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  • ‘Lamento se os desiludo. Estou-me nas tintas para a realidade’

    ‘Lamento se os desiludo. Estou-me nas tintas para a realidade’

    Ó cores viscerais que jazeis subterrâneas

    Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize,

    Reprezados clarões, cromáticas vesânias,

    No limbo onde esperais a luz que vos baptize,

    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis.

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL in CLEPSYDRA (1920)


    O título é retirado do romance A educação sentimental dos pássaros, de José Eduardo Agualusa.


    Como não podia deixar de ser, a reprodução do ornitorrinco é do mais taxonomicamente pecaminoso que imaginar se possa[1]. Foi muito importante que a notícia geral da sua descoberta e o fim do debate em torno do seu entendimento só datassem de finais do século XIX e início do século XX. É que, se datassem do século XVIII, não deixaria de ser possível que Lineu desistisse de toda a sua nomenclatura binária[2] e dos critérios que a norteiam[3].


    A História Natural da Revolução Científica não trazia minimamente incorporado o conceito de que todas as regras têm desvios, e de que alguns desses desvios podem de início parecer-nos absolutamente blasfemos. Foi preciso chegar ao final do século XVIII para começarem a aceitar-se extravagâncias que hoje nos parecem tão naturais como a partenogénese nas pulgas de água ou a regeneração de partes cortadas na hidra[4]. Ah. Ambas criaturinhas de água doce, note-se. Vem de lá um ornitorrinco, apanha-as, e chama-lhes um figo.

    Os ornitorrincos vivem em comunidades, embora durante a maior parte do ano os membros de uma mesma comunidade não liguem assim muito uns aos outros. Mas a reprodução, que é sazonal, modifica este comportamento: cada população separada tem uma época diferente para se reproduzir, e respeita-a com um rigor quase cronométrico. O que também nunca varia é um outro desvio à norma, este relacionado com o facto de a cópula se passar forçosamente dentro de água, muito embora o ornitorrinco ainda não tenha chegado a merecer a chaveta de Mamífero Marinho, que mais depressa chegará ao Ártico do que à Austrália[5]. É que, se fosse um verdadeiro Mamímero Marinho, daqueles bem antigos e devidamente merecedores desse nome, tal poderá vir a acontecer ao Urso Polar[6], copular dentro de água faria parte da sua natureza. Agora, sendo o bicho apenas semi-aquático…

    rien n’est simple

    et tout se complique[7].

    É que viver em terra mas copular na água é a grande característica distintiva das rãs, dos sapos, dos tritões, das salamandras – ou seja, dos Anfíbios. Foram os primeiros Vertebrados a sair com sucesso da Sopa Primitiva para conquistar a Terra Firme. Conseguiram mesmo explorar o seu novo ambiente em cima das suas novas quatro patas, uns ainda com cauda, outros já sem ela. Estes animais podem ter-se dado tão bem em terra que nunca mais voltaram à água.

    Excepto para a reprodução, porque os embriões precisam de estar suspensos à superfície de tanques e charcos, dentro das suas fiadas protectoras de geleia, para se tornarem larvas, e depois girinos, e depois sairem dali o mais depressa possível. Isto é de loucos, porque há vários anfíbios já tão afastados da água que morrem afogados quando voltam para de onde vieram para lá deixarem as suas posturas. O regresso anual à água, para eles, é o preço a pagar à evolução. Mas para os ornitorrincos, que são mamíferos e devem ter começado a explorar a Terra Firme muito depois de qualquer salamandra ou qualquer sapo, copular na água é apenas respeitar a sua lógica quotidiana. Passamos metade do dia na água, não passamos? E aqui há menos predadores, não há? Então vão dar uma curva. Nunca vos pedimos para nos entenderem.

    Talvez pudéssemos ficar por aqui.

    Mas há mais.

    E isto é mesmo caso raro e nunca visto, quase inaceitável, a bem dizer imperdoável entre os mamíferos.

    A fêmea do ornitorrinco não sabe o que é parir filhos. Muito pelo contrário. Estamos a falar de um mamífero em que a fêmeas…

    … é, as fêmeas põem ovos[8].

    E depois…

    Depois…

    “…A REALIDADE TENDE A PERDER CONSISTÊNCIA. EM TRÊS DIAS CRIA DELÍRIOS E MUSGO. AO FIM DE UM MÊS JÁ É PURA FANTASIA.[9]

    Estes ovos são nunca menos do que um e nunca mais do que três[10]. Muito haveria o Pitágoras de gostar desta sequência de números primos logo à nascença.

    Mas não, claro que não: como toda a gente sabe, não é o fenómeno anómalo de um animal muito parecido com um mamífero aquático pôr ovos que aproxima o ornitorrinco do urso polar. É verdade que o urso polar tem geralmente duas crias de três em três anos, mais raramente tem só uma, e, mais raramente ainda, tem três. E claro, é verdade que este dois-um-três em cada três anos seria também do agrado de Pitágoras, e fica misteriosamente perto da performance do ornitorrinco. Mas todas as semelhanças param aqui.

    Este parto silencioso nas neves do Ártico é muito longo, com a mãe deitada de lado na neve, cheia de paciência porque os bichos que lá vêm são enormes, pelo que demoram eternidades a sair. Depois de cá estarem fora, as crias mamam de quatro em quatro horas e a mãe senta-se de propósito para lhes facilitar a vida. Crescem depressa, mas têm muito que aprender. São chatinhas, chatinhas, chatinhas – mas a mãe, uma autêntica santa durante este período, nunca as perde de vista nem as deixa sozinhas. À excepção do número de crias, nada disto tem nada a ver com a reprodução fria e impessoal do ornitorrinco.

    Senão, vejamos.

    Para manter os seus ovos protegidos, o ornitorrinco desenvolve uma prega de pele entre os membros anteriores e a cauda, e é que aqui que os guarda, com um arzinho todo marsupial. Para melhor protecção do conjunto, a mãe abandona o menos possível o túnel com cerca de vinte metros de profundidade que escavou previamente dentro da lama das margens. As novas crias hão de vir a nascer cerca de duas semanas depois da cópula, mas são pouco maiores do que um feijão-manteiga e totalmente dependentes da guarda materna, pelo que continuam guardadas e protegidas dentro da tal prega de pele que imita mesmo muito bem a tal bolsa marsupial.

    Estes bebés demoram cerca de três a quatro meses até perderem os dentes[11], o que simboliza a sua entrada no estado juvenil de uma nova vida livre. Durante todo o período de crescimento, sabem muito bem que são mamíferos porque aquela prega de pele que parece uma bolsa marsupial a eles não os engana. Por conseguinte, atiram-se logo à tarefa de se alimentarem do leite da mãe. Mas, como se trata de um ornitorrinco e nesta criatura danada nenhuma manifestação da vida é normal, desta vez o leite não vem de nenhuns mamilos situados na extremidade de nenhumas mamas. É mais que escorre directamente da glândula mamária para os póros da pele do peito da fêmea, onde as crias o vão chupando sempre que não estão a dormir.

    Assim que estão crescidinhos que chegue, e que as placas trituradoras nos maxilares estão formadas, deixam de ser bebés, vão à sua vida, e eram capazes de nem reconhecer a mãe se passassem por ela no dia seguinte. E ela, entretanto, assim que já não precisa de amamentar ninguém, retrai logo a prega de pele da barriga para estar livre de nadar melhor e correr melhor.

    Ah-ah.

    Apanhei-vos.

    Não não, seus exploradores dos antípodas – eu não sou nenhum marsupial.

    Posso parecer um pássaro misturado com um réptil misturado com um mamífero, mas um marsupial é que eu não sou. Não me chamem nomes. O que há mais aqui na Austrália é marsupiais, e eu, ao contrário deles, não sou nenhuma criatura banal.

    Nem quero que ninguém me entenda.

    E que diremos nós a Sua Majestade?

    O bicho bizarro podia não querer saber dos sentimentos dos sábios ingleses e dos primeiros europeus a vê-lo com vida, mas as sociedades científicas britânicas sofreram bastante sem saber o que pensar da sua alegada descoberta.

    Os ornitorrincos foram descobertos pelos europeus no Ano da Graça de 1798, quando o segundo governador de New South Wales, John Hunter, organizou a a primeira expedição inglesa que fez o levantamento da fauna australiana. Perante aquela criatura por demais inacreditável, Hunter achou por bem enviar desenhos de dois ornitorrincos feitos pelos seus melhores desenhadores, juntamente com um exemplar embalsamado e uma pele perfeita, ambos produzidos pelos seus melhores taxidermistas de novas faunas e floras, para a Royal Society of Science do seu país.

     Como já acontecera em vários outros casos anteriores[12], os cientistas ingleses mais respeitados de toda a hierarquia da Filosofia Natural[13] Britânica acharam que aqueles exploradores desatinados só podiam estar a gozar com Sua Majestade. Foi um grupo inteiro dos zoólogos com mais mérito ter com os exploradores, para observar ornitorrincos in locco e decidir se existiam mesmo ou não. E foi assim, contra ventos e marés, que nasceu o mamífero com a família Ornithorhynchidae inteira por sua conta. Hoje em dia é muito famoso[14], muito utilizado em selos e moedas australianos, muito recorrente como mascote de equipas desportivas, e muito postado na internet em video atrás de video Ornithorhynchus anatinus.

    Anatinus vem do latim para Patos.

    Um bicho tão pouco banal merecia um latim bastante melhor, não era? Ainda por cima nos tempos que correm, em que a destruição crescente do seu habitat, sobretudo por causa das tormentas que nos traz o aquecimento global, está a começar a condenar-nos cada vez mais a uma extinção de que nunca se ouve falar.

    Esta questão das espécies interessantíssimas que sobrevivem com dificuldades cada vez maiores mas de cujo perigo de extermínio nunca se fala porque os seus habitats nem sequer estão à vista constitui hoje em dia um drama tão disseminado, e desgraçadamente tão pouco ensinado, que já tem nome próprio e tudo. Foi cunhado apenas agora, atestando bem, só por si, a desgraça que se estende sobre todo o Terceiro Milénio.

    O Ornitorrinco começa a ter sérias dificuldades de sobrevivência.

    É impressão minha[15] ou é exactamente o mesmo que se passa com o Urso Polar?

    “POIS PODE PENSAR-SE QUE EXISTA ALGO DE TAL MODO QUE NÃO POSSA PENSAR-SE QUE NÃO EXISTA.[16]

    Meninos.

