detalhe: é certamente um bocado assustador não constar,nem ao menosnos Dez Mandamentos, nada que nos diga, com toda a clareza, não mentirás[9].
Eu, pelo menos, acho mesmo que é um bocado assustador.
Ou então podemos considerar que existiam nesse tempo certas atenuantes.
Se calhar, como na altura em que Moisés viu a sarça ardente existiam muito menos pessoas, com muitíssimo mais espaço para se manterem afastadas umas das outras, mentir não estava sequer na ordem do dia. Aliás, bem vistas as coisas, de que é que serve mentir, quando os herdeiros das supramencionadas regras básicas de convívio ameno passam quarenta anos às voltas no deserto,[10] e entretanto Deus os conforta com imensos milagres[11]?
Ou então, também pode ser que as pessoas ainda nem sequer estivessem conscientes das potencialidades aliciantes deste privilégio humano, certamente engendrado pelo fruto da Árvore da Sabedoria, uma vez que mais nenhum outro animal sabe mentir.
Enfim.
Aceitemos que ninguém sabe como foi que isto aconteceu – mas a verdade é que isto aconteceu mesmo. E, onde ainda em pleno século XX tínhamos excepções horrorosas de quem era fácil não gostar, como por exempplo o Estaline ou o Pol Pot, agora a excepção passou a ser a regra, e sabe esconder-se muito melhor.
A meio do século passado, o grande Churchil bem pode ter dito que a democracia é o pior sistema político que existe, à excepção de todos os outros. Este aforisma genial ainda nem fez cem anos, e já ninguém se lembra dele. Com a passagem dos milénios, uma classe profissional inteira especializou-se magistralmente na perfeição de mentir sem qualquer sinal visível de vergonha, e conseguiu chegar ao ponto de ganhar todas as eleições democráticas do mundo.
E aqui está o resultado que ninguém viu chegar a tempo de lhe pôr os travões a fundo.
Entramos no século XXI e já ninguém sabe quem era esse gajo, esse Churchill: em vez dele, temos antes o Trump, o Putin, o Kim Jong-un, o Xi Jinping, a COVID-19 a tornar tudo ainda mais suspeito – para não falar de uma data de sobas africanos tão ricos que até dói, ou de um enxame de chefes tribais do Médio Oriente de cujas mãos escorre o petróleo que move o mundo. E mais todo o ruído de fundo que nos rosna às canelas de dentro da grande destilaria de veneno vinda da internet. Todos eles nos mentem. A gente ouve-os, e sabe que eles estão a mentir. Mas em 2022 a verdade é esta, e é horrível: agora, já não podemos fazer nada.
O que nos traz de volta ao Primeiro Ministro a falar ao País pela televisão, sorrindo, fitando de frente a câmara, e garantindo a todos nós que em Outubro 99% dos reformados ia receber mais 50% da sua pensão.
Ficámos na parte em que eu, espertíssima, vi logo que o grande ilusionista estava outra vez a mentir: se já não eram todos os reformados mas apenas 99% , então de certeza que entretanto iam fazer-se para ali uns truques e os laissés pour compte[12] acabavam aí nos 50 ou 60%.
O que vale é que, de facto, já quase ninguém acredita nos políticos. Pelo menos, nenhuma pessoa com quem eu tenha falado aqui em Estremoz, e toda a gente com quem estive ao telefone para todos os quadrantes do País. Isto é horrível em si mesmo, mas é o que tem que ser: a única arma de defesa que ainda resta e é de graça: a gente não quer voltar a aleijar-se, e portanto a gente nem os ouve. Esqueçam os vossos mitos urbanos: os alentejanos são super-rápidos e ultra-espertos. Ó Clarinha, e logo a Clarinha que é tão inteligente. Então está-me a dizer a mim que ele disse isso? Pois com certeza, quando é só para dizer eles dizem todos muita coisa.
E depois eles ficam-se a rir, porque eles são como as hienas.
Não há nada que o povo de Estremoz não saiba há já muitos séculos[13].
Daí a quinze dias, misteriosamente, metade das pessoas que percebem profissionalmente de dinheiro, como por exemplo os contabilistas, ainda repetiam 50%. Mas, entretanto, já corria outro rumor, vindo sabe-se lá de onde, segundo o qual todos nós, fosse qual fosse a nossa pensão, íamos receber por igual 125 euros. Já ninguém percebia, mesmo, onde estava a verdade. E, sobretudo, nenhum de nós conseguia descobrir quando é que essa verdade entraria nas nossas contas.
E assim se passou todo o mês de Outubro, sem que nunca, mesmo nunca, a contar até dia 31, tivesse entrado fosse que ajuda do governo fosse nas finanças magras dos habitantes daqui do fundo da vaza[14].
E a parte mais espantosa? Pelo menos para mim, que ainda gostava de saber o que é que hei de fazer pela Lua[15]? É que as nossas hienas nem se deram ao trabalho de fazer para ali uns malabarismos que justificassem o incumprimento da promessa. Nada, não disseram nada. Limitaram-se a deixar chegar o dia 1 de Novembro. E pronto. Daqui a mais dois ou três dias já é Natal.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Palavra que consabidamente pode ter um número impressionante de segundas intenções – e nunca são boas.
[2] Mas vocês julgam o quê, que caçar herbíboros é um hobby? Perguntem ao chita, aquele felino lindíssimo que é o animal mais rápido do mundo, capaz de atingir 114 km/h no sprint final atrás da gazela. Assim que a apanha, a primeira coisa que faz é fugir com a presa nos dentes para um lugar seguro. Sabe perfeitamente que, se ficar ali uns minutinhos a mais que seja, vem logo de lá um bando enorme de hienas ridibundas, que…
[3] Força de expressão. Qualquer biólogo os distingue. O macho, coitadinho, é mais raro, é mais pequeno, tem o pêlo mais ralo, e o seu escroto é menos visível. O escroto das fêmeas é só um disfarce, mas vê-se muito bem.
[4] Claro, chatas e barulhentas, todas a falarem inglês com os seus sotaques do Médio Oriente como se quisessem obrigar-nos a ver a Al-Jazheera o dia inteiro, mas pronto: o que interessa é que não escondem que são hienas.
[5] Eu sei, dá uma péssima imagem do meu próprio género. Mas isto é biologia, não é política.
[6] Por acaso também há aquela canção do Jorge Palma que… ná, esqueçam. Coitado do Jorge. Cantava aquilo como se estivesse realmente apaixonado pelo seu tal de Anjo Mau.
