Ó cores virtusis que jazeis subterrâneas Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize Represados clarões, cromáticas vesânias No limbo onde esperais a luz que vos baptize
As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis
Camilo Pessanha
POEMA FINAL
in CLEPSYDRA (1920)
A SABEDORIA PERDEU-SE, OU ENTÃO AINDA NÃO CHEGOU[1]
Caros leitores, é frequente as grandes estreias acabarem por funcionar como ensaios-gerais. Pensávamos que estava tudo perfeitamente afinado, mas depois foi isto, foi aquilo, foi o raio que o parta – tudo bem, passa-se à frente e faz-se melhor na vez seguinte. Há quinze dias, na estreia da nossa nova rubrica de História Natural “A LUZ QUE VOS BAPTIZE[2],” acumularam-se diversos problemas mas o último foi o pior e era assaz impensável – desapareceram as duas últimas páginas, deixando a frase completamente sem sentido, o parágrafo francamente desiquilibrado, e a peça muito coxa[3]. Ainda por cima, eram os dois parágrafos que concluíam a história de como herdámos a ciência dos dias de hoje.
No ensaio-geral passado, falávamos da angústia que o Homo sapiens sentiu há duzentos mil anos quando se diferenciou das outras oito espécies do género Homo ao desenvolver no cérebro um lobo frontal pensante[4], e, como tal, ficar a braços com centenas de perguntas que não tinham resposta – como, por exemplo, “quem é que vai à noite acender todas aquelas fogueiras no céu?[5]”.
As primeiras respostas para as estrelas, para a dança do sol com a lua e da lua com as marés e tudo isto pelos vistos com o sangue menstrual, para a diferença entre a água e a terra e entre o ar e o fogo, para o rodar das estações e para a penúria que alterna com a abundância – para tudo o que se perguntou nas primeiras palavras da linguagem articulada, a primeira resposta esteve na mitologia.
O problema é que ninguém trava guerras por mitos.
A mitologia tornou-se muitíssimo mais compreensível, e portanto muitíssimo mais acessível ao consuno de massas, quando se transformou em religião.
E, agora sim, a última parte, aquela que ficou de fora…
Há por fim uma terceira transição que se baseia no saber mais complexo[6] acumulado ao longo do caminho. Em relação às outras duas, esta terceira mudança dá-se quase num piscar de olhos. E, desta vez, está baseada em estudos tão matematicamente afinados, e também tão universalmente comprováveis, como, por exemplo, as investigações de Newton sobre os poderes da gravitação universal.
Quer isto dizer que nasceu, por fim, a ciência moderna?
Não foi, certamente, aquela ciência moderna que se imaginaria num primeiro instinto.
A gravitação universal é o exemplo perfeito deste fenómeno.
Era uma força tão perfeita, e pelo que se compreendia tão fantasticamente eterna, que foi tomada pelo próprio autor desta primeira Física do Universo como a face visível de Deus.
escreveu Alexander Pope como epitáfio para o amigo. E o amigo de Pope, quando falou pela primeira vez da Gravidade no glorioso PRINCIPIA[8], referiu-se bastante mais à Bíblia do que à Matemática, e bastante mais aos Profetas do que à Física[9].
Toda a fina flor do Século das Luzes concordou com ele, as traduções do PRINCIPIA para várias línguas europeias feitas por grandes nomes da época foram imediatas, e este esforço incluiu o famoso NEWTON PARA SENHORAS, financiado pela incansável filantropa científica Madame de Châtelet. Esta senhora teve também para a nossa cultura o benefício de ser tanto amante quanto inspiradora de Voltaire, que compôs diversos trabalhos na mansão de campo que a sua musa mantinha nos arredores de Paris e à qual dera o nome de LE JARDIN DES DÉLICES, mas enfim – não estamos aqui para escrever colunas sociais da !HOLA!, ao melhor estilo “la cantante nos recibe en un rincon de tranquilidad de su finca,” mesmo que disfarçadas sob o manto diáfano da informação interessante relativa à história do pensamento científico[10]. Todo este entusiasmo, todo este uníssono, vieram depois a inspirar vários autores a escreverem livros simples sobre a Gravitação Universal que não exigissem grandes conhecimentos de Física ou de Matemática[11]. E algum europeu culto poderia sentir-se mais iluminado do que pensando pertencer ao grupo daqueles que, por fim, haviam sido capazes de encontrar e entender a forma como Deus se mostrava à humanidade?
E é assim, depois de centenas de anos de estudos e explorações, que, a partir da mitologia, e depois da religião, começa, por fim, a nascer a ciência.
Eu disse uníssono?
Como toda a gente sabe, uníssono é fenómeno que a História desconhece.
Este regresso radioso de Deus ao coração mais moderno da Ciência foi, logo no século XVIII, motivo de irritação profunda para grandes matemáticos como Huygens e Leibnitz, mortificados por verem os seus pares voltarem a mergulhar nas cantigas de boa métrica e melhor rima em que o príncipe e a princesa se casam, têm muitos filhos, e são felizes para sempre. E todas estas tolices, ainda por cima, depois de se seguir à voz de Descartes um século inteiro de esforços incessantes de fazer uso da física e da matemática para proporcionar à população europeia o uso puro e liso da razão.
Se há bipolaridade perfeita no pensamento europeu é a que tem a geometria de Descartes de um lado do espectro,[12] e os milagres divinos de Newton do outro lado. Estas duas atitudes estão num raio de oposição sobre o verdadeiro significado do arco-íris que não precisa de mais de cinquenta anos para se extremar por completo. E a conclusão não podia ser outra. Já bastante entrado nos anos, Descartes acaba por não ter patronos que continuem a financiar a sua geometria onde os homens só precisam do seu próprio pensamento para poderem existir. Sendo assim, não está em condições de recusar o convite da Rainha Cristina para se juntar à sua corte de sábios exilados no frio da Suécia, a mesma que, entre muitos outros nomes brilhantes, vira há pouco tempo passar o Padre António Vieira. Cristina andava fascinada com a localização da epífise, o ponto onde a alma se prende ao corpo, que Descartes, na sequência de investigações anatómicas aturadas, considerara localizar-se entre os dois hemisférios do cérebro, mais precisamente na glândula pineal[13]. Teria sido um belo tema de conversa se não fosse dar-se o caso de a rainha ter grandes insónias e querer falar com o seu grande sábio a altas horas da noite. Não sei se estão bem a ver. Suécia. Um castelo. Tudo em pedra e pés direitos altíssimos. Neve e gelo por todo o lado. O pobre sábio, idoso e estremunhado. Foi assim. Descartes morreu de pneumonia na corte da Rainha Cristina. Ninguém sabe onde é que a alma se prende ao corpo. A seguir morre Newton. Os ingleses vêm para a rua ver passar o seu caixão, num Funeral de Estado todo ele feito de pompa e circunstância. Ou, francamente – de que é que julgam que o povo gosta?
“A mente humana não suporta os caminhos exigentes.” vituperou Leibnitz numa das suas cartas a Huygens. “Bastou um século de racionalidade, e o homem já está de novo em busca de explicações para os fenómenos naturais todas elas baseadas em contos de fadas.”
Goste-se ou não se goste de ver as coisas postas assim, no entanto, é exactamente de longas desgarradas sobre um ou outro milagre maravilhoso, quiçá apresentado nesse tom piegas que a mim me agrada tanto, que falaremos daqui para a frente.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Mario Vargas Lhosa, inTHE STORY TELLER. Parafraseando a estupefacção dos índios amazónicos que caminham sem cessar pela margem do rio, fugindo da ganância ignorante dos colonos brancos.
[2] Este verso é tão bonito, tão bonito, que há décadas que quero usá-lo como título de qualquer coisa. Aqui, onde se contam as histórias da vida e de como essas histórias viram a luz do dia num esforço de muitos séculos, não podia ser mais adequado. Em cada uma destas crónicas, é verdadeiramente a luz da vida que vos baptiza. Hm? Tomem e embrulhem. “E mandem para o Biafra,” como se acrescentava quando eu era pequenina. Para onde será que se manda hoje?
[3] “Peça coxa”: forma de dizer “esta merda que tu escreveste não se entende” utilizada pelas chefias em 1980, quando eu comecei a estagiar no saudoso semanário O JORNAL.
[4] Exactamente ao mesmo tempo, endireitou-se como ninguém antes dele na postura bípede erecta. Deve ter sido um daqueles momentos de quase colapso por too much information.
[5] Reparem, esta pergunta implica que aquele pessoal já conhecia o fogo, e mais – sabia fazê-lo. O Homo sapiens limpou da face da Terra todos os outros Homo, todos os austrolopitecos, todos os pitecantropos, isso é verdade. Mas já cá chegou com algumas tarefas fundamentais facilitadas.
[6] Ou mais empírico, conforme os saberes. E não desmerecendo.
[8] De nome completo PHILOSOPHIAE NATURALIS PRINCIPIA MATHEMATICA, ou seja, PRINCÍPIOS MATEMÁTICOS DE FILOSOFIA NATURAL.
[9] Esta seria, aliás, a reacção a esperar à luz do pensamento da época, segundo o qual quanto melhor conhecêssemos o funcionamento da Natureza melhor conheceríamos a imensidão dos poderes divinos.
[10] No entanto, de entre este grande manancial dessas informações, registe-se que foi nos jardins de LES DELICES que se fizeram várias traduções do NEWTON PARA SENHORAS e várias entradas de L’ENCYCLOPÉDIE. Convém, também, não nos esqucermos de que foi exactamente durante uma das suas estadias no LES DELICES que, em 1755, na manhã do dia 1 de Novembro, Voltaire soube das catástrofes vindas da terra, do rio, e do fogo, que acabavam de dizimar aquela que era à época a cidade mais rica da Europa, e compôs em estrofes heróicas o devastador POÉME SUR LE TREMBLEMENT DE TERRE DE LISBONNE, que ainda hoje muitos historiadores consideram o grande marco do fim do Optimismo, e do seu lema “tudo corre bem no melhor dos mundos possíveis.”
[12]Do espectro, topam? Newton descobre que quando a luz branca incide num prisma de vidro na presença da luz se desdobra do outro lado do prisma nas sete cores do arco-íris; e é deste milagre que nasce a Óptica. Toma lá fresquinho, Descartes. Grande trocadilho. Pareço mesmo um homem.
[13] Pois, cogito ergo sum e tal, evitam-se os milagres e o próprio Deus como hipóteses explicativas, mas não exageremos. É indiscutível que a alma existe. Ah, está-se bem.
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Héctor Abad Faciolince (tradução: Margarida Amado Costa)
Editora (Edição)
Alfagura (Outubro de 2023)
Cotação
18/20
Recensão
Aqui. Hoje.Já somos o esquecimento que seremos.A poeira elementar que nos ignorae que foi o rubro Adão, e que é agoratodos os homens, e que não veremos.Já somos na tumba as duas datasdo princípio e do termo. O caixão,a mortalha e a obscena corrupção,os triunfos da morte e as endechas.Não sou o insensato que se aferraao mágico som de seu nome:penso com esperança naquele homemque não saberá quem fui sobre a Terra.Sob o indiferente azul do céuesta meditação é um consolo.– Jorge Luís Borges
Este livro deve o seu título a um verso deste belíssimo poema de Jorge Luís Borges (associado a ele há uma polémica interessante que pode ser lida aqui) que o pai do autor trazia, em manuscrito, no bolso, juntamente com uma lista de ameaçados de morte na Colômbia da época, e que foi salpicado de sangue no dia em que o assassinaram, a sangue frio, na rua, quando se dirigia ao velório de um amigo.
Somos o esquecimento que seremos é um retrato íntimo de uma família, e descreve uma relação onde pai e filho se idolatram mutuamente; onde o filho mais do que justifica a sua adoração pelo progenitor, mas que parece nunca perceber o que leva o pai a confiar e a gostar de si tão incondicionalmente. Em que o pai é personagem principal e o filho lhe presta um maravilhoso tributo por ter sido, como homem, a todos os títulos, um ser superior. Diz o autor, logo na primeira página:
“O menino, eu, amava o senhor, seu pai, acima de todas as coisas. Amava-o mais que a Deus. Um dia, tive de escolher entre Deus e o meu pai, e escolhi o meu pai.”
E, de facto, trata-se de um amor filial enorme em que o autor, único filho rapaz, numa casa cheia de irmãs e outras mulheres, desenvolve numa relação íntima, visceral, com o pai e que não é muito comum ver-se.
“Eu gostava do meu pai com um amor que nunca mais voltei a sentir até ao nascimento dos meus filhos. Quando estes nasceram, reconheci-o, porque é um amor igual em intensidade, embora diferente e, de certa maneira, oposto.”
A 25 de Agosto de 1987, o pai, o médico colombiano Héctor Abad Gómez é assassinado por paramilitares em Medellín, uns dias antes de umas eleições em que era um dos candidatos. Seis balas na cabeça puseram fim a uma vida de luta contra a opressão e a desigualdade social, num país amordaçado pelo narcotráfico e pela política suja.
Este é, pois, um livro dedicado às memórias, ao pai e a uma época conturbada e de crescente violência política na Colômbia dos anos de 1970 e 80. Duas décadas depois, o filho, um dos mais prestigiados autores da Colômbia escreve esta obra-prima.
Médico de profissão, o pai de Hector dedicou-se a lutar contra a falta de oportunidades iguais num país mergulhado em violência, desigualdades sociais e violação constante dos direitos humanos. Entre diversos episódios – uns caricatos, que arrancam sorrisos; outros comoventes, capazes de nos levar às lágrimas -, somos apresentados à sociedade colombiana e a outros modos de vida.
“O meu primeiro contacto com o sofrimento não foi em mim, nem em minha casa, mas nos outros, porque, para o meu pai, era importante que os filhos soubessem que nem toda a gente era feliz e afortunada como nós e parecia-lhe necessário que conhecêssemos desde crianças o padecimento, quase sempre devido a desgraças e a doenças associadas à pobreza, de muitos colombianos.“
Do relato verídico contado na primeira pessoa, tecem-se considerações detalhadas (e polémicas) sobre o papel da religião católica na América Latina. Também as correntes políticas — comunismo, socialismo, liberalismo e conservadorismo — têm um destaque primordial, bem como os conceitos de «esquerda» e de «direita», essenciais para a compreensão de todos os factos descritos por Héctor.
É uma história densa e comovente, desprovida de lugares-comuns. É a história de uma dor que cicatrizou, mas que prevalece. De uma memória que permanece pela força das palavras e que quer evitar o esquecimento de um humanista que viveu em prol dos outros, e para uma sociedade mais livre e justa. E ainda o principal responsável pelo filho que educou e que sempre incentivou:
“Creio que o único motivo por que fui capaz de continuar a escrever todos estes anos e de entregar os meus escritos à imprensa foi saber que o meu pai teria desfrutado mais do que ninguém com a leitura destas páginas minhas que nunca pôde ler. Que não lerá nunca. É um dos paradoxos mais tristes da minha vida: quase tudo o que escrevi foi escrito para alguém que não me pode ler.“
É um belíssimo livro que não se esquecerá facilmente.
Convocámos este título inconfundível porque, já que aqui chegámos, aproveitamos a embalagem e, de caminho, homenageamos também a Grande Arietta Franklin. Pode não ter queimado um único sutiã, mas exigiu respeito a vida inteira. Tinha a voz perfeita para isso, e a legitimidade de um passado em que os avóseram escravos. Nunca militou por causas especificamente feministas, mas – ah. Que grande sobressalto causava a sua presença enorme em palco. Era o tipo de presença que nenhum homem poderia alguma vez vir a ter. Era o tipo de presença que ensinou à nossa geração umas lições muito sérias que nós, felizes e estouvadas, bem precisávamos de aprender. Porque era o tipo de presença que só podem ter aquelas que, como Arietta Franklin, ergueram o queixo e, muito naturalmente e muito assumidamente, foram m-u-l-h-e-res muito grandes. And hey, now you deal with it[1].