    Conhecem a canção do Urso Polar?

    Não?

    Mas olhem, é muito fácil. É só assim,

    Se o Urso Polar

    Quisesse pular

    Caía na neve

    De patas para o ar[17].

    Sempre que vou a uma escola e começo a contar a parte do mamífero marinho aos meninos, e eles abrem-me uns olhos tão redondos que parecem mesmo os olhos de uma foca debaixo de água. E, ao princípio, nem sequer acreditam em mim.

    polar bear on snow covered ground during daytime

    O Urso Polar está perfeitamente adaptado ao seu ambiente do Ártico. Vive das focas que caça em cima dos blocos de gelo, num salto todo feito de borracha que parece impossível num gigante com três metros de corpanzil musculado. Como esta proeza espatifa bastante gelo, depois tem que nadar para outro bloco, maior e mais resistente por forma a suportar-lhe bem o peso, para poder comer calmamente a presa, descansar, e a seguir ir caçar outra foca. E pronto, quem dá o que tem a mais não é obrigado. O Urso Polar é carnívoro, enorme, solitário, e voraz, claro que é um bicho que ninguém quer ver levantar-se de repente à sua frentre no meio de toda aquela neve que esteve até então a camuflá-lo, mas, e para todos os efeitos, trata-se de facto de um urso[18]. Em consequência, não deixa de ser também um animal pacato, com aquela rotina descontraída própria dos ursos. Portanto caça e descansa, passa a vida nisto, e está-se bem.

    Onde podemos medir bem o espectáculo da adaptação do Urso Polar à sua vida calma no Ártico é exactamente no detalhe onde os meninos quase que ficam assustados. Já se percebeu que, entre caçar focas em cima de blocos de gelo e descansar em cima de outros blocos de gelo ainda maiores, o Urso Polar pode de facto sair-nos ao caminho depois de nunca o termos visto no meio da neve. Mas, feitas bem as contas, acaba por passar mais tempo no mar do que em terra. E o conjunto das adaptações que foi desenvolvendo para melhorar a qualidade desta sua vida semi-aquática já é impressionante.

    “COM CERTEZA QUE O MESTRE QUER ENSINAR ALGO À MINHA ALMA, POIS É A ELA QUE SE DIRIGE A PALAVRA SEM VOZ.[19]

    Quantas vezes é que já se disse aqui que o Urso Polar está em vias de se tornar um mamífero marinho? Hm? E como é que pode alguém, por sábio e galardoado que seja, considerar-se no direito de enunciar profecias destas? Hm-hm. Calma na grande área. O regresso ao mar dos ursos polares não é, propriamente, uma profecia. É um fenómeno bem estudado, cheio de sinais que indicam isso mesmo e de preliminares que indicam que esta tendência existe. Vale a pena fazermos todo este caminho a andar. Não há muitos que sejam assim tão comoventes e bonitos.

    Toda a gente sabe como é que esta história começa.

    Um dia, os peixes, atrevidos, iniciaram a exploração da margem, deram origem aos anfíbios, e, depois deles, veio a vaga de fundo de colonização da terra firme pelos milhares de faces dos vertebrados[20]. Do mar saiu tudo o que existiu a seguir, e que se expandiu nuns leques enormes à procura dos mais acrobáticos de todos os recursos, até chegar a grande loucura do sangue quente, capaz de rir na cara dos humores do clima, e mais tarde até da geração interna, capaz de urdir filhos complexos ao abrigo das maldades do mundo. Quando os mamíferos inventaram a barriga da mãe, inventaram a glória de um triunfo indisputável.

    Isto foi há 150 milhões de anos, e tudo parecia correr pelo melhor.

    Mas qualquer saudade ficara no fundo de algumas memórias, o apelo de um útero muito mais primevo, o útero antes do útero, doce mar, és tu que nos chamas: há cinquenta milhões de anos, um grupo de mamíferos semelhantes a cavalos enormes mergulhou nas ondas e nunca mais de lá voltou. Os seus descendentes deram origem às baleias e aos cachalotes, aos golfinhos e aos rorquais, as manadas oceânicas que ainda hoje galopam como nos prados, batendo a cauda para cima e para baixo, em vez de a agitarem para a esquerda e para a direita, como fazem os peixes. E vejam o esqueleto que está dentro desta barbatana: raquíticos, patéticos, lá estão ainda os dedos vestigiais de um pé atrofiado, a guardar a memória de um tempo vivido a céu aberto, entre pastagens e florestas.

    landscape photo of statue infront of brown building

    A viagem de regresso tinha começado.

    Milhões de anos mais tarde, outro grupo de mamíferos, talvez aparentado com as lontras, ou com os ursos, ousou por seu turno o mergulho profundo. Dele vieram a nascer as morsas, as focas, e as otárias, que ainda não chegaram ao grau de adaptação à vida submersa dos seus parentes pioneiros: todos os anos, se não for noutras alturas, têm que voltar a terra para se reproduzirem. As baleias até o parto já consumam debaixo de água. Os novatos, pelo contrário, ainda mantêm os membros posteriores. As otárias, que chegaram por último à grande aventura marinha, até mantêm ainda uns pavilhões auriculares muito redondinhos, que já foram apagados pelo tempo e pelo sal da cabeça lisa e luzidia das focas.

    A viagem de regresso começou, continuou, e ainda está em curso. O Urso Polar apresenta todos os sinais de ser o próximo mamífero marinho na calha. Já retira toda a sua subsistência da água, pelo que mantém com ela uma relação cada vez mais fiel. Muitos deles já nem chegam a pisar a terra firme, numa vida toda ela passada entre o mar e os blocos de gelo. A camada de gordura que tem por baixo da pelagem comprida e oleosa protege-o dos excessos árticos. As garras em forma de gancho ajudam-no a não escorregar. A sua capacidade de mergulho já se estende até aos dois minutos de imersão sem qualquer esforço. Uma membrana liga-lhes entre si os dedos dos pés, impulsionando o corpo na caçada e prenunciando a barbatana. Os olhos mantêm-se abertos debaixo de água com a maior naturalidade, protegidos por uma grande pálpebra membranosa. E as narinas já se fecham automaticamente no mergulho. A viagem de regresso está obviamente em curso.

    Isto dizíamos nós, numa grande comoção – antes de, no início dos anos 90, começarmos a dizer que ou se reduziam as emissões de Carbono ou viria aí um flagelo terrível chamado aquecimento global[21].

    Bem, seus meninos, mas vamos lá com calma. Antes de mais nada, vocês já sabem muito bem que estes bichos todos existem mesmo, não sabem?

    Por exemplo, sabem o que é uma fofoca?

    É muito fácil, então.

    Uma fo-foca é

    um mamífero ma-marinho.

    Adoro meninos.

    Mas que porcaria de mundo é que eles vão deixar àqueles meninos[22]?

    Não é um déja-vu. Não é um lugar-comum. É uma pista importantíssima no meio de um labirinto enorme. Se quiserem, é uma forma muito retorcida de avisar toda a gente[23]. O drama que vem a seguir já começou, e nunca se fala nele. E é precisamente esse drama que forma o grande elo de ligação entre o Urso Polar e o Ornitorrinco[24].

    O Ornitorrinco já é um mamífero aquático.

    O Urso Polar tem a fasquia ainda mais alta na escala dos prodígios.

    closeup photo of green dragonfly

    A transformação de um mamífero terrestre em mamífero marinho, como a que já está em curso com o Urso Polar, é como a dos outros mamíferos marinhos todos, das baleias às otárias. São fenómenos absolutamente espantosos, mas que só podem medir-se em centenas de milhares de anos. Decorrem de forma muito lenta,  muito gradual, sujeita a toda a espécie de acasos, e de outros tantos becos sem saída.

    Será que o Urso Polar vai conseguir transformar-se a tempo?

    Ultimamente os blocos de gelo estão a ficar cada vez mais finos por causa do aquecimento global, pelo que há cada vez menos focas disponíveis, e o Urso Polar anda pior alimentado. Ainda por cima, tem mais dificuldade em encontrar blocos de gelo  suficientemente espessos para suportarem o peso esgotante do maior urso de todos os ursos, de onde decorre que, embora seja um animal extremamente bem adaptado à vida na água, começa a ser algo frequente aparecer um urso afogado aqui e outro ali[25]. Acresce que, se a água do mar começar a ficar demasiado quente, e ainda por cima demasiado doce e alcalina por causa do derretimento do gelo, o urso dificilmente conseguirá viver dentro dela[26].

    E as fêmes grávidas, que precisam de acumular um excesso de duzentos quilos de gordura para sustentar o embrião? E quando a fêmea quase a dar à luz decide construir o seu ninho na camada de gelo que cobre o mar? O gelo costumava sustentar tudo isto sem qualquer problema. Agora o instinto subsiste, mas todo este sustento é cada vez mais problemático.

    Por tudo isto, e por favor, tomem boa nota de um pormenor muito importante:

    É verdade que, perante a situação actual dos Ornitorrincos e dos Ursos Polares, estamos a olhar para dois bichos muito diferentes, que exploram habitats igualmente diferentes, mas que têm como traço de união estarem ambos já declaradamente em  processos de extinção. Ambos esses processos são derivados de mudanças cada vez mais acentuadas nos ecossistemas onde tanto um animal como o outro estavam habituados a viver.

    Como a de muitos outros animais que podem no entanto considerar-se absolutamente icónicos da criatividade do Planeta, quase nunca se fala da extinção de nenhum destes dois monumentos naturais. Regra geral, é um processo de extinção tão lento, a decorrer em animais tão especialmente difíceis de estudar em condições naturais, que é pouco falado e dá pouco nas vistas.

    Chama-se a isto uma extinção silenciosa.

    a close up of an animal skull on a black background

    E a verdade é que, além de sabermos isto, não sabemos muito mais. Mesmo com todos os dados que possuímos, não há ninguém que possa prever hoje, e de ciência segura, qual será o verdadeiro destino dos Ornitorrincos e dos Ursos Polares.

    E quando é que eles se encontrarão com esse destino, se ainda alguém estiver vivo para fazer o registo.

    A história das extinções remete-nos com grande frequência para a nossa devida insignificância.