[7] Eu estava num colégio de freiras, mas isto era assim em toda a Metrópole e em todas as Colónias: os Dez Mandamentos decoravam-se nas aulas de Moral e Religião Católica da primeira classe. E, nesse tempo, não havia cá modernices tipo cadeiras opcionais. QUANTAS VEZES É QUE EU TENHO QUE REPETIR QUE ISTO É UMA DITADURA EM GUERRA CONTRA OS COMUNISTAS DAS COLÓNIAS, SEUS PALERMAS?
[8] OK, OK, OK, eu também adoro citações por extenso, sei perfeitamente que, da mesma forma, não podemos cobiçar-lhe nem a casa, nem os servos, nem, sobretudo, e claro que esta é a minha preferida, nem o seu boi ou o seu jumento. O que, quando se é uma menina malcriada, dá logo vontade de perguntar às freiras se ao menos a gente pode cobiçar-lhe o cavalo. Depois entra-se na adolescência e perde-se a graça. Só nos ocorre aquele previsível “ó Irmã, mas então eu posso cobiçar os maridos das minhas próximas, certo?”
[9] Peço desculpa, mas Não prestarás falso testemunho contra o teu próximo é uma referência à mentira extremamente restritiva.
[10] Isto, ao menos, percebe-se logo que foi por culpa do Moisés. Está certo que falava com Deus, mas que diabo, era um gajo. Enquanto tal, de certeza que se recusou a perguntar o caminho fosse a quem fosse, porque é issoque todos os gajos fazem. E NINGUÉM que seja guiado por Deus demora quarenta anos para atravessar aquela faixazinha dispicienda de deserto que vai do Egipto à Palestina. Tenham dó.
[11] Estão a ver aqueles filmes todos de seu nome A BÍBLIA, antigos e modernos, cheios dos efeitos que cada época permite? O Mar Vermelho a abrir-se para o Povo Eleito e a fechar-se sobre as poderosas quadrigas dos Egípcios? O direito diário àquele famoso maná que vem do Céu e alimenta o corpo e a alma? Ora bolas, assim também eu.
[12] O País continua assim, e eu, da próxima vez, escrevo mesmo os damnés de la Terre. Ah! Adoro exibir alarvemente toda a minha inesgotável erudição.
[13] Incluindo que Olivença é nossa. Oiçam falar os amantes de arquivos que estudaram o apoio da cidade às tropas liberais: de repente, faz tudo sentido.
[14] Mais outra expressão de biólogo: aplica-se às tainhas, por exemplo. que se alimentam da porcaria toda que se junta no fundo das águas salobras. Mas depois são muito boas quando as fritam em vinagre, acreditem.
[15] “A gente já não sabe o que há de fazer pela Lua” é uma das minhas citações repentistas do Jorge Palma, utilizada, ali, mesmo a matar, na crónica anterior.
“O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente,
pelo que os grandes homens são quase sempre homens maus.”
Lord Dalberg-Acton
in THE RAMBLER, 1859
Ó Mãe, mas tu vais ficar zangada… Ó Mãe, mas não foi de propósito… Ó Mãe, mas eu gosto muito de ti… E, se eu os deixasse, os meus filhos continuariam nestes preliminares durante uns bons vinte minutos[1] antes de me confessarem a última grandessíssima porcaria que tinham cometido no caminho mínimo da escola para casa.[2] De maneira que eu cortava imediatamente a choraminguice com o meu já bem conhecido e deveras sonoro: Ó FILHOS! A ÚNICA COISA QUE A MÃE NÃO ACEITA QUE VOCÊS FAÇAM É MENTIR, PORQUE MENTIR É QUE METE MESMO NOJO! OK? E não os endoutrinei assim só por total falta de paciência para preliminares[3]. Foi mesmo porque há que horrorizar as criancinhas com o asco de mentir tão cedo quanto possível. Senão, elas vão mesmo mentir o mais que puderem, porque toda a gente que vêem na televisão ou está a mentir ou imita muito bem, o que é particularmente chato a partir do momento em que as pessoas inventam a democracia. Porque depois descobre-se, com grande horror, que não há ninguém neste mundo que minta mais do que os políticos. Sobretudo quando se apanham de posse do poder absoluto. E então… A gente já nem sabe o que há de fazer pela Lua[4]!…
… Este é um exemplo dessas mentiras que fez muita gente passar mal durante o mês de Outubro, portanto tenho a certeza de que não há pensionista que não se identifique. Pelo menos aqui em Estremoz, onde me fartei de fazer sondagens sobre o assunto a toda a gente com idades iguais ou superiores à minha. Uma vez mais, a história começa com António Costa a fazer o seu sorriso de proprietário da maioria absoluta. A gente percebe logo que vem lá bazuca.
Desta vez, o Primeiro-Ministro veio explicar à Nação, em directo e ao vivo no noticiário das 20, que sente no próprio peito a aflição que o povo português está a sentir por causa da perda do poder de compra resultante da guerra na Ucrânia. E que, tendo em conta essa aflição que não pára de crescer, como o seu governo bem gostaria, mas, na realidade, não consegue mesmo ajudar toda a gente[5], decidiu pelo menos ajudar os reformados. E portanto, já em Outubro, cada reformado vai receber mais 50% da sua pensão.
Eles são mesmo bons nisto. Conseguem fazer as pessoas deixar de pensar. As declarações de António Costa foram tão ambíguas que muitos reformados quase que dançaram em pontas, imaginando que iam viver substancialmente melhor daí a quinze dias[6]. Devemos ter sido tantos que o chefe dos necrófagos voltou ao noticiário logo no dia seguinte, compelido a explicar a todos estes analfabetos funcionais, a estes reformados como nós, que a sua generosidade, nunca vista, se aplicava exclusivamente ao mês de Outubro. Mas fiquem descansados, ó pobres mexilhões[7]: posso garantir-vos que pelo menos 99% dos reformados vai mesmo receber em Outubro os seus 50% adicionais.
Olhem. Eu, pelo menos, recomecei a pensar logo ali no acto.
“Olha que pena. Afinal o senhor até já está a preparar o caminho para uma justificaçãozinha burocrática da treta que vai transformar esses 1% aí nuns bons 50%. É mais forte do que eles, só pode ser: este político, tão experimentado e tão hábil, já está outra vez a mentir. Que tristeza. Vou mas é ignorar as notícias, mudar completamente de canal e de agulha, e ver ou um bom bocado de FAMILY GUY ou um bocado de THE BIG BANG THEORY ainda maior, que isto não é propriamente a melhor fase do campeonato para nos darmos ao luxo de ficar clinicamente deprimidos.”
Raios me partam, que sou mesmo ingénua.
Ali a imaginar que já tinha topado o golpe quando ainda nenhum de nós sabia nem da missa a metade.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] No mínimo. Quando jogávamos aos preliminares durante as viagens de carro eles chegavam a estar uma hora inteira nisto sem nunca se repetirem.
[2] O que não impede que tivessem cometido outra cinco minutos antes.