Quem muda seja o que for no mundo racista, chauvinista, paternalista e sexista da música soul está evidentemente a mudar alguma coisa no mundo. Sendo assim, claro que o mundo foi mudado por esta mulher enorme que entra em palco de visom comprido, seguida por um coro de Gospel. Vai sentar-se ao piano, solta de lá aquela voz rouca de timbre assombroso que já tinha aos catorze anos, canta até chegar ao clímax final, começa a subir com o coro por trás e vamos lá, “you make me feel like a natural woman – a woman – a woman – a woman – a wo-o-o-o-man!” – e, na batida em crescendo da música, franze as sobrancelhas, salta do piano, agiganta-se de pé no palco, levanta os braços, e – ó momento! – despe e atira para o chão o seu casaco de vison, enquanto o coro explode em harmonias atrás da sua voz sempre firme. No camarote presidencial, Carole King[2] vai ter um AVC a qualquer momento. Michelle, nessa noite linda de morrer, levanta-se sobre o voo do casaco e desata a aplaudir como quem dança. O Primeiro Presidente Negro dos Estados Unidos encostou a cabeça ao espaldar do cadeirão e secou uma lágrima[3].
Arietta foi aqui chamada como termo de comparação para a portuguesa Maria Antónia Fiadeiro, que eu ouvi cantar várias vezes quando ela se juntava ao meu bando nas nossas noitadas ocasionais de aventura pós-laboral conjunta[4]. A sua voz também era rouca, as suas harmonias também eram certas, as suas notas também eram firmes. Quando íamos aos fados vadios mandávamo-la para a frente nas desgarradas, e as suas quadras de improviso tinham sempre um duplo sentido latente, promissor e ardente[5]. Íamos sentar-nos no alto das colinas, a ver as luzes dos barcos no rio, e ela nessas noites punha sempre uma boina. Até que houve uma noite particular, numa esplanada enorme que existia nessa altura ao cimo do Bairro Alto, onde já chegámos todos completamente mocados e nas duas horas seguintes nos estivémos a deliciar com muita cerveja, muita conversa boa, e muitos peixinhos da horta inacreditáveis que se serviam ali naquela altura.
Nessa noite, e apenas nessa noite, tinham aparecido mesmo no fim do espectáculo alguns Portugueses Muito Importantes. Os outros Portugueses estavam a bater-nos palmas quando se ouviu dizer que íamos fazer um encore para os recém-chegados. Ficou mais gente, entrou mais gente, nós não percebemos nada mas éramos miúdos – repetimos tudo. Fomos para os peixinhos da horta estafados e felizes, comemos e bebemos e falámos, a Fiadeiro presidiu com graça e sabedoria, e por fim toda a gente bazou.
Estava a nascer uma linda madrugada.
Foi quando ela me piscou o olho com um sorriso quase tramado mas quase infantil, e me falou quase ao ouvido.
“Gosto de ir ver o teu espectáculo de boina, sabes. O Fernando diz que vocês descarregam uma tal energia sexual para cima das pessoas que mais cedo ou mais tarde o bar inteiro vai acolher um verdadeiro bacanal. E eu não tenho vinte aninhos, como tu, nem uma carinha laroca, como a tua. Preciso de uma boina. Vais ver. Quando estou de boina, sou uma mulher muitíssimo mais atrevida.”
Não tinha medo das palavras, a Maria Antónia. Pagou centenas de vezes o preço por isso, mas continuou a usá-las com bravura e beleza, de forma limpa e directa desprovida de rodeios, uma forma de falar das coisas que em grande medida eu aprendi com ela.
É verdade, eu tinha na altura uns 25 ou 26 anos. Ela podia ser minha mãe, e além disso eu era uma miúda e ela era uma grande estrela do nosso firmamento cultural. Metemo-nos a trabalhar juntas num projecto para o Diário de Notícias que também incluía a Antónia de Souza, e quem me convidou para integrar a equipa foi “a Fiadeiro[6]”. Uma porreira, na minha linguagem.
Convidou-me porque gostou de mim, da minha maneira de falar[7], e das minhas ideias sobre o mundo e sobre as pessoas, numa entrevista que me fez para o Diário de Notícias em 1985, assinalando o momento em que acabei o curso de Biologia, fui dar aulas de Embriologia para a Faculdade de Medicina de Lisboa, comecei a fazer investigação de doutoramento no Instituto Gulbenkian de Ciência, e, para grande surpresa dos meus colegas, continuei a publicar livros e a escrever crónicas mas abandonei as salas de redacção dos jornais. Ora isto, já de si, é absolutamente notável. Só uma mente brilhante como a dela se lembraria de propôr um trabalho destes ao director do maior jornal diário da capital. A grande estrela entrevista o pequeno cometa que vai a passar? Não senhor, não é costume.
Número 3 do Cadernos de Reportagem, editado pela Relógio d’Água no final de 1983, sob direcção de Fernando Dacosta-
Como é evidente, foi a primeira grande entrevista que eu dei na vida.
Que diabo, eu tinha 25 anos.
E ela não era mesmo de pestanejar nem hesitar.
Às tantas eu estava a falar-lhe da festa do amor e do prazer[8], e da importância da felicidade em cada um dos nossos dias e cada uma das nossas tarefas.
“Consideras-te uma hedonista?”
O que é que eu havia de responder?
“Sim.”
Logo a seguir, a grande estrela conseguiu, finalmente, convencer o director a deixá-la formar uma equipa feminina para produzir uma série de reportagens sobre “A CONDIÇÃO FEMININA – HOJE”. E nem sequer hesitou, convidou logo o pequeno cometa para essa equipa. Gostou da entrevista e basta.
A sério:
O pequeno cometa estava todo a tremer quando chegou a casa e contou tudo isto ao marido.
O marido encolheu os ombros.
Vocês reparem.
Ao mesmo tempo que a Maria Antónia tinha estes gestos rasgados de generosidade para comigo, eu sabia perfeitamente que os outros jornalistas andavam antes muito ocupados a garantir uns aos outros que eu ia para a cama com toda a gente e mais alguém[9] para conseguir fazer tudo o que fazia. Era uma explicação sumária tão tentadora que o Meguinha, à época já meu marido, não resistia a usá-la ele próprio de vez em quando.
Um dia apanhei-o em flagrante delito de cair exactamente nessa tentação mesmo à minha frente[10], e à noite cheguei derreada a casa da Antónia de Souza, em Campo d’Ourique, onde estava marcada a nossa sessão de trabalho para essa semana. Bem, nessa altura já me sentia tão segura com elas duas que desabafei logo na entrada. É que se fosse só o Meguinha, não é? – pronto, seria arrevezado, mas poderíamos imaginar que tínhamos entrado por engano dentro de um romance do Choderlos de Laclos. Elas riam. Mas é que não era só o Meguinha, eram todos os jornalistas, homens e mulheres, oh!, que horror. Elas olharam uma para a outra, e depois recomeçaram a rir. Eu já estava a esticar o beicinho, e foi quando a Fiadeiro me empurrou o braço com o cotovelo, me piscou outra vez o olho, e falou comigo em verdadeiros words of wisdom.
“Clara, essa gente toda que te imagina na cama com outra tanta gente para chegares onde eles não sabem mas tu sabes que queres porque és pérfida e manipuladora sem ter ar disso[11] – por favor, tem pena deles.” São uns desgraçados.”
Biografia de Maria Lamas, escrita por Maria Antónia Fiadeiro.
Sorriu para mim.
Podia ser minha mãe.
Só que a minha mãe nunca seria capaz de me dizer aquilo.
“Já imaginaste bem a quantidade de pessoas com quem essa gente toda já foi para a cama a tentar chegar onde quer – e nunca conseguiu chegar a lado nenhum? Coitadinhos, queres que não digam mal de ti?”
E então, de repente, vi uma data de gajas todas produzidas a tentarem engatar uns magnatas da televisão que nem olhavam para elas, pelo que acabavam por tirar a roupa para um qualquer técnico de som bexigoso que estava a mastigar pastilha elástica. Vi uns comentadores desportivos já meio carecas, esquecidos da questão de tirar as meias, num esforço patético para dar prazer a umas mulheres desagradáveis com todo o ar de quem não ia dar-lhes nem um quarto de hora nas cenas a cores de domingo[12]. Até vi uns jovens escritores a apanharem em cima com o peso de um editor obsceno que lhes bradava obscenidades e eles só queriam chorar. Vi isto tudo muito depressa, mas não suficientemente depressa, porque, entre a sugestão e o sorriso que a Fiadeiro me oferecera, já estava mas era a rir, a rir, a rir.
Ela sabia cortar a direito, sabia separar as águas, e tinha este dom.
Sabia consolar meninas de vinte anos.
Desse projecto A CONDIÇÃO FEMININA – HOJE[13], devo-lhe ainda mais uma dádiva rara por demais.
Na nossa primeira reunião de projecto, com o território ainda todo virgem à nossa frente, tínhamos que começar por escolher um formato para a série. E eu, por acaso, na noite anterior já tivera uma ideia. Sabia que era uma ideia um bocado extemporânea, mas que se lixe. De certeza que a Fiadeiro não me escolhera para que tudo ficasse na mesma.
“Bom, minhas senhoras, eu tenho uma proposta. Posso?”
Elas olharam para mim de sobrancelhas levantadas e expressão curiosa.
“Podíamos pegar nisto pelo lado da ilusão: as mulheres pensam que as coisas mudaram, mas, na realidade, as putas das coisas nunca mudam. Nunca há mulheres presidentes nem mulheres primeiros-ministros, não é? Mas esse é o lugar-comum previsível. Nós vamos antes explorar o quotidiano das mulheres normais e mostrar como elas foram enganadas com a conversa da mudança. Ambos trabalham, mas em casa o homem vê televisão e a mulher cozinha, limpa, e trata dos filhos, estão a ver? Se eu vier a sair do bar no Bairro Alto depois de ter feito o BOA NOITE LUA NOVA e estiver a voltar para casa às quatro da manhã, e me sentir tão feliz que paro num banco da Praça das Flores para fumar um charrinho, o mais provável é que seja atacada por um tarado qualquer porque sou uma mulher que está sozinha à noite num banco de jardim e portanto sou uma puta, e só me resta resolver aquilo ao soco[14], o que já me aconteceu e aposto que não aconteceria a um gajo, e aliás é o mesmo que me acontece quando estou sozinha na estrada a pedir boleia, outra coisa que qualquer homem poderia fazer sem ter o mínimo problema. Se não temos quotidianos iguais, não temos paridade. A minha sugestão é cada uma de nós inventar uma mulher, com as suas características físicas e mundo pessoal próprios, que passa pelas situações em que estarão as nossas entrevistadas. Senão, se estas mulheres puderem ser identificadas com nome e apelido, vai ser terrível para elas.”
“Hm,” disse uma.
“Hm,” disse a outra.
Franziram as duas as sobrancelhas com uma expressão intensa.
E fez-se um grande silêncio.
Era evidente que elas não tinham gostado da minha ideia.
Se calhar eu não me tinha explicado bem.
Provavelmente tinham ficado ofendidas de morte quando eu disse que a nova liberdade das mulheres – essa nova liberdade pela qual elas haviam lutado a ferro e fogo durante quase toda uma vida – andava mais perto das miragens que dos oásis que íamos cruzando na nossa grande e conjunta travessia do deserto.
Batia-me de repente o coração com mais força.
Por fim, a Fiadeiro fez um sorriso tramado e deu uma cotovelada muito sabida à sua velha camarada de armas de Souza.
“A minha mulher,” declarou ela, “vai andar sempre a cavalo e chamar-se Madalena.”
Pausa dramática.
“E não está arrependida de coisa absolutamente nenhuma,” concluiu, mais poderosa do que nunca. “É um cavalo musculoso, de grandes crinas, que é todo negro e que se chama Trovão!”
“Ah,” juntou-se-lhe a outra num tropel digno do Trovão. “Nesse caso a minha chama-se María Helena e veio de Madrid a fugir à Espanha de Franco e trabalha em publicidade mas como não consegue falar português sente-se ainda hoje um bocado inadaptada!”
Desta vez a grande estrela estava a aceitar uma sugestão de formato avançada pelo pequeno cometa, o que era uma lição de modéstia de se lhe tirar o chapéu. E mais: estava a aceitar uma sugestão que implicava cruzar factos jornalísticos com personagens de ficção criados para proteger as fontes, uma técnica até então raramente utilizada[15], e ainda hoje extremamente polémica dentro da Comunicação Social. O género de técnica que ou se usa muito bem ou descamba no puro desastre. Ela estava a aceitar correr grandes riscos por sugestão minha.
As outras pessoas falavam sobretudo da sua seriedade, e neste número podemos incluir até os seus filhos; mas, para lá de toda essa montanha, estava escondido um mar verde cheio de ondas redondas e de espuma branca: eu achava-a divertidíssima. E isto devia-se, sobretudo, à limpidez da sua sinceridade.
Uma vez o trabalho era só entre nós as duas, os dias estavam a começar a ser cada vez mais compridos, pairava sobre Lisboa uma brisa balsâmica de Verão, e eu estava apaixonada já nem sei por quem. Não é isso que interessa, foi um caso brevíssimo, mas a verdade é que o amor nos faz flutuar uns bons centímetros acima da calçada dos passeios e nos faz cintilar a pele. Entrei no Bairro de São Miguel positivamente feliz, sorri para o murmúrio dos ramos das árvores, alonguei o passo pela sombra e respirei fundo. Cheguei a casa da Fiadeiro, toquei à campainha, e ela abriu-me a porta envolta pelas trevas do interior.
Olhou-me imediatamente de alto abaixo, enquanto eu lhe acenava com toda aquela luz de Verão a iluminar-me. Tinha feito uma trança que já começava a desfazer-se em caracóis, trazia a franja por cima dos olhos, e tinha as pernas de fora e o umbigo à mostra dentro de um conjuntinho top-shorts arrancado em grande triunfo de uma pilha da Feira de Carcavelos[16], todo ele amarelo-canário e com uns grafitti pretos e vermelhos à frente numa caligrafia que supostamente era cirílico.
“Pois é, Clara.”
Voltou a olhar-me de alto a baixo enquanto eu entrava e ia direita à cozinha, onde começávamos sempre por tomar café. Riu-se.
“A questão é que vocês, agora, já nascem assim. Já nascem todas elegantes. Podem andar para aí sem sutiã e de pernas de fora… tu, por exemplo, tu podes, tu assim ficas tão linda… A Lena d’Água… a Lena d’Água também fica linda. Nós, na minha geração, nascíamos sempre de perna curta e anca parideira, como é que nós podíamos…”
Deitou-me outra vez aquele olhar de medir tudo, ao mesmo tempo que começava a gesticular com grande veemência, como se estivesse a imaginar-se a si própria, e a todas as suas amigas feministas, dentro de um top-shorts amarelo-canário com dizeres em russo. Sem sutiã e de umbigo de fora.
“Oh, como é que nós alguma vez poderíamos!”
“A gente deve estes corpinhos à Revolução,” disse-lhe eu. “Não houve nada em Portugal que não mudasse.”
E custou-nos bastante beber aquele café, porque estávamos constantemente a desatar a rir.
O ano passado, a 30 de Março, os dois filhos da escritora publicaram na Edições Caixa Alta, que receberam o projecto de braços abertos, o livro ARTISTAS ARTESÃS PIONEIRAS: conversas singulares entre mulheres extraordinárias, com entrevistas da Fiadeiro a várias outras mulheres por vários pretextos. A ideia original foi dela, grafismo e sequência incluídos. Começou a preparar tudo muitos anos antes da data da publicação, e quando estava tudo pronto nenhuma editora teve o arrojo de pegar num livro que é também uma obra de arte: são 565 páginas grandes de capa dura, cheias de grandes histórias, onde tive a honra de ver incluída esta entrevista que me pôs ao colo das feministas, e que ela intitulou A INTELIGÊNCIA É O RECONHECIMENTO DA COMPLEXIDADE DAS COISAS[17].