    A verdade é que a gente ainda nem sequer sabe por que é que, ainda antes dos dinossauros, aquela espécie cde caranguejos grandes e elegantes que deixaram fósseis em grande abundância nas rochas marinhas, e a quem os zoopaleontólogos deram o nome genérico de trilobites, sobreviveram sem uma beliscadura a um grande número de extinções em massa, e depois se extinguiram todas de uma vez, em todas as partes do mundo, sem deixar o mínimo rasto.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] A reprodução é sempre um dos fenómenos mais marcantes que resultam da selecção natural. Deos Sive Natura, como diria o outro*, não deixa uma única experiência por fazer. Experimenta-se tudo e mais alguma coisa, na corrida sem fim à sobrevivência de cada espécie.

    *A Autora refere-se aqui ao filósofo seiscentista Baruch Spinoza, um dos primeiros grandes deistas da nossa civilização: a sua fórmula DEUS OU A NATUREZA lançou a ideia de que não era necessário dar um nome e um culto específicos à divindade, uma vez que a sua existência ficava claramente demonstrada nos trabalhos da Natureza. A mesma fórmula acabou por levar à expulsão de Spinoza da comunidade judaica de Amsterdão e à sua posterior errância apátrida pelo mundo.

    [2] Género espécie: no nosso caso, somos o Homo sapiens. Foi o naturalista sueco Carl Lineu que dedicou toda a sua longa vida, durante o século XVIII, a criar este sistema de classificar o mundo vivo conforme as suas características mais raras, e (no caso do último factor de definição, a espécie) a sua incapacidade de terem filhos se tentarem cruzar-se com outra espécie, ou, pelo menos, de terem filhos férteis (do cruzamento entre o burro e o cavalo nasce a mula; mas a mula é estéril). Depois de muito debate, estudo, experimentação, e reflexão, Lineu conseguiu por fim criar a chamada NOMENCLATURA BINÁRIA, que ainda utilizamos hoje. No entanto, muitos animais e plantas que, como o Ornitorrinco, desafiam completamente a simplicidade linear do conhecimento conforme Lineu o criou, só foram descobertos bastante mais tarde e precisaram de ser imensamente discutidos até fazerem sentido em termos de nomenclatura binária. Imagine-se Lineu a braços com o Ornitorrinco. Este grande cientista era também um grande vaidoso. Só isso nos salvaria de o ouvirmos deitar por terra o seu próprio sistema de organização do mundo vivo.

    [4] Esta da regeneração das partes cobertas, descoberta pelo suíço André Trembley em plena Revolução Científica do século XVII, dá uma história tão boa como a do voto no castor para Rei dos Animais. Se algum dia lá chegarmos, eu conto.

    [5] Ou seja: como havemos de ver mais à frente, vai acontecer ao URSO POLAR muito antes de chegar ao ORNITORRINCO.

    [6] ATENÇÃO. URSO POLAR, outra vez. Será esta a última referência?

    [7] Parafraseando o cartoonista francês Sempé: “Nada é simples e tudo se complica.”

    [8] Característica geral dos Monotrématos.

    [9] José Eduardo Agualusa. in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS.

    [10] Não é erro, não.

    [11] É, é. Isto aqui vale tudo. Mesmo.

    [12] O Dodó da Ilha Maurícia, descoberto no século XV por uma expedição portuguesa e depois desenhado e descrito à saciedade por marinheiros e especialistas holandesas, é um bom exemplo de criaturas inacreditáveis destas. Para uma descrição detalhada do seu destino, e do que se passou com vários outros animais exóticos quando observados pela primeira vez pelos europeus, consultar DODOLOGIA: UM VOO PLANADO SOBRE A MODERNIDADE, de Clara Pinto-Correia.

    Tem uma grande admiração por si própria, esta gaja.

    Também tem uma colecção impressionante de péssimos subtítulos nos seus livros de investigação. Isso é indiscutível.

    [13] Durante milénios foi este o nome oficial da Biologia, uma disciplina que só aparece no século XX tal  como a conhecemos agora.

    [14] Passe a redundância, claro. É por demais evidente que outra coisa não seria de esperar.

    [15] O pronome possessivo refere-se, aqui, à autora destas charadas, e não propriamente ao ornitorrinco, que CPC fez a gracinha de pôr a falar na primeira pessoa durante toda a parte anterior do texto.

    [16] Venerável Beda, PROSLOGION, Século VIII.

    [17] Quadrinha de Mádrio Castrim, memorizada a partir de um dos meus livros infantis preferidos. Eu própria criei a música, para poder cantá-la com os meus filhos durante as viagens de carro.

                    PS – Viagens de carro, estão a ver? As Mães cantam com os filhos, felizes da vida. E os pais deles vão sempre de trombas. Voz doce, feminina: “Ó amor, mas que cara é essa?” – Voz furibunda, masculina: “É A MINHA!

    [18] Claro que eu não digo isto aos meninos. Digo aos meus alunos universitários, quando introduzo o Urso Polar nas minhas analogias para a insustentabilidade da chamada SOBREVIVÊNCIA DO MAIS APTO como força motriz da selecção natural.

    [19] Jorge Luis Borges, in HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIA

    [20] Simplificação grosseira. Houve inúmeras tentativas de colonização da terra firme muito anteriores à existência dos Vertebrados. Devido à ausência de componentes duras, estas espécies são extremamente difíceis de estudar. Sabemos, no entanto, que existiram sucessivas vagas de invasão da terra firme, mais ou menos demoradas, mas nunca bem-sucedidas a termo.

    [21] E qual é o urso polar que sobrevive a um ártico morno, com um oceano cheio de água doce dos glaciares derretidos, sem blocos de gelo para caçar e digerir as suas focas, e tudo o mais que consta do seu estado pré-marinho?

    [22] Nada como um bom lugar-comum para acalmar o alvoroço das escolas e das universidades. Esta é legitimamente minha.

    [23] Se não fosse para ser retorcida, também não era para ser em forma de charada.

    [24] Além de todos os elos de ligação menos assombrosos, de que fomos falando aos longo desta charada.

    [25] Não são tão poucos como isso, e cada ano são mais.


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  • Omeprazol

    Omeprazol

    Algumas pessoas conseguem ver a chuva. Todas as outras apenas se molham.

    Bon Marley


    Aqui no Largo há poucas pessoas tão simpáticas, tão dedicadas ao seu trabalho, e tão inteiramente dignas da nossa confiança como o Samuel Ameixoal. Por trás da portinha modesta que lhe serve de recepção e secretaria, a sua mulher chamada Celina, em homenagem à Céline Dion, vigia ao mesmo tempo todo o Largo e o comportamento dos três Yorkshires sempre muito bem lavados e primorosamente escovados que se aninham sobre o balcão[1], recebe os pedidos dos condutores, regista os seus desejos até ao mais ínfimo pormenor, consulta o calendário e tudo o que lá tem marcado, estabelece imediatamente uma data de entrega que nunca falha, o cliente entrega-lhe a chave do carro, ela guia-o cuidadosamente pela rua estreitinha até estar de frente diante do portão enorme de trás[2], carrega no comando, o portão desliza, ela arruma o veiculo no lugar mais indicado por data de chegada e promessa de entrega, deixa lá dentro preso ao espelho do lado do condutor uma folha de apontamentos num código que mais ninguém consegue decifrar a não ser o marido, e volta a saltar para o seu lugar atrás do balcão onde deixou a meio a contabilidade desse mês. Os automóveis, os camiões, as motos – todos conhecem o mesmo destino. Entram para ali num autêntico nojo, e saem tão brilhantes e escovados que parecem figurantes de uma série sobre a dinastia Windsor.

    O Samuel tem a chave do meu carro: sempre que se apercebe da abertura de um lugar verdadeiramente legal, vai tirá-lo do lugar para onde o despejei à balda e proporciona-lhe um estacionamento verdadeiramente digno desse nome. Foi a Celina quem cortou as guias ao Jeremias[3] para ele poder passear-se em paz e sossego pelo terraço, e é ela quem rega as plantas na minha ausência.

    Não podiam ser melhores pessoas, nem vizinhos mais convenientes.

    Ontem cheguei de Lisboa depois de uma grande maratona na Feira do Livro, e bem podia carregar no botão da televisão que ela não acendia nem por nada. Não era a box, que estava perfeitamente nos conformes. Eram a porcaria da imagem e a gaita do som, mesmo – e eu cansadíssima, acabada de sair do Expresso e ainda sem o meu Sebastiãozinho. Não estando a ver outra solução, fui à janela e chamei pelo Samuel. De um lado da rua para o outro, expus-lhe o problema da televisão que não acendia. Ele subiu a minha escada com várias chaves de fendas na mão, já a dizer que disso de televisões é que não percebia grande coisa – mas a verdade é que encontrou logo o fiozinho amarelo que estava solto, voltou a ligá-lo, o botão recomeçou a piscar, e num segundo o monitor já estava todo iluminado, num enredo devidamente falado.

    Eu nem sabia como é que havia de agradecer-lhe.

    Deixe lá isso, Clarinha,” disse-me ele, com os seus olhos azuis enormes iluminados num sorriso franco. “A gente precisamos da televisão, ora é ou não é? Ó Clarinha, a gente sem a televisão não samos nada. Não samos nada mesmo. Então já vê. Eu ia agora deixar a Clarinha aqui sozinha, sem o Sebastião e sem televisão.


    Há anos que eu ando a protestar que a televisão tem vindo a tornar-se, mais e mais e mais à medida que o tempo passa, numa máquina infernal de estupidificar as pessoas – e de conseguir ir-se transformando num vício que lhes degrada de tal maneira os neurónios que, a partir de um certo ponto, “a gente sem a televisão não samos nada.” Quanto mais estúpidas as pessoas ficam, mais fácil é mandar nelas, menos provável é que ainda lhes reste alguma espécie de curiosidade, e, em consequência, nestas alturas ouvem-se cada mais vez mais argumentos a favor do voto em partidos vestigiais de verdadeiras intenções absolutamente opacas, como por exemplo a Nova Direita baseados em vácuos totais como o já estafadérrimo “foda-se, pá, mas é que aquela preta é mesmo, mesmo bonita.[4]

    É evidente que, quanto mais televisão as pessoas veem, menos interesse sentem em votar.

    Se não fosse porque, infelizmente, é mesmo verdade que “a gente sem televisão não samos nada”, a taxa de abstenção teria – obviamente – sido muitíssimo inferior a 60%.

    Segue uma história exemplarmente ilustrativa do nível de analfabetismo funcional que se abateu sobre as pessoas da minha geração – e, como toda a gente sabe, os idosos são uma das maiores fatias da população portuguesa. Acontece num dia em que se conclui um feriado com tolerância de ponte que, nestas circunstâncias, pega com um fim de semana. Ou seja, quatro dias de férias. O pessoal devia andar feliz, bem-disposto, carregado de energia e, por que não, cheio de gratidão também.