[3] Quer dizer, preliminares de filhos que estão com medo do castigo da Mãe, entenda-se.
[4] Citação do Jorge Palma, uma vez mais feita de cor. Ha!
[5] Porquê, mas porquê, mas porquê? É que ELES, esta parte, nunca explicam.
[6] Eu, por exemplo. A minha reforma nem chega a atingir o salário mínimo.
[7] Para quem já não conheça os provérbios portugueses: “Quando o mar bate na rocha quem se lixa é o mexilhão.”
“Torna-se cansativo deixar de poder acreditar na espontaneidade.”
António Cabrita
O mundo não tem pressa
Solo de saxofone.
Voz:
Jonas está agarrado ao seu saxofone/ A namorada deu-lhe com os pés pelo telefone/ E ele encontrou inspiração numa notícia de jornal/ Acerca de uma mulher que foi chamada a tribunal/ Por ter assassinado uma criança recém-nascida/ E o juiz era um homem que prezava muito a vida/ E a pena foi agravada por tudo se ter passado…
Três acordes de piano.
Voz:
DO LADO ERRADO DA NOITE...
… O que é que eu estou para aqui a fazer?
Pensei que fosse evidente. Estava a citar o Jorge Palma, não era? E estava a fazer a citação completamente de cor e salteado, porque foi isso mesmo que os outros senhores fizeram, e se eles podem eu também posso, porque também sou filha de Deus. Se a demagogia dos políticos já chegou ao ponto de andarem ao soco em público usando uns contra os outros as palavras de um homem que fugiu a salto para França no trilho por onde se escapava às garras do Antigo Regime, e que depois sobreviveu longos anos a cantar no metro, e que depois voltou a casa na euforia da Revolução mas ainda se passaram no mínimo três décadas até que as pessoas deixassem de considerá-lo um completo marginal…
… bem, deixem-me respirar, coitado do Jorge, que pouca vergonha…
… porque vocês viram, não viram? Ou fui só eu que vi? Aquela sessão inacreditavelmente penosa do Parlamento, em que tanto o nosso Primeiro como as bancadas da Oposição se desdobravam em mortais empranchados e flic-flacs à rectaguarda para começarem cada um dos seus discursos ocos com uma boa citação do Jorge Palma? Que horror. Era o António Costa, com aquele seu ar de pasha repimpado, todo confortável em cima da sua maioria absoluta que tem vindo a tornar-se cada vez mais desconfortável, a fechar qualquer coisa que não queria dizer nada com um sorridente…
“… e, citando o Jorge Palma, Enquanto houver ventos e mar/ A gente vai continuar…”
Para ser atacado pela bancada do PSD com um retumbante…
“… Ó Senhor Primeiro Ministro, se é para citar o Jorge Palma o senhor está éFrágil, está tão Frágil que já nem consegue ser ágil…[1]”
… seguido de qualquer outra coisa que também não queria dizer nada; para logo a seguir ser agredido por um deputado da direita que se apressou a bradar, sem sequer acrescentar a seguir mais qualquer coisa que não quisesse dizer nada…
“… e o Senhor Deputado escusa de fazer de conta que repudia as políticas do governo, porque, para citar o Jorge Palma, anda há imenso tempo a implorar-lhe Encosta-te a mim…”
… o que foi um desfecho verdadeiramente horrível, porque, de todas as grandes canções do Jorge Palma, este lean on me[2] em português é a única que pode considerar-se verdadeiramente foleira[3].
E é pena os Senhores Deputados irem todos para casa cedo, senão ainda poderíamos ter assistido a um encerramento operático, em que toda a gente, nas bancadas e na assistência, cantava em coro polifónico uma das verdadeiras grandes canções de Jorge Palma…
“… São sete da tarde e tá-se tudo a passar/ Uns andam em frente e outros querem virar…”
Uma vez mais, citado de cor.
Não se metam comigo no que toca a citar o Jorge Palma. Ao menos isso.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Citação, ainda por cima, neste caso feita de forma incorrecta para servir os propósitos dos oradores.
[2] Em português, “lean on me” traduz-se, literalmente, por “Encosta-te a mim”.
[3] Opinião que talvez seja só minha, mas esta crónica também é.
Agora já estou a receber pedidos de tudo quanto é desconhecido para explicar melhor porque é que é tão difícil ressuscitar um cérebro – ou, ao menos, por que é que um cérebro é um órgão de tal forma complicado que, depois de morto, já não voltamos a conseguir acordá-lo.
Há que ver que eu fiz o doutoramento em fertilização no mamífero, fiz o pós-doutoramento em clonagem no mamífero, e daí parti para Harvard para estudar História da Biologia sob a supervisão do genial Stephen Jay Gould. Até hoje, é sobretudo em História da Biologia, estreitamente associada à História das Ideias, que continuo a trabalhar. No que diz respeito ao cérebro, sei apenas todas as banalidades que todos os Profs que trabalham em Medicina, Biologia, Veterinária, ou assim, têm mesmo que saber para conseguirem dar aulas dignas desse nome e mais ainda – aulas animadas e interessantes. Portanto, explicar coisas destas às pessoas é para mim uma grande responsabilidade. Mas, pelo menos, tem desde já o mérito de confirmar a minha suspeita de sempre: as pessoas GOSTAM de saber as coisas, GOSTAM de entender o que está realmente em causa – desde que a gente faça o esforço de lhes falar numa linguagem que elas entendam…
… Bom. Antes de mais nada, e ao contrário da esmagadora maioria dos componentes do nosso organismo, já vamos ver que o cérebro é um órgão extremamente social. E isto acontece porque é feito de diferentes peças de um puzzle tramado. Enquanto os outros órgãos, incluindo o já tão falado coração, são constituídos por células mais ou menos banais, o cérebro é antes constituído por neurónios[2], todos eles com os seus axónios e as suas dendrites. Gostaram?[3] Vistos ao microscópio estes conjuntos parecem arvorezinhas, mais ou menos folhosas, com raízes mais ou menos pequenas e mais ou menos ramificadas. Da disposição correcta desta vegetação depende a passagem correcta dos impulsos eléctricos que transportam a informação de um lado para o outro, e, finalmente, a transmitem ao Sistema Nervoso Central.
E então vamos à parte social.
É ela que permite que tudo isto corra bem.
É durante a gravidez que o cérebro em formação vai pondo o seu puzzle na única ordem correcta possível, mas não pode fazer isto sozinho: organiza-se sempre em estreita ligação com as informações que vai recebendo do útero materno, e das informações que ele próprio faz sair para a barriga da mãe, que podem alterar em seu proveito as condições da gravidez.
