Etiqueta: Clara Pinto Correia

  • O verdadeiro milagre

    O verdadeiro milagre

    Desprezava-os a todos sem excepção,

    esses velhos jardineiros enregelados dos canteiros do amor.

    Charles Dickens

    DAVID COPPERFIELD, ou

    The Personal History, Adventures, Experience and Observation of

    David Copperfield the Younger of Blunderstone Rookery,

    1850


    Para grande incredulidade dos meus filhos quando eram pequeninos[1], tive o privilégio de crescer num tempo em que só se escrevia à mão, só se faziam contas utilizando a memorização da tabuada, num mundo em que os gadgets ainda não existiam, e lá em casa nem sequer tínhamos uma mera televisão a preto e branco, daquelas só com dois canais e de horário muito limitado, uma vez que os nossos Pais partilhavam firmemente o credo de que a televisão destruía as famílias, impedindo-as de conversar[2]. O que é que esse MAGICAL MYSTERY TOUR[3] me deu? O gosto pela observação, sem dúvida; e, com ele, deu-me desde logo o prazer de inventar histórias. Mas, se soube inventá-las, foi porque vivi uma infância riquíssima passada a devorar livros atrás de livros. Aos oito anos, numas férias grandes em que estava doente e via da janela ao lado da minha cama as pessoas que iam para a praia todas satisfeitas com os seus chapéus de sol e os seus baldes de plástico, eu estava ainda mais satisfeita do que elas: iam-se todos embora, ninguém me chateava, a coberto de todo aquele sossego tinha começado a ler A MARAVILHOSA VIAGEM DE NILS HOLGERSSON ATRAVÉS DA SUÉCIA, da Selma Lagerlof[4], e agora não conseguia parar. Até soneguei algures uma lanterninha para não parar nem à noite. Estava positivamente enfeitiçada. Já tinha lido imensos livros antes, mas isto era diferente. Naquela cama, sem poder ir àquela praia por intervenção directa de Deus, eu acabava de descobrir o verdadeiro milagre da literatura.


    Os verdadeiros livros, quando são verdadeiramente bons, têm a generosidade de não esperarem que as crianças cresçam para se deixarem ler, e, assim fazendo, imprimir nelas a qualidade que fica marcada nos seus passos. Aquele meu excitex do Nils Holgersson continuou a caminhar comigo. Aos dez anos, veio parar-me às mãos[5] um romance pouco conhecido de Erico Veríssimo, CAMINHOS CRUZADOS[6]. Não sei quantas vezes o terei lido, mas foram dezenas, de certeza. Fiquei a conhecer de cor todos os personagens, fiz a lápis folhas inteiras de esquemas de como os caminhos de todos eles se cruzavam ao longo do romance.

    CPC e S, O SEMINÁRIO
    “Estás a ouvir, Sebastião?
    “Repara bem na pérola do Dickens que pus em epígrafe. David está tão apaixonado por Dora que despreza todos os seus colegas do Tribunal que não amam ninguém. A metáfora é fabulosa, e o humor é irresistível: David está ridiculamente apaixonado, e como os leitores já foram avisados várias vezes de que o caso vai ter um desfecho trágico esse enlevo ainda é mais ridículo. É contra todas as regras do bom inglês usar várias comparações numa única metáfora, e Dickens usa imensas palavras mas nunca abandona os jardineiros e os jardins. Não se é considerado um dos melhores escritores do mundo por acaso.”
    Note-se a expressão atenta, concentrada, e positivamente maravilhada do canídeo.

    Claro que aprendi várias coisas sobre as vicissitudes do comportamento humano, mas o que aprendi de mais importante, já lá vão 53 anos, foi como se constrói em três parágrafos uma proeza literária autêntica, que neste caso assinala o início da história. Já tive muitas décadas para tentar, mas ainda não consegui chegar nem perto da qualidade com que o autor começa a sua narrativa, descrevendo o nevoeiro que cobre a cidade na primeira luz da manhã.

    Vivi em Alfama, onde caminhei muitas manhãs por entre esse nevoeiro. Estudei em Monterey, onde de madrugada esse nevoeiro era quase intransponível. Já por várias vezes, nos meus próprios livros, dei o meu melhor para descrever o mundo enfeitiçado das manhãs de nevoeiro. Mas, embora nunca mais tenha lido o CAMINHOS CRUZADOS, sei que o nevoeiro do Erico Veríssimo sempre foi melhor do que os meus.

    Deus andava a mandar-me estas revelações de dois em dois anos, sem dúvida para que eu conseguisse digeri-las convenientemente na minha tenra idade. E foi assim que, aos doze anos, durante as férias de Natal, alguém me ofereceu de presente[7] AS VINHAS DA IRA, de John Steinbeck[8]. Dois anos antes do 25 de Abril, toda aquela saga da tenacidade dos pobres e da indiferença dos ricos, com todos aqueles pequenos pormenores de outras histórias constantemente intercalados, deu comigo em doida.

    Pela primeira vez na minha vida, sublinhei várias passagens e dobrei os cantinhos dessas páginas[9]. Andei ali uns tempos a escrever à Steinbeck, sempre a meter aquelas pequenas narrativas de circunstância no meio da história principal. Há poucos inícios tão bons como o de CAMINHOS CRUZADOS. Mas há poucos finais mais belos do que o de TORTILLA FLAT[10], quando Danny já morreu, a sua casa já ardeu, e todos os seis amigos que ali partilharam com ele a estranha vida de aventuras dos anos anteriores contemplam os escombros:

    “A gente de Tortilla Flat dissolveu-se na escuridão. Os amigos de Danny continuaram a olhar para a ruína fumegante. Olharam de forma estranha uns para os outros e voltaram a olhar para a casa queimada. Instantes depois, voltaram-se e afastaram-se lentamente, sem que, ao lado de um, caminhasse outro.”

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Note-se a importância deste “eram pequeninos”: estavam naquela idade em que os meninos acreditam em tudo o que lhes dizem as Mães. Mas, mesmo assim, um mundo sem PCs, sem calculadoras, sem smartphones, sem TV-Cabo… “Oh, Mãe! Não digas essas coisas que eu fico cheio de medo!” E foram perguntar ao Pai se era verdade, os pestinhas. Based on a true story.

    [2] Sempre reconheci que eles tinham uma certa razão, e agora ainda acho mais, sobretudo quando as famílias se sentam à mesa do restaurante, cada um agarra no seu tm, e nunca mais se ouve um pio. Para que conste, nunca dei tms aos meus filhos, quando os brindei com um PC era para fazer os TPCs durante duas horas e “ir a sítios” durante quinze minutos, a televisão esteve seriamente regulada até o mais velho fazer quinze anos, e nunca lhes comprei nenhuma PlayStation nem nenhum outro monstro desses. Resposta a bombardeamentos de solicitações usando a técnica do golpe baixo que se ouvia mais vezes lá em casa: “MAS-EU-NÃO-SOU-A MÃE-DOS-OUTROS-MENINOS!”

    [3] Para benefício dos mais novos, o MAGICAL MYSTERY TOUR é o album psicadélico dos Beatles em que John Lennon canta I AM THE WALRUS (letra escrita totalmente em ácido durante dois fins-de-semana diferentes, o que explica ser tão difícil de perceber) e STRAWBERRY FIELDS FOREVER (escrita só de uma vez e baseada na infância de Lennon, portanto de compreensão um pouco mais fácil).

    [4] Claro que a ideia não foi minha, que só tinha oito anos, quand mêmme. Foi a minha professora primária, a Madalena, que eu adorava e achava linda, que nos leu umas passagens nas aulas. Oh. Nunca mais larguei a minha Mãe até ela me comprar o livro.

    [5] Não sei como. De certeza que foi Deus.

    [6] “Então, Clarinha, o que é que a menina está a ler agora?” – “É um romance do Erico Veríssimo.” – “Ah, muito bem! Com que então está a ler o CLARISSA?” – “Não. O CLARISSA é para meninas. Este é mesmo um romance de crescidos, e chama-se CAMINHOS CRUZADOS.” – “Ah, muito bem, muito bem.” E lá ia a puta da velha (que, pensando bem nisso, provavelmente era bastante mais nova do que eu) confabular com a minha Mãe sobre o tal de romance para crescidos.

    [7] Ou então, no meio de caos das dezenas de prendas da família, foi Deus que lhe pôs na capa um post-it a dizer CLARINHA e está a andar. Foi assim, aliás, que nasceram os post-its.

    [8] Era a tradução portuguesa, claro está. Aos 28 anos, quando estava em Monterey (no meio do nevoeiro) e, ao tentar traduzir o título usei THE RAISINS OF ANGER, toda a gente me percebeu mas fui gozada até mais não. O verdadeiro título original do livro é THE GRAPES OF WRATH. Eu sei que Deus queria facilitar-me a vida com a tradução portuguesa, mas depois também se devem ter divertido imenso à minha custa, lá nos Céus.

    [9] Haviam de ver os meus livros agora. É cantinhos de página dobrados por todo o lado, e, na ausência de lápis nas proximidades, chego a marcar passagens, e até a gatafunhar notas à margem, a esferográfica vermelha, ou a marcador de ponta de grossa. E o que é que tem? Os livros são meus, ou não são?

    [10] Tortilla Flat é um pequeno planalto, cimeiro a Monterey, onde se acolhe a camada populacional incapaz de pagar os custos extravagantes da vida na cidade. Porque é que este título foi traduzido em português como O MILAGRE DE SAN FRANCISCO, sendo que, ainda por cima, o romance não nos fala de milagre absolutamente nenhum – a menos que a amizade entre os homens deva, de facto, considerar-se um milagre? Estamos certos de que as más traduções não provam a existência de Deus. Por outro lado, no entanto, pode ser que provem a existência do Diabo. Já era meio caminho andado para Deus existir mesmo.

  • O silêncio dos inocentes

    O silêncio dos inocentes

    Acredito que és inocente, e que és bom. Apenas gostaria que todos fôssemos como tu.

    Charles Dickens

    DAVID COPPERFIELD, ou

    The Personal History, Adventures, Experience and Observation of

    David Copperfield the Younger of Blunderstone Rookery,

    1850


    Para encurtar razões, estive três semanas completamente isolada do mundo, dedicada apenas a beber copos e copos de café, a fumar quantidades de cigarros muitíssimo acima da minha média diária, a andar sempre toda produzida, a sentir-me cada vez mais feliz, e a ouvir cada vez mais piropos matinais sobre a minha incrível beleza[1]. Como é evidente, muito contribuiu para este caminho interior de descoberta de uma nova paz de espírito, que pelos vistos até me dava vontade de me arranjar melhor num sítio onde nem sequer se podia secar devidamente o cabelo, e que me fazia parecer tão bonita logo ao acordar[2], não ser obrigada a saber mais episódios sinistros sobre a Guerra da Ucrânia, nem quaisquer outros episódios sinistros tout court. Se alguém tentasse agredir-me com eles, escorriam-me logo por cima como água por pena de pato.

    “Ah, viste aquela que esfaqueou o marido e depois o deixou a esvair-se em sangue até à morte dentro da banheira?”

    “Ora, parem mas é de engolir essa versão do País-CMTV.[3]


    E foi assim, feliz e fortificada, com o meu Sebastião cada vez maior e mais armado em cão feroz, que regressei a Estremoz. E cheguei mesmo a tempo de ir comprar fielmente a minha sandes de queijo do pequeno-almoço ao Bruno, e partilhar o grande silêncio que pairava no Zé Russo para ver, em directo e ao vivo, a selecção portuguesa de futebol feminino apurar-se, pela primeira vez, para o torneio da Grande Final da Copa de Mundo jogando contra os Camarões na Nova Zelândia. Ao derrotar as adversárias por 2 a 1 no último play-off, as portuguesas qualificaram-se para disputar o título de Campeãs do Mundo na Austrália e na Nova Zelândia, entre 20 de Julho e 20 de Agosto. Mais, há que notar que, em Estremoz, vemos estes jogos com o frisson acrescido de uma das jogadoras, a Carolina Trindade, ser daqui mesmo da cidade. É tão daqui mesmo que até eu já lhe conheço a cara, só de passar por ela na rua.

    “Ai, Bruno,” suspirei eu, depois dos primeiros momentos de euforia. “Queira Deus que essa Final chegue depressa e que os senhores da bola e das direcções de informação não abusem. O que isto agora vai ser de repetição destes golos em câmara lenta, de comentadores a papaguearem banalidades que qualquer curioso papagueava melhor do que eles, de publicidade às marcas dos sponsors, de entrevistas ao treinador… Que sufoco, está a ver?”

    Mike e Mãe, 2012
    Embora por diferentes razões, ambos apreciamos deveras todos aqueles rabos de cavalo do futebol feminino.

    Sou tão parva.

    Por junto, houve as imagens obrigatórias da chegada feliz da selecção feminina ao aeroporto[4]. E, logo ali[5], o anúncio de que mais tarde o PR receberia o grupo vencedor em Belém[6].

    E depois veio o grande silêncio que se segue às batalhas.

    Então aquilo não era só uma gracinha em que umas miúdas jogavam à bola de rabo de cavalo? Uma gracinha não é nenhum jogo de futebol, é um entretenimento com uma grande telenovela de vencedoras lacrimosas no fim. Cenas dos próximos capítulos? Isso não existe. Aquilo não se destina a galvanizar multidões, pessoal, qual é. Aquilo é só para que não se diga que não as deixamos jogar à vontade. Mas elas que não pensem que valem tanto como os homens[7]. Então e os espelhos de vidro, não existem? Não servem para nada? As vitórias destas adolescentes armadas em rapazes não valem pelas vitórias deles. Não valem, não valem, e não valem.

    Vamos é voltar à Guerra da Ucrânia, que entretanto já fez um ano.