    Por um grande carrocel de acontecimentos que levam a outros e a seguir é inevitável virem de lá outros, daqueles que sobem e descem e que tornam a minha vida tão emocionante, eu estava – pessoal, eu juro que estava mesmo, pela alma dos meus filhos, OK? – eu estava a passar uns dias num T1 minúsculo situado na Amadora. Não estou a gozar. Foi mesmo assim que tudo isto aconteceu, e, ao terceiro dia, com uma necessidade terrível de sair sozinha de casa para ir à rua tomar café, fechei a porta do 12º D[5] com muito jeitinho para ver se não acordava ninguém e chamei o elevador.

    Quando o elevador chegou já vinha a descer desde o 16º, e estavam três velhas lá dentro.

    Estou-me bem nas tintas para os meus 64 anos. EU tenho 64 anos. Aquelas senhoras eram umas VELHAS. É muito diferente.

    Eu fiz-lhes um grande sorriso e dei-lhes os bons dias, mas elas não me ligaram nenhuma. Vinham entretidas numa espécie de competição de suspiros, uns mais tristes, outros mais sentidos, outros mais demorados, e assim. E, para cada suspiro, havia uma conclusão: “Bem, não é, tem que ser.” – “Pois, pois é, lá temos nós que ir trabalhar outra vez” – “Enfim, parece que ao menos não vai estar tanto calor” – “Ai, deixe-me cá, o que eles dizem é que vai chover” – “Ai, credo, a chover em Junho.”

    Então e já decidiram em quem vão votar?

    Olharam para mim como se eu fosse de Marte.

    woman in black long sleeve shirt hugging white and black siberian husky

    Eu não acredito em político absolutamente nenhum.”

    Eu também não. Votar para quê? Para vir mais um novo vigarista apropinquar-se com o nosso dinheiro?”

    Tínhamos chegado ao rés-do-chão. O elevador range e dá um saltinho, anunciando o fim da viagem. A terceira velha põe de imediato a mão sobre o lugar onde é possível que se situe a boca do estômago. E solta um suspiro tão grande, tão grande, tão grande, que faz abrir algumas portas e ganha logo o concurso.

    Ai, Santo Deus. Não vejo a hora de o meu Omeprazol começar a fazer efeito, para eu ao menos me ver livre de todo este fogo que vem até cá acima!”

    Foi por um triz que não a puxei pelo braço e não lhe gritei, numa grande aflição clínica,

    Ó minha rica senhora, por favor não faça isso! Olhe que o Omeprazol não é assim que se toma!”

    Depois imaginei-me cercada de velhas que me retinham na entrada com uma torrente inesgotável de perguntas sobre a toma de todos os seus imensos comprimidos e calei-me mas foi muito caladinha, corri para o café onde não tomei um, nem dois, tomei três com um pastel de nata, e tratei de deixar para trás a Amadora no Expresso das 15 horas.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Pode ser uma imagem extremamente desagradável para quem, como eu, detesta cãezinhos; mas que lá estão sempre limpinhos e escovadinhos, isso é indiscutível que estão.

    [2] Note-se que este “veiculo” tanto pode ser um pequeníssimo Smart como um colossal camião de caixa aberta todo pingado das obras. Não há volante que a Celina não maneje.

    [3] O meu galo de briga da Malásia, e melhor amigo do Sebastião.

    [4] Quando as pessoas se preparam para votar num Partido ao qual desconhecem o nome da Cabeça de Cartaz, digam-me se as coisas podiam estar piores.

    [5] Liberdades poéticas, claro.


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  • A ficção tem de ser credível

    A ficção tem de ser credível

    Tal como por vezes acontece com alguns outros homens, aquele só ia precisar da passagem dos anos para conseguir converter-se num terrível desapontamento.

    V.S. Naipaul

    THE MYSTERY OF ARRIVAL


    O meu novo romance, ANTARES, vai ser lançado na Feira do Livro no dia 10 de Junho. À histeria editorial própria destas ocasiões, com voltas e reviravoltas de datas e horas e pedidos constantes de material novo, junta-se o número peculiar de revisores que tenho que confrontar. É que, além das duas revisoras da EXCLAMAÇÃO[1], uma das quais acaba aliás de demitir-se e desaparecer sem deixar rasto num volte-face de telenovela bastante trágico dadas as circunstâncias[2], o Nuno Gomes[3] também reviu o texto todo à medida que o ia lendo, e o senhor a quem eu pedi que fizesse a apresentação do livro[4], que foi revisor literário em pequenino, não resistiu a revê-lo todo também mas à mão, e depois passou as suas notas ao Nuno. Perante tudo isto eu deveria estar tão concentrada no ANTARES que sonhava com ele à noite, como acontecia no Verão passado quando o par amoroso tripava em ácido montado na história que galopava para o fim. Nada que não pudesse acontecer mesmo a qualquer um de nós, porque, como toda a gente sabe, são impensáveis os sobressaltos da realidade tal como são imprevisíveis os caminhos que levam a Deus. Aliás, toda a organização do ANTARES gira em torno do famoso aforisma do Mark Twain

    a única diferença entre a realidade e a ficção é que a ficção tem que ser credível,

    porque o romance é uma ficção absolutamente incrível, tão incrível que só pode ser realidade. E é aqui que sou engolida pelo meu próprio jogo[5], e coisas destas deviam ser proibidas, mas se fossem isso quereria dizer que quem controla a nossa vida somos nós mesmos, o que toda a gente sabe que é a maior falácia deste mundo, porque a nossa vida nos faz tropeçar nela própria sempre que muito bem lhe apetece. Enfim, o predador tornou-se a presa. E a concentração que consigo dedicar ao ANTARES é agora anedótica, depois de todo o amor com que fui alimentando o romance ao longo dos anos até, por fim, ter feito dele o que é.


    Já vivo em Estremoz há mais de três anos. Já há mais de um ano e meio que o Sebastião vive comigo. Já ganhei um grande amor à chegada das andorinhas anunciando a chegada da Primavera, a todas as flores de todas as cores que então rebentam aqui a toda a volta do largo e no meu terraço também, do perfume inebriante das muitas ruas bordejadas por laranjeiras que ficam logo todas em botão, à cantoria feliz e leviana que toda a passarada faz do lado de fora das minhas janelas logo às seis da manhã, agora já dia claro e ainda fresco, quando me levanto para ir abrir a porta ao Sebastião que tem dias em que agora, com a cidade ainda desentupida da afluência de emigrantes e de famílias expatriadas que regressam de visita, é muito menino para só voltar a aparecer lá para as onze.

    a flock of birds flying through a cloudy sky

    Já ganhei o gosto de aproveitar a manhãzinha para ir ao pão caseiro fatiado, ir ao café e trocar umas marradas com o Bruno pelo meio das semi-frases dos velhotes[6], ficar a ouvir sotaques e coloquialismos sem incomodar ninguém, voltar para casa e ver as notícias e sentir cada vez mais que não vivo naquele país de que aqueles senhores estão para ali a falar naquelas vozes todas iguais[7]. A América está suficientemente longe, com todos os meus problemas de saúde é pouco provável que ainda lá volte – mas, e até talvez por isso, lembro-me muito bem de todos os anos em que lá vivi, e continuo a ter um prazer muito grande em passar horas à conversa com as pessoas do meu antigo mundo americano. Mas Lisboa é diferente. Os meus últimos anos na capital foram tão maus que já mal me lembro de Lisboa. Aliás, vou a Lisboa o menos que posso. Se não estivesse a viver aqui, nunca teria conseguido escrever realmente o ANTARES a partir das primeiras vinte páginas desenhadas já há dez anos. Foi esta grande paz, e toda esta beleza à minha volta, que me permitiram levar até ao fim, com todas as suas implicações e desmultiplicações, a história da longa noite de amor muito explícito[8] entre a catedrática de sociologia que acaba de fazer setenta anos e a criatura misteriosa com a beleza de uma estátua renascentista do David que enfrentou Golias, esculpida em mármore e exposta num qualquer museu de luxo, que de súbito entra inopinadamente pela sua janela – tudo isto debruado a vermelho pelo brilho invulgarmente intenso de Antares. Uma história verdadeira, evidentemente. Estas noites só acontecem dentro do foro da realidade, uma vez que a ficção tem que ser credível. Como disse lapidarmente no século II o Padre da Igreja Tertuliano, a propósito dos mistérios da fé,

    Acredito porque é impossível.

    Agora imaginem outra história verdadeira que brutalmente se cruza com esta e parece rasgá-la ao meio como um raio de Zeus.

    Estou eu a sentar-me na sala diante da mesa de apoio, no lugar onde as costas se sentem mais confortáveis e estou ao lado de uma das três janelas da casa com vista para a torre de menagem do castelo de Estremoz, que se recorta orgulhosamente contra océu durante o dia e brilha toda iluminada durante a noite exactamente por baixo do domínio de Antares no céu de Verão. Toca o telefone. Por essa altura, estava eu a recomeçar a rever as provas, já o telefone tocava muito, por causa de mudanças nas provas, alterações nas capas, escolhas de fotos, acertos de datas, e por aí em diante. Atendi logo. Ouvi uma voz masculina.

    E caiu-me a alma aos pés.

    Mesmo vinda de uns anos da minha vida que eu tinha esquecido por completo assim que comecei a viver em Estremoz, aquela voz da vida deixada propositadamente para trás, aquela voz de Lisboa – Santo Deus, aquela voz era uma voz que se reconhecia logo, e era a voz do Jorge.

    A Clara acredita que eu tenho muitas saudades suas?”

    black and brown rotary phone near gray wall

    E não, nem sequer era por causa do assunto sem importância, alguma coisa esquecida, algum artefacto trazido por engano, não era o assunto inconsequente que a pessoa ainda podia rezar para que fosse. Era mesmo aquele Jorge da GNR, o senhor das cavalariças e não propriamente da cavalaria, a declarar, três anos e meio mais tarde, que tinha muitas saudades minhas. E, acto contínuo, a perguntar se não podíamos encontar-nos para tomar café.