E, para o cérebro, a gravidez engloba tudo o que o rodeia: vai de tudo o que acontece para mais tarde regular a duração dos ciclos hormonais até ao funcionamento cuidadosamente funcional do cordão umbilical. O que nós somos ao nascer é 50% genes do feto e 50% útero da mãe[5].
E não é tudo.
Para estar completamente pronto e activo, ao ponto de nos permitir executarmos funções que consideramos tão básicas como aprender a ler e escrever, ou mesmo contar, o nosso cérebro ainda precisa de todos os estímulos externos, de todos os pensamentos, de todos os sonhos, e de todas as tristezas e alegrias, que tivermos armazenado em memórias nos nossos primeiros quatro anos de vida. Ou seja, o cérebro só está pronto na altura em que começamos a lembrar-nos de nós próprios.
Pois é, pessoal.
Não há coincidências.
Nas Ciências Vivas não há, de certeza.
Agora continuam a achar que uma maquinaria destas se reanima, mesmo depois de já estar morta? Fixe. Como diria o saudoso Dirty Harry, Go ahead and make my day. É que, se alguém conseguisse, ia direitinho da publicação para o Nobel.
E, muito provavelmente, por trás desse Nobel existiria uma placa giratória que o projectaria para altos lugares – porque aquela pessoa é que sim – aquela pessoa, de um país que ninguém dá nada por ele, aquela pessoa é que compreende com toda a limpeza os mistérios incompreensíveis da actuação do cérebro.
E o resto da Academia arrancava em coro, por trás do orador, com a sua homenagem a Portugal muito bem estudada: Vou falar-vos dum curioso personagem: Jeremias, o fora-da-lei…
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] De vez em quando ponho estes comentariozinhos em francês, apenas para dar a mim própria, e certamente às minhas crónicas, um certo je ne sais quoi mais erudito. E ando a ler umas coisinhas em alemão para, mais tarde, alargar o ramalhete com passagens do Dr. Fausto. Boa?
[2] Descoberto por Ramon y Cajal quando trabalhava em Lisboa com Egas Moniz, no Instituto Rocha Cabral, mesmo em frente à Capela do Rato. Já alguém vos tinha contado isto? É do mais irritante que há, não é? Fazemos de propósito para que não se saiba nada dos nossos grandes feitos. Desculpem, mas citar as Descobertas não vale: foram o empreendimento mais anárquico de todos os tempos, que, em consequência, “deixou o país de tanga” (qual deles é que disse isto?), conquistado facilmente pelos espanhóis.
[3] Peço desculpa, mas isto é uma crónica, não é uma sebenta de Histologia e Embriologia no Segundo Ano de Medicina. Quem quiser informar-se melhor, tem isto tudo muito bem explicadinho no Google.
[4] “Princesa de Portugal” era uma das frases amorosas com que os meus filhos me recebiam assim que eu entrava em casa, pelo meio de muitos beijos nas mãos – “Mãe, és bela como a Princesa de Portugal!” – durante os quatro meses assaz penosos do seu período edipiano. E o Dick, em vez de me ajudar a tirar-me os melgas de cima, ficava cheio de ciúmes e saía logo da sala…
[5]Paciência, pais. Quando o embrião começa a formar-se, assim que o ovo se divide em duas células, vocês apenas contribuíram com uma célula minúscula… que entra para dentro da maior de todas as células! Não trouxeram quase nada, à excepção do vosso ADN, o mais compactado que imaginar se possa, para conseguir nadar mais depressa pela canal vaginal acima. Mas vá. Vão poder transmitir imensas doenças (AQUI É PARA METER UM EMOJI QUE DEIXE BEM CLARO QUE ISTO ERA UMA GRACINHA __ EMBORA SEJA ABSOLUTAMENTE VERDADEIRA!). E vão ser muitíssimo importantes dos quatro anos em diante. Até lá, também, quem é que alguma vez poderá cobrar-vos por não sentirem grande interesse por aquele tubo digestivo que não está ali a fazer grande coisa que não seja acordar-vos de noite a berrar? Paciência, pais. Deitem isto tudo para trás das costas, e esperem por melhores dias.
O que é bom na nossa absoluta ignorância do Além é que nada nos impede de acreditarmos que, durante esta última semana, num lugar que nenhum de nós pode sequer imaginar, aquela senhora de 93 anos, que morreu aqui em Estremoz, e o homem que vinha de muito longe, ao encontro dela, conseguiram, por fim, encontrar-se. E agora, para serem felizes, têm toda a eternidade pela frente. Passamos a vida a fazer dela um bicho de sete cabeças, mas, honestamente, a eternidade não tem nada de especial. Tem apenas a paz luminosa de nunca precisarmos de estar com pressa…
Agora, uma coisa é respeitarmos a nossa ignorância do Outro Mundo, e outra, muito diferente, é sermos mantidos deliberadamente na ignorância Deste Mundo. Essa é uma ignorância que toda a gente sabe que se mantém de geração em geração perpetrada pela mão criminosa do mesmo velho bando de hienas que se autoperpetua à custa de milhões de carcaças, porque é a incapacidade de pensar das enormes maiorias que sustenta no poder as minúsculas minorias.
E, para um bom exemplo de como a Comunicação Social nos vende com grande afinco tudo o que seja jogo sujo de Não Pensar, vamos lá respirar fundo e voltar à morte do pequeno Archie.
Ora então – coitado do puto, que não há nada de mau de que não tenha sido exemplo – a título de segunda descasca…
… Ora então muito bem.
Concluída que está a primeira série de impropérios relativa ao desperdício de informação servido aos portugueses numa bandeja aquando da morte do pequeno Archie, permitido que vos foi respirar fundo e fazer rir os outros com o urso polar de patas para o ar do Mário Castrim, recordemos que a minha primeira descasca teve a ver com a total ausência de debate sobre permitir ou não que existam redes assassinas como o TikTok – e que os pais achem normal deixarem os filhos sozinhos em casa com acesso total àquela arma mortífera.
Falta passarmos à segunda descasca, tão ou mais grave ainda do que a primeira: ninguém, em canal nenhum, a hora nenhuma, se deu ao trabalho de convidar um bom neurologista, ou qualquer outro bom especialista do cérebro – temos vários, todos muitíssimo bons, e todos de linguagem muito clara quando estão a falar para audiências desprevenidas – que esclarecesse as hostes perplexas sobre se quem tem o coração a bater, mas tem o cérebro morto, está morto ou não está morto.
Se ao menos toda a gente tivesse ficado esclarecida a este respeito, graças ao jovem Archie evitavam-se, a partir deste Verão, imensas angústias sobre desligar ou não “a máquina”.
Em poucas palavras, é possível voltar a fazer funcionar um coração morto. Mesmo assim, para que ele continue a funcionar “sozinho”, assim que recomeçar a bater há que ligá-lo à tal “máquina”.