    E tu, ó Clarinha, pára de sonhar acordada, mas é.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Sem segundos sentidos whatsoever. Agora pensem o que quiserem sobre o que foi que eu estive a fazer para andar sempre assim tão feliz e produzida, e de quem é que vinham esses tais piropos matinais. Façam apostas mútuas, se quiserem, que eu ofereço-me já para banco. Acertar é que nunca acertarão, isso de certeza. Ah-ah-ah.

    [2] A loucura deste estranho retiro torna-se épica à medida que a descrição continua. Agora nem sequer posso disciplinar todos estes caracóis mas sou bonita logo ao acordar? Desculpem, até parece um conflito de interesses. Ou, no mínimo, uma contradição nos termos

    [3] Aprendi esta expressão com os meus sobrinhos. É perfeita para separar o trigo do joio. E é nessas alturas que se repara que há mesmo muito pouco joio

    [4] TRÊS MINUTOS de imagens obrigatórias. Contei pelo relógio. E tudo isto aconteceu apenas no dia seguinte. Está bem que a Nova Zelândia fica nos nossos antípodas, mas o que é que aconteceu ao Skype? Ao Zoom? Ou mesmo ao Messenger, para os mais pobrezinhos? Raios vos partam, seus hipócritas.

    [5] Deve ter sido para poupar tempo.

    [6] Não será totalmente cínico sugerir que esta recepção também tem que ser porque é obrigatória.

    [7] Até é provável que sejam todas fufas. Há muito quem diga, porque são mesmo muito boas na bola. Ah, mas bem podem ser fufas, que nunca serão homens. Até podem ser LGBTs da bola. Não serão homens à mesma.

  • Quando se cai na poção mágica

    Quando se cai na poção mágica

    E também tudo aquilo que consideramos impossível precisa apenas de ser feito.

    Plínio[1]

    HISTÓRIA NATURAL


    Protegida pelo braço caloroso do ZL, a professorinha preocupada com as perguntas dos seus meninos depois de terem assistido ao nosso filme disse que se chamava Lídia Augusta, e ele disse oh mas que nome grandioso, olhe querida, eu sou o ZL, e ela é a C e de certa forma também somos os dois professores, e não vai acreditar mas conhecemo-nos ontem à tarde e apaixonámo-nos durante a noite, enquanto estávamos a jantar, e depois viemos para aqui a conversar e ver nascer a manhã e foi quando demos o nosso primeiro beijo e depois apareceu a menina com todos os seus meninos, não acha bonito? Isto fez a Lídia Augusta, que olhando melhor era assaz boazona, fazer um grande oooooh, abraçar imenso o ZL à laia de parabéns, e a seguir juntar ao abraço a conversa de como sacrificava tudo à oferta do imenso amor que tinha para dar dentro de si mas, pronto, era tudo por causa do marido.


    É um bocado chata, esta versão da vida das pessoas em que é sempre tudo muito triste por causa do outro membro do casal.

    E então o marido da Lídia Augusta era contabilista, bastaram-lhe sete anos de casamento para ficar tão barrigudo quanto calvo, nunca fora grande espingarda na cama mas agora era mesmo o fim da picada porque eram só cinco minutos semanais na posição do missionário e ela até bebia mais do que a conta ao jantar para que o triste dever marital lhe roesse menos a alma, lia o Wall Street Journal à mesa, nunca queria ir à praia nem a Paris nem a Nova York nem a lado absolutamente nenhum porque em Portugal tudo está enxameado de turistas e para sair de Portugal toda a gente sabe que andam a cair cada vez mais aviões de manutenção mal feita devido à crise, de qualquer maneira a verdade é que só estava bem se pudesse estar a falar de fugas ao fisco e de offshores em águas internacionais o que o levava a literalmente fugir de casa todos os fins-de-semana para andar na farra com outros contabilistas, alguns autarcas, alguns bandidos da PJ, alguns bancários com conhecimentos, o ZL está a ver, não é, tudo péssima gente, e eu sozinha em casa porque ele não quer ter filhos, não quer ter um cão, nem sequer quer ter um gato persa que é uma raça hipo-alergénica, quando lhe falei de um peixe encarnado dentro de um aquário ele desatou a berrar-me se eu queria desequilibrar o Feng-Shui da casa mas quinze dias depois pedi a uma amiga que lhe perguntasse duas ou três coisas desse género e percebeu-se logo que ele me tinha berrado só por berrar, por causa do Feng-Shui é que não foi de certeza porque na realidade ele não faz a menor ideia do que é o Feng-Shui, assim como não faz a menor ideia do que é o karma mas isso não o impede de dizer que se eu for àqueles jantares dele lhe vou dar mau karma, ó ZL, olhe só para as minhas unhas, eu dantes não as roía mas é que estou a um passo do burnout, e o pior é que não quero, bem, é mais que não posso, não sei se o ZL me entende mas eu não posso pedir-lhe o divórcio porque ele percebe bem demais de contas enganosas e de dinheiro sujo e ia deixar-me na miséria, tenho a certeza absoluta. Ah, mas se me entrasse de repente na sala de aulas uma alma gémea, como lhe aconteceu ontem com a C,

    Pois foi, ó Lídia Augusta,

    Nova demonstração de Clara e Sebastião
    Vê-se claramente nesta foto que não é a seriedade que afecta a felicidade.

    rosnei-lhe eu, que entretanto me tinha sentado na relva com a turma inteira para esclarecer as dúvidas dos meninos, que não paravam de levantar as mãozinhas e eram positivamente hilariantes,

    mas olhe, essa de se abrir a porta e entrar por ali dentro a alma gémea, ontem à tarde, assim como lhe aconteceu a ele, também me aconteceu a mim, boa? E vai daí, para todos os efeitos, a partir de agora mesmo esse homem está aí mas é meu. Mande esse atraso de vida da posição do missionário dar uma curva, vá a um banco de esperma e engravide já enquanto pode, diga-lhe que foi o padeiro, vá viver para casa de uma amiga que o gordo desconheça e mande-lhe os papéis do divórcio por correio registado com aviso de recepção, faça qualquer coisa por si, mulher, mas tire as patas de cima do gajo que eu vi primeiro, e muito legitimamente me saiu na rifa.

    Disse aquilo num tom brincalhão para a pobre esposa repelida não se sentir ainda mais repelida, mas a verdade é que acabei por vociferar tantos detalhes sobre o nosso namoro que me parti a rir. E o ZL, que estava a ouvir-me com cada vez mais gozo, ainda me piscou o olho mas no fim ainda riu mais do que eu. Podíamos estar os dois a brincar, mas estávamos a brincar com o fogo. Estávamos era os dois a gostar muito de ouvir as nossas declarações crescentes de amor e compromisso.

    Aaaaai,

    suspirou a pobre Lídia Augusta, lá mesmo do fundo de toda a dor que assolava o seu coração,

    vocês têm uma forma tão interessante e tão criativa de utilizar a língua portuguesa, e tudo o que eu digo, e tudo o que eu oiço, é tudo tão baço, tão banal, tão,

    e estava na cara que a pobre Lídia Augusta ia desatar a chorar, pelo que o ZL voltou a abraçá-la, e, já que eu tinha montado uma conferenciazinha com os meninos, lá lhe vendeu a conversa da treta de eu ser muito boa a explicar assuntos difíceis às crianças e ao povo. Ela implorou-me que explicasse mesmo porque ela, que não tinha qualquer amor na sua triste vida, nunca conseguiria fazê-lo. Eu deitei a língua de fora ao J, virei-me para a turma e para todas as mãozinhas no ar que apareceram imediatamente, e falei-lhes dos livros do Astérix, onde havia um druida de roda de um grande caldeirão onde preparava a poção mágica que tornava invencíveis todos os gauleses lá da aldeia, sempre à tareia com os pérfidos invasores romanos.

    Na segunda fila levantou-se logo a mãozinha de um menino armado em bom.

    Todos não, s’tora. O Obélix não pode beber a poção mágica porque caiu dentro do caldeirão quando era pequenino.

    Eu já te lixo, pestinha.

    Que bom,

    Respondi-lhe toda sorridente, como se a interrupção do puto não tivesse sido do pior intencionado carácter provocatório,

    parece que temos aqui uma turma de sábios em Astérix. Pois é, meninos. Quem já caiu no caldeirão em pequenino não pode voltar a beber mais poção mágica. Ora acontece que eu e o ZL caímos os dois no caldeirão em pequeninos, mas depois esquecemo-nos. E então ontem à noite, ao jantar, estivémos os dois outra vez a beber poção mágica. Era uma poção mágica muito boa que há cá em Portugal, chamada Tiago Cabaço, e então como era muito boa nós bebemos muita, e foi por isso que ficámos assim como vocês viram, e é por isso que quem já caiu no caldeirão quando era pequenino nunca mais deve beber poção mágica, senão está sempre a fazer filmes e nunca trabalha, e a vida dos crescidos é trabalhar, não é curtir.

    E foi com esta explicação, que mereceu pelo menos a concordância tácita de todas as criancinhas, que aliás adoraram o uso da palavra curtir, de onde se prova que já sabiam o que é que isso que queria dizer, que eu e o ZL fizemos finalmente rir a Lídia Augusta.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Estudioso e autor romano considerado o fundador da História Natural, a ciência que veio a dar origem à Biologia. Homenageando a sua natureza de grande cientista, morreu no ano de 76, data que poderá parecer familiar a alguns leitores, e por razões que ninguém pode discutir com a Natureza: Plínio ia de barco, a passar ao largo, quando o Vesúvio explodiu. Pediu ao comandante para se aproximar mais da margem, por forma a observar devidamente o fenómeno, e morreu envenenado pelos gases tóxicos da explosão. Ninguém sabe o que é que aconteceu aos outros tripulantes do barco.

  • A felicidade é um conflito de interesses

    A felicidade é um conflito de interesses

    Devemos amar aqueles que tentam alcançar o impossível
    J. Wolfgang Goethe
    AS AFINIDADES ELETIVAS, 1809


    Se calhar sou um bocado irritante na insistência com que repito isto às pessoas de quem gosto, e claro que, sendo humana, “penso que nada do que é humano me é estranho[1]”, e portanto às vezes também me irrito; mas, de facto, irrito-me pouco. Escrevo estas linhas ao completar 63 anos e não tenho a menor dúvida de que, quanto mais passam os anos, mais a vida me diverte, mais as pessoas me comovem, e mais tudo o que seja minimamente bom é infinitamente precioso. Por isso, hoje, a minha prenda de anos para o mundo é a história verdadeira do que eu e o ZL nos rimos numa madrugada ainda escura, num Inverno distante em que os meus dois filhos se portavam todos os dias como os mais acabados bandidos, e eu acabava de perder não só o emprego como tudo o que ainda pudesse considerar-se um bem material: a casa, o carro, a conta bancária, o cartão de crédito, enfim. Nada disto[2] me parecia uma desgraça assim tão grande como isso, porque ao menos sempre era uma desgraça que, por esses dias, andava a acontecer  a metade do País. E, ainda por cima, nessa noite acabava de jantar pela primeira vez com o ZL, que me tinha feito rir o tempo todo, e ainda por cima me deitava uns olhares algo torpes que não deveria estar a deitar, porque, a levarem a algum lado, levariam a um declarado conflito de interesses. Como quando nos puseram na rua ainda ficámos imenso tempo à conversa diante das escadinhas que levariam à minha rua, e depois ainda viemos à beira do rio ver nascer o dia por entre o nevoeiro[3], acabámos por fazer feliz também uma jovem que apareceu ali muito triste. No outro dia esbarrei com ela aqui, em pleno mercado[4]; ela explicou às amigas que eu era aquela pessoa que a tinha ensinado a ser feliz[5]; e foi assim que voltei a lembrar-me de todo este episódio memorável.


    O ZL começou a aconchegar-me muito nele por causa do frio da madrugada[6] e eu recordei-lhe que mais um milímetro de proximidade e aquilo já seria conflito de interesses.

    Antes conflito de interesses que pecado, patroa, sussurrou-me ele ao ouvido, carregadíssimo de intencionalidade.

    Eu resmunguei que, pela maneira como ele olhava para as mulheres, não parecia nada que desgostasse de pecados, o que lhe permitiu esclarecer que nessa noite por acaso tinha reservado esse género de olhares para mim, e acrescentar que a propósito, se eu queria mesmo saber, os tais olhares que me tinham sido destinados, e de que eu estava a queixar-me com a maior ingratidão deste mundo, não eram nem um pecado nem um conflito de interesses, porque esses olhares eram um verdadeiro projecto. E, com esta, abraçou-me pela cintura e puxou-me para si, com toda a leveza e simplicidade que só costumamos sentir nos nossos velhos amantes. Passou um gajo de boina por nós, que devia estar de mal com a vida porque nos mandou ir para a pensão.

    Rimo-nos tanto, ficámos tão agarrados, e aquilo era tudo tão bom que, mais conflito de interesse menos conflito de interesse, no fim fui eu quem lhe saltou ao pescoço e lhe aplicou um beijo de ventosa a todo o vapor[7].

    Ele reciprocou, e começou a dar um uso de assumido conflito de interesse às mãos, ao mesmo tempo com muita doçura e com imensa avidez.

    Clara e Sebastião demonstram uma forma muito simples de ser feliz
    ZL já não é nem seis nem meia dúzia, mas transformou-se numa espécie de irmão gémeo e assumiu prontamente o papel de padrinho de Sebastião, pelo que continua a integrar activamente o conjunto dessa felicidade.