O ano passado o livro assinalava a data da morte da Maria Antónia, que nos deixou a 30 de Março de 2023 com uma paragem cardio-respiratória que chegou às dezanove e cumpriu o seu curso às vinte. Nenhum dos dois filhos estava em casa, portanto nunca saberemos se ela descobriu ou não que estava a ir-se embora. Acontece que este seu último livro, uma belíssima oferta que ela deixava ao povo português, saiu em plena pandemia. Quase ninguém o viu. Portanto, este ano, celebrando o primeiro aniversário da sua morte, a Caixa Alta e os dois filhos da Maria Antónia organizaram uma verdadeira festa de lançamento para os quinhentos exemplares da segunda edição, muito apropriadamente no dia oito de Março, na Biblioteca Municipal de Belém, dentro da sala do Núcleo Feminista Ana Osório de Castro que tem o espólio todo dela. E desta vez cada entrevistada pôde, por fim, ler o trecho da sua entrevista que mais lhe falou ao coração.
Ou à cueca, vá. No meu caso, entenda-se. A Fiadeiro não era piegas, e eu agora tenho a obrigação de ser hedonista.
Ainda ao jeito de homenagem, este livro/ obra de arte estará nas montras das livrarias a partir de dia 30 deste mês, um ano depois da morte da sua autora.
E segue-se um brinde muito pessoal aos construtores do livro, com toda a minha ternura.
Se querem saber como é que eu, ainda hoje, vejo a Maria Antónia Fiadeiro, pois bem – tal como aos vinte anos, vejo-a igual à WonderWoman[18], a minha grande heroína dos comics. Tinha a sabedoria de Atena e o poder de Afrodite para inspirar amor. Era mais rápida do que Mercúrio e mais forte do que Hércules. Na sua república feminina na Ilha do Paraíso, um refúgio criado pela cultura das Amazonas, protegido dos intrusos por um campo magnético de pensamentos que o mundo conhece como Triângulo das Bermudas, desenvolvera naturalmente os seus poderes assombrosos treinando-os desde a infância com as suas outras Irmãs Amazonas, em concursos de perfeição, força, e velocidade, modelados pelos combates da Grécia Clássica. Tudo isto nos passava a mensagem de que cada uma de nós pode ter em si poderes secretos, desde que acreditemos neles e os treinemos[19]. Eu, pelo menos, agradeço a Deus ter treinado tanto com ela.
Sim, é verdade. Nem todos os detalhes colam. Não sou feminista. Mas teria que ser? Acima de tudo, sou mulher. Vivo sozinha no Alentejo[20]. Ia escrever “os homens podem viver sozinhos à vontade que ninguém os chateia,” mas isso não é verdade – os homens não aguentam viver sozinhos. Precisam sempre, sempre, sempre de uma mulher que lhes faça companhia e trate deles. Quando são mais novos e lhes estoira o casamento escrevem imediatamente um livro de catarse e saltam de bar em bar até arranjarem namorada. Quando são mais velhos atrelam-se sem hesitações nem demoras ao Grupo Excursionista mais próximo. Em ambos os casos, o padrão não muda. Um homem sozinho considera prioritário arranjar uma mulher ao seu serviço.
Mas eu, que sou uma mulher, há uns bons vinte anos que vivo sozinha.
A Maria Antónia treinou-me maravilhosamente para este tipo de travessia.
Conheço muito bem o Inferno, e não faço juízos de valor.
WonderWoman saves the day.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Nestas circunstâncias, a expressão pode traduzir-se livrement por “Hey, e agora aguentem-se à bronca.”
[2] Co-autora, juntamente com o seu então-marido, da canção “(YOU MAKE ME FEEL LIKE) A NATURAL WOMAN”. Sempre considerei a canção, enfim – simpática para quem gosta do género. Mas isso foi só até ouvir a rendição de Ms. Franklin com o seu longo vison, o seu piano, e o seu coro de Gospel.
[3] Este concerto, com este momento inesquecível, está postado no YouTube. Sugestão obrigatória para quem ainda não viu e não conhece as mulheres.
[5] Nunca me esqueci de uma quadra que ela cantou nos fados da Rua do Diário de Notícias e que fez o jovem muito bem parecido com quem ela foi a despique desistir logo: “Não cantava à desgarrada/ Desde a minha mocidade/ Mas cada um de nós chora/ Por onde tem mais saudade.” Digam-me lá, quantos níveis de leitura poderia aquilo ter. Chora por onde tem saudade? Ah-ah-ah. Grande danada.
[6] Na imprensa tratávamo-nos todos pelo apelido. Durante anos e anos, até desaparecer nas neves eternas de Buffalo, eu fui “a Pinto Correia”. Razão pela qual sempre tratei por Meguinha o António Mega Ferreira, a quem nunca chamei António: quando ainda não o conhecia mais intimamente, tratava-o por Mega, como toda a gente fazia. Depois do nosso casamento aquilo esteve quase a descambar porque o “Meguinha” ainda passou a “Guinha”, e o “Guinha” chegou a ser “Gui”. Depois caímos na real e emendámos rapidamente a mão. Ah, e ele nisto dos nomes foi um porreiro. Nunca me tratou por “Pinto-Correia”. Incapaz de pronunciar o terno “Clarinha” do comum dos mortais, informou-se quanto a antecedentes familiares e começou rapidamente a tratar-me por “Pretinha”. Que bom. Sempre foi a minha alcunha preferida.
[7] A minha maneira de falar era um interesse sério para ela. Considerava-a importante para abrir novos caminhos à linguagem. Nesta entrevista, incluída neste seu livro, nota-se que faz um esforço considerável para deixar transparecer a minha autêntica voz – veja-se o uso de “porreiro”, “cenas”, “partir para outra”, “piroso”, “que nem uma besta”, tudo termos que de outra forma ela não usaria.
[8] Parafraseando Jorge Palma, já que estamos nisto dos porreiros.
[9] Visitantes estrangeiros de passagem incluídos. Vim a saber de alguns casos absolutamente fulminantes.
[10] “Vai acampar? Vai acampar no Inverno? Eles vão todos acampar no Inverno? Com chuva, lama, geada, e o frio que tem estado? Querem uma história mais mal contada? Reparem, eu acredito que ela vá paraÁguas de Moura. E basta. Deve haver lá uma pensão manhosa para brincadeiras com assistentes. Basta afundar o Carocha na lama antes de voltar para casa. Enfim, Matilde. Tenho um fim-de-semana sossegado para ler e ouvir ópera.” E a restante redacção do JL ria com as mímicas do Meguinha, mas é queria, ria, ria. Cabrões. Eu era tão jovenzinha que fiz uma cena canalha através da porta, gritei “Meguinha!”, e, quando toda a gente se calou, abri mais a porta e acrescentei: “Nunca mais escrevo para o JL!” Por acaso nem sei se estou arrependida. Imaginemos, por exemplo, que um dia a vida é um filme.
[11] A Maria Antónia falava muitas vezes assim, como se estivesse a ler as suas próprias frases já impressas no seu novo livro. Era impressionante.
[12] É verdade, malta. Se não quiserem acreditar não acreditem, mas eu já estava quase a fazer vinte anos quando apareceu a televisão a cores.
[13] Trabalhámos imenso, e com muito gosto, mas ficou pelo caminho. Eu fui para Buffalo. Elas não quiseram continuar a trabalhar sem mim. De certeza que a culpa foi do formato.
[15] A primeira vez que isto se usou em grande escala foi numa grande série de quinze reportagens sobre AS FAMÍLIAS PORTUGUESAS que eu, o Fernando Dacosta, e o António Duarte fizémos para O JORNAL. Protegidas por alter egos, as pessoas diziam mesmo tudo o que lhes ia na alma – e verificou-se então que tinham, de facto, muito para dizer. A série deu tanto brado que tive entrevistados refugiados durante meses em minha casa, entrevistados que ainda hoje não me falam (“mas queres mesmo dizer isso em público?” – “quero!” – “mas?” – escreve! escreve!” – “olha, saiu hoje.” – “cabra! por tua causa tive que ir a um psiquiatra pela primeira vez na vida!”), e, decerto, pessoas que ainda hoje cruzam a rua para virem falar-me de alguma coisa que então leram e lhes falou particularmente ao sentimento.
[16] Eu sou do tempo eu que nasceu a Feira de Carcavelos, recheada de roupas fantásticas que Portugal nunca tinha visto antes e que não estavam à venda em mais lado nenhum. Tudo ao preço da chuva, e ainda passível de se regatear, uma arte que eu adoro. Nesses primeiros anos, eu e as minhas amigas levantávamo-nos às seis da manhã para reunir no meu carro, ir, comprar, mostrar umas às outras, tomar café, rir imenso, voltar, e estar às nove no trabalho com um ar todo impecável. Eu ia a guiar, por isso não podia trocar de roupa no carro durante o regresso. Mas havia até quem fizesse isso.
[17] Isto foi uma frasezinha que eu soltei no meio de torrentes de palavras para ilustrar a complexidade do mundo vivo. A Maria Antónia fez logo um título bestial com ela. Um daqueles chauvinistas que pululavam nos jornais teria antes feito logo um título tipo “Parti para outra”.
[18] Na minha geração ninguém lhe chamava “Mulher-Maravilha”. É bué foleiro.
[19] Parafraseando Gloria Steinem, outra grande fã (e até estudiosa) da WonderWoman.
[20] OK, OK, reconheço, vivi sozinha em vários outros sítios. Tive chatices, como as que tive quando andava à boleia. Mas isto aqui é um padrão. Estão a ver a diferença?
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Ó cores virtusis que jazeis subterrâneas Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize Represados clarões, cromáticas vesânias No limbo onde esperais a luz que vos baptize
As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis
Camilo Pessanha
POEMA FINAL
in CLEPSYDRA (1920)
A SABEDORIA PERDEU-SE, OU ENTÃO AINDA NÃO CHEGOU
Graças a Deus, no meio do ruído de fundo de toda esta confusão e do cruzamento descoordenado de todos estes polegares, de vez em quando ainda conseguimos encontrar alguém que, mesmo que inicialmente não consiga recordar bem porquê, sinta um sobressalto quando ouve mencionar o ano 79 d.C.
Não é caso para menos.
O ano 79 da nossa era é um ano carregado a negro na memória colectiva da civilização ocidental. Foi quando, nos dias tranquilos do início do Outono, a erupção do Monte Vesúvio congelou para sempre debaixo da cinza, em menos de um minuto, todo o esplendor e o requinte das cidades romanas de Pompeia e Herculano, onde viviam cerca de vinte mil pessoas.
Foi um dos cataclismos vulcânicos mais violentos de que temos conhecimento na Europa. A nuvem de gazes superaquecidos que saiu da chaminé do Vesúvio elevou-se no ar até uma altitude de 33 quilómetros, projectando a toda a volta rocha derretida, pedra-pomes, e cinza a ferver, a um débito de 1.5 toneladas por segundo – o que deverá ter correspondido a cem vezes mais do que a energia térmica dos bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki.
Enquanto toda esta catástrofe monumental acontecia, ia um barco a passar ao largo com um viajante muito especial a bordo.
O homem que havia de condicionar o nosso pensamento em relação ao mundo real e mágico que nos rodeia chamava-se Plínio, e era o autor do famoso HISTÓRIA NATURAL. O seu livro, a todos os títulos inesquecível, era um enorme manual de Biologia composto antes da Biologia ter nome, o compêndio de descrição do mundo vivo pelo qual toda a gente jurava. Os parágrafos começados por “Muitos autores garantem, segundo Plínio…” abundaram na literatura europeia até ao fim do século XVII, encaixando-se com bastante facilidade nos novos paradigmas da Revolução Científica. Incansável, extuante de energia, Plínio estava ali em mais uma viagem de exploração. Viu o Vesúvio explodir na costa, e ordenou imediatamente ao comandante que se aproximasse. Queria ir estudar os fenómenos vulcânicos mais de perto. Imaginem, a explosão do Vesúvio na mente do século I DC.
Plínio morreu nesse dia, envenenado pelos gases tóxicos do vulcão.
É verdade que o seu HISTÓRIA NATURAL nos oferecia uma Biologia cheia de uns milagres e uns prodígios que já não cabem nesta que conhecemos hoje[1]. A título de exemplo, já ninguém pensa que as mulheres nascem do testículo esquerdo e os homens do testículo direito, porque o esquerdo é mais pequeno e “mais fraco” do que o direito; e a prova disso é que já nenhum marido amarra com toda a força um cordel à volta do testículo esquerdo antes de copular com a esposa, para ter a certeza de que a insemina com a seiva do testículo direito, e que, portanto, vai ter um rapaz[2]. Já ninguém acredita que o sangue menstrual consegue, “só com a sua presença,” operar sortilégios tais como embaciar os espelhos, enlouquecer os cães, fazer murchar as plantas verdes, azedar as sopas, enferrujar o cobre, tirar a força ao ferro, e assim por diante. Mas muitos autores medievais e renascentistas limitaram-se a evocar Plínio para darem mais credibilidade às suas teses – o que, por sua vez, mostra bem o respeito enorme que a sombra do autor da primeira HISTÓRIA NATURAL projectava sobre a mente europeia. E ressalve-se, também a título de exemplo, que Plínio foi dos primeiros a descrever, e com bastante minúcia, a técnica dos egípcios para incubar os ovos de pinto durante três semanas debaixo de estrume de cavalo – e esta técnica, que parece também ela tirada de uma qualquer fábula exótica, foi usada, pelo menos, até ao século XX[3].
E, evidentemente, não há nada capaz de impedir o mundo vivo de estar literalmente pejado de maravilhas que não podiam ser mais reais, mais verdadeiras, mais cientificamente demonstradas – e, por isso mesmo, mais incrivelmente maravilhosas.
Nesta minha apresentação do prazer que me é tão próprio que acabou por tornar-se parte integrante de mim, o prazer de falar aos outros das coisas da Natureza, deixem-me começar por protestar que não sou, de maneira nenhuma, o único autor ocidental sensível ao charme e ao conforto dos lugares-comuns. Com a sua tranquilização instantânea e gratificante de vestuário já usado ou calçado muitas vezes[4], os lugares-comuns podem ser úteis no fio condutor de certas histórias. E é exactamente por isso que aqui estão, a pôr em perspectiva tudo o que vem a seguir.
As coisas passaram-se assim, por ordem de entrada em cena.
Ao desenvolver o lobo frontal do cérebro, uma arma mortífera ausente em todos os outros seres vivos, o homem vê-se obrigado a pensar. O pensamento é a invenção mais perversa de toda a Evolução. Só porque os seus neurónios se multiplicam e se ligam de uma forma especial e desconhecida, o pobre primata gabro, sem presas nem garras, começa a precisar de triunfar sobre a sua angústia perante todo o vazio cognitivo que o rodeia e o intimida. Século após século, mamute após mamute, mistério após mistério, esse vazio vai-se limpando como quando um nevoeiro denso se vai tornando cada vez mais fino. São destes primeiros esforços que nascem as histórias capazes de explicar o que são as fogueiras que aparecem no céu durante a noite, de onde vem aquele disco tão brilhante, que, de repente, vai subindo pelo ar e modificando todas as cores e odores no seu trânsito diário de um lado ao outro do horizonte, que dança estranha é aquela que esse disco maior faz com o outro que vem em sentido oposto e ao mudar de forma também muda as marés, e mais, e muito mais.
É assim que o primeiro esboço de pensamento vai deslizando para fora de todas as ignorâncias urgentes, e, em consequência, é assim que começa a delinear-se um mínimo de mapa primitivo que nos permite pôr tudo o que dantes não tinha nome em perspectiva, estruturando pela primeira vez, num deslumbramento feliz, todo o que conhecimento que herdámos dos primeiros sábios. E é assim que, no decurso desse primeiro preenchimento progressivo do vazio, acaba por nascer aquilo a que hoje chamamos mitologia.