    Ah, a Clara nem imagina a falta que me fazem as nossas conversas, a Clara era sempre uma pessoa tão inteligente, tão calma, tão sábia…”

    Como foram as conversas entre o Jorge e o Senhorio depois da minha partida não sei, mas sei que o Senhorio nutria sérios sentimentos carnais[9] a meu respeito. Aliás, uma vez chegou ao ponto de atirar-me para cima da cama e aproveitar-se da minha surpresa para começar a dar-me um linguado, até que eu me levantei e lhe disse com um ar muito tranquilo que não se podia fazer aquilo[10]. Em consequência, ou pelo menos de acordo com os homens das obras que estavam lá sempre a entrar e a sair do prédio, nessa altura o Senhorio tinha uns valentes ciúmes do Jorge, que, ao contrário dele, partilhava a casa comigo. Não sei se o Senhorio alguma vez soube que o Jorge tinha uma tendência exasperante em repetir que eu e ele devíamos era juntar os trapinhos e ficar ali a ser muito felizes um com o outro naquele primeiro andar do Bairro dos Actores: dávamo-nos tão bem, éramos tão complementares, podíamos poupar tanto dinheiro, nunca mais nenhum de nós estaria sozinho, ficávamos com um quarto extra que podia ser o meu escritório, eu era tão bonita, ele não era nada de se deitar fora na cama…

    … e eu nem queria acreditar.

    O Jorge tinha aí uns quarenta anos, eu estava quase a fazer sessenta, pelo que fazia de conta de que não tinha percebido o inuendo, ria, e respondia

    oh Jorge, então mas o que é isso, não vê que eu tinha idade para eu ser sua mãe?”

    A verdade é que, ainda não estava a viver em Estremoz nem há dois meses, e de repente me telefona o Senhorio num tom colérico, inicialmente sem eu perceber nada daquela cólera. Finalmente, depois de vários protestos de indignação, saiu-se com o que verdadeiramente lhe fazia doer:

    “A Maria Clara não vê a extensão dos seus abusos, ou apenas, pura e simplesmente, não tem escrúpulos? Eu deixei-a estar à vontade, não vigiei as suas acções, e a Maria Clara aproveitou-se, aproximou-se, e  fez do Jorge seu criado! Fez do Jorge seu criado! A Maria Clara fez do Jorge seu criado!”

    boy and woman holding hands outdoor

    Lembrei-me das horas perdidas  a ouvir o Jorge, confortar o Jorge, aconselhar o Jorge, e desliguei o telefone.

    O Jorge frequentava vários sites de engate mas corria-lhe sempre tudo mal. Depois ele sentia-se – sempre – muito só. E a seguir sobrava – sempre – tudo para mim. Ao fim destes anos todos, continuo a ter imensa dificuldade em dizer às pessoas que vão dar uma curva.

    O Jorge saía às oito da manhã para estar no quartel da GNR às nove, e passava o dia a tratar dos cavalos e das cavalariças. Voltava às cinco, chegava às seis, tomava o seu duche, e depois dependia da altura do ano. No Inverno enfiava-se dentro de um babygro amarelo muito quentinho. No Verão envergava apenas umas bermudas verdes e pretas – e, como era muito barrigudo e muito peludo, o espectáculo não era nada gratificante. Foi no babygro amarelo, sobretudo, que nem as minhas irmãs nem os meus amigos acreditaram. Foi preciso irem lá a casa e verem-no naqueles preparos para lhes cair o queixo e me darem razão. O Jorge vinha-me sempre dizer que as minhas irmãs eram lindas, e que as minhas amigas eram encantadoras. Se fossem antes amigos, preferia fechar-se no quarto, bater a porta com força, e nunca dizer nada.

    Isto sim, isto é a realidade. Tudo de tal forma tortuoso que em ficção nunca seria credível.

    E continua.

    Apesar de tudo, o Jorge foi a pessoa menos má com quem partilhei casas depois de voltar para Lisboa em 2018 e encontrar o mercado de aluguer de tal forma caro que só se aguentava alugar uma casa dividindo a renda com outras pessoas. Essas pessoas eram todas completas desconhecidas, e, não sei porquê, regra geral eram gente mal formada. O Jorge não batia bem. Antes da casa onde só vivia ele, passei por outras duas casas, uma cheia de ordinários do Porto e outra cheias de selvagens de Angola. Dizia-se que já havia emprego, e eu vim para Lisboa com essa ilusão[11], mas também isto era mentira. Não havia qualquer espécie de emprego: o que havia era imenso trabalho escravo.

    Aquilo era tudo tão sufocante, e eu ficava doente tantas vezes sempre com o Jorge a entrar-me no quarto onde a chave não dava a volta na fechadura para indagar se eu estava bem ou se precisava de alguma coisa da rua, que agarrei em mim e vim viver sozinha para Estremoz, numa casa mágica cheia de espaço e de luz, apenas na companhia do meu Sebastião, que não me faz perguntas nem me exige respostas.

    Agora, quando começo a rever o ANTARES, telefona-me o Jorge que tem saudades minhas e quer ir tomar um café.

    Para ver se ele desiste, eu digo-lhe logo que já não vivo em Lisboa, que nunca mais fui a Lisboa. Estou a viver em Estremoz desde que saí do Bairro dos Actores.

    brown horse in a wooden cage

    Estremoz? Ah, espantoso, foi onde eu fiz a tropa! É um sinal, Clara, é um sinal. Vou aí visitá-la em breve. Se calhar vou já esta noite. Sim, não hei de ir porquê? Vou já esta noite.”

    Lisboa está a procurar-me às escuras com as suas longas garras.

    Jorge, por favor, agora não. Estou a rever as provas do meu novo romance e isto dá imenso trabalho. Ligue mais tarde.”

    Desliguei logo.

    O Jorge voltou a ligar na manhã seguinte.

    Pânico.

    Jorge, por favor, não esteja a ligar-me agora. Eu tenho que rever as provas do romance. Falamos mais tarde.”

    O Jorge tem telefonado todos os dias, frequentemente três ou quatro vezes por dia. Eu já nem atendo, claro. Mas claro: ele não se enxerga. Quando eu mais precisava de estar cencentrada e de estar feliz, de repente cada dia que passa é um rosário de telefonemas do Jorge.

    Isto sim, meus amigos. Isto é a realidade.

    Não tem que ser credível.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Uma micro-editora do Porto, radicalmente independente, cheia de pessoas que podiam ser minhas filhas ou netas, e com um excelente catálogo. Sinto-me lá muito bem. Detesto as camisas de forças das grandes multinacionais. E o director da EXCLAMAÇÃO é… biólogo!

    [2] O meu romance não é o umbigo do mundo. A EXCLAMAÇÃO tem vários outros livros programados para lançamento na feira, e que estavam a ser revistos pela jovem que se demitiu sem mais conversas.

    [3] Biólogo e director da EXCLAMAÇÃO. De tal forma empreendedor, como é próprio das pessoas do Porto, que não pára de fazer planos para salvar o planeta.

    [4] Um dos homens mais inteligentes e irónicos que conheço. Parece uma declaração de amor, não é? Que se lixe, Estremoz fica longe de tudo.

    [5] Estava-se mesmo a ver, não é? Tantos anos, tantos netos, e nunca mais aprendo a ter cuidado com as minhas próprias ideias.

    [6] Também parece uma declaração de amor, não é? Que se lixe, o outro lado do balcão fica longe de tudo.

    [7] Eu sei que já falei nisto, o que não quer dizer que o fenómeno tenha deixado de me incomodar. Pior ainda, cada vez oiço mais os meus vizinhos dizerem exactamente o mesmo que eu, mas por outras palavras. Ou então oiço os meus vizinhos exaltarem-se em defesa do CHEGA, o que continua a ser dizer exactamente o mesmo do que eu por outras – e mais assustadoras – palavras.

    [8] Na manhã seguinte, quando ela começa a dizer “então mas agora é que tu me explicas que eu passei a noite inteira a curtir com…”, ele interrompe-a, com ternura e ironia, “Curtir? Mas o que é isso, curtir? Pareces uma adolescente a falar, o que desmerece em muito a grandeza do que nós fizemos. Eu diria antes que estiveste a foder com…” – “Ai, cala-te!” – “O que é que tem?”. O que é que se terá passado ao certo naquela noite dominada por Antares?

    [9] Termo dele, no dia em que decidiu convidar-me para um whisky em sua casa e pôr as cartas na mesa.

    [10] Sim, já disse que aqueles últimos anos da minha vida em Lisboa foram totalmente para esquecer.

    [11] Tenho imensas qualificações. Com um bom emprego, talvez pudesse alugar uma casinha decente só para mim, como costumava fazer antes da visita trágica da Troika.


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  • E ergue-se, magnífico, rodeado de relâmpagos

    E ergue-se, magnífico, rodeado de relâmpagos

    Ó cores viscerais que jazeis subterrâneas

    Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize,

    Reprezados clarões, cromáticas vesânias,

    No limbo onde esperais a luz que vos baptize,

    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis.

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL in CLEPSYDRA (1920)


    Lembram-se? Continuamos aqui as contribuições deste mês para a grande charada que vos sugeri o mês passado a título de novíssimo ensaio científico: o que é que estabelece pontes tão estreitas entre o Ornitorrinco e o Urso Polar?

    Deixámos para trás os Ornitorrincos ocultos debaixo de água, iguaizinhos a outros tantos Ursos Polares, a caçar tudo o que precisam de comer por dia e com sistemas, também remeniscientes dos que existem no Urso Polar, de  blindar olhos, ouvidos, e narinas, de cada vez que voltam a mergulhar.

    Mas então, se debaixo de água não vêem, não ouvem, nem cheiram – como é que se alimentam, por muito que andem por ali a cirandar durante  doze horas?


    A forma de caçar do Ornitorrinco foi outro ensaio ousado da Natureza que se revelou muito bem sucedido. E, como costuma acontecer nestas aventuras, o monotrémato semi-aquático não foi o único bicho onde a evolução testou o potencial de sucesso do sistema: depois do mergulho, com os orgãos dos sentidos bloqueados automaticamente, estas criaturas detectam as suas presas, tanto animais como vegetais, através de um radar semelhante… ao dos morcegos[1].

    Pois, morcegos.

    Nada a ver.

    Ora toma que ensaio é ensaio e onde corre bem já não se mexe.

    brown and black bat opening mouth

    No caso específico do Ornitorrinco, o radar vem de centenas de células altamente especializadas do seu famoso bico de pato, que detectam as ondas de energia eléctrica que qualquer ser vivo emite, sobretudo quando está em movimento, mesmo que esse movimento seja só tentar esconder-se dentro do lodo e depois ficar lá muito quietinho. O radar dos monotrématos[2] é de tal forma preciso que os entendidos lhe chamam “o sexto sentido.”