    Passou uma professora do segundo ano com uma expedição de meninos pequeninos que iam em visita de estudo atravessar o Tejo num cacilheiro e percorrer o Cais do Ginjal. Não nos mandou ir para a pensão, mas tossicou, e logo a seguir entoou um delicadíssimo,

    por favor, meus senhores,

    que nos fez interromper a transgressão, olhar para trás, e ver vinte e oito carinhas lindas e rosadas fixadas em nós, de olhos redondos de espanto, porque quando os filmes dos pais estavam quase a mostrar cenas como a nossa, o raio da cota agarrava no comando e passava a televisão para a porcaria dos bonecos didáticos, e de queixos caídos de emoção porque tinham finalmente conseguido entrar num dos filmes onde os cotas nunca deixam entrar meninos. O nosso conflito de interesses devia ter-se tornado mesmo indecente, porque, além disso, os meninos tinham ar de quem não só apanhou finalmente um dos tais incríveis filmaços proibidos, mas ainda por cima teve a sorte de apanhá-lo em directo e ao vivo, e já em plena luz do dia.

    O amor é a coisa mais bonita do planeta e a única que poderá ainda salvar-nos, e ver pessoas assim tão apaixonadas como vocês, e ademais na vossa idade[8], fez-me sentir muito feliz,

    continuou a professora, sempre muito delicada.

    Mas por favor compreendam-me, é pedagogicamente tóxico fazerem tudo isso que estavam a fazer com tanta volúpia à frente destas crianças, que vão estar aqui paradas no cais ainda mais dez minutos, ficarão absolutamente confusas, acabarão a fazer-me perguntas que eu própria terei dúvidas sobre qual a melhor estratégia de resposta, chegarão a casa a falar aos Pais do que viram e a fazer ainda mais perguntas, e se eu não vou saber como responder, bem, imaginem os pobres encarregados de educação.

    Já se tinha percebido que o ZL era um grande engatatão, mas a rapidez com que ele me largou a cintura e passou o braço pelos ombros da jovem triste foi impressionante.

    Ó minha querida, mas por que é que se lembra de continuações tão tristes para inícios tão felizes, numa manhã tão bonita, rodeada de tantos meninos lindos? Então conte-me lá, como é que se chama?

    Eu posso ter contribuído para ensinar esta jovem a ser feliz. Mas o primeiro passo, honra lhe seja – este truque do braço e do nome, eu aprendi com o ZL,

    nessa triste e leda madrugada[9].

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Citando o dramaturgo romano do século II AC Publius Terentius Afer, mais conhecido como Terêncio, sendo a forma original da frase “Homo sum, humani nihil a me alienum puto“, utilizada na sua peça HEAUTON TIMORUMENOS. Estando Portugal pejado de parolos, já ouvi esta citação ser atribuída a tout le monde et son père (Ha! Kulturens Skonhed!), incluindo Fernando Pessoa. Nem se percebe para que é que os parolos pensam que serve a Wikipedia.

    [2] À excepção da bandidagem dos meus filhos, bem entendido. Mas mesmo essa não era minimamente tão triste como as histórias que eu ouvia muitos outros pais contarem, porque os meus filhos, mesmo nos seus piores momentos, sempre foram muito meus amigos – e eu deles.

    [3] É verdade que foi numa madrugada de mais um Inverno, quando são sete da manhã e ainda está escuro, pelo que podemos assistir ao espectáculo do dia a nascer por entre o nevoeiro do rio. Mas claro que não era um Inverno gélido como este. Se fosse, talvez nunca tivéssemos chegado a passar tantos anos divertidos a desobedecer às questões de princípios mais básicas de uma sociedade decente. Enfim, nesses anos ISTO também não era uma sociedade assim tão decente como isso.

    [4] Nem sei como é que ainda não esbarrei com a minha vida inteira no mercado de Estremoz. É impressionante.

    [5] Injusto, porque o ZL ajudou muito.

    [6] Não era este frio, mas era suficientemente frio para fazer sentido que as pessoas se aconchegassem. Eu não ia meter aquele gajo, assim sem mais nem menos, numa casa onde só existia a minha cama; e ele não podia ir com o carro para lado nenhum, porque tínhamos bebido como se o branco fosse água gelada e a BT estava estacionada mesmo ali diante da Alfândega.

    [7] Foi, foi.

    [8] O ZL não achou grande graça àquela do “na vossa idade”, mas enfim. A professora era mesmo uma jovenzinha, e ele próprio era uns aninhos de nada mais jovenzinho do que eu, que agora, quando me lembro do nosso conflito de interesses, acho que era uma jovenzinha nessa altura.

    [9] Camões, OK? Sai no exame do 12º ano. É uma questão de serviço público, em benefício dos supracitados pobres encarregados de educação.

  • Fim de citação

    Fim de citação

    Hoje em dia as pessoas sabem cada vez mais, e entendem cada vez menos.”

    Oscar Wilde (1890)


    Concluo hoje a minha série sobre a forma como as grandes ditaduras mantêm os seus povos reprimidos pelo isolamento e pela ignorância recorrendo ao golpe baixo de não lhes permitirem a aprendizagem do inglês – e de, assim fazendo, os impedirem de comunicar com o mundo. Faço-o no dia em que o grande Valete vai subir de novo ao palco do Coliseu de Lisboa para voltar a oferecer aos portugueses a qualidade incomparável da sua noção de métrica, a perfeição inventiva da sua criação de rima, e sim, no caso do Valete podemos mesmo afirmar isto sem ter medo de ninguém[1] – Valete vai, uma vez mais, oferecer-nos a urgência da sua mensagem. Mas, se não for por mais nada então que seja por uma questão de homenagem ao povo da Ucrânia, peço-vos que não se esqueçam de um pormenor nada despiciendo: Valete faz isto tudo porque é um grande artista, sem dúvida, mas também faz isto tudo porque pode. E é por isso que vos conto aqui a história de um outro artista, um amigo de há uns bons trinta anos, que uma noite subiu ao palco do mundo e quis cantar mas não pôde. Chamava-se André. A gente tratava-o por Andrushka.


    Estive em Petrozavodsk no final de 1991, quando as estátuas derrubadas de Estaline ainda jaziam aos pés dos seus pedestais, e, por cima das fábricas de aço agora fechadas onde os grandes letreiros em cirílico ainda anunciavam “ESTAMOS A CONSTRUIR O SOCIALISMO”, os artistas de rua do fim do mundo tinham pintado a vermelho, num inglês sempre com alguns erros como se tentassem acertar na ortografia certa sem conseguirem superar ao certo as suas próprias dúvidas, a palavra única “CUIDADO!”. Petrozavodsk não tinha muito mais de trezentos mil habitantes, e hoje ainda tem menos.

    É uma cidadezinha industrial encostada à fronteira com a Finlândia, onde na altura toda a indústria estava parada. Quando lá cheguei era indisfarçável estarem todos a viver o momento mais difícial das suas vidas de eternos servos de um regime cruel ou de outro. Nos dois primeiros dias, arroz muito empastado que se comia em três rações diárias ainda tinha misturados uns bocadinhos de carne; mas depois já era só mesmo arroz, seguido de arroz, seguido de cada vez menos arroz.

    Se alguém precisasse lá em casa dos serviços de um canalizador ou de um electricista, eles exigiam logo serem pagos à chegada em divisas líquidas ou nada feito – e por “divisas líquidas”, bem entendido, subentendia-se[2] o infame vodka de beterraba da Ucrânia, mais barato e mais rasca do que todos os outros mas mesmo assim vodka à mesma, que até eu já me tinha habituado a beber para não morrer de frio. E, quando eu lhes perguntava “e agora?”, os meus novos amigos respondiam-me, num tom absolutamente neutro de fazer gelar ainda mais o sangue nas veias, “agora em breve será sempre noite… e depois, em Março, se ainda cá estivermos, há de ficar tudo bem.

    CPC, mascarada de John Lennon na medida do possível, de partida para a fronteira com a Finlândia, com o seu parceiro S já disfarçado de Cão Vermelho.
    Se apanharem o comboio para Norte em Moscovo e durante os dois seguintes não virem mais nada que não seja florestas de bétulas, sempre todas iguais, estejam descansados que vão ter ao destino dos nossos intrépidos repórteres. Não se esqueçam é das vossas preciosas garrafas de litro de Vodka de Beterraba da Ucrânia, porque se pensam que está frio em Portugal, imaginem como está na Rússia, e nem sonhem que existe outra forma de aquecimento, pelo menos durante a viagem.

    A União Soviética acabou exactamente uma semana depois de me ter vindo embora, e nunca mais soube deles.

    Tinham todos, como eu, cerca de trinta anos. Embora naqueles dias inflamatórios do reinado de Boris Yeltsin já não corressem os riscos que corriam dantes, as caves afogadas em tabaco, com Músicas Ocidentais e bebidas escaldantes, onde queimavam as noites num tronco nu muito Freddie Mercury[3], entre miúdas de cara de anjo e pernas de dois metros, continuavam a ser todas clandestinas.

    Fui levada até esse submundo estranho[4] pelos dois únicos guias do burgo que falavam um certo inglês, aprendido em escolas da Finlândia com autorizações seladas do Politburo, destinado a ser arranhado o necessário e suficiente para mostrar a maquinaria saída de Petrozavods às delegações estrangeiras amigas da URSS, o  Miska e o Andrushka.

    O Miska abandonara há cerca de um ano o seu posto de dirigente da Juventude Comunista, logo a seguir deixara mesmo de ser militante, e era um homem triste, mais dado a confirmar as palavras dos outros com os seus silêncios do que a fazer ele próprio qualquer tipo de discurso a favor ou contra tudo o que se passava naquela mudança vertiginosa de tempos russos. Limitava-se a ouvi-los e a, por vezes, segredar-me em conclusão “e eu, enquanto fui capaz, fiz o que pude para não ver nada disto.”

    O Andrushka, pelo contrário, era um rebelde de longa data, com um romance acabado de escrever que já versava a corrupção na corte moderna onde Putin jogava às cartas com Yeltsin, e um historial bastante respeitável de guitarra-baixo em várias bandas “decadentes[5]” que nunca duravam muito tempo depois de uma série de eventos sinistros. Contou-me, obviamente, muitos filmes de terror. Mas, para mim, nenhuma história poderia ter sido pior do que a da noite em que, quando ele ainda vivia em Moscovo e ainda não tinha feito o seu curso finlandês destinado à propaganda, correu na cidade inteira a total consternação da notícia do assassinato de John Lennon.

    Primeiro pensámos que era mais um daqueles boatos comunistas que eram postos a correr de propósito para nos assustarem”, contou-me ele, com o rosto subitamente muito endurecido. “Depois acabámos por perceber que era mesmo  verdade. Ficámos desfeitos. Morrer um de nós, em Moscovo, era uma coisa. Estava sempre a acontecer. Mas morrer o John Lennon, aos quarenta anos, em Nova York, isso era intorelável. Fomos todos para a Praça Vermelha, tu viste o tamanho daquilo mas eu garanto-te que não cabia lá nem mais uma pessoa, e estávamos todos lá para lhe fazermos uma vigília à luz das velas. E, depois de acendermos as velas todas, queríamos cantar o IMAGINE. Queríamos mesmo, mas não podíamos. Nenhum de nós sabia a letra. Tu sabes o que é, quereres cantar e não poderes, e tu sabes cantar, mas nunca pudeste aprender a língua daquela canção, que, no entanto, é a língua de todas as canções? Cantámos em lalala, pronto, e estávamos a cantar e estávamos a chorar porque não podíamos cantar. E depois veio a polícia, e veio o Exército Vermelho, e em meia hora a Praça Vermelha estava deserta, e foi presa muita gente. E eu jurei que havia de mentir tudo o que tivesse que mentir – mas havia de aprender inglês.”

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Lá estou eu outra vez, não é? E ainda agora comecei.

    [2] Hã? Hã? “bem entendido”, vírgula, “subentendia-se”? Meu Deus, sou fixe e não  tenho qualquer vergonha!

    [3] Eram lixados, aqueles russos. Não conseguiam aceder a nada, pois não, mas conseguiam conhecer muitíssimo bem o número de tronco nu à Freddie Mercury. E também tinham a escola toda na arte do bem disfarçar. Freddie Mercury? Quem é esse, o Freddie Mercury? Sonsinhos.

    [4] Mais uma redundância do mais fino estilo, não acharam? Claro que um submundo, por decorrência, é estranho. Eu-sou-boa-nisto, amigos. Enfim, para quem gosta do género.

    [5] Leia-se “de hard-rock”, o que não era nada de fácil de montar, e muito menos de manter, num regime onde as guitarras eléctricas e as baterias eram sistematicamente apreendidas – e dizia-se oficialmente que destruídas, embora também se murmurasse que o Aparelho as levava para as suas datchas a título de entretenimento para os mais jovens, que ao menos assim tendiam a recusar-se menos a acompanhar os pais.

  • Nas ruelas escuras do medo e nos becos clandestinos do boato

    Nas ruelas escuras do medo e nos becos clandestinos do boato

    A educação é uma coisa maravilhosa, mas infelizmente ninguém

    pode ensinar-nos as lições mais importantes da vida”

    Oscar Wilde


    Isto só visto. Então agora o grandecíssimo filho da polícia[1] do mais cruel e mais sádico czar de todos os tempos[2] ameaça-nos com “catástrofes globais” se ousarmos continuar a apoiar a Ucrânia? Olha filho, caso ainda não saibas, o Trump também jurou desfazer em pó a Coreia do Norte com “fire and fury the likes of which the world has never seen[3]”; e o Saddam Hussein, depois de invadir o Kuwait, avisou os americanos que, se abrissem contra o país dele qualquer espécie de hostilidades, lançaria contra as suas tropas “the mother of all batles[4]”, e deixaria entregues aos abutres todos aqueles corpos de imperialistas derrotados. Quando tudo isto falhou, tu estavas onde e entretido com quê, para não estares sequer a olhar, mesmo que sejas incapaz de ler legendas? Just checking[5]. Mas OK, OK, OK, whatever[6], ninguém aqui é parvo. Desde que começaram os seus discursos bombásticos a propósito desta tragédia, a malta já percebeu que para aquele tinhoso vale tudo para conseguir restaurar a grandeza da antiga União Soviética – mas “catástrofes globais”, ó Vladimir? E nessas catástrofes globais, achas que acontecia o quê, morríamos nós e ao mesmo tempo também morrias tu, se é que estamos todos entendidos quanto às catástrofes que tens em mente? E o teu povo, o que é que o teu povo pensa destas tuas ameaças bombásticas? Ora, tu vives descansado porque sabes muito bem que o teu povo não pensa nada, pura e simplesmente porque o teu povo não sabe nada. O teu povo não acede à internet, não vê televisão por cabo, chega à escola e só aprende o alfabeto cirílico para ficar logo ali impedido de alguma vez vir a ler as notícias do mundo. E, ainda por cima, demonstrando tu uma curiosa devoção aos métodos implementados pela mão-de-ferro estalinista, proibes os teus servos de aprenderem inglês[7] para poderem entender o planeta em primeira mão.