Essa mitologia, no entanto, é-nos legada em sagas e épicos que são por natureza construídos em estrutura de hipérbole interminável, além de padecerem de um excesso metafórico com uma leitura que fica de todo em todo fora do alcance do comum dos mortais. Por isso mesmo, a linguagem seguinte que a nossa espécie constrói para ler o mundo destina-se a libertar-nos dos oráculos. Trata-se, agora, de tornar as primeiras sagas e os primeiros épicos acessíveis a todos os humanos, desde que sejam crentes ou se vão deixando iniciar iniciar enquanto tal. E é por isso mesmo que, com a passagem do tempo, essa mitologia inicial começa a oferecer-nos uma semelhança do mundo que se conta em muito menos palavras, e que já conseguimos dominar muito melhor.
Este novo domínio é estruturado lentamente em torno das alegorias construídas para explicar tudo o que nos barra a passagem com a sua faceta inexplicável. Quanto mais entendemos o que nos rodeia, mais se vai transitando, em todo o mundo, e numa panóplia riquíssima de dares e tomares, para aquilo a que agora chamamos religião.
E, agora sim, de posse desta nova forma de crença, já não há fenómeno natural que não possa ser entendido pelos iluminados[5] e explicado sem esforço à turbamulta das multidões.
No final do percurso, há, ainda, uma terceira transição que se baseia em todo o nosso saber mais complexo que se foi acumulando ao longo do caminho. O vazio que encheu os primeiros homens de curiosidade e de temor vai-se preenchendo de uma forma cada vez mais clara, mais útil, mais eficaz para a sobrevivência humana – e tudo isto se regista numa sequência cada vez mais rápida e mais rica em dilemas impossíveis de sonhar sequer poucos séculos antes.
Em relação às outras duas, esta terceira mudança dá-se quase num piscar de olhos. E, pela primeira vez na nossa semelhança do mundo, está baseada em estudos tão matematicamente afinados, e também tão universalmente comprováveis, como, por exemplo, as investigações de Newton sobre os poderes da gravitação universal. Era uma força tão perfeita, e pelo que se compreendia tão fantasticamente eterna, que foi tomada pelo próprio autor desta primeira física universal como a face visível de Deus.
escreveu Alexander Pope como epitáfio para o seu amigo, que, quando falou pela primeira vez da Gravidade no seu PHILOSOPHIAE NATURALIS PRINCIPIA MATHEMATICA[7], geralmente referido apenas como PRINCIPIA, se referiu bastante mais à Bíblia do que à Matemática, e bastante mais aos Profetas do que à Física[8]. Toda a fina flor do Século das Luzes concordou com ele, as traduções do PRINCIPIA para várias línguas europeias feitas por grandes nomes da época foram imediatas, incluindo o famoso NEWTON PARA SENHORAS, financiado pela incansável filantrópica científica Madame de Châtelet[9], que depois inspirou vários autores a escreverem livros simples sobre a Gravitaçãoo Universal que não exigissem grandes conhecimentos de Física ou Matemática[10]. E algum europeu culto poderia sentir-se mais iluminado do que pensando pertencer ao grupo daqueles que, por fim, haviam sido capazes de encontrar e entender a forma como Deus se mostrava à humanidade?
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Sei lá, mas assim de cabeça. Já ninguém pensa que as mulheres nascem do testículo esquerdo e os homens do testículo direito, porque o esquerdo é mais pequeno e “mais fraco” do que o direito. Já ninguém acredita que o sangue menstrual
[2] Bem, era só um “conselho aos casais.” Mas os médicos repetiram-no até ao dealbar do século XVIII.
[3] Tomem lá fresquinho. É uma pena não sabermos se os egípcios das paragens mais remotas ainda incubam os ovos dos seus pintos desta maneira. Provavelmente sim. Houve muita coisa bonita que deixámos de saber devido à estupidez da nossa arrogância “moderna”. Infelizmente, muitas vezes esta arrogância é considerada “científica”. Bem, pelos meus pecados, e pela parte que me cabe, eu juro que não.
[4] Estou a parafrasear qualquer coisa já escrita antes pelo Agualusa, embora o original dele fosse bastante mais poético do que o meu.
[5] Mas note-se, estes iluminados já não são oráculos. Na modéstia enorme que lhes cabe, como a modéstia que cabe ao Papa, são apenas oficiantes. Pedimos-lhes apenas, que sejam bons, leais, justos e rectos. Não lhes pedimos que vejam coisas nem que oiçam vozes. Essas pessoas são hoje consideradas esquizofrénicas, e os bons esquizofrénicos já nem sequer existem. A medicação funciona.
[7]OS PRINCÍPIOS MATEMÁTICOS DE FILOSOFIA NATURAL. Editado originalmente em 1687
[8] Esta seria, aliás, a reacção a esperar à luz do pensamento da época, segundo o qual quanto melhor conhecêssemos o funcionamento da Natureza melhor conheceríamos a imensidão dos poderes divinos.
[9] E tanto amante quanto inspiradora de Voltaire, que compôs diversos trabalhos na mansão de de campo que a senhora mantinha nos arredores de Paris e à qual dera o nome deveras apropriado de LE JARDIN DES DÉLICES, mas enfim – não estamos aqui para escrever colunas sociais da !HOLA!, ao melhor estilo “la cantante nos recibe en un rincon de tranquilidad de su finca”, mesmo que disfarçadas sob o manto diáfano da informação interessante. No entanto, de entre este grande manancial dessas informações, do NEWTON PARA SENHORAS a várias entradas de L’ENCYCLOPÉDIE, convém não nos esquecermos que foi exactamente durante uma das suas estadias no LES DELICES que, em 1755, na manhã do dia 1 de Novembro, que Voltaire soube das catástrofes vindas da terra, do rio, e do fogo, que acabavam de dizimar aquela que era à época a cidade mais rica da Europa, e compôs em estrofes heróicas o devastador POÉME SUR LE TREMBLEMENT DE TERRE DE LISBONNE, que ainda hoje muitos historiadores consideram o grande marco do fim do Optimismo, e do seu lema “tudo corre bem no melhor dos mundos possíveis.”
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Eram as condições de vida na capital e não a destruição pela tuberculose que o haviam aniquilado. Tinha a coragem e o bom-humor dos derrotados.
Graham Greene
OS COMEDIANTES (1966)
As legendas matam-me. Não aguento o seu espectáculo alarve e satisfeito de ignorância total, e cheia de pressa de ganhar uns cobres por um trabalho feito com os pés. Chego ao ponto de estar na ópera e de deixar momentaneamente de voar nas asas das músicas imortais mais poderosas da civilização ocidental porque apareceram no écran do texto traduções apressadas em que “va pensiero” quer dizer “vá pensar[1],” que nos oferecem uma nova versão de “l’amour est enfant de bohéme” segundo a qual “oamor é… beber Sagres Boémia[2]”, ou mesmo que nos juram que “ich bin eine Walkure[3]” significa “eu sou a música de abertura do APOCALYPSE NOW[4].” Perco o fio à meada de grandes filmes porque quando o Don Corleone mostra ao advogado o seu filho Sonny passado a ferro por dezenas de rajada de metralhadora numa portagem envenenada[5] e diz “now you just look what they did to my Sonny”, o tradutor, consciente de que este filme foi feito nos anos 70, decide escrever para a legenda, textualmente “agora você veja só o que eles fizeram ao meu leitor de cassettes[6]”. E, quando nos entram todos os dias em casa através da televisão, há casos ainda piores do que estes. Muito piores.
Vamos voltar à última tradução apressada, que estaria profundamente incorrecta mesmo que o Sonny não tivesse passado a ser um leitor de cassetes. A construção “now you just look what they did to my Sonny” está perfeita em inglês quando prevista para ser posta ao serviço de um sotaque italiano. Mas, e em grande medida até por isso mesmo, torna-se imensamente imperfeita quando traduzida à letra para português. “Agora você veja só o que eles fizeram ao meu Sonny” é português, sem dúvida – é excelente português do Brasil, pronto para ser grasnado por alguém ao serviço do Tio Patinhas. E, se assim fosse, estaria tudo bem.
Quando eu era miúda[7] e lia um rompante da Magda Patalógika a dizer “que mau, Peninha, eu vou matar você!”, o que fazia o famoso repórter d’A PATADA encostar a ponta dos dedos à palma das mãos[8] e perguntar, com um cabelo para cada lado[9], “pô-pôxa, você acha mesmo, Magda?”, este linguajar não me incomodava absolutamente nada. Toda a gente sabia que aqueles bonecos falavam brasileiro, e parte da sua graça vinha-lhes exactamente disso. Mas, quando estamos a ver televisão portuguesa, nas nossas casas portuguesas, e nos entram por ali dentro legendas supostamente portuguesas que no entanto nos oferecem um português de Portugal de tal forma adulterado que bem podemos pôr-nos de joelhos e pedir perdão às divindades pela loucura dos impérios que construímos no passado – que estupidez, a nossa casa não é nem o lugar nem o contexto para catarses destas, os nossos filhos e netos nunca perceberão sequer que estava em causa uma catarse quando estiverem sozinhos, toda a gente fica confusa em relação às formas certas e erradas de dizer as coisas, e francamente, deixem-me que vos diga.
As legendas na televisão nunca deveriam poder ter o fraco profissionalismo dos trabalhos que os alunos nos entregam, onde é fácil distinguir o que foi que eles escreveram do que foi que eles copiaram e colaram da Wikipedia porque uma parte está num português que tem bastantes erros mas que ao menos é, satisfatoriamente, português de Portugal, e a outra parte está num brasileiro académico que se mete de tal forma pelos olhos dentro que até dá vontade de chorar[10]. Adiante.
Procure-se o pior de tudo, que se insinua mesmo por baixo da pele.
Esta qualidade costuma pertencer aos predicados das frases.
Há milhares de formas de escrever um verbo sem ele estar ortograficamente errado, embora a alteração da sua sintaxe possa roubar todo o sentido às frases. Imaginem, só para dar um exemplo, um sitcom americano qualquer com gargalhadas e palmas da audiência, em que um personagem mauzinho que guincha muito diz para os outros, só para os chatear, “então mas é impressão minha ou ontem os Yankees perderão o jogo?”. E toda a gente ri. Mas os telespectadores, se precisam de legendas e sabem conjugar verbos, não riem porque já se perderam. Os Yankees ontem… perderão o jogo? Claro que não, foi balda da legenda. Ontem, os Yankees perderam o jogo. Mas depois não digam que a juventude portuguesa escreve cada vez pior.
Há montes de galegadas destas que até nos cortam a respiração. Devo dizer que, quando estou especialmente bem disposta no sentido mais pérfido do termo, a minha galegada preferida é a confusão entre o imperfeito do conjuntivo e o presente do indicativo na conjugação pronominal reflexa. Ou seja, se eu fosse uma série de animação cerrava os olhos até só serem duas frinchas, e o meu sorriso ficava horrorosamente cheio de dentes inquietantes, de cada vez que as legendas rezassem “aqui comesse bem” quando o indivíduo do filme está a dizer “aqui come-se bem.” Querem que algum cérebro ainda em formação saia incólume destas aventuras? Por favor. A corda só estica até onde consegue esticar.
Escrevo tudo isto porque ontem apanhei um destes meus ataques de fúria de estimação, que àquela hora da noite ficou reservado exclusivamente para as orelhas arrebitadas e atentas do meu Sebastiãozinho, sempre incrivelmente paciente nestes tratos de polé de ver a dona gesticular, largar brados de guerra, e bater com os pés no chão. Estava positivamente maravilhada, de olhos cravados na jovem Gong Li, que continuo a considerar uma das mulheres mais bonitas do planeta[11], no venerando ESPOSAS E CONCUBINAS. Da primeira vez que o vi, as legendas eram em inglês e honra lhes seja, os americanos pautam-se por muito mais rigor do que nós quando são obrigados a fazer subtitles para os filmes[12] – o que, para eles, é quase um exercício académico, e como tal levado muito a sério. Já perto do fim, quando ela bebe demais e pergunta ao Feipu[13] “alguma vez acreditaste que estavas apaixonado?”, apareceu uma legenda que dizia:
“Alguma vez acreditas-te que estavas apaixonado?”
Sei que a partir dali é tudo a descer e que a história acaba pessimamente, portanto nem continuei a ver o filme.
Acabem com isto, pelo amor de Deus.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Atenção, que a versão completa desta frase seria “vá pensar para o cantinho durante meia hora”: usa-se quando as crianças fazem alguma coisa particularmente estúpida.
[3][3] A ópera A VALQUÍRIA está toda ela centrada no braço de ferro entre a valquíria Brunhilda e o seu pai Wotan, o rei dos deuses. É, portanto, bastante normal que ela lhe puxe várias vezes dos galões durante a disputa com o memorando Ich bien eine Walkure. Esta disputa só acaba quando Wotan põe a filha a dormir, rodeada de um círculo de fogo. E este feitiço só se quebra quando vier de lá um verdadeiro super-homem que a acorde e apague o fogo (só falta dar-lhe um beijo – quem é que não conhece o leit motif?). Esse super-homem só aparece na terceira ópera, que, aliás, tem o nome dele: chama-se SIEGFRIED. É grande, musculoso, loiro, um perfeito ariano. Século XIX. Os motores aquecem.
[4] O infame filme de Francis Ford Coppola APOCALYPSE NOW abre com uma sequência horrorosa de helicópetros assassinos que aparecem a pavonear-se no céu ao som da CAVALGADA DAS VALQUÍRIAS. E esta cavalgada é o quê? É a passagem musical mais popular da óperaA VALQUÍRIA (DIE WALKÜRE, em alemão), que abre a primeira cena do terceiro acto. Esta ópera foi composta por Richard Wagner em 1870, e é a segunda parte das quatro que compõem a tetralogiaDER RING DES NIBELUNGEN (O ANEL DO NIBELUNGO). Como as pessoas gostam de músicas que ficam no ouvido, não falta quem diga que A CAVALGADA DAS VALQUÍRIAS é a música mais famosa de Richard Wagner. É injusto.
[5] Sonny era o filho mais velho do padrinho, predestinado a herdar o reino criminoso que Michael acaba por herdar. Era também, e consabidamente, um grande bruto e um carniceiro feroz, e é isto que o deita a perder. Mas ainda está vivo o tempo suficiente, tanto no livro como no filme, para descobrirmos que era também especialmente bem aviado, sendo que este detalhe anatómico está na base do seu envolvimento – hm – romântico? – com Lucy Mantini, também ela uma rapariga particularmente “larga”.
[6] O “leitor de cassetes” aparece aqui a prestar homenagem aos objectos de uso doméstico que a marca SONY produzia com mais abundância nos anos 70. Claro que o nome da marca só tem um n enquanto que o nome do filho primogénito tem dois, mas o autor das legendas passa por esta discrepância como cão por vinha vindimada.
[7]Quem é que eu estou a ver se engano? Ainda hoje me parto a rir com esta bonecada.
[8] Magia dos quadradinhos, claro. Os patos não têm propriamente pontas dos dedos, porque todos os seus dedos estão unidos por uma membrana. Pela mesma ordem de razões, ainda menos têm palmas das mãos.
[9] Idem. Toda a gente sabe que os patos não têm cabelos.
[10] Sim, jogo de palavras. Até pareço um homem, hoje.
[11] São milhares de anos de civilização. Uma beleza destas não se constrói em meia dúzia de séculos.
[12] É raríssimo, se pensarmos duas vezes – na sua esmagadora maioria, os filmes são filmes americanos.
[13] O filho do Senhor, de quem a Gong Li é a Quarta Esposa.
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Pode-se, de uma maneira geral, confiar na confissão de um desesperado, e, como nem todos se confessam à hora da morte, a capacidade de desespero é só concedida a alguns e eu não era um deles.
Graham Greene
OS COMEDIANTES (1966)
Aquilo que me foi dado ver pareceu-me uma valente porcaria de impacto deveras duvidoso, uma autêntica fábula moral daquelas em que só as crianças inocentes e os sábios videntes ousam dizer que o rei vai nu. Parecia tanto que concluí que devia ser mesmo. Mas, não vá o diabo tecê-las, decidi partilhar a história convosco. Pode ser que me tenha escapado algum grãozinho de areia que torne logo esta fábula menos degradante. E, como tal, muitíssimo menos deprimente.