    Os animais não costumam ter sextos sentidos.

    Será porventura que os Ursos Polares…?

    Faça-lhe justiça desde já: o Urso Polar também passa vários minutos debaixo de água nas suas expedições de caça, e tem vários mecanismos específicos que lhe permitem fazer proezas submarinas que mais nenhum mamífero caçador de focas faz. Mas não, desta vez a charada não vai por aqui. O Urso Polar não caça com radar. Tem outros truques na manga. Lá iremos.

    Agora, e antes de mais nada, acalmem-se por fim os ânimos e vamos por fim à pequena lista de tudo o que combina com os patos. Se o pressuposto desta grande charada estiver correcto, mais cedo ou mais tarde o que tem a ver com os patos há de ter a ver com o Urso Polar.

    Os Ornitorrincos têm bico de pato[3]. E, nos dedos das patas da frente, possuem uma membrana interdigital destinada a facilitar a natação, que é também igual à dos patos[4]. E note-se que todo este conjunto da pata e do pé é por regra completamente preto[5], o que o torna mais igual ainda ao que os patos ostentam como maquinaria de grande classe para nadar durante horas se fôr preciso[6].

    Outra característica dos monotrématos que lembra os patos é a sua cobertura: faz-nos logo recordar a brilhante expressão portuguesa “água em pena de pato”, que usamos quando queremos referir-nos a qualquer ideia que, por maiores e mais inteligentes que sejam os nossos esforços, argumentos, e metáforas, não conseguimos nem por nada meter na cabeça dos nossos alunos, ou dos nossos filhos, ou dos nossos cães, ou mesmo dos nossos maridos[7]. É que, embora sejam mamíferos, e portanto estejam cobertos de pêlos, e não de penas, também os Ornitorrincos têm o corpo revestido de um óleo que repele a água, à semelhança dos patos.

    Não escondendo nada neste jogo, note-se desde já que o pêlo da lontra, sobretudo o da lontra-marinha, outro mamífero que também passa a vida dentro de água, está igualmente preparado com grande engenho para afastar as águas. O caso mais interessante é sem dúvida o da lontra-marinha americana[8], destinado maioritariamente a proteger os animais das águas gélidas do Pacífico Norte junto à costa da Califórnia mergulhada nas mesmas brumas que constantemente engolem San Francisco, sobretudo durante os meses de Inverno. Esta lontra-marinha tem o pêlo mais denso de todos os mamíferos terrestres[9], mil vezes mais denso do que o cabelo humano, semeado a uma média de um milhão de pêlos por polegada. E, como não podia deixar de ser, também este pêlo formidável está revestido de óleo hidro-repelente. Aliás, é exactamente esse óleo que torna os casacos, os chapéus, ou as malinhas de pele de lontra, todos sempre tão lustrosos e macios, tão assombrosamente resistentes ao tempo. O que faz com que sejam vendidas pelo valor mínimo de cem dólares por lontra sem defeito no corte[10].

    brown and black seal in water

    Mas, lá por ser tão fino na passerelle, o óleo das lontras-marinhas não é um óleo tão potente na Natureza como o dos Ornitorrincos, que saem da água praticamente secos. Isto é porque há certas coisas que as lontras não possuem, por muito que se tenham adaptado à sua vida marinha com aquela estranha dieta estrita de ouriços do mar que elas próprias partem com dois seixos enquanto nadam de costas, absolutamente encantadoras[11]: nenhuma lontra do mundo, nem nenhum outro mamífero do mundo dado a passar grandes temporadas na água, possui as duas camadas de pêlo do ornitorrinco. Estas duas camadas cumprem duas funções diferentes. A camada externa repele a água, e a camada interna mantém uma câmara de ar sempre presente entre a pele do animal e o seu pêlo.

    Meninos, para que é que isto serve?

    Ah, isto é incrível.

    E, por incrível que pareça, não deixa de ser verdade: esta dupla face é pura qualidade de vida. Não implica nenhum esforço, está sempre ali, e serve para o Ornitorrinco estar sempre seco.

    Sequinho sequinho, sequinho sequinho. Com esta dupla face nunca molha o rabinho.

    Desculpem a leviandade mas não resisti. Eu sei que parece publicidade a fraldas para bebé. Agora olhem, façam publicidade com esta história do Ornitorrinco e vão ver se não vendem fraldas aos milhares.

    Retomando a seriedade que a charada merece.

    É o Rei, sem sombra de dúvida. Nisto de ser um mamífero semi-aquático não há que negar que o Ornitorrinco é o rei. Mas, já que veio a propósito: querem inserir aqui outra camada de explorações evolutivas?

    towels hanging on clothes line

    O pêlo imensamente denso da lontra-marinha cobre o animal para o proteger das águas gélidas do Pacífico. Sem dúvida. E, quando adaptado às pessoas, é indisputácel que esse mesmo pêlo nos cobre de casacos flexíveis, leves – e muito quentes. Mas e na Natureza como é, a manta térmica da lontra é mesmo o pêlo?

    Não é bem.

    Sabem por que é que é um pêlo muito grosso e muito rugosso, que a lontra usa o mais emaranhado possível? Porque este é o seu truque para estar sempre a capturar, mergulho após mergulho, ouriço após ouriço, mais e mais e mais bolhas de ar, que as rugosidades do pêlo, sempre em movimento quando submersas, empurram automaticamente para baixo: por baixo de toda aquela floresta, junto à raiz, a pele da lontra-marinha está quase seca. E, enquanto não estiver toda molhada, a lontra-marinha nunca estará toda arrepiada.

    Há um padrão.

    O sistema da lontra-marinha é mais rudimentar do que o do Ornitorrinco, estes dois nadadores vivem nos antípodas um do outro e nunca se cruzaram, mas é evidente que há um padrão.

    Quanto ao Urso Polar…

    O Urso Polar molha-se, mas não se molha assim tanto como isso; e a seguir, quando se instala a devorar a sua foca em cima do seu bloco de gelo, seca logo num instante. Claro que também tem o pêlo oleoso. Ainda por cima, esse pêlo por onde a água escorre depressa fica exposto à secura dos ventos do Àrtico assim que aquelas trezentas toneladas saiem da água.

    polar bear on snow covered ground during daytime

    As trezentas toneladas contam. Primeiro que um mamífero desta envergadura sinta frio é preciso molestá-lo com águas muitíssimo mais frias do que as que têm por emblema umas lontras-marinhas do tamanho de um esquilo. E, para não deixar molhar um bicho acostumado a ambientes tropicais que no entanto vive dentro de água, claro de duas camadas de pele fazem todo o sentido.

    São tantas coisas tão bem feitas que as pessoas, pronto – a certa altura já não houve mesmo outro remédio senão inventar Deus.

    E esta foi a nossa grande lição de modéstia.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Sistema de radar esse que, por seu turno, serviu de base à invenção do radar dos aviões, mas enfim. Isso já não são invenções da Natureza nem tirocínios pelo fogo da Selecção Natural.

    [2] Embora não capturem as suas presas na água, os únicos outros monotrématos que existem hoje, as misteriosas Equidnas, detectam as formigas e térmitas de que se alimentam através de um radar idêntico.

    [3] O tal bico onde estão alojadas as tais centenas de células do sexto sentido.

    [4] As patas de trás e a cauda são antes usadas como leme. Nos machos, há uma glândula de veneno injectável junto dos dedos de trás: embora seja raríssimo encontrarmos mamíferos venenosos, este é tão eficiente que mata cães e gatos em poucos minutos. Em terra, a membrana interdigital da frente retrai-se, para facilitar a corrida e a luta.

    [5] Claro que há excepções, e que há diferenças entre as excepções. Isto é Biologia, não é Política.

    [6] Os patos-bravos que fazem migrações mais longas podem ser obrigados pelas tempestades a pousar sobre as ondas. E, aí, em péssimas condições de navegação, podem mesmo nadar durante horas até aparecer terra à vista. Embora a história contada em A MARAVILHOSA VIAGEM DE NILS HOLGERSON ATRAVÉS DA SUÉCIA pela escritora sueca laureada Selma Lagerloff seja obviamente um trabalho de ficção, a migração dos patos-bravos aqui descrita não é ficcional de todo. A autora estudou-a cuidadosamente antes de escrever o livro, descobrindo ela própria fenómenos de resiliência e capacidade de corrigir rotas na água que desconhecia anteriormente.

    [7] Peloamor de Deus, não está aqui em causa nenhuma assimetria mal-intencionada. Falo daquilo que os maridos não entendem apenaas porque, como creio ser evidente e dispensar argumentos explicativos, nunca fui um marido a tentar desesperadamente explicar à minha esposa fenómenos que ela não consegue entender, já que o meu conhecimento lhe escorre pelas paredes exteriores do cérebro sem nunca conseguir lá entrar dentro, exactamente como “água em pena de pato”. Alguns exemplos: “querida, um bife do lombo e um bife de alcatra não são a mesma coisa só por ambos se chamarem bifes”; ou “querida, a tabuada dos quatro não é igual à tabuada dos oito só por ambas se chamarem tabuada”; e assim por diante.

    [8] Ou, pelo menos, sem dúvida o caso raro estudado com mais avidez. Há milhares de investigadores nos Estados Unidos, financiados por milhões de dólares. E estas lontras são umas completas malucas.

    [9] E também dos poucos semi-aquáticos que existem, pensando bem nisso.

    [10] Hoje em dia, a caça à lontra está severamente condicionada por cada estação, uma vez que o animal esteve quase extinto em 1900 por causa da febre dos casacos de peles. Os estilistas que querem construir modelos grandes preferem ter a segurança de lontras criadas em viveiro, que todos os anos lhes dão uma noção muito clara do que têm ao seu dispor. Dramas destes, ao menos, não infernizam a vida dos Ornitorrincos. Alguma vantagem haveria de ter ser-se yum bicho feio com um pêlo horrível.

    [11] Atenção, que este encanto é muitíssimo enganoso, porque as lontras-marinhas estão no topo da lista dos animais em que já se observaram rotinas mais sádicas. Por exemplo, roubar bebés-foca às mães que se distraem por um minuto para depois poderem andar a brincar com eles no meio das ondas, atirá-los ao ar, voltar a apanhá-los, deixá-los secar ao seu lado quando estão em terra – e manter estas práticas sempre com o mesmo bebé-foca durante uma semana, ou mesmo dez dias, obviamente muito depois de o brinquedo já estar morto.