    E ainda há mais uma coisa, maldito carroceiro. A mim, pelo menos, escusas de vir com conversas tipo nada disto é bem assim. Tudo o que eu já disse, e também tudo o que ainda vou dizer, são pormenores que eu sei que são verdadeiros com toda a certeza – porque são pormenores que me aconteceram a mim, que estive na URSS há mais de trinta anos, quando as pessoas já sabiam que tu existias, e a maioria dessas pessoas já tinha medo de ti. Ouviste? Toma e embrulha. Ainda Boris Yeltsin fazia aqueles discursos de que os russos tanto gostavam, encharcado em vodka e na terminologia mais profana que pode arrancar-se à língua de Tolstoi[8], e já os amigos que fiz nessa altura tinham medo de um gajo que muitas vezes não conheciam de rosto nem de nome. Era o Director do Serviço Federal de Segurança, e sabia-se que Boris Nikolayevich, cansado da guerra, já o convidara para assumir o cargo de Secretário do Conselho de Segurança, a estrutura que coordena as agências de segurança a nível político em nome do presidente. E então, se tudo isto fosse verdade…

    Aqui era costume os meus interlocutores fazerem uma pausa, enrolarem na mortalha um tabaco muito escuro, voltarem a medir-me dos pés à cabeça obviamente a pensar se poderiam mesmo confiar em mim, acabarem por encolher os ombros naquele gesto inconfundível que significa sempre, no mundo inteiro, “ah, epá, olhem lá, que se foda, por favor, quer dizer, que se lixe mas aqui vai disto que vendo bem as coisas lixado já eu estou de qualquer maneira”, e, depois de assim pensarem, continuarem a contar-me o que constava nas ruelas escuras do medo e nos becos clandestinos do boato.

    Se aquele mesmo gajo que entrava a altas horas no Kremlin sem se dar sequer ao trabalho de parar no checkpoint da segurança, para a seguir passar horas perdidas a jogar com o chefe um poker onde circulavam pilhas obscenas de muitíssimo dinheiro…

    Clara e Sebastião preparados para enfrentar o Grande Norte da Mãe Rússia, onde os espera mais uma delicada missão de espionagem.
    Quem aqui entrar pela espada, pela espada sairá,” declara Alexandre Nevski no filme que o apresenta como um grande herói, libertador amável dos seus súbditos oprimidos, perseguidor incansável dos pérfidos cavaleiros teutões que em nome de Deus queimam os bebés russos em grandes fogueiras, e consolidador inquebrantável das enormes fronteiras da Pátria. E ah, sim, isto também é de uma importância crucial no que diz respeito a transformar um homem num herói: o filme de Eisenstein põe no papel de Nevski um borracho de perder a cabeça. Ai se eu e o Sebastião o encontrássemos no meio de tanta neve. Que grande espionagem eu não faria.

    … se esse gajo viesse a tornar-se ele próprio o chefe seguinte, as pessoas da Rússia iam sofrer na pele o castigo que lhes seria inflingido pelo seu infame pecado de serem russas. E, pior ainda, por nunca terem tomado a iniciativa de…

    Mais uma pausa, mais um segundo pensamento a meu respeito, mais um suspiro de “que se lixe.

    … por nunca terem tomado a iniciativa de recorrerem a qualquer um dos seus subordinados, que depois lhe passaria para as mãos metade do lucro, para fugirem a salto para a Finlândia. Ou mesmo para Portugal, porque não, o que é que custa, é um país barato e cheio de sol e com praias, claro que a fuga a salto é mais cara e a percentagem sobre os lucros da operação mais elevada, mas compensa, acreditem que compensa. O povo russo é apático. Não consegue tomar iniciativas.

    Esse amiguinho discreto que o Yeltsin pescara do KGB, certamente com os bolsos cheios de garrafas de vodka de beterraba da Ucrânia[9] já vazias às oito da manhã, gostava de “métodos de espionagem[10], tais como ir buscar criancinhas à escola, levá-las para sítios bonitos, deslumbrá-las com prazeres exclusivamente destinados a ricos, tais como carreiras de tiro para ganhar ursos de peluche enormes, rodas gigantes todas cheias de luzes a acenderem e a apagarem, passeios de gaivota em lagos magníficos seguidos de pic-nics na relva a ver os patos de todas as cores correrem entre os juncos da margem, e toda a sorte de guloseimas deliciosas em oferta inesgotável, para que finalmente os putos acusassem os pais de crimes que eles nunca na puta da vida tinham cometido.

    Dentro de uma semana, dias 3 em Lisboa e dia 4 no Porto, canta nos Coliseus o meu Incomparável Herói da Música Portuguesa Actual, o grande Valete. Em sua homenagem, vou então contar-vos a história de um rebelde russo que queria cantar e não podia. Mas, mesmo sob proibição governamental extremamente rigorosa de se meter nestas práticas dúbias, este rebelde cheio de garra não teve medo de me contar muitas das coisas que eu aprendi no extremo Norte do seu país durante aquele Dezembro gélido, uma semana precisa antes de a URSS chegar ao fim.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Belíssimo jogo de palavras, não é? Além do insulto mais difamatório subentendido na primeira sílaba da palavra “polícia”, o Putin, na sua qualidade de Grande Confessor do KGB, também já foi mesmo um polícia do pior género. Ha! E esta do “Grande Confessor”, acabadinha de meter extremamente a propósito, por acaso também está muito bem esgalhada, porque este gajo podia perfeitamente ser o Torquemada e andar pelo mundo a infernizar toda a gente com os seus autos-da-fé. “Infernizar”, topam? A propósito de queimar o pessoal na fogueira. Vá lá, confessem. Sou boa nisto ou quê?

    [2] Antes de mais nada, recorde-se que a História da Grande Mãe Rússia está literalmente pejada de czares, sendo que está bem que alguns eram sádicos e cruéis por se terem tornado completamente mongos depois de tantos casamentos entre primos, mas na sua esmagadora maioria estes detentores de enormes poderes absolutos eram figuras tais como Ivan o Terrível, Alexandre Nevski, e outros grandes heróis dos filmes magníficos do Eisenstein, daqueles que passavam o tempo a mandar os seus pobres súbditos esfomeados, gelados, e mal treinados, morrer e matar desse lá por onde desse, apenas porque “quem aqui entrar pela espada, pela espada sairá: assim foi e sempre será em Terra Russa”. Esta tirada podia ser do Putin, mas por acaso foi do seu ilustre predecessor Alexandre Nevski. E reparem que constitui, só por si, aquilo a que se chama tout un programe. Um programa catastrófico, bem entendido. Para os russos e para nós.

    [3]Fogo e fúria de uma dimensão que o mundo nunca antes viu”, numa versão portuguesa que melhora indecentemente as capacidades oratórias de Trump.

    [4]A mãe de todas as batalhas.” Sempre gostei especialmente desta, e da sua doce toada romântica, tão evocativa do nascer do sol num oásis. E tem, ainda, o valor acrescentado de ser o pré-aviso de guerra mais feminista de todos os tempos.

    [5]Era só para saber”. A pessoa começa com gracinhas em inglês e às tantas já está ela própria a fazer figura de parva.

    [6] Qualquer coisa como “quero lá saber”. Dá imenso jeito para acabar conversas sem ofender ninguém.

    [7] Trotsky dominava tão bem o inglês que até foi actor secundário em alguns filmes americanos, representando geralmente aquele tipo de papel em que um niilista russo era dotado de tal bondade que resolvia tudo a cinco minutos do fim. Durante o seu período mexicano, lia e sublinhava diariamente o NEW YORK TIMES logo pela manhã, para pôr o dedo na pulsação do mundo. Só para vos dizer: viu-se o que o Estaline fez ao único dirigente marxista-leninista que falava inglês..

    [8] Quando o tom da conversa pertence à categoria taxonómica pessoal da estiva, poucas outras línguas terão a pujança e a criatividade da língua russa. E a ordinarice, então, é de comprimir o estômago até a pessoas como eu, que qualquer leitor destas crónicas já percebeu certamente que não faço o género toca piano e fala francês (falo francês, mas qual é? – há azar?), mas o que é que querem, padeço de sindroma vertiginoso – e aquele nojo do russo ordinário, quando bate em cheio no verdadeiro ordinário, é mau de digerir, mas é que mesmo muito mau.

    [9] Este vodka não foi criado pela minha imaginação doentia, nem é mais um subentendido para descrever Yeltsin como um tal alcoólico que em breve estaria a beber o álcool dos frascos dos perfumes. É um vodka que existe mesmo, com uma cor preocupante entre o castanho e o cor-de-laranja; e, obviamente, é o mais barato de todo o infinito mercado soviético dos vodkas. Sem dinheiro para os aquecimentos nem lenha para as lareiras, os russos mantiveram-se quentes durante todo aquele Inverno a bebê-lo. E eu também, portanto suspendam o vosso julgamento se fazem favor. Viviam-se dias difíceis. Pelo menos naquela altura, o caos resultante da rapidez compulsiva da mudança, e a balda total instaurada no país exactamente pela velocidade dessa mudança, eram de tal ordem que tinham criado uma miséria extrema. Tão extrema que os meus amigos lá trataram das coisas um bocado a contragosto, e uma bela manhã bateram-me à porta do quarto do hotel, dito de luxo, mas com rachas nos vidros das janelas, uns jovens soldados e um jovem polícia. Vinham vender-me um uniforme do Exército Vermelho por quinze dólares, e um casaco de gala da Polícia Soviética por sete dólares e meio. Além desta transa, traziam-me ainda uma grande profusão de barretes de pele de urso ou de bonés de matéria dura, com uma estrela vermelha a encimar a foice e martelo dourados que cintilavam nas palas que desciam até aos olhos. Tudo isto enrolado dentro de folhas soltas de PRAVDAS, por seu turno enrolados dentro de sacos de plástico opaco. Quando o soldado saiu, o agente da autoridade ainda se lembrou de me vender um outro bem de consumo que só custaria vinte dólares, e que podia ficar disponível imediatamente caso eu tivesse interesse pela mercadoria. Tratava-se de um produto natural muito bem cuidado, e que fazia bem a tudo. Grande parte de tudo isto foi-me explicado por gestos e desenhos. O rapazinho estava podre de bêbado, e queria desesperadamente vender-me o seu próprio corpo.

    [10] Ou, pelo menos, ele chamava-lhes isso mesmo.

  • Doação universal

    Doação universal

    Não tem quem lhe mostre o que são os sonhos.

    João Paulo Borges Coelho

    AS DUAS SOMBRAS DO RIO


    Depois de várias semanas de protestos e manifestações, André Ventura convoca um debate parlamentar sobre a Educação em Portugal para dar ao CHEGA um destaque da mais absoluta infâmia[1]. E a seguir aproveita os holofotes e os microfones para espicaçar o povo contra a investigação da PJ às contas da Câmara Municipal de Lisboa, que, segundo ele, põem em causa o presente cargo do Ministro das Finanças. O que, mais tarde, leva a uma explicação em directo do dito ministro e ex-autarca este respeito[2]. Que nojo. Não tenho qualquer simpatia pela maioria socialista cheia de ligações perigosas, mas claro que ainda tenho menos pela minoria fundamentalista cheia de demagogias vergonhosas. Mas, mesmo assim, estou consciente de que, perante todos os sintomas de podridão política que possam incomodá-los, os cidadãos portugueses retêm o seu direito sagrado ao protesto. Todos temos livre acesso às notícias e aos debates políticos transmitidos ao vivo, por isso podemos estar fartos, podemos estar desiludidos, podemos estar que já não podemos, mas a verdade é que nunca somos nem silenciados nem enganados. Podemos saber tudo o que quisermos saber, porque vivemos em democracia, e portanto fazemos parte de um vasto banco de doação universal. Se vivêssemos sob qualquer espécie de pata ditatorial, a nossa capacidade de pertencermos a este grande banco estava seriamente restrita. E atenção, que talvez nunca déssemos por isso, mas essa restrição teria sido mais que deliberada pelo regime no poder desde os nossos dias na escola primária: nunca teríamos podido aprender inglês. Seria terminantemente proibido.


    Estive em Praga em 2002, num encontro de estudantes de Letras e Literaturas da Europa com escritores portugueses. Nessa altura, já Vaclav Havel tinha presidido, com toda a sua atenção de grande intelectual, sobre a Revolução de Veludo, que libertou de vez o seu país da presença armada da URSS e depois separou sem uma única lágrima a República Checa da Eslováquia. Notava-se o regresso de Praga à abertura do mundo nos menus em inglês dos bares e restaurantes, nos anúncios das colecções expostas nos museus, nos dizeres impressos nas T-shirts com Golems, na comunicação fluente dos guias que nos passeavam pelas alas fantásticas do Hradcany[3]. Na sala onde fiz a minha conferência principal estavam agentes literários dos dois novos países, que se falavam cordialmente sabe-se lá em que língua. Pedia-se que falasse em Português, suficientemente devagar para o préstimos do senhor da tradução simultânea. O Português não é uma língua lenta[4], o meu ainda o é menos, comecei rapidamente a ter a sensação incómoda de que ficavam para trás lacunas cada vez maiores do que eu dizia, os alunos eram vivaços e interessados, de maneira que as perguntas deles derivaram muito depressa para o debate, enfim – o que interessa é que acabou por haver ali um momento em que me passou pela cabeça um grande,

    – Ora, que se lixe!