O grande feito passou esta semana nas notícias, encavalitado entre reportagens de encontros literários e previsões de tristeza e abandono para a próxima Feira do Livro em Lisboa. A primeira coisa que me ocorre é que não estamos propriamente perante um feito – e que, mesmo que o fosse, nunca seria assim tão grande como isso. Portanto, parece-me que estes pesos e medidas ditam logo à cabeça a conclusão lógica de que esta historieta nem sequer mereceria aparecer ensanduichada nas notícias culturais do dia. Mas como isto é apenas o que me parece a mim, e eu nem sempre sigo a construção destes grandes feitos tão atentamente quanto deveria, respeitei a responsabilidade de escrever para milhares de leitores provavelmente ainda menos informados do que eu; e, antes de mais nada, tratei de organizar uma pesquisa mais séria e mais sistemática sobre o assunto.
Descobri logo que não há assim grande informação sobre o grande feito, o que já de si é um péssimo sinal. Não me parece que nenhuma informação deva ser promovida ao estatuto de notícia[1] se os espectadores não tiverem, caso fiquem interessados[2], mais informação disponível para começarem a saber com o que é que contarão dali em diante – neste caso específico, em termos de publicações. A editora propõe-se oferecer-nos uma colecção de quinze “grandes clássicos da literatura portuguesa”, pelo amor de Deus. Era bom sabermos qual foi o critério de escolha desses clássicos[3], e, presumindo que a resposta não é “à balda,” com que regularidade se prevê disfrutarmos do seu lançamento no mercado livreiro.
Ainda dentro do pelouro dos desagrados de menor incómodo, a notícia disse-nos que a colecção vai ser oferecida aos portuguesas por uma editora chamada LEVOIR, que, neste caso, irá trabalhar em conjunto com a RTP[4]. De facto, a senhora que apareceu a mostrar um pouco mais de entusiasmo ao falar destes quinze livros, recordando-nos que “ainda nunca se tinha feito em Portugal nenhuma colectânea de grandes clássicos portugueses,[5]” falava português com um sotaque francês carregado. Um pouco mais de investigação, e descobrimos que as edições LEVOIR são um subsector da ALMEDINA, embora nenhum subtexto nos explique o que distingue a casa-mãe da sua filha afrancesada[6]. Enfim. Se conseguimos chegar até aqui calmamente, a culpar-nos a nós, e não aos outros, por tudo o que nos incomoda nestas modernices, agora a seguir vem de lá a parte pior.
Estes quinze grandes clássicos não se destinam a difundir em Portugal o prazer das belas letras.
A primeira obra a publicar será a MENSAGEM, de Fernando Pessoa, mas o livro não foi concebido para nos levar, silenciosamente, à luz da vela e em passos de veludo que não dispersem quase uma centena de anos de colónias de morcegos[7], até ao fundo do mundo interior do poeta. É mais que vai ser enfiado num funil e empurrado à força pela garganta das pessoas, mesmo com toda a força, mesmo até ao fundo.
Nesta colecção de Grandes Clássicos da LEVOIR, fiquem sabendo que tanto a acção como o texto hão de cair-vos em cima… em banda desenhada.
Ai, não.
Não, não, não, não.
Enfiar o universo da MENSAGEM numa banda desenhada de recorte pueril[8] não é nenhuma forma de “estimular entre os jovens o prazer da leitura,” ou qualquer outra parvoíce que possa dizer-se a esse respeito. Os jovens, coitados, têm sempre as costas largas. Este género de esforço é tão abominável, e tão inútil, como as tirinhas de BD de História de Portugal que constavam do manual de 6º ano dos meus filhos: alguém achava – mesmo – que os miúdos de nove e dez anos que foram criados pela televisão[9] conseguem compreender o sentido dos rostos contorcidos à frente e com grandes incêncios atrás que constam dos quadradinhos relativos ao Grande Terramoto de 1755? Quantas vezes é que pensam que eu apanhei com as perguntas fatídicas “o que é isto, mãe?”, ou “o que é isto, Clara?”, ou “Ou o que é isto, Professora?”, porque os fenómenos em causa estavam descritos em banda desenhada?
E agora o ataque dos Grandes Eventos explicados em BD é direitinho à literatura, a demonstrar que já nada é sagrado, mesmo.
Se mais ninguém disser que o rei vai nu, eu, por mim, chego-me já à frente. Querem o exemplo acabado de um projecto que não é bom para ninguém? Ponham os olhos neste.
Não estou para aqui a resmungar. Estou apenas, com toda a tranquilidade possível, a reafirmar que existem áreas separadas. Se podemos argumentar com uma grande parte de verdade que as pessoas deixaram de ter tempo e de ter espaço, tanto exteriores como interiores, para continuarem a ler boa literatura[10], então devemos procurar uma forma produtiva de fazer frente a esta falta de contexto. Não é propriamente apresentar-lhes um resumosinho da história, como acontece tantas vezes na Wikipedia e na escola, que poderá, alguma vez, devolver-lhes o prazer como não há outro de serem parte integrante de uma obra de arte, já que cada livro é ele mesmo e o seu leitor – um livro que não estiver a ser lido é um livro que não existe.
A boa BD é uma coisa. A boa literatura é outra coisa. Os formatos de suporte para cada uma destas duas coisas não podiam ser mais diferentes. É vergonhoso, positivamente vergonhoso, andarem a refugiar-se atrás de pretextos inúteis, tais como “atrair os jovens.[11]” E não poderiam inventar uma forma mais saloia de homenagear os nossos “grandes clássicos”.
Que, à excepção do primeiro da lista, ninguém nos disse quais são.
Mal feito, mal feito, mal feito.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] E note-se que era uma notícia de mais de cinco minutos, que passou numa quarta-feira – ou seja, era uma notícia grande e passou mesmo a meio da semana, em plena competição por espaço e tempo característica dos dias úteis.
[2] E olhem que era uma notícia concebida para espectadores muitíssimo impenitentes. Estava positivamente feita com os pés, sem o carinho e a beleza que a literatura exige para ela própria se levar a sério; e, embora aparecessem diversas personalidades a debitar bastantes balelas, chegava-se ao fim sem sequer se perceber se o formato vai ser o do livro ou o do fascículo. Acrescente-se que o material que está postado online também não nos tira qualquer uma destas dúvidas.
[3] A menos que a resposta seja apenas, e tão laconicamente quanto possível, “eram livros que já estavam no domínio público.”
[4] Estou a simplificar. O “em conjunto com a RTP” já foi informação que encontrei online. A notícia da televisão era mesmo minimal.
[6] De certeza que a ALMEDINA também pertence, por seu turno, a outra grande editora qualquer; mas isso não está esclarecido em lado nenhum. Nem eu gosto de ir fazer investigação para depois voltar de lá deprimida.
[7] A data da primeira publicação da MENSAGEM foi 1934. Vamos em 90 anos passados sobre este marco literário. E, já agora, aproveitamos para oferecer factoides aos nossos leitores.
[8] Apareciam páginas do livro na peça informativa. Isto não é um juízo de valor sobre o talento do artista que as fez. É um grande aperto no peito quando pensamos na forma como todo este material será tratado.
[9] Quando eu adoptei os meus filhos já não podia fazer grande coisa a esse respeito. Mas dei-me rapidamente conta de que todos os colegas e amigos deles, na escola e na rua, tinham sido criados da mesma maneira.
[10] Até o meu Sebastião, que interioriza com grande rapidez os comportamentos-chave das pessoas, começa a dar alguns sinais de impaciência ao fim de dez minutos, quando eu estou a ler na cama, e – assim lhe parece – gaita, raios me partam, a grande malvada da mulher nunca mais apaga a luz.
[11] A sério. É horrível. Eu já fui jovem, e lembro-me muito bem destas políticas. Tudo o que fosse destinado aos “jovens” era fatidicamente medíocre. Meu, que sufoco. Tirem as patas e deixem-nos em paz.
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Abandonei as surpresas inerentes ao estilo barroco e também as surpresas que levam a um final que ninguém viu chegar. Em poucas palavras, preferi satisfazer as expectativas em vez de providenciar grandes choques: depois de fazer setenta anos, creio que encontrei a minha própria voz.
Jorge Luís Borges
O RELATÓRIO DE BRODY – PREFÁCIO (1970)
A mercearia da Belinha fica na rua mais estreita que ao fundo desagua no Rossio, entre a praça da minha casa e a esplanada do Zé Russo, logo seguida pela da padaria, frente aos taxis que por sua vez param à frente do tribunal, e rumo ao grande centro de tudo isto onde todos os sábados a festa vai ao rubro com o mercado e com as famílias e grupos de amigos que se juntam para almoçaradas e jantaradas infindas, dentro e fora de horas. De onde está, ou cá fora a remexer intemporalmente nos caixotes da fruta quando não tem fregueses, ou lá dentro a corujar desalmadamente quando chega alguém com uma história nova ao mesmo tempo que espreita através dos vidros, a Belinha só não vê o que não quiser ver. Ao fim da tarde, ao à hora da sesta, quando descem sobre a calçada os períodos de maior acalmia, ela aprecia sentar-se no banco sombreado pelas árvores majestáticas do Ministério da Justiça e saborear uma pausa de repouso na companhia dos taxistas, que lhe alargam ainda mais o campo de visão. Tem por melhor amiga uma menina muito apagada, magrinha e silenciosa, e de ocupação assaz duvidosa, que passa outros tantos períodos de acalmia na zona obscura junto ao fundo da loja, e que também deve dar-lhe a ver muitas e muito boas novas perspectivas sobre a vida quotidiana de Estremoz, porque a Belinha parece adorar a sua companhia. Ontem fiquei a saber que, desta vez, a Chefe da Rua tinha visto o invisível através do meu espelho. Fui até à mercearia para comprar tangerinas e uvas, porque a fruta da Belinha é verdadeira, e enquanto tal[1], nesta terra abençoada, é verdadeiramente deliciosa. Mas aquilo foi um anúncio às massas de tal forma desagradável que saí logo dali e ainda não voltei a entrar lá. Que se lixe a fruta.
Para contar esta parte pouco interessante depressa, só preciso de contar que andei imenso tempo a sentir-me cada vez mais doente mas sem saber de quê até que fui parar ao hospital, onde me internaram nos Cuidados Intensivos. Quando acordei disseram-me que lhes tinha pregado um grande susto e viajado até às portas da morte, enquanto a mim me parecia mais, de tão estranho que aquilo era, que tinham antes conseguido fechar-me num reality show onde eu era era a última concorrente. Entre isto e o tempo que estive a comer aquela aproximação à comida quase fria e confeccionada sem qualquer espécie de sal que existe nos hospitais, e depois o tempo em que estive a recuperar do reality show dos Cuidados Intensivos numa caminha da Medicina 1[2], passou-se cerca de um mês e meio, e depois vim recuperar ainda mais para casa. E, entre uma coisa e a outra, a verdade é que só esta semana é que comecei a sair livremente à rua, a ver os meus amigos, e a celebrar com eles o meu regresso às rotinas quotidianas.
Uma dessas rotinas costuma ser o convívio com o espírito de festa revisteira que a Belinha transporta consigo como uma bomba-relógio.
Quando virei rumo à mercearia para ir comprar fruta e vi a sua imagem, sempre toda decorada com requintes de capricho, a remexer nos caixotes com grande estrilho de colares e pulseiras, fiquei tão contente que apressei o passo, lhe dei um grande abraço, disse qualquer coisa como “ai, Belinha, que bom voltar a ver-te”, e lhe espetei com dois beijinhos muito sentidos. Ela olhou para mim apanhada de surpresa, e a primeira coisa que lhe saiu pela boca fora, desta vez, e por uma vez sem exemplo sem qualquer espécie de graça, foi,
“Olha lá, vais pagar-me o que me deves, não vais?”
Eu penso logo, no piloto automático,
“Porra, que chata que é esta gaja,”
e ao mesmo tempo respondo, ainda dentro meu sorriso inicial,
“Belinha, claro que te pago, então. Eu não fugi com o dinheiro, achas? É mais que fui internada no hospital e estava inconsciente. Depois fiquei lá até à semana passada, e só agora é que consegui começar a sair de casa. E não vês que vim cá logo comprar-te fruta?”
À medida que ela me ouve, os olhos azuis da Belinha tornaram-se pensativos por baixo da maquilhagem.
“Ah, no hospital. Estás doente, não é? Estás outra vez doente, cada vez mais doente. Escuta, sabes o que é que me disse aquela minha freguesa que te conhece muito bem?”
Eu cada vez duvido mais que esta freguesa da Belinha exista mesmo na vida real. Da maneira como ela repete as suas histórias, dá-me ideia de que esta freguesa é um personagem inventado que lhe permite dizer-me, e suspeito que dizer a toda a gente que lhe dê ouvidos, o que lhe apetece dizer a meu respeito mas carece de substrato fiável. Desde que alguém lhe lhe mostrou as minhas fotografias de outros tempos na internet, juntamente com os textos que noutros tempos se postaram na internet a meu respeito, a Belinha descobriu que eu agora sou uma sexagenária mas já fui uma boazona chamada Clara Pinto Correia. Ou seja, dá ideia que descobriu que, no meu caso, envelhecer foi um grave pecado em cuja indulgência eu não tinha o direito de incorrer.
“Aquela minha freguesa, sempre que te vê aqui, diz-me logo, Tsss…Meu Deus… Coitada… O que aquela mulher era!”
“Ó Belinha. Que disparate. Então uma mulher não tem o direito de envelhecer? Essa tua freguesa queria o quê, queria que eu fosse uma americana cheia de plásticas?”
“Ah, mas ela mostrou-me as tuas fotografias, minha filha. E deixa-me que te diga, tu apresentavas-te bem.”
“Não caias de tão baixo. Tu, naquela idade, também te apresentavas bem de certeza.”
Desta vez, no entanto, a freguesa da Belinha teria ido à mercearia contar uma história ainda mais infame a meu respeito. Ela voltou a estudar-me com um ar pensativo, e depois atirou-me com o golpe de misericórdia.
“Sabes, assim que tu voltaste para casa eu falei com a minha freguesa que te conhece. E ela disse-me assim, Aquela mulher… Como as coisas são, aquela mulher, que já deu na televisão… aquela mulher que dantes era da televisão, olha: agora anda a comer do padre!”
Aquilo inicialmente foi um choque, porque soava mesmo a “anda a comer o padre.” A pessoa até se arrepia. A comer quem? O Padre Francisco? Um senhor tão simpático? Eu? A comer o padre? Mas pronto, o choque passou depressa porque a frase fora, inequivocamente, a comer do padre. E isso só podia ter a ver com a minha situação financeira, que se resume a sobreviver com uma reforma mensal de ordenado mínimo, juntamente com a solidariedade social de Estremoz, que é rápida e eficaz a responder às necessidades dos doentes e indigentes, e ainda juntamente com a organização protectora das minhas três irmãs, que são uma espécie de sindicato de protecção da ovelha transviada da família[3]. Juntando esforços enquanto eu jazia na minha cama da Medicina 1, tinham-se organizado para que as voluntárias do Lar de Santo André viessem cá a casa trazer-me o almoço todos os dias da semana – e é um almoço tão caseiro, tão saboroso, e tão bem servido, que chega e sobra para também ser um jantar.
Fiquei tão mal disposta com o pressentimento óbvio do que queria dizer aquele “comer do padre” que já nem comprei tangerinas, nem uvas, nem nada – inverti a curva, afastei-me da mercearia o mais depressa possível, e quase que corri para casa num desespero de conseguir afastar-me do mal.
Perguntei a uma das senhoras que cá apareceu com o almoço logo a seguir ao meu encontro imediato com a “freguesa da Belinha”, e ela confirmou o meu pressentimento.
Uma das pessoas que se senta no conselho de direcção do Lar de Santo André é o Padre Francisco.
E, com base nesta informação, à partida muito límpida mas à chegada certamente já extremamente turva, onde dantes eu recebia com imenso gosto esta nova rotina de o termos com o almoço caseiro muito bem servido trazido por duas senhoras da cidade, a Belinha conseguiu instaurar um autêntico Edward Jenner.