Mas um cérebro morto, em contrapartida, a partir do momento em que morre, está irremediavelmente morto – e, como é óbvio, o seu portador morre com ele.
Não era importante ter explicado isto aos portugueses?
Grandessíssimos cães da pradaria, que deviam estar todos de férias[1].
Pelo meio de toda a saga melosa do jovem Archie, com os pais sempre a implorarem que não lhe desligassem a máquina porque o seu coraçãozinho continuava a bater, a nossa Comunicação Social ainda teve a baixa moral de fazer aos portugueses mais um desfavor vergonhoso: a lata de equiparar um coração que bate a uma pessoa que está viva. O que não podia ser um erro mais grosseiro[2]. Palavra de honra, é que conversas destas… eu sei que não são…, mas é que PARECEM mesmo, mesmo, e mesmo-mesmo, compostas de propósito para estupidificar ainda mais os espectadores incautos. Que, obviamente, são quase todos. E, à mulher de César, não lhe basta ser honesta.
É verdade que o coração humano – um dos primeiros órgãos que se formam no embrião, e que, a partir daí, asseguram a possibilidade do seu restante desenvolvimento – nos alimenta, nos oxigena, e nos limpa. Mas o seu mecanismo de funcionamento, que começou muito cedo, estendeu a sua teia de capilares através de todo o embrião muito antes da formação da vasta maioria dos outros órgãos, já está todo formado à nascença, e tem um mecanismo básico de razoável simplicidade – a mesma simplicidade que lhe permitiu manter vivo o embrião, e depois o feto, desde a mais tenra idade do desenvolvimento. É por isso que as manobras de reanimação de um coração que parou de bater são tão simples. É por isso que foi possível oferecer ao nosso grande herói Salvador[3] um transplante de coração, assim como é possível fazer operações de bypass, ou instalar pacemakers; ou, como no caso do Archie, ligar o coração a uma máquina, com a certeza absoluta que essa máquina asseguraria a continuação do seu batimento pelos séculos dos séculos, se fosse caso disso.
… … …
Esta mudança, o meu verdadeiro padrão da pobreza, foi desencadeada pela insolvência, logo seguida, ao fim de trinta anos de paz e amenidade, pela súbita ordem de despejo que a D. Laura decidiu fazer-me chegar por uma advogada “porque ela quer ver se pode subir a renda para o dobro e ganhar muito dinheiro com a casa, compreende, porque, de repente, a vida se tornou muito difícil para todos nós”… e, para completar o quadro, pela expulsão dos meus filhotes da América[5], o que fez de mim, por muitos e bons anos, e literalmente, A MÃE DOS BANDIDOS[6].
Apesar de todos os esforços e boas intenções do Dick, é evidente que, a bem dizer, curtiram os dois ferozmente a bandidagem lá do sítio, fizeram todos os piores amigos que dois adolescentes estrangeiros conseguem fazer em menos de um mês, engataram miúda atrás de miúda, e chegaram (bem, foi só o Ricky, a quem nós chamávamos desde pequenino, porque estava mesmo na cara, o TRICKY RICKY), a dar-se ao desplante de ir mandar quecas para a cama do Pai, enquanto três “amigos pretos[7]” ficavam a controlar entradas e saídas, enquanto batiam “nuns tambores[8]” a acompanhar “um daqueles raps do Eminem a dizer aquelas porcarias todas sobre a mãe[9]”.
“Passei-me,” continuava ele no Skype, embora já me tivesse contado aquela história várias vezes. “Passei-me. Subi os degraus a correr, entrei no quarto, vi o Ricky com a miúda na minha cama[10], gritei “RICKY!!! WHAT THE FUCK DO YOU THINK YOU’RE DOING?????”, Clarinha, ouve, eu disse mesmo WHAT THE FUCK! E atirei um para cada lado e chamei a polícia. E foram todos presos por B&E, e eu fui com eles para apresentar a minha queixa. E nisto perdi UM DIA INTEIRO. É horrível. Tenho visto muito bem o que é que acontece aos Pais de Filhos Criminosos que são apanhados nesta teia de aranha de Polícia, Prisão, Psicólogo, Papeladas, reuniões de Pais Anónimos…”
Era o maior terror do Dick, ainda eu vivia no Penedo, ainda os nossos filhos estavam de novo na Prisão de Menores, cada vez mais ricos de vender toda a coca limpíssima, que por vezes alguns visitantes insuspeitos lhes passavam nas visitas, aos guardas que depois a vendiam aos presos, e às vezes até ao enfermeiro de serviço, um rapaz sólido como um rochedo mas sempre cansado, porque fazia turnos consecutivos de 18 horas para conseguir amealhar o suficiente para assegurar à noiva o casamento de conto de fadas que ou era mesmo de conto de fadas ou não havia casamento, a certa altura constou que até a namorada se tinha metido no consumo, porque fazia directa atrás de directa para ultimar absolutamente tudo no enxoval perfeito do casal perfeito que eles tinham absolutamente que ser:
“Clarinha, please, tu estás bem a ver a gravidade disto? PEOPLE LOSE THEIR JOBS!!! As pessoas têm que ir a tantas reuniões, a tantas prisões, a tantas identificações, a tentar explicar tantas más intenções, que acabam por ser chamadas à chefia e postas na rua. Entendes? Já vi Pais de Bandidos, como eu, perder os empregos por terem que andar o tempo todo atrás dos filhos!”
Ter que ouvir aquilo era extremamente ofensivo para mim, abandonada à triste vida de Mãe Solteira desde o 11 de Setembro.
Claro que o Dick nunca perdeu o emprego, pelo amor de Deus. Tinha tenure no Amherst College, um pilar chiquérrimo do ensino superior, onde, entre outras Grandes Figuras, estudou o Príncipe Carlos do Mónaco, visitado pelas duas irmãs na festa que assinala o final de cada ano lectivo, para grande felicidade de todos os rapazes e todos os velhotes presentes. O que a questão do tenure queria dizer era que tinha um contrato para a vida até à idade da reforma, numa posição semelhante à de um catedrático em Portugal. Numa instituição tão perfeitamente Ivy League como o College, tinha de certeza um óptimo ordenado e imensos benefícios colaterais. Francamente. Vir-me chorar no meu ombro que “people lose their Jobs”…
Há que ter um cérebro absolutamente vivo, e muito bem musculado, para lidar com tudo isto.
Há que manter o sentido de humor mas ser firme.
E, antes mesmo de os principezinhos endiabrados desembarcarem em Lisboa, havia que comprar tudo o que eu conseguisse comprar em segunda mão, e arranjar um transporte à altura das minhas posses que a bem dizer não existiam, para pôr a casa de Xabregas toda bonita e nos habituarmos a sermos felizes lá dentro.