    CPC, incógnito
    Já imaginaram o que seria termos que viver na clandestinidade a vida inteira para podermos dar-nos ao luxo de continuarmos a falar alto sobre as nossas opiniões?

    O Muro já caiu há onze anos. Desde pelo menos o Século XV que Praga é a capital europeia da arte, da cultura, e da ciência; e, passeando descontraidamente pelas ruas, vê-se logo que manteve até hoje o seu power de séculos.

    E mais!

    Eu era criança, mas ainda me lembro do entusiasmo dos meus Pais quando voltaram de uma semana passada nesta mesma cidade em 1968, gozando a liberdade da “Primavera de Praga”  dois meses antes de duzentas mil tropas do Pacto de Varsóvia e cinco mil tanques soviéticos invadirem a Checoslováquia e a fecharem ao mundo.

    Ou seja, se Praga sofreu o castigo de todas as cidades do Leste, onde as pessoas se viram brutalmente impedidas de aprender mecanismos universais de comunicação, há de ter sido, com toda a certeza, a cidade onde foi mais difícil implantar esse bloqueio, e onde esse bloqueio esteve implantado durante menos tempo. Vamos lá ver, concluí eu em pensamento, doida para conseguir comunicar em directo com os estudantes interessantíssimos da minha audiência – de certeza que, num contexto destes, muitos deles falam inglês, certo? A Revolução de Veludo ficou lá para trás, em 1989. Estes meninos, que nasceram e cresceram depois dela, e que ainda por cima gostam de letras e de literatura – Santo Deus, será mesmo possível que estes meninos não falem inglês?

    E falei-lhes então em inglês, devagar, com calma, com entusiasmo, malta, como é, não podemos nós prescindir da tradução simultânea e comunicar directamente uns com os outros?

    Foi horrível.

    Fez-se na sala um silêncio gelado. Os alunos, até ali tão cooperantes, olharam para mim com um ar pasmado e não disseram uma palavra. O senhor da tradução simultânea ainda fez um ar mais pasmado. Finalmente, uma das agentes literárias da Eslováquia presentes na sala veio até à mesa e segredou-me baixinho, em inglês, muito depressa, numa espécie de aflição mal contida, “fale português. fale português, que eles não entendem inglês!”

    Era a grande mão da besta que continuava a reinar muito depois da sua morte. Tinham passado 21 anos entre a entrada dos tanques soviéticos na Checoslováquia e a Revolução de Veludo; e 24 anos entre a Revolução de Veludo e aquela conferência. A segunda distância era maior do que a primeira, mas o estrago não estava consertado. Seria um bom tema para uma daquelas belíssimas canções das PUSSY RIOT, traduzidas por algum apoiante bilingue do russo em cirílico para o inglês no nosso alfabeto. Elas, sozinhas, também não podem ser dadoras universais. Estamos em 2023, mas a Rússia continua subjugada por um ditador sem escrúpulos. A luta continua.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Sim, claro, parece fazer algum sentido porque eram protestos e manifestações de professores. Mas Ventura, o mais acabado dos nossos demagogos com assento parlamentar, teria sacado este coelho da cartola a propósito de quaisquer protestos e manifestações que dessem nas vistas e agradassem ao povo. Não é propriamente a primeira vez.

    [2] Dizendo ao País que, basicamente, que agora é o Ministro das Finanças, e que, enquanto tal, não tem absolutamente nada a dizer a esse respeito – mas leva uns bons vinte minutos a oferecer esta explicação, o que parece dar por cumprido o seu dever perante o eleitorado.

    [3] Palácio fantástico onde Rodolfo II da Baviera instalou no século XV a corte do Sacro Império Romano, onde todos os conhecimentos, artes, e colecções, foram apadrinhados com faustosa generosidade.

    [4] Numa breve confabulação com o senhor enquanto estava a beber água, percebi que ele estava à espera que eu falasse brasileiro, conforme explicou. Desconhecia por completo “a minha língua”. Pois é, que desgraça, mas eu não ia pôr-me para ali a falar brasileiro, nem que fosse capaz de uma impostura dessas. Estava a representar as letras de Portugal, e a pessoa tem o seu orgulho, por muito que a maltratem.

  • Cirílico

    Cirílico

    Podes sempre esconder as coisas nas palavras””

    Aforisma de Jesse James antes do seu último assalto ao comboio

    1879


    Hoje vou prestar uma homenagem contente aos leitores despertos que conseguem ler as minhas notas de rodapé até ao fim[1]. E, de caminho, espero estar também a prestar algum serviço público, revelando sinais de vida aos que ainda são vítimas da tirania das palavras. Vamos lá ver, Pussy Riot[2]? Mas o que é que me deu, certo – Pussy Riot? Nem o tradutor do Office se atreve a oferecer uma proposta estúpida que seja[3]. Como aconteceu em tantas outras obras que produzem desde 2011 na sua impenitente luta artística contra Putin, estas feministas russas tiveram quem inventasse com elas o nome da banda, e têm sempre quem lhes traduza para inglês os títulos das canções que postam no YouTube, tais como PUTIN WILL TEACH YOU HOW TO LOVE. Às vezes, como acontece em POLICE STATE, conseguem cantar uma tradução do refrão – um polícia de choque começa por bater nas meninas da banda e depois bate-lhes no ursinho de peluche porque ainda não está satisfeito, acendem-se imensos vídeos e finalmente o zoom mostra Trump a apertar a mão a Putin, e entretanto elas cantam, num coro infantil perverso, “everybody’s happy, makes me happy”. Podem variar entre dez e vinte membros, e convidam todas as performers de protesto russas a entrar no barco. Conseguem nunca desistir, escapar, escorregar, entrar e sair da prisão sem desanimar, mudar de pele, reaparecer, sobreviver. Têm muitíssimo para nos dizer. Mas não conseguem falar connosco, porque nunca conseguiram aprender inglês.


    Quem não gostar de termos de usar o inglês, enquanto veículo de comunicação universal, que não goste[4], mas a realidade é o que é.  Plenamente conscientes dessa mesma realidade, todos os ditadores que vieram à superfície para lá da Cortina de Ferro fizeram toda a gente que escravizaram viver meio século sem nunca aprender inglês. E bastou as pessoas desconhecerem as palavras do Oeste para todas as coisas que floresciam para lá do Muro ficarem profundamente enevoadas. Agora que a União Soviética já não existe, no seu lugar existe a Grande Mãe Rússia, e no papel de Estaline está instalado o impensável ditador Vladimir Putin. Putin é uma daquelas pessoas que nos foram enviadas pelo Demónio para não podermos acreditar na bondade humana[5], e nesse sentido pérfido é obviamente muito sério no que toca a assegurar-se de que ninguém na sua terra fala inglês – o mesmo inglês que ele próprio, ostensivamente, não fala. O inglês, que o mundo inteiro fala mas por acaso também não se fala na China nem na Coreia do Norte, embora se fale fluentemente na Coreia do Sul, é uma arma de acesso à cultura que todos os maiores ditadores mantêm sabiamente afastada dos seus povos.

    Eu estava a trabalhar na UMass of Amherst em 2014, quando quatro das Pussy Riot conseguiram escapulir-se de Moscovo para uma série de gigs em salas de espectáculos americanas, acompanhadas pela sua Grande Mestra de tradução simultânea. Era uma miúda de Nova York ainda mais novinha do que as cantoras, ela própria de origem russa e apaixonada pela sua missão. A banda, notava-se logo, absorvera com avidez toda a grande qualidade que se aprende nas academias russas quando se tem uma autêntica veia artística. A sua presença em palco revelava uma imaginação cheia de arrojo e bom-gosto, com grandes jogos de cores, um sentido plástico magnífico e uma óptima música servida por grandes vozes bem trabalhadas, com arranjos que podem não ser os mais criativos mas não cometem nenhum erro[6]. Sozinhas à nossa frente, com a adolescente nova-iorquina aos pulos num canto agarrada ao microfone, as cinco felizes da vida e boas em tudo, transmitiam uma segurança que transbordava para a plateia e punha toda a gente ao rubro[7].

    No dia seguinte, no entanto, deram uma entrevista em directo na NPR[8] e aquela segurança contagiosa desapareceu, porque a adolescente entusiástica que as traduzia no gig também tinha desaparecido. Só estava em estúdio um funcionário público[9] que por junto arranhava umas coisas de russo. Elas conseguem cantar o refrão ou outro em inglês, mas isso não quer dizer que falem inglês. Não falam mesmo. Tentar entrevistá-las nestas condições precárias é apenas um jogo de enervar toda a gente e aquilo foi para lá de penoso. Repetiram várias vezes que não tinham medo. Eram quatro crianças assustadas. E a apresentadora, toda completamente cosmopolita de cima da sua uma longa carreira laureada, era uma burguesa paternalista e ignorante que não fora capaz de contratar a outra menina que falava russo para dar voz a quatro grandes artistas que têm imensa coragem e rios de talento mas só sabem ler e escrever em cirílico. Não percebes que estás perante todo o power de um outro alfabeto, you bitch?

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Hey, “poucos serão os eleitos”, certo? Não fui eu que disse isto.

    [2] Termo cuidadosamente enterrado dentro de uma notinha de rodapé na crónica sobre a boçalidade de Putin e a visita do nosso PR à Ucrânia, anunciada para este ano.

    [3] Pois, temos pena. Neste caso específico, nem eu vou traduzir. As jovens performers russas não podiam ter irritado mais o regime policial do seu país ao evocar em inglês uma grande revolta de partes privadas femininas, mas em 2011 eram mesmo jovens, não pretendiam ser mais que hard punk de protesto, e quanto mais cru fosse o nome da banda melhor. Entretanto o seu som sofisticou-se, os seus vídeos também, e até a sua linguagem se tornou muito mais metafórica. E, aliás, eu já nem sequer tinha idade para traduzir directamente o nome da banda na altura em que ela apareceu.

    [4] Dantes usava-se o latim para estes mesmíssimos efeitos, e o inglês tem a grande vantagem de ser muito mais simples. Foi exactamente esta simplicidade, e não a extensão do seu Império, que o levou a ganhar a taça da Comunicação Universal ao Francês e ao Alemão durante as batalhas coloniais e românticas do século XIX. E pronto. Já passaram dois séculos, e o esperanto foi um falhanço crasso. Querem espadeirar contra os moinhos? Eu tenho mais que fazer.

    [5] O último post das Pussy Riot no YOUTUBE chama-se PUTIN’S ASHES, e é um tributo ao povo da Ucrânia. O arranque, extremamente conseguido tanto do ponto de vista plástico como do ponto de vista musical, mostra-nos só um sudário com um botão vermelho onde poderemos neutralizar Putin se lá conseguirmos carregar. Está cortado a seguir, mas promete-se a versão integral para Janeiro. Estamos em Janeiro. Estas coisas metem nervos, a sério que metem.

    [6] Veja-se no YOUTUBE a canção PLASTIC, com um vídeo todo elaborado em torno do tema do conceito da boneca Barbie e plasticamente soberbo.

    [7] E há que ver: as audiências americanas são extremamente segregadas, e não é nada fácil pôr os brancos “ao rubro”: tendem a ficar sentados e sem movimentos nem ruídos, as faces imóveis, apenas uns gestos de dedos, uns sussurros para o lado, ou umas batidas de pés para mostrarem a sua alegria. Conseguem ser a companhia mais deprimente deste mundo. Naquela noite, no entanto, passaram-se todos dos carretos. Bom, OK, nem todos. Mas bastantes. Suficientes. Houve ali um calorzinho. É raro a pessoa sentir calorzinho no meio dos americanos brancos. Estou a falar a sério, e de experiência própria. Vivi com brancos, e vivi com pretos, porque na América sirvo para ambas as categorias, sobretudo quando acabo de chegar da praia e desde que comecei a cantar no coro de Gospel da Igreja Africana. Estou em condições de jurar que os dois grupos não se misturam, e que a vida de uns não tem nada a ver com a vida de outros. Os pretos são sempre mais solidários, têm sempre menos dinheiro, vivem sempre em bairros mais pobres, acolhem sempre muito mais pessoas em cada uma das suas casas, recebem salários inferiores para trabalhos idênticos exercidos com as mesmas qualificações, e sim, claro – é muito mais divertido ir aos concertos com eles.

    [8] Sigla da National Public Radio, de longe a melhor, mais intelectual, e mais ambiciosa de todas as rádios americanas.

    [9] Sem ofensa para os nossos funcionários públicos, nomeadamente médicos, professores, e bombeiros. A palavra esconde uma atitude assaz insultuosa por parte da maioria dos americanos.

  • Sebastião

    Sebastião


    A vida tem uma forma bizarra de brincar com as nossas emoções mais profundas, que se torna perdidamente comovente se aceitarmos que vão forças maiores do que a nossa nos comandos, e que a gente nunca as vê até esbarrar acidentalmente com as suas consequências. Por exemplo, algures durante os nossos vinte anos houve uma companhia fundamental que uma noite, subitamente, driblou os melhores e mais desesperados de todos os nossos esforços humanos, e desapareceu numa transparência incompreensível, deixando atrás de si um vazio tão penoso que, de início, nos paralisa. Mas agora, quase quarenta anos mais tarde, a partir do momento em que voltamos a evocá-la com saudade e doçura, essa figurinha delicada começa outra vez a ganhar formas. E, se calhar, vai dar-se o milagre: vai mesmo regressar às três dimensões da nossa vida e iluminá-la por dentro num sopro suave. Quando o Bruno apareceu à minha porta aí pelas sete da tarde, fazia frio, tinha começado outra vez a chover, já estava escuro, e ia ser Noite de Natal. Vinha trazer a minha prenda com o sorriso que só os verdadeiros amigos sabem fazer. Depois de eu lhe ter dito tantas vezes que queria, especificamente, uma cadela, teria alguma razão para desconfiar daquela Maria Alice acabada de chegar, enroscadinha a dormir dentro de uma caixa de sapatos?