Edward Jenner deixou a sua marca no caminho da Europa entre 1749 e 1823. Este cirurgião britânico era um menino do campo, filho de um pastor protestante e, a partir dos cinco anos, depois da morte do pai, um fruto da educação providenciada pelo irmão mais velho, que também era um pastor protestante. Isto aconteceu tudo em pleno Iluminismo, ou seja, numa época e num lugar em que a Ciência e a Religião estavam pouco menos que sobrepostas, pelo que as respostas para os grandes mistérios da Natureza se procuravam sistematicamente na Bíblia.
Com o tempo, Jenner tornou-se um cirurgião muito popular e respeitado, amigo lá de casa dos grandes nomes da época e chamado a leccionar em Berkeley pouco depois de ter concluído a sua própria formação, prática e teórica. Juntamente com as aulas, juntou-se a dois grupos académicos que laboravam pela promoção do conhecimento médico, escreveu os seus artigos, aprendeu a tocar o seu violino com a devida doçura, compôs os seus poemas ligeiros com o devido virtuosismo, estudou com particular interesse os hábitos parasíticos de nidificação do cuco[4], e começou a debruçar-se cada vez mais, primeiro só na população inglesa mas depois na do mundo inteiro, sobre os segredos com que a vacina da varíola se escondia do conhecimento humano.
Fossem aqueles tempos politicamente correctos como são hoje, e Jenner seria logo proibido de inocular pessoas à vontadinha sem saber ao certo o que é que estava a fazer. Sendo assim, é muito provável que nunca tivesse descoberto coisíssima nenhuma, embora a atitude de princípio que presidia a essa ignorância fosse muito mais decente. E a ausência desta descoberta quereria dizer que o nosso conhecimento sobre inoculações contra vírus assassinos teria evoluído muito mais devagar. Mas estávamos na fronteira entre os séculos XVIII e XIX. A varíola era especialmente odiosa para as classes dominantes porque, ao contrário de outras armas mortíferas como a sarna e a sífilis, não respeitava estratos sociais. Ainda por cima, quando não matava os atingidos, deixava-os a todos desfigurados por igual para o resto da vida. Claro que, neste cenário, os grandes médicos tinham o caminho aberto para testarem as suas teorias no mundo vivo desde que fossem devidamente discretos – e que, claro, restringissem o mais que pudessem o seu campo de acção aos pobres e aos pretos[5]. Ora acontece que, graças a Deus, cobaias dessa natureza eram o material que mais abundava no planeta[6].
Com base nas suas observações veterinárias, no campo e no laboratório, Jenner concluiu que a melhor defesa contra o agente da varíola[7] seria a inseminação de humanos com varíola bovina, que provocava no humano uma resposta muito mais suave mas aumentava imediatamente o quociente imunitário[8].
Só para poder ter esta certeza, não sabemos quantas pessoas é que a grande vedeta da medicina britânica teve que inseminar com soro de vacas doentes.
No primeiro livrinho que publicou[9], enquanto outros colegas a quem tinha dado amostras do soro começavam também a testá-lo em pessoas que nunca foram identificadas, aparece, por extenso, o nome de sete voluntários.
Agora, nós sabemos que sete cobaias não representam, minimamente, um valor de confiança para um investigador que está à procura de um soro capaz de desencadear uma resposta imunitária no organismo do ser humano. Talvez Jenner tenha antes seleccionado cinquenta cobaias. Ou mesmo quinhentas, para jogar pelo seguro. Hoje em dia seriam umas cinco mil, com um punhado de post-docs estafados, sempre agarrados às micropipetas onde escreveram o seu nome com uma daquelas canetas de tinta resistente à água, o dia inteiro a micropipetar o agente da vacina tirado das vacas doentes, a passar o dia inteiro o sobrenadante dos seus eppendorfs de um lado para o outro[10], tudo isto num silêncio de cortar à faca o dia inteiro porque agora é assim que se fazem as coisas[11].
Edward Jenner descobriu mesmo a vacina para a varíola.
Mas, pelo caminho, nunca saberemos quantos pobres e quantos pretos é que morreram nesta escalada para a nossa salvação colectiva.
Se a história se passasse hoje, claro que o grande cirurgião seria chamado à Justiça e submetido a um longo e penoso julgamento, que, entre outras coisas, traria a público um rol angustiante de identidades das vítimas.
Mas naquela altura, naquelas vítimas, detalhes desses eram considerados de somenos importância.
Da mesma forma, para a Belinha, turvar as águas de um programa muito bem organizado de solidariedade social da sua cidade chamando-lhe “comer do padre” e atirando-nos a todos para a gamela dos pobrezinhos suplicantes também é de somenos importância – a malta percebeu a ideia, foi ou não foi? E, dito assim, até é mais colorido.
Se depois de ouvir a versão da “sua freguesa” eu tenho dificuldade em voltar a entrar na mercearia, muito bem – o problema é meu.
Há mais quem queira.
Aliás, até deve haver mais quem queira saber que “aquela mulher, que até já andou a dar na televisão”, agora anda “a comer do padre”.
Belo romance.
Hm, não.
Soares de Passos não faria melhor com as suas estrofes do que eu consegui fazer com a minha vida[12].
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[2] Aqui, evidentemente, já tinha percebido que aquilo não era nenhum reality show. Mas se o que eu vi eram mesmo as portas da morte, bem – organizem-se. Que caos.
[4] Um verdadeiro parasita, a merecer maior desenvolvimento metafórico um dia destes. Na Primavera vem de propósito de África para acasalar, depois do que o macho desanda para casa e a fêmea espia os passarinhos pequeninos das redondezas, escolhe os que fazem o melhor ninho, despeja lá o seu ovo, e parte também ela para África. O bebé cuco costuma sair do ovo imediatamente antes dos seus irmãos adoptivos, e a primeira coisa que faz é deitar-lhes todos os ovos ao chão para se tornar filho único. A partir daí, tudo o que faz é berrar com fome, enquanto os pais adoptivos, muito mais pequeninos que o seu filho monstruoso e completamente esfalfados, correm pelos bosques o dia inteiro para lhe trazerem alimentos ao ninho. Muitos morrem quando o gigante está quase criado, mas, como o demónio é sábio, nunca morrem os dois. Quando o jovem cuco se sente capaz de voar, estica as patas, abre as asas – e parte para África, onde ficará a crescer e a engordar atá à Primavera seguinte, quando estará pronto para vir à Europa parasitar com o seu ovo o ninho de um passarinho qualquer. Por acaso, com tudo o que vimos e ouvimos, eu e o Dick ainda nos lembrámos de que poderia ser útil para outros pais adoptivos escrevermos uma autobiografia chamada O OVO DO CUCO. Mas concluímos que era uma péssima ideia.
[5] Pedimos desculpa, mas o pensamento da época funcionava mesmo assim.
[6] Bem, abundava na altura assim como abunda hoje. Até podemos escolher não dizer nada, mas sabemos perfeitamente que são precisos imensos pobres para sustentar um rico e que todos os pretos são pobres. Voltamos a pedir desculpa, mas esta história é mesmo tirada da vida real.
[7] A ideia do vírus ainda estava longe da sua consolidação científica. Esta teve por esperar pelas publicações do microbiologista russo Dmitry I. Ivanovsky, em 1980, e do microbiologista e botânico holandês Martinus W. Beijerinok, em 1893. Ambos os cientistas estavam a estudar uma doença que afectava as folhas da planta do tabaco.
[8] Também aumentou o nosso léxico, e de que maneiro. Em português isto não é particularmente espectacular, mas pensem no negrume em que viveram os pobres ingleses, ou nos desgraçados alemães. A palavra latina para vaca é vacca, o que faz com que a varíola bovina se chame vaccinia. Jenner decidiu chamar ao processo de inoculação com o soro da vaccinia… vaccination. Ou, em português, vacinação, rapidamente simplificado para vacina por sucessivos acordos ortográficos. Estão a ver como se fazem as coisas?
[9] Note-se que a introdução desta vacina foi muito polémica, sobretudo porque a classe médica não acreditava no efeito benéfico das vacinas. Os primeiros artigos que Jenner submeteu para publicação foram todos chumbados, e o grande cirurgião acabou por optar por uma primeira publicação em livro.
[10] Ah, desculpem. Os eppendorfs. No caso das micropipetas, os eppendorfs são aquelas pontinhas translúcidas, descartáveis e renováveis, onde se processa o material em estudo. A gente fala deles tantas vezes, por tantas razões, que acaba por esquecer-se que os leigos carecem de nota de rodapé.
[11] Eheheh! A berraria com que eu fiz as minhas coisas, no meu tempo, já ninguém me tira. Aprendíamos os palavrões mais debochados deste mundo, contávamos histórias francamente porcas, apaixonávamo-nos, chorávamos, valeu tudo. Foi bom.
[12]Vai alta a lua! na mansão da morte. Já meia-noite com vagar soou; etc. A “mansão da morte” é o cemitério, só podia. E estes são os dois versos de abertura do famoso poema O NOIVADO DO SEPULCRO, que no final do século XIX todas as meninas sabiam de cor (também, não é tão longo nem tão difícil como isso), e que conta a história de dois jovens apaixonados, acabados de falecer, que no final conseguem abraçar-se numa única sepultura, deixando a outra vazia, com a lápide quebrada. É um bocado picante, porque para o fim o rapaz parece insinuar que vai, por fim – e já que não o fez em vida – fazer da rapariga sua mulher. Depois parece que quebrou a lápide. Estão a ver as colegiais do século XIX? Hm-hm.
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A catástrofe saía do abismo majestosamente. Parecia mais uma aparição do que um ataque. Reinava uma espécie de silêncio colossal. Dir-se-ia um sonho passando sobre o mar: as lendas contam visões semelhantes.”
Victor Hugo
NOVENTA E TRÊS (1874)
Aqui de onde estamos quem é que nos vê?
No dia em que se faz a grande reverência pública ao sonho europeu do recém-falecido Jacques Delors, diz-nos Cavaco Silva que de bom grado teria dado uma palavra de circunstância ao presidente do actual Parlamento Europeu mas enfim, sendo tudo isto uma democracia, “por questões de protocolo não me foi possível marcar este encontro.” O quê? Sendo tudo isto o quê? Não lhe foi possível o quê? Credo, que este senhor, desde que foi primeiro-ministro no tempo da CEE do outro senhor, na altura em que Portugal era considerado, para todos os efeitos, a sistemática “cauda da Europa,” sempre teve uma falta de jeito para falar às massas que até faz doer. A pessoa estremece de desagrado, recorda muitos momentos penosos de construções furiosas de muitas autoestradas indevidas entre muitas oliveiras arrancadas[1], imagina como teria evoluído o nosso país se os parceiros fossem outros nessa altura, e, por fim, respira fundo. Delors, ao menos, já não escreverá as suas memórias íntimas, e Portugal não aparecerá nelas a fazer várias péssimas figuras[2].
Passam poucos dias do Ano Novo e poucos minutos das sete da manhã. A esta hora a padaria costuma abarrotar de fieis devotos prontos para irem trabalhar a seguir, mas hoje as nossas tropas reduzem-se a metade, dado que a outra metade conseguiu congeminar um plano de feriados e dias de folgas pessoais para gozar em família ou em solidão – mas para gozar, o que, antes de mais qualquer outra coisa, significa não estar na padaria da Teresa e do Pedro, às sete e meia da manhã. A outra metade de nós, aqueles que não foram ocultar-se dos olhares ferozes da rotina laboral para lado nenhum[3], troca galhardetes mais baixo que do costume, porque o tom geral da vozearia é mais limitado e ninguém quer dar ideia, sobretudo àquela hora matutina, de que, por uma questão de elementar prudência, observou silêncio em casa e em vez disso foi antes gritar para a padaria. Além disso, toda a gente tende a falar mais alto quando a Teresa está presente, porque a miúda é um verdadeiro dínamo, sempre a correr de um lado para o outro, sempre a despachar serviço como se a pureza, a garra, e a sobrevivência da sua alma neste mundo e no outro dependessem do ruído da registadora a abrir e fechar, ou do anúncio em altas vozes para que todos os que se reúnem ali dentro e no aglomerado junto à porta oiçam logo e fixem bem quanto é que deve cada cliente, ou do sorriso meio malandro e muito calado de raposinha vencedora que descobriu os pintainhos[4] com que ela corre de um lado ao outro do balcão. A Teresa pratica todos estes truques de grande vendedora, mas o Pedro não. E, por isso mesmo, como hoje a Teresa foi tratar de uns papéis à Conservatória logo ali à hora de abertura para não ter que se demorar muito, a padaria está curiosamente calma.
Tratar de papéis logo a seguir ao Ano Novo.
Que sufoco, na vida de recibo verde deste jovem casal[5].
E eis que nos damos conta, devagar, devagarinho, por entre os aromas do café acabado de tirar e do pão acabado de chegar, por entre as vozes brandas desta manhãzinha dos primeiros dias do novo ano, de uma pincelada mais sufocante ainda no primeiro plano desta tela. Começamos a notar que o Pedro faz as manobras que lhe competem especialmente devagar porque tem a sua mão direita em gesso, com uma grande ligadura por cima.
“O que é que foi isso aí, ó Pedro?”, pergunta, finalmente, alguém que vai trabalhar a seguir.
“Foi no dia de Natal,” responde o marido da Teresa com um meio sorriso.
“E como é que arranjaste isso?”
“Epá. O que é que queres? Estava a ligar um atrelado a um reboque e fiz porcaria.”
“Epá.”
Entre a Véspera de Natal e o Dia de Ano Novo quase tudo é um feriado. São dias sossegados em que todos os estabelecimentos fecham as portas para que todas as famílias possam juntar-se. São os momentos em que se repara que estas cidades pequenas, estas cidades como Estremoz, são mesmo pontinhos no mapa que o tempo foi varrendo para longe de tudo e banhando numa calma enorme. São os dias de nos sentirmos melhor do que em todos os outros. Mesmo assim, no dia de Natal propriamente dito, o jovem marido do casal que comprou a nova padaria que está sempre cheia aproveita o pouco tempo livre que ainda tem para ligar atrelados a reboques. E faz porcaria. E aquilo deve ser bastante grave, porque se ouvem várias vozes a dizer “ah”, mas não se ouve nenhuma voz a perguntar por quanto tempo vai ficar com a mão direita assim tão desastrada, ou se poderá guiar naquele estado, ou se quê.
Não se fala das desgraças.
Quem está longe de tudo e é muito pequeno só ganha em aprender depressa a ser estóico.
Há muitas alturas em que a distância dói.
Como se eu ainda precisasse dela, avança uma ilustração.
Mesmo ao meu lado está uma senhora, também ela de aspecto muito jovem[6], que eu nunca vi antes na padaria.
Felizmente a questão esclarece-se depressa, porque do outro lado do balcão está um homem que pelos vistos a conhece bem[7]. Entretanto, eu faço de conta de que não estou a ouvir nada.
“Olá Mariazinha!”, saúda-a o homem, com um grande ponto de exclamação todo feliz[8]. “Então por aqui? E tão cedo?”
“Tenho que ir ali ao Tribunal assim que ele abra, que é para não passar a manhã inteira na fila,” responde de imediato a Mariazinha, que não levanta a voz mas está evidentemente muito irritada.
A minha casa fica na praça grande que vai ter à praça mais pequena ocupada pelo Tribunal. É por isso que eu venho a esta padaria tomar café e conheço tão bem os personagens que aqui param à hora de abertura, mesmo sem fazer grandes perguntas a seu respeito. À frente do Tribunal fica a praça de táxis, e aliás ou me engano muito ou este homem que meteu conversa com a Mariazinha é um taxista[9]. Diante da praça de taxis, do outro lado da rua, fica a padaria. É impossível esconder o que quer que seja, seja lá de quem for[10]. Ele pode contar a sua versão desta conversa a toda a gente que levar a toda a parte em todos os dias desta semana que se avizinha. As pessoas da padaria também podem. Na realidade, até o Pedro pode. E, através dele, até pode a Teresa, que nem sequer está aqui. Além disso posso eu, que escrevo estas crónicas; e comigo pode o nosso director, que decide sozinho os detalhes da sua ilustração[11].