É para momentos destes que precisamos de um cérebro sempre atento, e não propriamente de um coração. Ao coração só se pede que bata. Ao cérebro pede-se que urda estratégias para acolher dois jovens bandidos em casa, e que se vá acertando o rumo dessas estratégias para que tudo acabe por correr em paz, sossego, e muito riso
É por isto mesmo que o cérebro, ao contrário do coração, tem uma formação e um funcionamento que são tudo menos simples. Muito pelo contrário, são complicadíssimos. E controlam tudo. A porção do cérebro encaixada dentro da nossa caixa craniana rodeia, no chamado lobo frontal que só existe nos humanos[11], a sede da nossa inteligência. O restante conteúdo da caixa craniana prolonga-se por dentro das vértebras, do pescoço ao cóccix, chama-se sistema nervoso central, e assegura o processamento inteligente de todas as informações que recebemos, para que possamos responder-lhes da forma mais correcta possível.
A partir do momento em que morre toda esta estrutura finíssima, e dificílima de montar (basta pensar na sua subsequente associação a todos os nossos nervos), acabou-se. ACABOU-SE, GAITA. Estamos mortos, mesmo. Um cérebro morto já não volta a acordar, seja por que artes mágicas de que máquina inexistente for. E, quanto mais passarem os dias depois da morte, como no caso de Archie, mais o cérebro degenera.
Agora.
É impressão minha, ou teria sido extremamente importante explicar isto a toda a gente, na sequência daquela morte absurda e perante a nossa condenação a vermos a mãe do menino em lágrimas de meia em meia hora? E não era boa ideia, como eu comecei por dizer, que essas explicações fossem prestadas por óptimos especialistas que são também óptimos comunicadores, com muito mais conhecimento de causa na matéria do que eu? E se neste preciso momento caísse um raio em cima da cabeça de todos os directores de informação portugueses?
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Recorde-se, uma vez mais, que era Agosto. A Comunicação Social costuma entrar em parafuso em Agosto, porque é um mês em que nunca se passa nada. Em Agosto, nunca caem DC9s das Turk Ava Yollari. Em Agosto, ninguém tenta disparar contra o Papa. Então e esta história, com tantos ângulos para estudar – não teria sido um enorme bónus para compensar o restante famoso vazio do mês de Agosto? A sério. Eu pasmo.
[2] Estas pessoas são consensualmente denominadas como “vegetais”, e o termo é duro, mas está perfeitamente correcto. Um vegetal não é um animal. Um vegetal nunca mais fará tudo o que nós fazemos, todos os dias. Se há pessoas que às vezes, miraculosamente, acordam depois de vegetarem depois de dezenas de anos? Há, sim. Mas são milagres. Como tal, são extremamente raros. Significativamente, não chegam a ter expressão.
[3] O excelente músico e cantor Salvador Sobral não tem culpa nenhuma: era o que as revistas e jornais de baixo nível lhe chamavam nesse Verão.
[5] Apesar de todos os esforços do Dick, a verdade é que naqueles dois anos passaram mais tempo enfiados em casas de miúdas que viviam nos projects a fumar muitos charros e a ouvir muito rap e claro que não só; ou então estavam nas esquinas a distribuir E pelos clientes habituais e a ganhar pipas de massa porque à época o ecstasy ainda era uma invenção recente e até as avozinhas a cair da tripeça, que só se lembravam de violência doméstica, de gajos completamente bêbados ou completamente mocados que as fodiam em pé contra a parede a chamar-lhes todos os palavrões deste mundo, e quando chegavam à parte em que elas eram umas gandas putas que ofereciam aquela cona suja a toda a gente, vinham-se logo e toda a cena nem chegava a durar cinco minutos mas doía muito – alguém se surpreendeu quando, depois de uns belíssimos jogos de sedução do meu mais velho que se sentava todo bonito ao lado delas, a cheirar bem, e lhes falava das coisas boas que a vida tem sempre para nos oferecer, se quisermos procurar e arriscar, subitamente quiseram todas ser felizes e desataram todas a consumir com gosto, por vezes em festas só delas, em casa de uma ou de outra, com bolinhos e licores, e tudo? Claro que não. Às vezes convidavam o meu Mike para tirar a T-shirt (ainda não tinha a tal tatuagem, mas tinha uma musculação perfeita), e dançar para elas. O meu filho delirava com tanta atenção. E pronto, no resto do tempo, estavam na prisão de menores, onde se musculavam até não conseguirem encostar os braços ao corpo, e onde às tantas, o Ricky descobriu a Bíblia e ficou fascinado – fascinado com tanta crueldade, tanta violência, tantas guerras, tanta gente a matar tanta gente de formas tão horrorosas. Até metia medo. O seu figurino perfeito. Começou a falar com o padre da cadeia, que era um evangélico qualquer que tratou de aterrorizá-lo ainda mais. Quando chegou a Lisboa, o Ricky ainda vinha com a Bíblia da prisa. Impressionadíssimo. Passou os nossos últimos anos em família a fazer-me perguntas tremendas. Fiz questão de responder sempre em grande detalhe a todas.
[6] Todos os que acompanharam a verdadeira loucura da minha vida com os meus queridos leõezinhos que eu adoro, que se foram tornando cada vez mais eficientes na arte de me roubarem tudo o que me restava depois de eu já estar falida e desempregada, quase me imploravam que escrevesse um livro com este título onde descrevesse a minha experiência incrível de viver com dois gangsters do gang da Boavista, considerado (dizem-me os putos com muito orgulho) o mais perigoso de Lisboa. Talvez mais tarde escreva. Mas só se for em colaboração com eles e com o Pai. Na realidade, houve ali umas fases em que se esteve mesmo bué bem. A maternidade foi a experiência mais rica e mais avassaladora da minha vida.
[7] Não é meu: é o Dick que fala assim. Deveras. Mesmo sendo o americano mais porreiro que eu alguma vez conheci em vinte anos de quotidiano em terra alheia.
[9] À época estes raps do Eminem eram tão conspícuos, e, francamente, tão bem construídos, que ATÉ O DICK sabia que o puto gostava de rap a dizer mal da mãe.
[10] Grande cabrão. Até senti um nó na garganta. Era a NOSSA cama e era EU que a tinha comprado num mercado de antiguidades mesmo no meio da floresta. Também era EU quem a tinha montado, com a ajuda de um Prof do meu Departamento que adorava bricolage. E MAIS: era EU, sim o MEU dinheiro, que tinha comprado todos aqueles lençóis, edredons, almofadas, colchas, mantinhas, tudo do bom e do melhor, tudo do mais bonito que existisse onde quer que fosse, para dar bons sonhos ao Rei Leão. Agora “A MINHA CAMA”. Filho da puta. Grandessíssimo filho da puta…
[11] E que foi descoberto por Egas Moniz no início do século XX, embora eu dê explicações e nunca tenha ouvido esta memória da boca de qualquer aluno, nem visto qualquer referência ao nosso Prémio Nobel nos estranhos “Livros de Texto” que agora os obrigam a usar, que eles não conseguem perceber, e que muito provavelmente eu também não conseguiria, se fosse da idade deles.