    Como os cães vivem muito menos do que nós, entram e saem das nossas vidas em ciclos relativamente previsíveis de uns dez anos de camaradagem perfeita, e  depois deixam-nos desfeitos quando partem. É frequente jurarmos que não voltaremos a ter outro cão, para evitarmos voltar a sofrer tanto. Mas, ao mesmo tempo, o sonho de entrar outro cão na nossa vida torna-se irresistível. Passam uns anos, voltam-se a criar-se as condições, e começamos a sonhar com outra grande aventura.

    Os nossos cães, sistematicamente, são presenças oníricas que vão entrando e saindo, numa lógica que é só deles e nunca nossa, do curso das nossas vidas.

    Agora, os melhores dos nossos cães podem é entrar-nos e sair-nos da vida numa sequência de reencarnações desconcertantes que são eles que inventam. E nós próprios, inadvertidamente, somos parte integrante dessa invenção.

    Por exemplo, eu não faço ideia de qual foi o quadrante do Universo que plantou em mim esta semente, nem como, nem quando. Mas eu sabia, e o Bruno também, que a sua terna e minúscula prenda de Natal tinha necessariamente que ser uma rafeira alentejana chamada Maria Alice.

    Como é evidente, nunca soube de onde vêm as minhas ideias, nem porquê. Mas sei que esta ideia, em particular, me despontou na cabeça assim já toda completa e retocada em 2011. Foi quando me sentei, por fim, a escrever em oito meses  seguidos de imensa paixão o romance que vinha a gatafunhar em apontamentos desde há muito. Todo ele assentava na descrição precisa, e quase insuportável, da vida dos chefes de GEs[1] durante os dois últimos anos da Guerra Colonial moçambicana. Chamava-se esse romance, no seu todo, NÃO PODEMOS VER O VENTO. Este título formou-se porque os Portugueses nunca viram nada, parte porque as operações militares envolvidas eram top secret e parte porque nenhum Português quer admitir que viu outros Portugueses a cometer crimes de guerra da mais inaceitável barbaridade. E tornou-se NÃO PODEMOS VER O VENTO, também, porque o suposto herói da história, que em 1962 liderou operações destas e agora, proprietário de um Turismo de Habitação em Trás-os-Montes, no Solar brasonado da sua família, recomposto e calmo ao contrário de muitos outros ex-camaradas alcoólicos, cocainómanos, anti-sociais, ou de outra forma marcados para toda a vida pelo Stress Pós Traumático[2], parece de início ser suficientemente forte para falar dessas loucuras de juventude e de muitas outras, mas na realidade não – é um acabado mitómano, que atribui a si próprio um sem-fim de situações que foram vividas por outros homens. Explorando com tanta paixão a vida deste aristocrata com passado de assassino, que acaba rapidamente na cama com ele, aparece então, no papel principal feminino, uma psicóloga da actualidade toda despachada, que vive de mãe solteira com as suas duas gémeas iguaizinhas num duplex do Bairro Alto com as janelas voltadas para imagens lindas de colinas cobertas de casarios. Com as três mulheres, no mesmo duplex, vive, ainda, uma quarta mulher. É uma rafeira alentejana chamada Alice, que na minha cabeça se chama sempre Maria Alice em benefício da beleza das frases.

    Era certamente pelo insólito. Quem é que lembraria de inventar um cão daqueles, assim tão enorme, que no entanto se enquadra harmoniosamente num duplex da Lisboa antiga, na companhia de mais três ciclos hormonais femininos? Só eu, mesmo – e, nestas pequenas coisas, gosto mesmo de mim. O conceito da Maria Alice tornou-se-me tão grato que o incluí logo no meu romance seguinte, TODOS OS CAMINHOS. Nessa altura, a Alice vive com a mulher num palacete minúsculo em Alfama agraciado por um jardim com um limoeiro e uma nespereira. Nos dois romances que escrevi a seguir, e decorrem um imediatamente a seguir ao outro, ambos ainda à espera de verem a luz do dia, a mulher que vestiu a pele da personagem principal foi refugiar-se com a Alice numa casinha antiga do Penedo onde a vista desce a serra inteira para mergulhar vertiginosamente no mar.

    Desde que regressei do meu último período de docência e investigação nos Estados Unidos, em 2018, que respondo a toda a gente que não sinto qualquer falta de namorados, nem de companhias de pessoas. Preciso é de ter um cão.

    Agora o Bruno veio cá dar-me uma prenda de Natal incrível, constante da minha ficção antes de constar da minha vida, que tinha dois meses e era a Maria Alice. Uma rafeira alentejana de pêlo escuro e remates brancos nas patas, na cauda, no peito, e no focinho, absolutamente perfeitinha,  que um dia há de vir a ser enorme mas por enquanto só tem dois meses, ainda só conhecia o leitinho da mãe, e portanto é uma bolinha de pêlo hilariante, toda independente, absolutamente adorável, e sempre muito Dona Disto Tudo. Aliás, começou logo a rastejar lentamente pela sombra sem me fazer qualquer pergunta, a tentar roubar-me todas as roupas que eu tivesse acabado de vestir para poder andar a arrastá-las pela casa com um ar sonsinho, e finalmente aninhar-se em cima delas, toda feliz da vida com o cheiro da Mãe. Eu tinha acabado de chegar do hospital e não tinha a menor energia para sair à rua e apanhar chuva e frio, de maneira que passámos os primeiros quatro dias na cama a brincar uma com a outra a coisas giras de miúdas, incluindo descobrir bebés no espelho, alimentar vaidades, e aprender a caminhar com elegância. Só mesmo na manhã do quinto dia, quando a levei ao Veterinário, no debute social em que as meninas de boas famílias vão ser desparasitadas e levar a primeira volta das vacinas, é que descobrimos, com grande surpresa, que afinal o meu bebé não se chama Maria Alice.

    E foi assim que passou logo ali a chamar-se Sebastião.

    É normal, porque já era noite, o monte tinha pouca luz, e os cachorrinhos de dois meses ainda são muito pouco diferenciados.

    O que é maravilhoso é estudar a maneira como o Sebastião, que inicialmente era um cãozinho de olhos quase fechados, que o Germano Almeida me trouxe do Porto em 1984, dentro de um cabaz de galináceos daqueles feitos com vime duro e colorido, voltou tranquilamente a entrar-me na vida como um raio de luz perfeito. Foi só eu quebrar um silêncio de décadas e voltar a falar dele quando recordei o meu casamento com o Meguinha na última semana.

    Esse Sebastião partiu em 1985. Era um jovem boxer malhado muito bonito, com uma grande devoção tanto por mim como pelo Meguinha. Dormia aos pés da nossa cama e passava a noite a rastejar sem ruído pela colcha acima, sempre apostado na proeza de se deitar entre nós de costas sobre o lençol, com a cabeça nas almofadas e as patas da frente para trás, tal e qual como nos via aos dois a dormir. Quando conseguia instalar-se  nesta posição difícil própria das pessoas sem ter sido sequer interceptado a meio e recambiado em pleno voo para a posição de origem, ficava cheio de orgulho em si próprio e não se tirava dali antes de  nós o vermos, radioso – e não conseguirmos impedir-nos de nos partirmos a rir.

    Houve então um dia em que o cãozinho foi comigo ao ensaio do meu grupo de teatro para crianças, numa sociedade recreativa que tinha por sede, sala de reuniões, e pavilhão de espectáculos, uma vivenda antiga em Marvila, grande e decrépita, que já devia ter sido bonita mas já mal se notava. Na sua ingenuidade de cachorro feliz que ainda não suspeita da maldade que pode estar encoberta à superfície do mundo, lambeu veneno de ratos, e morreu nessa mesma noite. Tinha acabado de entrar o mês de Maio. E, de repente, os dias tinham-se posto de novo extremamente frios e chuvosos.

    Em Julho, tão recompostos quanto possível da perda do nosso cachorro, fomos os dois passar quinze dias de férias ao Porto Santo. Enquanto lá estávamos, numa pensão no alto da colina toda virada para o mar, ganhei depressa o hábito de agarrar na máquina de escrever e vir sentar-me todas as tardes, sempre à mesma hora, na luz quente e azul do terraço. Foi assim, perdidamente feliz, a retocar em coros cada vez mais polifónicos sons e sílabas e ideias com uma segurança crescente e voraz, que compus o meu primeiro romance, o AGRIÃO! Que veio a ser publicado pela Relógio d’Água no Outono.

    O Agrião era o cão da matriarca de uma família inteira com três gerações de subúrbios muito feios atolados em bairros camarários onde se realojavam nos anos 60 as pessoas das barracas destruídas para construir o pilar da ponte[3]. Uma noite, subitamente, dormiam eles todos para ali ao molho numa grande paz à excepção dos que se recobriam da sombra dos cantos para poderem pinar em pé[4], esse cão acordava-os a ganir e a uivar numa aflição horrível, rebolava-se pela casa toda no que só podia ser uma dor intolerável, e morria ao fim de meia hora de enorme e insuportável pandemónio.

    Capas do AGRIÃO! (1984) e do PONTO PÉ DE FLOR (1991)
    Duas homenagens sentidas ao Sebastiãozinho que o Germano Silva me trouxe do Porto, no comboio lento que era o único que existia antes de existir o luxo asiático do Alfa, dentro de um cabaz de vime duro cor de laranja e roxo, tapado por duas abas, daqueles onde as pessoas costumam levar e trazer os galináceos para o mercado.

    Poucos dias depois, a matriarca arranjava maneira de fazer uma fractura exposta do colo do fémur, e, em consequência, morria no hospital. Tinha mais de noventa anos, e é muito raro um velhinho conseguir reendireitar-se duma violência destas. O médico que mais tarde vinha fazer a ronda e a encontrava morta dizia para o assistente que de certeza que aquela digna e veneranda idosa tinha, por fim, encontrado o pretexto para morrer que já andava a procurar antes do acidente ortopédico propriamente dito. Porquê, e era esta a última frase do meu primeiro romance, claro que ele, médico, não saberia dizer. Mas sim, a senhora ficara, ultimamente, sem qualquer razão para continuar a viver.

    Morreu-lhe subitamente o cão, que era o último elo de uma cadeia cada vez mais ténue, onde já não entrava uma única pessoa, que ainda a prendia ao seu mundo rural, o único que, para ela, fazia sentido – mas que perdera de vez há menos de um ano. E, aqui chegados, os leitores saberiam de tudo isto, mas o médico não.

    Aquele médico, que vinha concluir o romance a título da grande homenagem que eu queria prestar à sabedoria incrível do meu Pai, só percebia logo era que aquela idosa precisava de um pretexto para morrer. Estes instintos suicidas silenciosos são extraordinariamente delicados, e portanto ninguém fala deles. No entanto, são pequenos detalhes que os médicos com muita experiência de pessoas, e com muito carinho por elas, sabem logo à partida que pode acontecer aos seus pacientes se porventura eles vierem a perder, de todo, a vontade de estarem vivos.

    O AGRIÃO! foi a minha primeira obra de ficção, mas a história da morte do meu Sebastião a meio da noite tal como descrita no livro em grande detalhe, saída de memórias ainda extremamente frescas, a ganir de dores horríveis às mãos de um veneno cujo efeito ninguém conseguiu evitar, foi uma história verdadeira. Não me tirou a vontade de continuar a viver. Mas, em grande medida, tirou-me logo ali a vontade de, só com 25 anos, continuar a ser a cabra daquela Clara Pinto Correia, com tudo o que as pessoas achavam que já sabiam a respeito da dita gaja.

    A Clara Pinto Correia é um personagem de banda desenhada pelo qual eu nutro ainda hoje uma embirração profunda, e já a nutria naquela altura. Assim que pude, deixei Lisboa para trás e fui dedicar-me à Ciência completamente escondida pelas neves pesadas de Buffalo. Ao menos na América ninguém me conhecia. E, ali, as pessoas só me haviam de apreciar se eu fosse excelente a executar o meu trabalho de descoberta e dedução.

    De maneira que, ainda por cima impelida pela excitação de estar mesmo a ver coisas que ainda mais ninguém tinha visto antes, me matei para ali a trabalhar. Em ano e meio publiquei dois papers em Journals com referee. E, entretanto, preparei na íntegra, em silêncio, pela noite dentro, a soma completa de uma outra escrita – aquela que, toda burilada em Português, viria a dar origem ao romance de louvor à promiscuidade em que as mulheres se entregam às grandes amizades umas com as outras, o PONTO PÉ DE FLOR.

    O PONTO PÉ DE FLOR também tem um cachorrinho.

    Capas do NÃO PODEMOS VER O VENTO (2012) e do TODOS OS CAMINHOS (2018)
    Por estas páginas andava já a infiltrar-se a presença pronta a tornar-se real de uma rafeira alentejana toda sofisticada chamada Alice, o que, na minha cabeça, se dizia Maria Alice para que o som das frases ficasse mais bonito. Ora acontece que este ano, na véspera de Natal, quando o  meu grande amigo Bruno daqui de Estremoz (nem mais nem menos, pessoal, trata-se exactamente do Bruno do Zé Russo, que tanto quanto eu sei é um homem maravilhoso, e não tenho medo de ninguém) foi ao monte do amigo dele, ao pé do Vimieiro, trazer-me essa mesma cachorrinha que ainda estava com o resto da ninhada a mamar na mãe – enfim, já era noite, eles aos dois meses mal se distinguem, e foi assim que veio antes de lá um cachorrinho. E que, em consequência, voltei a andar por aí feliz da vida, de Sebastiãozinho ao colo como aos 24 anos. É de uma grande sobranceria completamente estúpida e extremamente perigosa, esta ideia de que podemos, nós próprios que não somos nada nem somos ninguém, modificar à nossa vontade o nosso próprio destino. O nosso próprio destino engole-se, não se modifica. No meu caso, por exemplo, está na cara que o meu destino se chama Sebastião. Não se chama cá nenhuma modernice tipo Maria Alice.