A Mariazinha não pode nada, porque não está interessada em nenhum de nós e já sabe que não tem qualquer poder face ao Tribunal. Eles vão decidir o que muito bem lhes apetecer. Ela está só a tentar decidir que única frase fará sentido oferecer ao Senhor Doutor Juiz para encerrar o caso.
“Estão sempre a pedir papeladas inúteis aos Directores de Turma,” comenta o homem, obviamente versado em questões de escola.
“Ah,” suspira ela. “Desta vez não me chamaram enquanto DT. Chamaram-me enquanto professora Maria Armanda.”
“Quem é que fez queixa de si, ó s’tora?”, pergunta, ainda da porta e já toda de mão na anca[12], a voz da Teresa, que acaba de chegar dos seus deveres de recibo verde e está pronta para um bom combate de cidadania.
Mariazinha encolhe os ombros.
“Deixe lá, ó Terezinha. É mais que era um café e um arrepiado[13] e tenho que ir andando para ver se me despacho a horas que aquilo é por ordem de chegada.”
“Vamos com calma que ainda não está lá ninguém. Se calhar nem vai estar, que ainda nem estamos nos Reis e o pessoal aqui pensa que isto é Badajoz, é para celebrar até aos Reis. O que é que aconteceu, então, para a Mariazinha ter que vir a Juízo?”
Mariazinha está visivelmente encorajada por este “nós” – e, claro, também pela ideia de que não haverá fila para a inscrição no tribunal. A solidariedade dos fregueses cresce num murmúrio simpático. Ela enche o peito de ar, olha para mim no sentido de me incluir no número dos apoiantes desconhecidos, e despeja:
“Mais cedo ou mais tarde isto chegava aqui. Estava-se mesmo a ver. Só que, se fosse em Beja, ou em Elvas, era logo um escândalo. Há cerca de um mês, a meio de uma matéria importante, dei por uma das alunas a mandar sms ao namorado. Confisquei-lhe o telemóvel até ao fim da aula, e, como ela me amandou com uma data de palavrões valentes, mandei-a sair da sala, também até ao fim da aula. Ela levantou-se para sair, mas a mexer-se muito devagar e sempre a fazer-me aquele gesto com os três dedos.”
De sobrancelhas erguidas ou franzidas em sinal de interrogação estupefacta, a audiência da padaria reproduz o único gesto com os três dedos que lhe ocorre como perdidamente ofensivo, gesto esse que a jovem professora confirma com vários acenos de cabeça. Os murmúrios solidários crescem de tom. Ela vê-se obrigada a falar também mais alto.
“Pois então vejam bem, a menina foi para casa queixar-se aos pais de maus tratos psicológicos na sala de aulas, os pais queixaram-se disso mesmo à direcção, a direcção suspendeu-me a mim por um mês, e agora tenho que ir eu explicar ao juiz o que foi que aconteceu ao certo.”
O protesto cresce a toda a nossa volta. Eu estive calada este tempo todo, mas agora não consigo deixar de dizer, num sussurro de horror,
“Parece um filme americano”.
E a Mariazinha, também num sussurro,
“Pois, mas em Lisboa seria um escândalo, um verdadeiro escândalo. Mas estamos em Estremoz, e aqui ninguém protesta. Estamos muito longe, e somos muito pequeninos. Ninguém protesta.[14]”
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Eu estava a trabalhar nos Estados Unidos, antes da invenção da internet. Falava-se, apenas, de uma tal de World Wide Web em fase de montagem. De cada vez que vinha a Portugal as pessoas falavam, sobretudo – e falavam disto positivamente horrorizadas – dos pastores que eram pagos para não trabalharem e das oliveiras que eram arrancadas. Sobretudo as oliveiras que eram arrancadas. Ninguém precisava de um diploma. Toda a gente entendia que aquilo era o fim do mundo.
[2] A que vem tudo isto? Eu digo-vos a que vem tudo isto, seus perdidos. Mas acreditem. Nunca deviam ter deixado a expressão hipertexto ficar sem sentido há tanto tempo. É perigosíssimo.
[3] E nisto não há nada pior do que a pessoa ser o seu próprio patrão. Posso testemunhar.
[4] E ainda bem que os comeu, é ou não é? Estavam a ser engordados à força com hormonas, e seja como for há demasiados pintainhos neste mundo, certo?
[5] Módulo comparativo para todos os outros. Aliás, nem precisam de ser jovens. Nem sequer precisam de ser casais. Basta, apenas, serem portugueses que sufocam às mãos da Autoridade Tributária e Aduaneira – e já mereceram todo este parágrafo, com todas estas intenções.
[6] Pode parecer uma contradição nos termos, mas as cidadezinhas pequenas e quietas são assim. Até as mulheres jovens têm ar de senhoras.
[7] Este homem não tem nenhuma aparência jovem nem deixa de ter: tem aquela aparência neutra própria dos homens, que são pessoas simples, e portanto, regra geral, muito menos descritivos do que as mulheres. Coitados.
[8] Falar alto em voz feliz independentemente das circunstâncias é outra característica genérica e neutra dos homens. Coitados.
[9] Pelo menos a qualificação acertaria na perfeição com o arquétipo do homem batido que sabe tudo sobre tudo. Até sobre papeladas inúteis que os Tribunais pedem aos Directores de Turma, que, por seu turno, são pessoas tais como a Mariazinha. Perguntem-lhe como é que é a vida de um DT na Islândia, que um bom taxista também sabe.
A propósito, um taxista sabe. Os gajos dos Uber nem pensar.
[10] Até de mim, que não sou deste filme mas já estou com as antenas todas espetadas para ver se percebo bem o que é que se passa entre a Jurisprudência e a Escola, entre as sete e meia e as oito da manhã.
[11] Eu sei, dantes as ilustrações também eram comigo (diferença: tinham legendas). Depois fiquei cada vez mais maravilhada à medida que o lado lunar com um toque de psicopata do director se foi revelando na tarefa árdua de ilustrar o nosso folhetim de Verão CARTAS DE AMOR, e acabei por delegar por completo essa tarefa nele (que, pelos vistos, estava francamente a gostar). Como estamos numa nota de rodapé e não queremos que ninguém se perca, note-se que, aqui, cada parênteses com itálico dentro corresponderia a uma nota de rodapé se isto fosse uma passagem do texto. Assim, esta passagem vale enquanto portagem de hipertexto.
Somos cultos.
E vocês têm que pagar para seguir em frente.
[12] Parafraseando Mário de Carvalho, in CASOS DO BECO DAS SARDINHEIRAS: a filha do Andrade prepara-se para discordar e interromper, “já toda de mão na anca”.
[13] Este bolo é de Estremoz? Ou não? Não perca tempo – atire a moeda ao ar, acerte, ligue para o 707-562-330, e ganhe já este magnífico híbrido!
[14] Claro que também ninguém faria escândalo em Lisboa, porque, pura e simplesmente, nós somos portugueses e baixamos a bola. Deixamos entrar sem luta todas as porcarias inventadas na América, e esta atitude é perigosíssima.
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A cama do menino Jesus era um colchão no chão, com pouca roupa, tão pouca que o menino raramente se despia, e muito menos no Inverno. Era, sem dúvida, um mau costume; mas também o Inverno é um mau costume.”
Jorge de Sena
ANDANÇAS DO DEMÓNIO (1944)
Então, mas…
…é ou não é verdade que 15% das mulheres tem ventres onde nunca há frutos?
Caraças, estes malditos detalhes.
Dão com os escribas em doidos.
Vamos lá, agora deixem-se de tretas. Um lugar-comum que está grosseiramente errado logo à partida não se vai tornando ligeiramente correcto, e depois cada vez mais correcto até andar próximo de expressar a verdade, apenas porque é repetido milhões de vezes, espraiando-se pelo curso dos séculos e correndo pelas veias da geografia. O que estão sempre a dizer-vos não é verdade, e aliás nunca poderia ser verdade. Se calhar a rima é bonita[1], e se calhar o próprio conceito é aconchegante. Até pode ser que funcione como enzima desculpabilizante[2], sobretudo para as pequeninas minorias bem cuidadas que possuem a granel tudo aquilo que as colossais maiorias esfarrapadas nunca possuiram nem possuirão. A existência de uma única noite, ao longo de um total descontraído de 365 dias e seis horas, que é destinada à prática da solidariedade social[3] deve ser especialmente doce para estas pessoas – mas com a ciência[4] não se brinca e não, desculpem mas não, oNatal não é quando um homem quiser. A data de celebração do Natal tem regras, pelo que, para fazer sentido, o Natal precisa obrigatoriamente de respeitá-las. E acontece que uma dessas regras, absorvida directamente do culto mitraico pelos legionários romanos acabados de chegar da Pérsia[5], é a regra de ouro da sua data, que sobrepõe o nascimento do Menino Jesus às festividades com que se celebra o Solstício de Dezembro. É nesta altura que os homens imploram aos deuses que a luz volte depressa.
Creio que toda a gente sabe isto. Mas, na dúvida, vamos só rebobinar os pontos mais altos destes Himalaias improváveis.
Até muito tarde no curso da História que se escreveu Depois de Cristo, o Natal celebrava-se na noite de 20 para 21 de Dezembro e não existiam cá mais mariquices. Existia, apenas, a calêndrica estóica herdada de Júlio César no grande esforço de criar uma contagem do tempo que servisse por igual todos os povos do mundo abrangido pelo Império Romano. Positivamente pejado de anos bisextos, dias pagãos feitos feriados, travessias religiosas e outras que tais, este Calendário Juliano usava essas alcavalas para manter o tempo sob controlo. Mesmo assim, quando entramos na primeira década do século XVI o calendário já transborda com abundância, porque já comporta doze dias a mais.
Na primeira década do século XVI?
Gaita que isto foi rápido.
Na realidade, e tendo em linha conta que no século XVI ainda são os Papas quem toma as decisões finais por todo o mundo civilizado[6], isto apenas precisou de um Papa suficientemente empreendedor que conseguisse ver com clareza o que lhe trazia a curva do tempo – e depois, em vez de se dar por vencido e suspirar com tristeza à maneira do muito cristão Soren Kierkegaard “a maior ironia da vida é que a vivemos do princípio até ao fim mas só a entendemos do fim até ao princípio[7]”, contratar um punhado de estudiosos dedicados à calêndrica para que lhe apresentassem o projecto de um novo calendário.
Esse Papa adoptara o nome Gregório III.
Foi assim, para o melhor e para o pior, depois de imensa polémica e intensa gritaria, que nasceu o Calendário Gregoriano ainda hoje em uso.
Agora, vão por mim e apreciem bem algumas histórias verdadeiras associadas às datas do Natal e da Páscoa. Se não aprendermos mais nada, no mínimo aprendemos, de uma vez por todas, que a calêndrica não é nenhuma brincadeira. Longe disso. É uma forma de estar na vida que ainda hoje separa os cristãos ortodoxos dos católicos, os católicos dos protestantes, e toda esta gente da grande heresia nestoriana que nos nossos tempos se abrigou em Turlock, California.
Até à conversão do Império Romano, a celebração do Solstício de Inverno que faz concorrência directa com o cristianismo é a do culto indo-iraniano dedicado ao deus Mitra. Mitra, que apadrinha a amizade, o contrato, e a ordem, aparece na península italiana no final do século I, para depois se expandir a grande velocidade por todo o Império. O seu culto é secreto, pelo que cada um dos seus novos seguidores se vai sentindo especial perante todos os seus pares. Neste sentido, os templos de Mitra encontram-se muitas vezes dentro de cavernas, ou de grutas, ou em qualquer outra localização que os esconda dos olhos do mundo.
Como é evidente, existe toda uma narrativa destinada a acompanhar os passos de Mitra entre os mortais. Um dos grandes pontos altos desta narrativa ocorre quando Mitra mata um touro. Simbolicamente, esta morte estabelece uma nova ordem cósmica, associada à Lua, que, por seu turno[8], está associada à fertilidade[9].
Mas acontece que a vida não tem só um começo. Se formos verdadeiros mortais, a vida tem, sobretudo, um fim.
Os primeiros cristãos acreditavam que o regresso de Cristo estava ali mesmo ao virar da esquina, e portanto celebravam a Páscoa todos os Domingos. Depois, com a passagem dos anos e dos séculos, já quase em contagem decrescente para o Milénio, tiveram que aceitar a sua ignorância total no respeitante ao Segundo Regresso[10] e encarar a necessidade de convocar uma data simbólica para funcionar no calendário enquanto Grande Metáfora de Luz.
A data simbólica que saiu do subsequente Grande Debate de Fogo é uma espécie de aventura druídica que não poderia, certamente, aparecer aos nossos olhos com um cunho mais pagão.
A Páscoa é o primeiro Domingo depois da primeira Lua Cheia que se segue ao Equinócio de Março.
É a grande festa móvel do calendário, calculada de raiz para cada ano e usada como fiel da balança para a validade de todas as outras datas de carácter religioso. Cientes do poder desta metáfora no tocante à conversão dos pagãos estabelecidos no domínio do Império Romano, os cristãos aproveitaram o Equinócio da Páscoa para inserirem também no calendário o nascimento de Jesus no Solstício do Natal.
Praticamente todos aqueles que não observam a fé cristã observam à mesma a celebração do Natal, baseando-se em lendas, cânticos, ou imagens mitológicas, frequentemente muito anteriores ao nascimento de Jesus. Entre essas imagens salientam-se a Árvore de Natal, o Presépio, a Grande Refeição Especial, e a troca de prendas. Quanto ao Pai Natal, coitado – deu-se este homem ao trabalho de viver uma conversão magnífica[11], de semear milagres a toda a sua volta e de proteger toda a gente, de deixar ao mundo um corpo incorruptível capaz de curar tudo, de tomar conta das crianças, de aparecer em sonhos às pessoas importantes do seu meio, de começar a carreira como São Nicolau de Bari o que quase instantaneamente fez dele o famigerado Saint Nic das Lounge Songs americanas, para agora ser apenas mais um motivo decorativo dos centros comerciais. A Sociedade de Consumo tem literalmente feito dele o que quer, chegando este ano ao ponto de organizar voos charter à Finlândia para que os pais possam mostrar aos filhos onde fica “a aldeia do Pai Natal.”
Ewh.
Imaginem o olhar cáustico que alguns dos grandes sábios que mudaram os céus deitam sobre tudo isto. Vejamos o caso de Galileu e Kepler, por exemplo – um em Piza e o outro na Praga dourada do Imperador Rodolfo II, os dois em constante correspondência.
É evidente que os dois astrónomos se entendiam mesmo muito bem. Na realidade, entendiam-se tão bem que, na capa do seu DIÁLOGO SOBRE OS DOIS GRANDES SISTEMAS DO MUNDO, Galileu fez gravar a imagem de Aristóteles, Ptolomeu, e Kepler[12], todos ricamente vestidos, e completamente tu-cá-tu-lá numa amena cavaqueira. Galileu trata carinhosamente o jovem luterano alemão por “meu Kepler”, e tem com ele desabafos deliciosos, como este, que vem a propósito dos catedráticos da Universidade de Pisa e das suas observações pomposas quanto aos roteiros dos céus:
“As pessoas deste género pensam que a Filosofia[13] é um livro como a ENEIDA ou a ODISSEIA, e que assim sendo a verdade deve procurar-se não no Universo, não na Natureza, mas na comparação de textos![14]”
Certificarmo-nos da validade da data do Natal é muito provavelmente um dos maiores desafios que o nosso calendário tem que enfrentar todos os anos, porque a Igreja Católica não estabeleceu para a Festa a data precisa do Solstício de Inverno, 21 de Dezembro. A Noite de Natal celebra-se antes de 24 para 25 em homenagem a outras tantas festas pagãs que cantam louvores a um qualquer Menino Eleito acabado de nascer, e estes quatro dias de atraso têm uma razão de ser precisa e universal: como em várias outras Grandes Festas celebradas com catadupas de luzes, sejam elas pagãs ou monoparentais, observa-se este ritual para implorar a Deus o aumento da luz diária[15]. No dia 21 de Dezembro, assinalando o Solstício, essa luz atingiu a sua duração mínima. Agora, passados quatro dias, a duração da Luz já se faz sentir. Não démos por nada, parece que ainda não aconteceu nada – mas, no dia 25, os dias já voltaram a recuperar cerca de dez minutos da Luz que tinham antes do Solstício.