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  • O final do alcoolismo

    O final do alcoolismo

    Continuava a sentir-me no país de outro homem, sentia a forma como era estrangeiro, a minha solidão.

    V.S. Naipaul

    THE ENIGMA OF ARRIVAL


    Os momentos em que os governos das democracias recentes tomam posse costumam ser aqueles em que o eleitorado insuspeito sente mais dificuldades em perceber como é que vão concretizar-se novas medidas que nos façam de facto mais felizes, e o momento presente, em que se testam as primeiras águas do novo governo, não foge à regra. Um quarto dos eleitores de Estremoz votou na AD. Mas essas pessoas, agora, terão todas a ganhar com os cortes nos impostos que se perspectivam? Serão todas elas mais felizes quando entrarem em vigor as novas margens de manobra para as rendas das casas? E o pior é ouvir a Assembleia da República em peso a discutir o novo Orçamento Geral do Estado. Pergunto-me qual dos meus vizinhos é que vai beneficiar com ele e não sei. Não sou tão burra como pareço, bolas. Apenas não vivo naquele país, pela simples razão de que nem toda a gente lá vive.


    Se a democracia portuguesa fosse tão disfuncional como qualquer outra nas suas redondezas, então os portugueses não abandonavam Melides para irem trabalhar em Andorra, nem trocavam Lisboa por Berna, nem largavam São Pedro de Moel para se fixarem em Cardiff, nem tomavam mais nenhuma das muitíssimas outras opções de vida deprimentes que podiam listar-se daqui em diante, o que aliás seria completamente desnecessário porque a moral da história está mais do que implícita: a democracia portuguesa só pode ser disfuncional, porque, por mais que o seu país seja bonito e agradável, e ainda por cima cheio de gente a quem os mesmos adjectivos se aplicam, os portugueses continuam a deixá-lo para trás, geração atrás de geração atrás de geração. Temos o clima que temos e gozamo-lo com a nossa proverbial simpatia, enquanto que em Londres chove o ano inteiro, o céu do fim da tarde fica negro de estorninhos que são uma praga infestante pior que os pombos, e as pessoas têm um carácter tão tendencialmente agreste que já ninguém que partilhe a sua vida volta para casa sem passar primeiro pelas happy hours da saída dos empregos. E, no entanto, é para lá que não param de partir os jovens portugueses – em bandos, como os estorninhos. E, no entanto, ali estão os nossos novos governantes a debater as suas novas medidas, que farão dos portugueses um povo feliz. A seguir os comentadores políticos falam interminavelmente sobre quem disse o que quê nessa nova lista das compras do que desta vez se pretende fazer, como se a  lista em si nos tivesse parecido diferente de várias outras, ou como se o tempo em que todos vivíamos bem em Portugal e pagávamos em Euros essas vidas já tivesse existido.

    man and woman sitting and facing near concrete fence during golden hour

    Uma democracia não perde a sua virtude democrática por ser disfuncional. Nem Portugal é a única democracia disfuncional de toda a Europa, para não irmos mais longe. Um país pode ter o seu eleitorado dividido quase ao meio entre a extrema-direita e o socialismo, como o Brasil ou os Estados Unidos, que isso não torna a sua democracia disfuncional, por muito que possamos dizer cobras e lagartos de metade dos seus habitantes. Mas não são falsidades como as de Trump, ou manipulações de contagens de votos como as de Bush Jr., que levam levam os americanos a abandonar o seu país. O que faz partir um grande número de portugueses é a escassez de políticas frontalmente empenhadas na maior felicidade de quem não tiver garantias de meios. Ou seja, o que torna uma democracia disfuncional é notar-se que está atravessada por uma linha horizontal, e tudo o que se passa na sua política e nas suas instituições, a beneficiar alguém, beneficia quem se encontra no espaço superior a essa linha. No espaço inferior a essa linha as pessoas ou dificilmente são beneficiadas, ou – com bastante frequência – são prejudicadas.

    Como a maioria dos portugueses, as pessoas aqui em Estremoz podem ter poucos meios mas fazem tudo o que podem para se sentirem felizes, e usam todos os pretextos a que têm acesso para se divertirem. Além de todas as datas mágicas que se prestam a feriados, pontes, bandas, e danças, procuram-se pretextos especiais para almoços e jantares sempre que estes são possíveis, e basta haver sol para se juntarem grupos nas esplanadas assim como basta que as noites aqueçam para que quem vive dentro das casas se sente cá fora, nos degraus da entrada, a conversar em voz branda para um lado e outro da rua ou mesmo só a ver quem passa. Mas ultimamente festeja-se menos, porque a metade do país que fica na linha inferior da disfuncionalidade não tem dinheiro para festejos. Muita gente não tem nesse extracto não tem dinheiro nem para convidar um amigo, um único, para almoçar ou para jantar. É possível ir para uma esplanada e só tomar um café, mas só um café compra menos tempo. Isto faz todas estas pessoas verem-se quase de repente obrigadas a viver muito mais sós. E, por isso mesmo, mais tristes.

    a woman sitting on a wooden swing in the middle of a field

    Os cálculos de poupança que levavam estas pessoas a ir abastecer e comprar gás a Badajoz podiam não estar feitos a regra e esquadro, mas a verdade é que os abastecimentos em Espanha já eram um hábito antigo, que se tinham generalizado ainda mais depois de começar a Guerra da Ucrânia – e, com ela, começarem as subidas de preço da gasolina, que em Portugal pareciam suceder-se dia sim dia não. Agora quem vive abaixo da linha divisória não abastece em Espanha coisa nenhuma. Nem compra gás. Se por qualquer razão a sua vida depender mesmo de ir a Badajoz, já nem apanha a autoestrada. Ir passear a Espanha, fazer umas compras, e de caminho meter gasolina, podia ser uma tradição que perdeu todo o sentido financeiro com o passar do tempo. Mas foi uma tradição de décadas, e os preços recentes da gasolina portuguesa rejuvenesceram-na. Até pode não ser ir abastecer a Badajoz que faz falta. Mas saber-se que se pode, mesmo que pouco ou nada se ganhe com a manobra – isso sim, isso claro que faz falta. E, para quem já tem pouco dinheiro, é uma recordação acrescida de que passou a haver ainda menos dinheiro, de tal forma que já praticamente nada depende do que queremos fazer mas antes do que somos obrigados a fazer. As grandes depressões não têm só por causa grandes desgostos de amor.

    Tenho ouvido várias vezes falar da falta de dinheiro para comprar medicação prescrita para tomar duas vezes ao dia pela mãe, pelo pai, por um dos filhos, ou pela própria pessoa que está a falar comigo. O ano passado, as farmácias armaram-se de umas maquinetas que não deixam sair um único medicamento que não seja pago primeiro – e não devem ter feito isso por acaso. Às vezes eu por acaso sei que os fármacos que as pessoas não conseguem comprar são fundamentais para o convívio com uma ou outra doença mais ou menos séria. “Então mas estás sem comprar isso há quanto tempo?” – “Há uns dois ou três meses, o que é que tu queres?

    A história mais impressionante daqui do fundo da linha, no entanto, para mim foi a dos bêbedos.

    Quando acaba a folia do Carnaval, tenho por hábito ir tomar café, tão cedo quanto possível, a um barzinho que fica aberto a noite inteira, e de onde, por vezes, ainda vão os últimos bêbedos a retirar-se aos risos, caminhando sem tombos por forma a homenagearem as suas máscaras de mulheres. Faço isto para ouvir as conversas dos velhotes, que entretanto chegam a passo vagaroso, de samarra vestida e boné na cabeça em qualquer altura do ano, para se encostarem ao balcão, pedirem o seu café com bagaço ou então só o seu bagaço, e começarem a questionar o jovem proprietário sobre os bêbedos do Carnaval.

    clear glass tumbler on brown wooden tray

    Ainda no ano passado, a conversa, quando eu entrei, ia nisto:

    Então oh pá. E tivestes cá muito bêbedo?

    O rapaz até apoiou a cabeça na mão antes de se pôr a acenar.

    Ai deixem-me cá.

    Os velhotes inclinaram-se por cima do balcão.

    Tudo maluco, era? Tudo aos berros? Dá-me aí outra pinguinha. Muita bêbedo, hã?

    O rapaz tinha um pano na mão, que pousou de repente para calar toda a assembleia num só gesto.

    Vocês não imaginam a quantidade de miúdas bêbedas que me entraram por aqui adentro, ouviram? Miúdas novinhas, miúdas da idade da minha filha, pois acreditem, aparecem-me aqui com catorze anos e nem se têm em pé, e lá fora umas gritam, outras vomitam, e eu só insisto que não as sirvo, mas é que não as sirvo, e que não as sirvo nem por nada, e elas a dizerem-me de todas as tendinhas onde as serviram e eu que dali que se ponham mas é a andar antes que eu chame a polícia, e elas num estado que já nem queriam saber, eu não servia nem rapazes de catorze anos mas olhem que elas são piores, até tentaram ir-me à cara, se não estivessem tão bêbedas ainda me matavam.

    Os velhotes ouviram aquilo tudo sem dizer uma palavra, e a seguir puseram-se a debater baixinho qual deles é que já se metia assim nos copos aos catorze anos. E, sobretudo, se no tempo deles alguma miúda faria o mesmo.

    Fazer, faziam,” concluiu lapidarmente um dos mais velhos. “Aí por esses montes, onde não havia mais nada, onde não vivia mais ninguém, onde os pais e as mães estavam sempre borrachos e toda a gente sabia onde é que ficavam as chaves para as adegas, vá que às vezes faziam. Mas não faziam era essas figuras, e muito menos vinham fazê-las às claras para o centro da cidade.

    O centro histórico, ainda por cima,” protestou outro velho, menos velho.

    Na esperança de testemunhar mais material que pode sempre vir a ser usado para qualquer coisa, este ano voltei ao barzinho logo a seguir ao Carnaval.

    a man laying in the grass with a bottle of beer

    Como cheguei bastante mais tarde, encontrei tudo muito limpo e arrumado e não estava lá dentro velho nenhum.

    O que vale é que, à custa de tanto trabalho de campo, por estes dias o rapaz já me conhece bem.

    Então conte lá,” perguntei eu, à falta de quem o fizesse por mim, “como é que foi esta noite, muitos bêbedos?