    E esse cachorrinho, completamente criado à imagem e semelhança do meu Sebastião e trazido do Porto para Lisboa dentro de um cabaz de galináceos por um amigo protector da mulher que por um breve momento perdeu o Norte, vai ser o único companheiro que essa alma inquieta traz consigo, ao colo, a dormir, muito calminho porque ainda é muito pequenino, durante os seus quatro dias de peregrinação entre as trevas quando está a procurar o caminho para a luz e inicialmente nem sequer consegue ver onde é que essa luz se encontra. Na sua tranquilidade profunda e inocente de pequeno pássaro que dorme numa ilha deserta, tal e qual como acontecia com o Sebastião se por acaso me fosse dado ficar sozinha com ele, o cãozinho confortava e fortificava a mulher durante toda a corrida daquela imensa montanha russa.

    Para disfarçar, baptizei esse cachorrinho adormecido de José de Oliveira Cosme. Era um dos senhores de OS PARODIANTES DE LISBOA, que tinha uma rubrica pessoal chamada A VIDA É ASSIM. Alguns leitores ainda se lembravam, outros não. Mas todos os leitores acharam o nome tripartido do cachorrinho minúsculo absolutamente hilariante.

    Este romance foi publicado em 1991, ainda voltou a ser falado de novo quando ganhou um grande prémio literário que já não existe, foi vendido para outros países, ainda tive que ajudar alguns tradutores completamente perdidos na poeira daquele calão feminino cerrado – e depois foi flutuando para longe, e levou com ele a memória do boxer que chegou à minha vida adormecido dentro do tal cabaz que o Germano me trouxe do Porto.

    Toda a gente sabe dos poderes misteriosos da nossa memória.

    Foi só eu chegar ao conto de fadas da semana passada e revelar como foi que o Sebastiãozinho passou pelas nossas vidas. As memórias luminosas dele voltaram logo todas para o meu lobo frontal num tropel tão grande, e tão poderoso, que bastou a menina aqui do veterinário de Estremoz me dizer que afinal a rafeira alentejana chamada Maria Alice tinha que mudar de nome porque era um rapaz. Eu respondi imediatamente, antes de pensar, sem questionar de todo a origem das minhas palavras,

    OK, tudo bem, então ponha antes Sebastião na ficha.”

    Bem vindo, Sebastiãozinho. Vais ver, a vida é mesmo tão emocionante como te tem parecido que é nestas primeiras semanas que passaste comigo. Embora darmos juntos um grande passeio por dentro dela, para tu começares a descobri-la? Só nós os dois? O que é que achas?

    Vamos?

    Enquanto fores um bebé, eu protejo-te. Aos seis meses já hás de ser um cão enorme que foi criado especificamente para as funções de guarda ao dono, portanto nunca me perguntas nada, nunca me exiges explicações – proteges-me tu, sem mais conversa, como só os cães sabem fazer.

    Isto vai ser bué bom.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    NOTA SOBRE O TÍTULO: Fui verificar, e conferi sem esforço algum que podia dedicar-me à minha vontade às Urgências Pulseira Laranja onde se carregam as baterias dos leitores. Há vários colegas meus do PÁGINA UM que estão a prestar um óptimo serviço à causa no que toca a zurzir na miserável classe política que nos saiu na sorte. E nesta sorte cabem os políticos venais da maioria absoluta governativa, e os políticos piores que medíocres da sua oposição. Alguém que fique tão desesperado como eu só de pensar no chorrilho de platitudes que ainda vamos ter que ouvir do Luís Montenegro até ele ficar sem voz, por favor levante a mão. É só para eu me sentir assim como que um bocadinho menos sozinha.

    [1] Grupos Especiais. Por regra, constavam de um chefe branco, que treinava e liderava vinte comandos pretos. Foram as mais cruéis de todas as Forças de Comando no final da Guerra, responsáveis, por exemplo, pelos tenebrosos massacres de Wiriyamu. A seguir ainda apareceram os GEPs (Grupos Especiais Pára-Quedistas), mas não foram propriamente ainda mais úteis que os GEs. Foram, melhor que ninguém, certamente, ainda mais um passo em frente na escalada de loucura total que estas duas últimas organizações representaram. A Guerra já estava perdida, e Kaulza de Arriaga sabia isso.

    [2] Eu sei que estes padrões existem apenas porque convivi com vários homens destes, e estive presente em dois dos seus encontros de confraternização em Fátima. Tirando isso, é impossível sabermos números ou padrões. O próprio Afonso de Albuquerque, que depois da Guerra foi O ÚNICO psiquiatra a acompanhar os soldados que voltaram para Portugal com stress pós-traumática, me disse quando eu escrevi o romance que o Regime tinha interditado todo e qualquer estudo relativo à existência de soldados portugueses com traumas. Um soldado português é sempre um moço valente.

    [3] Esses bairros camarários eram meios que eu conhecia muito bem. Tomei como modelo o Lote 1, ao pé da minha casa, onde passava o tempo a organizar para os miúdos os ATLs dos dias de escola e as colónias de férias de Julho. As mães deles eram várias vezes as minhas senhoras da alfabetização. Os pais, era raro vê-los. Iam meter-se compulsivamente nos copos quando voltavam de todas aquelas fábricas ali à volta.

    [4] Detalhes destes não constam só do pano de fundo do FEIOS, PORCOS, E MAUS. Naquela altura, naqueles bairros, aquelas mesmas pessoas que se tornaram famosas por plantarem couves nas banheiras como faz o clã desta ficção viviam mesmo assim.

  • Meguinha

    Meguinha

    Os seus olhos, que tiveram já muitas visões, viram

    quase tudo o que há para ver neste mundo e no outro.

    João Paulo Borges Coelho

    As duas sombras do rio


    Em 1982 as redacções dos jornais eram sítios aguerridos, barulhentos, de secretárias e máquinas de escrever muito velhas encavalitadas onde quer que houvesse espaço, pilhas de papel normativo a que toda a gente chamava com todas as letras linguados e nunca laudas, telefones fixos atirados para cima de qualquer espaço livre, e neste cenário estava sempre alguém aos berros, e a toda a volta estava toda a gente a fumar, toda a gente a engatar, e sobretudo toda a gente a mandar vir, a mandar vir, a mandar vir perdidamente num grande festival de liberdade. No nosso caso, levantávamos ainda mais a voz quando saíamos a terreiro em defesa do que queríamos escrever a seguir, durante as nossas longas reuniões de redacção de sexta feira, depois de já termos apanhado os comboios e posto o semanário O JORNAL[1] à venda em todas as bancas portuguesas. Eu era uma miúda que ainda estava a estudar Biologia e ainda nem sequer fumava nem bebia copos, mas defendia as minhas convicções com tanta energia como qualquer outro daqueles colegas que eu aliás considerava autênticos fósseis vivos[2]; e nesse tempo podia ter opiniões tanto ou melhor do que qualquer outra pessoa, desde que o meu trabalho fosse bom. Nunca disse isto a ninguém porque estava demasiado ocupada a defender-me ao palavrão de todos aqueles engatatões de terceira[3], mas tinha orgulho em nós. Éramos uma grande equipa. O António Mega Ferreira veio jogar connosco nessa altura, numa posição algo confusa mas que se subentendia visar com avidez o avançado-centro. Como era nosso costume, descartámos o António e começámos logo a tratá-lo por Mega Ferreira. Isto simplificou-se rapidamente para Mega. Foi assim que o tratei durante o nosso primeiro ano e meio de convívio digamos que laboral, cada vez mais divertido, e rapidamente carregado de insinuações cada vez menos veladas.


    A questão dos nomes que nos habituamos a chamar àqueles que nos são mais queridos é para ser levada muito a sério, porque é aí que instalamos, quase sem darmos por isso, as nossas mais profundas e mais seguras zonas de conforto. De maneira que, quando começámos a namorar, pareceu-me perfeitamente pífio, e subsequentemente por demais desconfortável, trocar-lhe o nome de Mega para António, como seria de esperar se isto fosse uma história normal. Muito pelo contrário, o que realmente se passou comigo, logo a seguir à enorme ventosa escaldante do nosso primeiro beijo[4], foi um desenvolvimento lógico que me aconteceu a quente, de uma forma nunca antes minimamente premeditada, mas que nessa altura acabou por fazer História.

    Em menos de uma semana de amor, os meus melhores instintos já lhe tinham atenuado o Mega de carácter laboral para o Meguinha de carácter afectivo. Até a minha sogra delirou com este desenvolvimento, e então o nome dele ficou Meguinha de vez, e era Meguinha em tudo, mesmo nas nossas piores discussões[5]. As pessoas que nos rodeavam apropriaram-se num instante desse Meguinha, de tal forma que a minha família nem chegou a conhecer-lhe outro nome: a única diferença, para os meus pais, para as minhas irmãs, e para os meus sobrinhos, foi sempre entre Meguinha ou Tio Meguinha. E toda a gente se riu muito quando eu, outra vez de instinto, comecei a abreviar este Meguinha para Guinha, às vezes até mesmo para Gui. Ele gostava de me tratar por Pretinha, um dos meus mais antigos e mais queridinhos nomezinhos de infância. Isto fez com que as pessoas nos chamassem Pretinha e Guinha. As nossas variações desse tempo foram um fantástico mundo de aventuras.

    Finalmente, depois de um ano maravilhoso de vida em absoluto e perdido estado de pecado na porta giratória da Rua de São Mamede[6], só nós os dois e o Zé Matos e o meu boxer Sebastião aos pés da nossa cama, e as noites dos jardins de Lisboa onde íamos passear com ele, apanhámos toda a gente de surpresa com o cheque-mate mais colorido deste mundo. Sem dizer nada a ninguém, voltei a vestir, com muito orgulho e algumas lágrimas, o vestido cor de pérola da minha Mãe, da minha tia, e da minha irmã mais velha antes de mim; e foi assim que fomos casar-nos à igrejinha tranquila da aldeia dos meus avós. Foi tudo escolhido em cumprimento de uma promessa muito séria que eu fizera vários anos antes aos caseiros do meu avô, durante as vindimas, no intervalo do almoço de um dia quente e abafado de fins de Setembro.

    O Senhor Zé Serrão estava para ali a praguejar que trabalhar com eles nos campos aos quinze anos era uma coisa[7], mas que mais tarde eu havia de ser uma grande doutora muito rica, havia de casar-me com algum outro doutor da mesma laia, e nunca mais iria querer saber daqueles dois pobres velhos para ali votados ao esquecimento sem fim.

    E então eu jurei, perante todas as testemunhas do nosso rancho, que, quando chegasse a hora, ele e a Senhora Amélia seriam os meus padrinhos, fosse onde fosse que entretanto eu tivesse ido parar, na arbitrariedade total dos acasos deste mundo.

    Mantivémos o evento limitado às dimensões da casa do Avô Jacob e da Avó Pinta, só mesmo com as famílias imediatas e os amigos mais próximos. O nosso casamento pertencia ao foro da alma. Penetra não entra.

    Isto, para mim, era uma questão de honra, e com igual intensidade uma profunda questão de fé. Pelo seu lado, o Meguinha, que nem sequer era católico, adorou aquela linda canção de embalar com a promessa feita pela doutorinha às pessoas do povo durante as vindimas, apropriou-se logo dela, retocou-a e puxou-lhe o lustro, repetiu-a à sua Mãe e aos seus amigos que sabiam do grande segredo[8], e viajou lá dentro enquanto autêntico passageiro feliz, de medidas cumuladas por tanto pitoresco.

    Nas três semanas de preparação para o domingo do enlace ele andou ocupadíssimo a esmiuçar as inúmeras impossibilidades do catolicismo com os padres inteligentes que se divertiram à grande com a tarefa insana de irem lá a casa para debaterem e rirem com gosto enquanto se sentavam connosco à mesa que eu punha com todos os cuidados[9], bebiam ali uns bons copos de um Vinho Verde soberbo e petiscavam uns belos de uns petisquinhos que eu lhes trazia da cozinha como quem não quer a coisa, e de caminho nos ajudavam a tornar toda aquela anarquia viável[10]. Por isso eu tive que tratar das alianças sozinha[11]. A minha dizia CLARA, como seria de esperar. E a dele dizia mesmo, assumidamente, MEGUINHA. Entre nós, já ninguém se lembrava de que ele antes tivera outras vidas, onde porventura fora outra pessoa e recebera outros cognomes.

    Cinco anos depois, o nosso telefone tocou no escuro, pouco passava das seis da manhã e sabe-se logo que um som destes não é um bom sinal. Fui atender assustadíssima, mas o meu cunhado recusou-se a falar comigo. Quando finalmente o Meguinha lhe atendeu, ainda tonto de sono e a protestar que eu era louca, cheguei a ouvir a voz do outro lado da linha a dizer “o nosso sogro está muito doente”. A seguir sentei-me na cama num silêncio de absoluta consternação. Murmurei, apenas, “pronto, acabou.”

    A velocidade destas coisas é cruel ao ponto de nos deixar mudos.

    Pouco depois estava o meu Pai a morrer de cancro aos 56 anos, quando acabava de revolucionar completamente a sua vida e se tinha, por fim, transformado num homem tão feliz que nos emocionava e contagiava a todos na inspiração única da sua figura carismática que agora era maior do que a vida.

    Só foi feliz durante um ano, e o cancro reclamou-o em sete meses.