Que esta Luz caminhe agora convosco.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] “Natal é em Dezembro/ Mas em Maio pode ser/ Natal é em Setembro/ É quando um homem quiser”, uma vez que “Natal é sempre o fruto/ Que há no ventre da mulher”. Antes de se rirem do esforço que José Carlos Ary dos Santos investiu na criação destas candidatas a “rimas bonitas”, por favor, não esqueçam o óbvio: naquela altura ainda nem sequer existia a MTV, nem nenhum canal pop que nos presenteasse o dia inteiro com videos pedagógicos. Não existiam rap, nem hip-hop, nem outras formas de arte urbana em que rimar bem e de improviso fosse a grande pedra de toque. Portanto olhem, “Canta o sol/ Que tens na alma/ És a flor de ser feliz.” Que remédio.
[2] As enzimas desencadeiam e potenciam as reacções inter e extra-celulares sem se gastarem nelas. Bom termo de comparação para as brincadeiras do Menino Jesus e para todos os Demónios escondidos
[3] Isto era mais fácil de perceber quando, à semelhança do que fazem os americanos, o pessoal ainda lhe chamava caridade. Mas enfim, a desculpa é que os americanos são brutos. Vivem num mundo sem economia de mercado, porque ainda lhe chamam capitalismo e não têm medo de ninguém. E a verdade é que, com eles, a pessoa ao menos não se perde.
[4] Os exercícios de Astronomia e de Matemática destinados a inserir ou excluir datas importantes do calendário formam mesmo uma ciência, tão antiga e de prática tão disseminada que não demorou muito a ganhar um nome próprio. Chamamos-lhes calêndrica.
[5] Detalhe acrescentado a partir do culto monoteísta de Ahora-Mazda, criado pelo sacerdote persa Zarathustra, em que a data do Solstício de Inverno representa, metaforicamente, a data do nascimento anual do Deus-Sol (natalis invicti Solis, sendo que o nosso Natal vem directamente deste natalis, que, por seu turno, é derivado de nãscor, que significa nascer). Esta Força do Bem, toda ela feita de luz, vai depois passar o ano inteiro a lutar contra a Força do Mal, toda ela feita de escuridão, e por conseguinte criadora da sombra. Se só existisse luz, ficávamos completamente encandeados. É a sombra que nos permite ver.
[6] Daí, certamente, pelo menos uma boa parte de tanto Papa assassinado enquanto durou esta hegemonia. Os efeitos colaterais de manter sobre o mundo um feroz poder absoluto são assaz previsíveis, além de que muito Papa houve que, em vez de tranquilizar todas as almas inquietas à sua volta, preferia agarrar em armas e andar à porrada num lado qualquer cheio de Inimigos da Fé. “Quem vai à guerra dá e leva,” como toda a gente sabe.
[7] Bela citação, sem dúvida. Mas parece concebida de propósito para tornar impossível todo e qualquer arroubo de recomeçar do zero e presentear os povos inquietos com um novo calendário onde cabe tudo.
[9] E, uma vez mais, nãscor. Note-se aqui que Mitra tem alguns ajudantes na tarefa de tirar a fertilidade ao touro: a maioria dos seus baixo-relevos mostram um cão e uma cabra que bebem o seu sangue, um escorpião que pica o seu escroto, e um corvo que se se senta na sua cauda para mediar o diálogo entre Mitra e o deus do Sol Invictus.
[10] O Segundo Regresso aparece referido por São João em Patmos no Livro do Apocalipse. É o período de mil anos em que Cristo, tendo regressado à Terra, derrota a Besta e as nações de Gog e Magog para trazer a felicidade ao mundo.
[11] Ver Clara Pinto Correia e João Francisco Vilhena, O LIVRO DAS CONVERSÕES, Relógio d’Água e Círculo de Leitores.
[12] É importante termos conhecimento desta amizade, porque não falta, ainda hoje, quem acuse Kepler de ser “excessivamente piedoso”, coisa que Galileu obviamente não era. Mas Kepler soube distinguir muito bem a sua Ciência da sua Piedade. Sim, fez todo o seu trabalho na corte de Rudolfo II em Praga porque ganhava a vida a fazer o horóscopo diário do Imperador do Sacro Império, mas e depois? Quantas vezes teremos que repetir que praticamente todos os grandes cientistas deste período foram ou monásticos ou cortesãos? E foi na corte de Rudolfo que Kepler percebeu, finalmente, que as órbitas dos planetas eram elípticas, e não esféricas. Sim, odiou publicamente esta conclusão porque a esfera simboliza a perfeição e a elipse simboliza o caos, mas há azar? Publicou à mesma os seus resultados, não publicou? Ah pois é.
[13] Palavra genericamente utilizada também para a Ciência até aos finais do século XVIII.
[14] No que respeita à maioria dos nossos catedráticos, dá ideia que as coisas não mudaram muito até agora.
[15] Veja-se, por exemplo, o caso do hanukkah judaico. A data da “festa das luzes” é móvel, mas sempre centrada perto do Solstício de Inverno. Em 2024 será exactamente a 25 de Dezembro.
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No mais espesso do mato, na borda de uma clareira redonda, numa espécie de buraco dos ramos entreaberto como uma alcova, estava sentada no musgo uma mulher, tendo ao seio uma criança a mamar e no regaço as cabeças loiras de outras duas a dormir. Era essa a emboscada.
Victor Hugo
NOVENTA E TRÊS 1873
É mesmo um grandessíssimo cabrão, é. Quando era mais ingénua e jovenzinha já tinha incorrido no erro de meter em casa outros cabrões, mas nunca nenhum outro com uma cara de pau tamanha. Os protectores de cabrões como o meu[1] que se deixem estar sossegado. O Sebastião não se importa minimamente com os nomes que eu lhe chamo, porque nisso é tão bom estratega como o André Ventura[2]. O Sebastião sabe que o importante é todos os dias ter muita atenção, o que requer tê-la com bastante imaginação – e, nisso, o meu ganha de longe na competição ao vosso, uma vez que o meu, ao contrário do vosso, possui uma imaginação positivamente desalmada. É uma das razões pelas quais é tão bom termos cães, não é? Podemos chamar-lhes todos os nomes feios que nos apetecerem, até podemos fazer isso na praça pública, e aliás até podemos fazer isso na praça pública PARA MILHARES DE DESCONHECIDOS. Grande coisa. Os nossos cães amam-nos incondicionalmente à mesma.
Ainda ontem, depois de um castigo verbal e metafórico horroroso, quando finalmente o deixei deitar-se ao pé de mim o Sebastião foi extremamente discreto e deixou-me ler à vontade, mas isso foi só até sentir-me ceder, ver-me apagar a luz, e já estar devidamente posicionado para o ataque[3]. Depois virou a sua barriguinha branca toda para o ar, encolheu a parte branca das patinhas o mais que pôde, suspirou, e deitou-me aquele seu olhar meigo de quem desejaria deveras algumas festinhas no peitinho branquinho de rola. Claro que é um cabrão. Eu fiz-lhe as festinhas que ele queria, disse-lhe imensas palavrinhas meigas, ele suspirou ainda mais, andou muito de bicicleta, e eu ainda fiquei a rir-me. Palavras levas o vento. E, para as nossas palavras de insulto, estão-se os cães bem a cagar. Verbo escolhido adequadamente.
Para quem ainda não foi obrigado a saber deste pequeno detalhe nada despiciendo para a história que se segue, o Sebastião é um galhardo exemplar daquela nossa raça muito única de proporções colossais e polivalência desconcertante que faz tudo desde pastorear ovelhas a assumir a guarda de montes inteiros, o Rafeiro Alentejano[4].
Talvez também já saibam que o Sebastião me entrou em casa com dois meses, como prenda de Natal. Ao fim da tarde de dia 24 tocaram-me à porta já noite fechada, fui abrir de pantufas e roupão, e era o meu amigo Bruno, ali do Zé Russo[5], com um ar muito sério e uma caixinha de vinho na mão.
O gajo é taberneiro, é normal que ofereça destilados aos amigos pelo Natal, mas quando puxei a ráfia para trás o que realmente lá estava dentro era uma coisinha minúscula, absolutamente amorosa, que dormia a sono solto mas acordou logo e se mostrou prontamente muito festiva, e ainda teve quatro dias para andar por ali a arrastar a barriguinha branca pelo chão, a fazer-me rir às gargalhadas com as suas manifestações precoces de personalidade endemoninhada, e a chamar-se Maria Alice, até eu conseguir, finalmente, aterrar com ela no Veterinário, deixando para trás em total desalinho a minha pobre cama juncada de pulgas ferozes armadas até aos dentes.
E foi assim que nasceu o Sebastião.
Ah, defendeu-se logo o Bruno com a audiência toda a rir. No monte, no palheiro, a chover como na rua, a cadela a dormir e oito cãezinhos aos berros? Eh pá – isto agora já era uma história para a geral – vocês estão a ver o Este, e mais o Aquele, daquela vez em que Não Sei Quê? Nessas condições até os criadores os confundem. A audiência, pelos vistos toda ela conhecedora destas questões delicadas do sexo dos cãezinhos, desatou a partilhar informação com grande primor.
Só depois de todo este circunlóquio, que aliás é uma das razões pelas quais eu gosto tanto de conversas com alentejanos, é que o Bruno ligou de repente à terra e me gritou, como se a culpa fosse minha,
“E a Menina Clarinha está a fazer o quê aqui dentro com um cão? Não viu o sinal ali na entrada? Quer o quê, que aqui o Senhor Parente vá dar parte de mim à ASAE?”
“Eu vim só mostrar-lhe o seu menino Sebastião, que o Bruno ainda nem conhecia.”
“Vá mas é chamar pai a outro e tire-me isso daqui.”
“Isso tem nome.”
“Isso nunca mais cá entra.”
A verdade é que eu na altura tinha mais que fazer do que ensinar a um cãozinho que ainda precisava de andar dentro da mochila com a cabecinha de fora fosse o que fosse a respeito de nunca mais voltar a entrar no Zé Russo, mas, a partir daí, bastou sempre o Bruno bater uma vez a bota no chão e fazer um “ssssta” que eu mal ouvia para a carinha preta do Sebastião, com as duas orelhas irrequietas e a manchinha branca na ponta do focinho curioso, desaparecer imediatamente do canto da porta.
Podia ter sido um acaso.
Pois, não era.
Este raio deste cão é demasiado inteligente para seu próprio bem.
Aos três meses, depois de passar horas infindas a observar-me, presenteou-me uma manhã com o espectáculo de ir às lágrimas da sua própria conchinha. Estava deitado de lado, como eu durmo sempre, muito bem enroscado no lugar vazio à minha frente, com a cabeça na almofada livre e a parte branca das patas de frente muito bem arrumada diante dela. Espiou-me pelo canto do olho, e, como eu me estava a rir e a fazer-lhe festinhas, sem vontade nenhuma de me levantar, foi-se encostando a mim com muita diplomacia, até nos deixarmos ficar ali os dois numa grande preguiça que infelizmente não pôde durar muito. Mas ainda hoje, muito grande e já mais que castrado ou ninguém continha aquela força toda, com uma preferência nítida por se esticar todo e me recostar a cabeça por cima dos pés, ainda tem noites em que vem procurar uma horinha de conchinha. Ou este novo truque que aprendeu entretanto de pôr a barriguinha branca para cima a pedir festinhas.
Achei que um cão que já fazia conchinhas bem podia aprender a fazer coisas mais úteis, mas ele aprendeu o quieto, sentado, e deitado tão depressa que eu entrei numa de circo e o ensinei a dar a pata, e depois a outra pata, e já agora as duas patas. Aos quatro meses era hábil em partilhar devagarinho a banana da noite comigo, dentada da dona, dentada do cão, e assim por diante – e sabia perfeitamente que a festa não começava enquanto ele não estivesse deitadinho e todo sossegadinho. Já quase a fazer cinco meses, aprendeu finalmente, de uma vez por todas, a respeitar as regras da Grande Batalha Naval que andava a dar-me cabo da paciência e a ir, sem falta, todos os dias pelas seis da manhã, fazer cocó e xixi ao terraço.
Como o tempo passa, pessoal.
O Sebastião fez agora um ano. Como toda a gente lhe acha muita gracinha, eu, mesmo só pela gracinha, deixei-me ir na conversa fiada do dito olhar de mel e fiz-lhe uma festinha de aniversário cá em casa. Das 18 às 21 as pessoas que foram entrando e saindo cantaram-lhe os parabéns e bateram-lhe palmas, os com mais consideração trouxeram-lhe saquinhos de biscoitos para cão[6], o animal andou ali durante três horas com a minha linda écharpe vermelha a fazer-lhe um grande laçarote ao pescoço, e estava tão vaidoso que nunca a desmanchou, levou festas de toda a gente sem precisar de pedi-las, fez uma malha tão grande num dos meus melhores collants que passei grande parte da festividade personificando com grande pose a saudosa Natália Correia…
… e, no dia seguinte, logo pela manhã, caiu-me a alma aos pés quando descobri que o meu cãozinho encantador, afinal, é igual aos outros.
Bastou-lhe uma festinha de anos[7] para o convencer que tinha adquirido aqueles direitos que só assistem àqueles que atingem posições especiais.
Percebeu, sem qualquer sombra de dúvida, que a partir de agora tinha a faca e o queijo na mão.
E fez cocó dentro de casa.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[2] O que, nas actuais circunstâncias, ainda é mais arrepiante do que já o era em dias vagamente menos calamitosos mas de alertas vermelhos já previsíveis em todo o País.
[3] Ele sabe que eu nunca resisto à posição de ataque, embora deva pensar que quem goste daquilo só pode não bater bem: todo encostadinho a mim, aquele mastodonte peludo é um saco de água quente fantástico. Em troca, deixei de ligar o aquecimento. E ele dorme por cima da colcha, como é evidente. Enfim, uma mão lava a outra. E poupa-se ne energia. Os nossos antepassados já deviam conhecer estes expedientes.
[4] A raça, que se distingue bem ao longe pela sua lindíssima cauda toda encaracolada, tem outras características mais perturbantes como estabelecer com os donos uma amizade de autêntica parceria, que parece absolutamente incompreensível em animais que foram seleccionados para uma rotina constante de todos os trabalhos pesados que se executam ao longo de áreas enormes conservadas por meses junto ao zeno do Inverno e a seguir levadas ao forno junto ao quarenta do Verão. Já várias pessoas de muitos géneros diferentes pararam ao meu lado quando me sentei onde pude, saturada de passear o Sebastião (a inversa nunca foi verdadeira), e desataram a falar do seu recém-desaparecido bicho igual a ele[4]; e eu acredito em tudo o que oiço porque o Sebastião tem sido a prova viva de tudo o que me contam. E uma coisa que as pessoas dizem muito, com muita intensidade, é que o Rafeiro Alentejano “é um cão de um só dono.” Não adianta nada levarem-no para um monte muito verde cheio de pessoas muito amigas, com muito espaço, muita comida gordurosa, muita água, e muita coisa séria para fazer, onde ele possa ser muito feliz: se o dono morre, ou desaparece sem ninguém saber como nem para onde, o bicho transforma-se na ilustração por excelência do antigo livro infantil inglês onde o animal fiel se deita em cima da campa do falecido e se deixa morrer sem verter uma lágrima. Claro que o gosto extremamente discutível dessas ilustrações era obra humana, e não canina; o que as pessoas me dizem é que “eles ainda esperam, mas eles já sabem, já nem são os mesmos, eles em pouco tempo lá arranjam a sua maneira de ir também.”
[5] O famoso tasco das melhores sandes de carne assada de todo o País.
[6] Os outros tiveram outro tipo de consideração e trouxeram comes e bebes para pessoas.