No dia em que te conheci Rasguei todos os meus mapas (passagem de um antigo poema árabe)
Aqui em Estremoz, morreu uma senhora de 93 anos que esteve óptima de corpo e de cabeça até há cerca de uns dois meses.
Tantos anos, tantos anos.
Provavelmente, viveu a vida inteira à espera do dia em que chegava de muito longe um desconhecido que se detinha à sua frente, a olhava até ao fundo dos olhos, e lhe punha a mão no ombro. E ela saberia logo quem ele era, embora, aqui em Estremoz, nunca o tivesse conhecido. Também nunca teria sonhado com ele. Ou, se tivesse sonhado, de manhã já se teria esquecido. Talvez o cheiro dele lhe fosse familiar. Talvez fosse o toque nítido da pele da palma da mão dele contra a pele do ombro dela. Talvez fosse a cor dos cabelos, ou então talvez fosse a cor da roupa. Ela ficava parada, confiante, a retribuir-lhe o olhar como num sorriso. E era então que ele lhe dizia exactamente o que dizem aqueles dois versos de um poema meio perdido, fragmentado pela erosão do tempo e pela evolução da língua. Era um código oculto, e ela reconhecia-o logo embora não o conhecesse antes. A partir daí, faria finalmente sentido enfrentar todos os desafios, superar todos os medos, levantar todas as amarras, e recomeçar a vida do zero, transformada numa viagem sem fim através do coração de tudo o que há de belo na vida, e que as pessoas sem código, aquelas que andam sempre de olhos postos no chão, nunca conseguem ver.
Ora acontece que esse desconhecido que ela conhecia tão bem, portador dos dois versos antigos com qualquer coisa como poderes mágicos, e que ela esperara ouvir ano após ano após ano, vinha de tão longe que precisava de caminhar sem fim até chegar a Estremoz. E, como em qualquer outra época das civilizações humanas, estava sempre a perder tempo com desvios à sua rota mais rápida, para não morrer de cada vez que atravessasse o território de qualquer uma das guerras que há agora. Sempre foi assim, porque houve sempre muitas guerras. No fundo dos seus segredos, ela nunca deixou de esperar por ele durante os seus 93 anos de vida. E ele estava a caminho, e ela sabia que ele estava. Mas a distância era tão grande que se interpôs entre a vida e o sonho. Ela conseguiu esperar por ele até aos 93 anos. Mas, mesmo assim, ele não conseguiu chegar a tempo.
E pronto. Em muito poucas palavras, e mesmo que elas ainda nunca tenham dado por isso, esta é, mais coisa menos coisa, a verdadeira história da vida de todas as mulheres do planeta.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
Continuando, de coração apertado, a catastrófica falta de informação sobre a morte do Archie a tentar suster a respiração mais tempo que todos os outros adolescentes em jogo.
Se ninguém fizer nada em relação aos jogos assassinos do TikTok, já estou a imaginar a próxima catástrofe irresistivelmente apelativa, destinada diretamente e sem vergonha às criancinhas propriamente ditas, que acham sempre muita graça a estas grandes surpresas da História Natural: PUTOS DO MUNDO INTEIRO! Embora fazer um concurso para ver quem é que consegue ultrapassar o recorde do urso polar, que chega a aguentar-se três minutos sem respirar debaixo da água gelada[1], quando fecha as narinas e mergulha atrás das focas!…
… É muito fácil espicaçar as criancinhas para quererem mesmo ganhar um desafio desta envergadura.
Hey, ganhar aos outros rapazes é uma vitória – mas ganhar aos ursos polares, os maiores e mais fortes ursos do mundo, isso não é só uma vitória, meu, isso é mesmo uma puta glória!
E então, enquanto os pais se maravilhavam com esta espantosa nova informação – “três minutos? De narinas fechadas? Honey, estou parvo. Já viste bem o que é o poder da evolução?” – era ver as criancinhas a correrem para a praia mais próxima, tirarem a roupa, e mergulharem na água gelada até ao mais longe possível da costa[2]… e morrerem, claro. Não só por falta terminal de Oxigénio, mas também por hipotermia. E atenção, que para mergulhos em mares gelados não é propriamente preciso ir ao Ártico, onde se pode partilhar com o urso polar o seu habitat natural: a água das praias é gelada em praticamente todo o Norte da Europa, sobretudo para mergulhos de quatro minutos.
Imagina-se facilmente o cenário seguinte, e o que a nossa Comunicação Social nos diria.
Lá teriam os presidentes de todos os países da Alemanha para cima de decretar três dias de bandeiras nacionais a meia haste. Lá ouviríamos nós sempre as mesmas partes dos mesmos discursos. Lá ficariam os espectadores de Agosto, todos repimpados nas suas espreguiçadeiras, a emborcar uns destilados de fim de dia enquanto se gozavam sempre das mesmas imagens de meia dúzia de progenitores chorosos, falantes de diversas línguas, e de dezenas de corpinhos muito branquinhos dados à praia. E, uma vez mais, nunca haveria mais nada para dizer. Os espectadores em férias seriam a banda sonora.
“C’um caraças, Tó! Olha aqueles, olha aqueles, já viste aqueles putos pequeninos ali na rocha, todos completamente mortos?” – “Ai pai, não gosto nada quando tu dizes os putos” – “Filhota, caladinha se fachavor, o pai agora está a falar com o tio sobre os putos todos mortos[3].”
Estas imagens sem debate eram ainda mais parecidas com uma série de aventuras mórbidas porque, ao longe, se viam outros corpinhos que ainda estavam a ser recolhidos por barcos e mergulhadores, antes que chegassem os tubarões, para que as famílias pudessem dar-lhes uma “despedida condigna”. E lá ouviríamos de meia em meia hora, em imagens da Finlândia aparentemente capturadas por um qualquer Smartfone deveras amador, os pais da pequena Aicha, com um ar destroçado, repetir o dia inteiro “ela sempre foi muito competitiva, e na nossa família sempre tivemos a tradição de mergulhar dentro do gelo…”
Mas alguém discutiu a legitimidade do TikTok para propor concursos virais de morte certa às criancinhas?
Desculpem, era só uma pergunta retórica.
Feita apenas porque DEVIA ter sido feita – e, no entanto, NINGUÉM a fez.