    Logo a seguir ao funeral, finalmente desfeita que ficou com ele a historinha exemplar Pretinha e Guinha, parti eu também para as neves eternas de Buffalo. Foi a minha vez de revolucionar de alto a baixo o meu pequeno mundo na grande gesta de concluir o doutoramento. Foi ali que vivi, por fim, a emoção de arrancar histórias ainda completamente desconhecidas ao grande silêncio das bancadas dos laboratórios, sempre em imenso esforço, e sempre, sempre debaixo de tanto gelo e tanto frio que nunca consegui olhar para trás. Durante muitos anos, nunca mais voltei a ver a Rua de São Mamede. Aliás, nunca mais soube da data precisa da floração simultânea dos jacarandás em todas as ruas que vão lá ter, a grande explosão psicadélica do mais vibrante púrpura que marca infalivelmente o início de cada Verão[12]. Quando, por fim, defendi as minhas provas no Instituto Abel Salazar, já o primeiro ministro era o Cavaco Silva, que já nos tinha ordenado, numa sobranceria que a gente dantes não usava, “deixem-nos trabalhar”. Havia boçalidade. Notava-se por todo o lado a presença indecorosa de um dinheiro que no entanto ninguém tinha, só me falavam de arrancar oliveiras e de destruir barquinhos da frota de pesca artesanal, aquilo não pressagiava nada de bom e o meu País, crivado de IPs e de portagens, estava por demais irreconhecível.

    O conto de fadas, no entanto, nunca deixou de existir, tal como ficou gravado para sempre, com toda a nitidez, nos anais da memória afectiva de São Mamede.

    É que, sabem, contei-vos esta história toda pelo que vale enquanto documento. Tenho presente, sem qualquer margem para dúvidas, que os anos de São Mamede, quando o Meguinha era o Padrinho e eu era a Mãe e absolutamente tudo era possível, não se limitam ao conto de fadas.

    Na realidade, são o testemunho bem sucedido de uma época dourada em que ainda não existia a Europa, e nós ainda estávamos a testar a nossa liberdade[13]. Nos anos de São Mamede tinha eu começado a publicar os meus primeiros romances sob a vigilância atenta e delirante do Meguinha, existiam ainda verdadeiros críticos literários que defendiam as suas opiniões com verdadeiro brilhantismo, e Portugal era orgulhosamente o País que muito bem quisesse ser. Sabíamos que podíamos fazer tudo, desde que déssemos mesmo o litro e oferecêssemos mesmo o nosso melhor aos outros. E então a embalagem do nosso delírio criativo fazia nascer em São Mamede, de volta dos meus jantares lendários e sob a égide regalada do Meguinha, livros, ilustrações, fotografias a preto e branco pintadas por cima a cores, canções, espectáculos inteiros testados e rodados em palco para grande exuberância das audiências e felicidade sumamente grata do Meguinha[14], quadros a óleo, aguarelas, programas de rádio, tudo feito de raíz e tudo experimentado pela primeira vez. Perante os nossos resultados finais vi por vezes o Meguinha chorar de alegria[15] em público e sem reservas, num pranto de comoção assumida e puramente estética. Na altura era o melhor dos seus agradecimentos, e tudo fazia perfeito sentido. Íamos para a sala beber digestivos e fumar charros, a deixar correr a noite numa grande alvorada de ideias. Era um País ainda sem autoestradas que era muito bonito e estava feito mesmo à nossa medida, um País feliz e independente, cheio de leveza e de possibilidades.

    Portugal era então um País que já não há.

    Nunca mais volta a haver[16].

    Vive sempre em nós, no entanto, a imagem grata do Meguinha a pôr as cuecas na cabeça em sinal de protesto[17].

    Na contracapa da colectânea A MÚSICA DAS ESFERAS, já muitos anos passados sobre a ocorrência, volta a aparecer esta jovem Pretinha numa foto paternal do Guinha. Foi primeiro tirada por mero acidente aos pés do Corcovado durante uma viagem festiva ao Rio e a Minas Gerais, quando fomos os padrinhos de casamento da Ana, que ainda hoje é a minha melhor amiga. Substancialmente mais tarde, veio a estrear, de forma discreta, na contracapa do romance ADEUS, PRINCESA. A seguir foi circulando de contracapa em contracapa como se o tempo não passasse, sobre uma vida real feita de enlaces e desenlaces, partidas e cegadas, casamentos e divórcios. E fez todo este percurso sem nunca incomodar ninguém, porque observou sempre um total anonimato em relação ao seu autor. E, sobretudo, porque era uma foto que oferecia total confiança, em toda e qualquer data, para toda e qualquer contracapa. Tinha o Selo de Garantia da Marca Meguinha.
    O Meguinha foi a primeira pessoa a ver-me começar a escrever um romance que parecia literalmente vindo do nada, e o primeiro a entusiasmar-se perdidamente, sem qualquer disfarce, com o que considerou desde o primeiro dia a grande qualidade da minha escrita. Depois leu algumas das melhores passagens do AGRIÃO! aos amigos reunidos em São Mamede numa das nossas jantaradas homéricas, onde tanto estavam os jovens prodígios musicais da minha banda como estavam o António Alçada e o Hermínio Monteiro. Nessa altura maravilhosa não houve nada que não nos fosse possível, porque vivíamos num País de grande felicidade e independência do qual já não restam hoje os menores vestígios.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Mais tarde, O JORNAL daria origem à presente assépsia da VISÃO, mas são obras representativas de galáxias completamente diferentes, cada vez mais distantes na expansão imparável do nosso Universo.

    [2] Pouquíssimos anos antes, no final do liceu e ainda em pleno PREC, fui uma militante toda vivaça das temíveis BEFS. As Brigadas de Extermínio aos Fósseis especializavam-se em telefonar para casa dos fascistas, aterrorizando as mães deles com contundentes “Brigadas de Extermínio aos Fósseis! O seu filho que não saia de casa hoje! Não voltamos a avisar!”, e outros avisos assim. Muito fascista chumbou por faltas devido à nossa obra.

    [3] Numa noite de fecho, completamente grosso, o Joaquim Lobo chegou a saltar para cima da minha secretária – e depois ficou lá perdido, em pé, desamparado e infeliz, sem enxergar sequer uma sequência lógica para a parvoíve inútil daquele gesto ébrio. Eu nem disse nada, e limitei-me a ir continuar a trabalhar para outra secretária. Aquilo era bom. Éramos verdadeiramente um filme.

    [4] E então? Há azar?

    [5] Tínhamos os dois imensas convicções, e para benefício do seu próprio personagem o Meguinha imaginava a meu respeito cenários insultuosos que me enchiam de revolta. Portanto discutíamos imenso, e sempre com imensa paixão. Eram fogos-fátuos, no entanto. Eu fartava-me depressa, calava-me – e depois ficava ali de espectadora, assaz fascinada, a espiar minuciosamente todos os incríveis teatros do Meguinha. Irresistível, louquíssimo, deveras arrebatador. Estava ali, decerto, um homem capaz de dar com o Maquiavel em doido. Não há assim para aí muita gente que possa gabar-se de possuir os mesmos dons.

    [6] Entrava e saía muita gente à procura de abrigo, e, sobretudo, de carinho e de calor. Uma das melhores especialidades da casa, que ainda tinha aposentos de criada e para onde eu ainda tinha contratado uma daquelas mulheres-a-dias mesmo de todos os dias que nós tínhamos na altura, foi a de albergar amigos em estado de terrível crise. Entravam perdidamente desfeitos, descansavam, começavam a rir connosco, vinham à praia na minha carrinha 4L novinha em folha, de caminho apreciavam devidamente o teatro bestial em que o Meguinha, sempre sentado no lugar do morto com o Sebastião ao colo porque não sabia guiar, via o cartaz enorme a dizer “SEIXAL SAÚDA-O” e bradava em tom perfeito de oratória parlamentar  “Mas eu não quero ser saudado pelo Seixal!”, atordoavam-se com as nossas colecções discográficas que não eram iguais às de mais ninguém, nem queriam acreditar nas pessoas que apareciam por ali à hora de jantar todas como quem não quer a coisa, e acabavam por sair absolutamente refeitos, gratos para sempre.

    [7] O Senhor Zé Serrão estava sempre a praguejar. Nem sabia falar de outra maneira. Só não praguejava com a Senhora Amélia, que ainda era linda e ele ainda amava com todo o coração. E também nunca praguejava com a mula, que vivia em casa com eles e entendia tudo o que o dono lhe dizia.

    [8] Depois de já estarmos casados repetiu-a com gosto a toda a gente educada e culta que o quis ouvir. Era uma história cada vez mais bonita e acrescida do poder metafórico de verdadeiros jogos luminotécnicos como os que são usados nas óperas, porque o Meguinha sempre se preocupou cuidadamente com a construção e colocação em perspectiva de todos os seus cenários.

    [9] Toda a gente se lambia com os meus peixinhos da horta de alho francês mornos e crocantes, que eram, em segredo, mais uma variação sobre a tempura do que um sinal de respeito por qualquer tradição portuguesa. E claro, bastava engrossar a massa e picar bem o alho para oferecer também aos convivas umas verdadeiras pataniscas de luxo. Eu chamava-lhes mesmo assim, para proteger o seu segredo: “experimentem as minhas pataniscas de luxo”. É um legume integrante das bancadas de alquimia, o misterioso alho francês. Cura gripes, restaura forças, e assume sabores inesperados conforme as ligações que se lhe oferecem. Trata-se bem, e com devida paciência. Não há cá segredos descobertos de um dia para o outro, e aliás as minhas primeiras experiências saldaram-se em desastres de monta.

    [10] Inicialmente, o Meguinha parecia nem sequer ter certificado de baptismo, de tão anticlerical que fora a sua família. Isto obviamente inviabilizaria qualquer casamento católico, pelo que ainda chegámos a considerar a hipótese hilariante de o baptizarmos antes de o casarmos. Finalmente, com a ajuda da minha sogra, lá consegui descobrir o documento numa junta de freguesia perdida pelas ruas paralelas da Baixa, e acabou-se logo ali a galderice.

    [11] Também as paguei sozinha. Nem pensei no caso, porque estas situações eram a regra daquela altura. O Meguinha dedicava-se voluptuosamente a projectos fascinantes que lhe apareciam pela frente com grande frequência como cantos de sereia, entregava-se-lhes de corpo e alma, sonhava acordado, subia todos os degraus até aos píncaros, e depois não era pago. Na revolta justiceira desencadeada por estes desfechos de mau gosto, verificava num olhar automático se eu estava bem vestida e bem penteada, agarrava-me pelo braço, e arrastava-me para jantar na esplanada amena de um dos restaurantes mais caros das redondezas. Pedia entradas e sobremesas, no fim bebia ritualmente mais do que um balão do seu tradicional Cutty Sark com duas pedras de gelo, e o vinho era sempre muito bom e muito caro. Este período de anarquia esconde a primeira e única vez em que eu fui ter com o meu Pai ao consultório, morta de vergonha, para lhe pedir dinheiro emprestado porque nos últimos dias já tinha esgotado de vez as várias potencialidades secretas da minha lata de Atum Tenório, não me restava absolutamente mais nada lá em casa, e se o Meguinha soubesse disto íamos logo outra vez para um restaurante de luxo esbanjar com grandes faustos imenso dinheiro que não tínhamos. Pedi uma daquelas pequeninas notinhas de vinte escudos, nunca mais me esqueço. O Pai ficou tão aflito que insistiu em dar-me antes vinte contos. Depois ofereceu-se para falar ele com o Meguinha. Foi assim que a estabilidade começou por fim a penetrar nas nossas vidas, e também isto pertence aos toques colaterais mais comoventes da história.

    [12] Por acaso, a floração dos jacarandás é um bom exemplo de pequena história científica que, desde que muito bem contada, fazia o Meguinha lacrimejar de alegria.

    [13] Por exemplo, aos 25 anos conquistei à custa de muito berro e muito insulto o direito a celebrar o Dia Mundial da Mulher com uma grande reportagem sobre a vida das lésbicas. Já estávamos a quase nove anos do 25 de Abril, mas a homosexualidade ainda era um segredo, e ainda nenhum jornalista lhe tinha oferecido nenhuma reportagem. E muito menos às mulheres. Na altura, ainda valiam muitíssimo menos que os homens. Estávamos longe de já termos conquistado tudo. Ilustrativamente, o Meguinha, quando soube desta reportagem, ficou furioso porque estava atento a tudo. Detestava aqueles meus “comportamentos marginais”, porque a minha imagem de “miúda malcriada” se reflectia negativamente nele.

    [14] Este era um cenário bizarro e raríssimo, cheio de sabores e texturas experimentais, delicados e inebriantes, daqueles que acompanhavam maravilhosamente o seu percurso.

    [15] O que é que foi, pá? Outra vez?

    [16] Nesse País perdido o Meguinha era o nosso único Cappo, e só ele é que podia ditar regras. Podia repreender-nos à vontade quando nos considerava imaturos, ou descontrolados – ou, muito pior do que todas as outras falsas partidas deste mundo, medíocres mesmo. Quer isto dizer que, ao serviço da arbitragem cultural, nos punha os pés à parede com grande frequência. Depois enfatizava esses gestos com um olhar indignado da mais pura revista à portuguesa no seu melhor, que lhes dava um toquezinho Beatriz Costa e os rematava na perfeição. Aquilo, connosco a ver, era do melhor que havia. Dava-nos logo vontade de fazer melhor.

    Ah sim, pois foi. Pois foi. Criou algumas assinaturas únicas, o Meguinha.

    [17] Eram mesmo cuecas, porque na altura ainda nem sequer existiam os boxers. E todas as cuecas eram brancas, como mandavam as leis do mais elementar decoro no trajar da roupa interior. Pessoal, vamos lá a atinar, quando nós nos casámos ainda nem sequer existiam as lojas dos chineses, então – e, no princípio deste conto de fadas, ainda nem sequer existia a Feira de Carcavelos! Onde é que vocês queriam que eu lhe comprasse cuecas coloridas?

    Aliás, e que comprasse. O Meguinha nunca as usaria. Não as consideraria de bom-tom.