Raios me partam, que isto era material com tantas pontas por onde se lhe pegasse. O que a nossa Comunicação Social desperdiça. E, em consequência, o que todos os Portugueses perdem.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Isto já é manipular grosseiramente os dados, porque estamos a falar do mergulho mais longo observado até à data: 3 minutos e 10 segundos. Mas, por regra, o mergulho do urso polar fica-se entre um ou dois minutos, não mais.
[2] Com um bocado de sorte, ainda apanhavam também uma foca…
[3] A esta hora o pai já lhe tinha chegado bem nos destilados. E, como a maior parte da população deste século, tinha uma dificuldade crescente em distinguir entre realidades e filmes quando estava a ver televisão.
Apertem os cintos, que eu vou passar aqui umas boas de umas semaninhas a mandar vir.
Vamos lá ver, pobre também tem direito. E eu posso ser indigente, mas não deixo, por isso, de saber ler e escrever. E, além disso, mesmo sem um tusto e um carro com vinte anos, nada me impede de ser filha de Deus. Além disso, sei observar. Há já muitos anos que a mediocridade da nossa Comunicação Social me exaspera. Quando a pessoa esbarra num perfeito caso-limite, uma autêntica hipérbole para tudo o que é feito com os pés, já que escreve crónicas, o melhor que tem a fazer é usá-las para partilhar a sua indignação com os outros, e explicá-la devidamente, porque o caso não é nada simples.
Vamos, então, recuar até ao passado mês de Agosto…
… Um rapazinho chamado Archie morreu a jogar um jogo viral no infame TikTok, que só se lembra de brincadeiras potencialmente nocivas para a vida das pessoas, e que nem se percebe como é que ainda não foi riscado do mapa. Ou então sou só eu que não percebo. Estou perfeitamente consciente de que sou uma autêntica relíquia medieval num mundo que não tem nada a ver comigo, nem eu quero que tenha.
Mais ainda alguém se lembra?
Olha que ideia tão gira, e sobretudo tão reveladora e tão educativa: malta, vamos fazer um concurso, e ganha quem aguentar sem respirar durante mais tempo. Este perigo público aparece no TikTok a seduzir os adolescentes com a mesma eficácia com que a serpente seduziu Eva, e todos os pais, mas mesmo todos, parecem achar normal que os seus filhos fiquem sozinhos a brincar com gadgets de toda a sorte que lhes dão acesso a loucuras desta dimensão obscena.
Resultado: um belo dia, em Inglaterra, os pais de Archie, que tinha doze anos, encontram-no em casa comatoso, já em plena morte cerebral. O que não passa de um eufemismo simpático para dizer simplesmente M-O-R-T-E, com todas as letras, porque se o cérebro de uma pessoa está morto, então a pessoa está morta sem volta a dar ao texto, continue ou não o coração a bater.
Depois foram semanas, e semanas, e semanas, de notícias piedosas, repetidas de meia em meia hora em todos os nossos canais informativos, sobre o sofrimento dos pais da criança. Usavam-se basicamente sempre as mesmas palavras, sempre com as mesmas imagens. Ou era um dos pais a chorar[1], ou eram os dois a pedir misericórdia aos médicos que tinham decidido por consenso geral desligar as máquinas, ou era alguém por eles a implorar ao Boris Jonhson que impedisse os médicos de prosseguirem a sua rota assassina, ou eram fotos recentes do menino, ainda vivinho da costa, a fazer poses para a câmara, ou a dar beijinhos à mãe.
E nunca, em canal informativo nenhum, em linguagem acessível e por maioria de razão a horas acessíveis, obrigatoriamente protagonizado por pessoas entendidas na matéria, se ouviu um único bom debate sobre a legitimidade de se proporem a crianças e adolescentes “jogos” destes em redes sociais de facílimo acesso. Ainda por cima, como todos os jornalistas papagueavam, o desafio de suster a respiração era “VIRAL”. Ou seja, toda a gente o conhecia. Não era propriamente um desafio de tal forma escondido e encriptado que seria preciso a ajuda do Ed Snowden para se conseguir encontrá-lo.
Então e o TikTok não é automaticamente fechado porque mata meninos de doze anos?
Ao menos não paga uma multa vingativa?
Ninguém vai preso?
Não é obrigado a barrar conteúdos destes, como, por exemplo, o Facebook acabou por barrar o excesso de palermices postadas sobre as vacinas durante os primeiros meses da Pandemia COVID, ou o Twitter acabou por barrar alguns dos piores insultos do Trump durante a primeira campanha?
E ninguém discute estas questões na nossa Comunicação Social, se bem que se arranjem sempre duas horinhas para discutir o futebol?
Mas o que vem a ser isto?
É da vaga de calor? Está tudo a dormir? E ninguém se preocupa com a inteligência dos espectadores portugueses? Ou será que já se decidiu em conluio secreto que a missão dos media é mesmo esta, é estupidificá-los brutalmente enquanto eles bebem umas jolas com os pés ainda cheios de areia, porque é isso mesmo que se faz às pessoas quando, finalmente, chega o facilitismo do tão aguardado mês de Agosto?
Epá.
Não, a sério.
Valha-me Deus.
Uma desinformação combinada como esta é positivamente criminosa.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Sobretudo a Mãe, que era muito mais faladora, e sobretudo muitíssimo mais “camera-friendly” do que o esposo.
[2] Uma das características desta criança insuportável é andar sempre descalça. Pudera. Como nasceu prematura tem os dedinhos do pé terrivelmente deformados, e não há sapato que não a magoe. Mas algum adulto se chega à frente para a ouvir? Ora. É mais que qualquer adulto se chega à frente para lhe dar um par de estalos. [3] Mais uma razão para as freiras a considerarem um diabinho. [4] Tomara eu ser esperta como esse romano, mas só tenho seis anos e a pessoa não nasce com o estilo já todo aprendido. Pelo meio destas minhas dúvidas teológicas, já sei que vou ouvir das boas porque não estou mesmo a conseguir calçar os sapatinhos. [5] O Zé tinha dezoito anos, e os nossos familiares mais conservadores diziam que ele era o “boy” das meninas. Para nós, ele era o Zé, mais nada. Chegava de manhã cedo do moceque da CuCa, supervisiona-nos o dia inteiro com muito humor e ainda mais carinho, e só voltava para casa depois de já estarmos na cama. Se fosse preciso ficar até mais tarde devido à agenda dos nossos Pais, contava-nos histórias de terror verdadeiramente terríveis, com tribos em que os homens eram iguais aos outros durante o dia mas à meia-noite se transformavam em leopardos e podia ir um, ainda homem, a passar diante da nossa casa naquele preciso momento. Eu devorava aquilo tudo, e depois, claro – ficava com tanto medo do escuro que já nem conseguia dormir.