    Ele pôs-me o café e o copo de água do costume em cima do balcão, sem sequer fazer uma daquelas suas perguntas de gozo mútuo como por exemplo “ora então diga-me lá em que é que esta humilde casa pode servi-la.” Depois olhou para mim com um ar de desgosto tão sincero, tão sentido, que não podia ser nenhuma fita.

    E disse:

    Olhe, menina Clarinha. Não há mais esperança. Até já os bêbedos estão tesos.

    E foi acabar de fechar a loja sem mais uma palavra.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


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  • É certo porque é impossível

    É certo porque é impossível

    Ó cores viscerais que jazeis subterrâneas

    Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize,

    Reprezados clarões, cromáticas vesânias,

    No limbo onde esperais a luz que vos baptize,

    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis.

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL in CLEPSYDRA (1920)


    Proponho-vos aqui toda uma série[1] que será um exercício de raciocínio livre, já que, até aterrar sem aviso nesta rubrica do PÁGINA UM, ainda não constou antes de nenhum romance, de nenhum livro de texto, nem de nenhum artigo científico. Mas vamos lá, que a ideia vale por si. Ainda ninguém pensou que há diversas semelhanças entre um ornitorrinco e um urso polar?

    Entre um monotrémato oleoso com pés de pato e um caniforme desgrenhado de patas plantígradas?

    Hm.


    Toda a gente tem, pelo menos, a noção de que os ornitorrincos representam uma grande quantidade de bichos diferentes amalgamados num só. Mas como é no mínimo improvável que toda a gente saiba tudo no respeitante a esta amálgama, tenham santa paciência, mas vamos começar pela rememoração das principais características que eles partilham com vários outros grupos animais, todos muito distanciados entre si.

    Antes de mais nada, a cor e a cauda do ornitorrinco são iguaizinhas à do castor[2]. Pensaríamos de início que esta ligação seria de grande importância, porque a cauda do ornitorrinco é extremamente importante para ele: é a sua única reserva de gordura, e quem diz gordura diz protecção e energia.

    Mas não.

    Falso alarme.

    Por muito importante que seja a cauda de castor na vida de um ornitorrinco, e por absolutamente imprescindível que seja a ligação à água doce na vida de ambos os bichos, não há absolutamente mais nada que os aproxime. Mesmo a forma como o castor vive na água doce, formando grandes famílias e construindo diques que lhe dão imenso trabalho a montar e a manter, isto não se assemelha em nada à forma ensimesmada e preguiçosa característica da vida do ornitorrinco. Como toda a gente sabe, a América do Norte e a Austrália não correspondem a posturas filosóficas similares.

    Ornitorrinco (em imagem gerada por inteligência artificial).

    Seguidamente, e tal como o Urso Polar[3], estas criaturas estão de tal forma bem adaptadas à vida na água[4] que acabaram por ser classificadas como semi-aquáticas[5]. À semelhança de qualquer urso, quando se encontram em cativeiro mostram que podem perfeitamente ter um regime alimentar basicamente omnívoro. No entanto, as características particulares do seu habitat condicionaram-lhe desde há muito as preferências gastronómicas.

    E então aqui vai uma boa história de selecção convergente[6].

    Porque é que o Urso Polar, podendo ser omnívoro, se tornou carnívoro?

    Ora, não gozem com o povo normal.

    O Urso Polar é carnívoro porque, como é evidente, no Ártico há sempre focas, mas não existem plantas durante a enorme maioria do ano. Talvez o seu sistema digestivo se tivesse adaptado aos conteúdos dos caixotes de lixo das pessoas, como aconteceu com o de tantos outros ursos, especialmente nos que vivem perto dos parques naturais. Mas, para que tudo isto acontecesse, era preciso que vivessem mais pessoas nas condições extremas em que vive o Urso Polar. Estive duas vezes no Alasca, cruzei muitas estradas de terra completamente desertas, atravessaram-se-me três vezes uns ursos vagarosos à frente do carro, mas eram sempre ursos castanhos. Mesmo que um Urso Polar partilhe por breves instantes algum território com alguns Inouits, os povos do Ártico não têm  minimamente o hábito de considerar que seja o que for é lixo, pelo que procuram reciclar tudo e não deitar nada fora[7]. E o habitat do Urso Polar não desce tão baixo que atinja as regiões onde a tundra se enche de mirtilos no pino do Verão[8]. Se comesse alguns gostava de certeza – mas de certeza  que que nenhum Urso Polar fica alimentado só com umas boas razias nos mirtilos deliciosos da tundra.

    polar bear on snow covered ground during daytime

    Então e o Ornitorrinco?

    Se já tem milhões de anos de existência em o registo fóssil nos diz que cobriu quase toda a Terra habitável, se é o mais antigo de todos os mamíferos dos nossos dias, não poderia ter recorrido a essa primazia para tirar proveito de todos os tipos de dietas antes de existirem sequer novos rivais? E se, ainda por cima, quando observado em cativeiro demonstra que pode mesmo ser omnívoro, porque é que decidiu dar ideias ao Urso Polar e ser carnívoro?

    Ah, pois é.

    A adivinha que se segue agora é que já não é para qualquer um.

    Antes de mais nada, qual é a dieta deste carnívoro, e de onde é que ela vem?

    O ornitorrinco revolve o fundo das águas onde mora à procura de camarões, ameijoas, peixinhos, larvas, vermes, cobras, ou outras delícias fáceis de engolir, juntamente com pedrinhas, lama, ou ainda raízes e caules aquáticos[9]. Não tem dentes, mas tem placas trituradoras nos maxilares, e é com elas que faz a primeira mistura de tudo isto, para depois a guardar  de reserva nas bolsas das bochechas[10]. Quando essas bolsas estão cheias, vem até à superfície, tritura tudo até fazer uma papa, e só nessa altura é que a engole. Depois vai logo para o fundo buscar mais comida.

    Porquê?

    Porque os monotrématos não têm estômago.

    Segue-se o grande sobressalto que seria de esperar.

    Mas…mas…

    Mas como não têm estômago?

    E, se não têm,

    porque é que não têm?

    polar bear standing in front of three walrus on water

    Olha que gaita, porque sim. Porque a evolução existe, a selecção natural também, e este grupo deu-se bem com o seu regime[11].  Para satisfazerem as exigências resultantes do sistema lunático em que se especializaram, os ornitorrincos passam doze horas por dia dentro de água à procura de alimentos.[12]. São óptimos nadadores, e estão altamente especializados nesse sentido. Numa performance que volta a recordar-nos o Urso Polar, conseguem mergulhar durante dois minutos blindando os olhos, os ouvidos, e as narinas.

    Ai é?

    Ah pois é.

    Não desistam ainda, camaradas e amigos. A série continua. Dentro de mais um mês, talvez venhamos a saber como é que os ornitorrincos conseguem encontram o seu alimento debaixo de água  com todos os órgãos dos sentidos blindados. E talvez este conhecimento os aproxime ainda mais dos ursos polares.

    Algumas charadas progridem muito devagar.

    Mas progridem.

    E a sua lentidão permite-nos ir pensando.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    N.B. O título é retirado de Tertuliano, padre do século II, nas primeiras fases do Cristianismo.


    [1] Ficamo-nos por “série” porque o contéudo não estica para “telenovela”. Nem ninguém leria nada do que se segue depois de semelhante introdução. Espero eu, não sei. Vivemos tempos difíceis.

    [2] Sabiam que, no século XVIII, quando já se conhecia praticamente toda a fauna do mundo e a Europa do Iluminismo foi a votos para escolher o Rei dos Animais, várias vozes se levantaram em defesa do CASTOR? Ah pois foi. Mas essa é toda uma outra história, que, por este andar, terá que ficar para bastante mais tarde.

    [3] Ah-ah! Mais um regresso do URSO POLAR. Alguém quer apostar qual será o último? Façam concursos, façam. Quando derem pelo que aconteceu, acabaram de celebrar os vossos respeitáveis setenta anos e de contrair matrimónio com uma espécie qualquer de semideus que vos entrou à noite a voar pela janela. Será que este semideus é o Espírito Santo? Bem, isso ele nunca confirma nem desmente.

    [4] Embora, no caso do Ornitorrinco, não se encontre qualquer evidência de que começaram por ser mamíferos absolutamente terrestres, como por exemplo os ursos. Daí a necessidade de uma classificação à parte também só para eles: não são terrestres nem aquáticos, são semi-aquáticos.

    [5] Et voilà. Ou seja, “ora aí está”, mas a Autora não quer exta pequena exclamação traduzida do francês. Insiste em exibir-se culta até ao fim. NT.

    [6] Duas espécias muito diferentes adquiriram características semelhantes ao longo do tempo devido às suas adaptações progressivas ao ambiente onde vivem.

    [7] Refiro-me aos que continuam a viver naquele que é desde há milhares de anos o seu habitat natural, e onde, de facto, tudo serve para alguma coisa. Esqueçamos, por favor, todos aqueles que vieram instalare-se nas cidades, onde vivem maioritariamente de orçamentos governamentais. É uma tristeza ver uma esquimó obesa, de fato de treino cor-de-rosa e ténis pretos com luzres que acendem nas solas, o cabelo pintado de verde já com as raízes à mostra e com uma permanente que também já começou a perder o vigor, a deitar para o lixo a sua terceira lata de Coors enquanto acende um cigarro e fala ininterruptamente com um grupo de gente tão feio de ver como ela. Claro que é feio, mas enfim. A vida não é nenhum conto de fadas.

    [8] Ou antes, está agora a começar a descer por escassez de comido mais a Norte – e a consequência imediata destas explorações desesperadas é que há cada vez mais ursos polares sumariamente abatidos a tiro.

    [9] É aquilo a que se chama um bottom-dweller, ou seja, um explorador do fundo. As nossas tainhas, por exemplo, fazem exactamente a mesma coisa. E querem lá saber se estão a revolver o fundo mesmo ao lado de um esgoto. Fritam-se, temperam-se com algum sal e muito vinagre, e quando chegam à mesa estão absolutamente deliciosas.

    [10] Aqui podemos, também, considerar que o ornitorrinco tem qualquer coisa de hamster.

    [11] Tudo bem, claro – quando ainda não existiam outros grupos, era um regime tão bom como qualquer outro.

    [12] Parte deste tempo passado na água deve-se ao facto de, muito embora sejam omnívoros, precisarem de ingerir todos os dias metade do seu peso em carbohidratos para manterem a energia e a capa subcutânea de gordura que os mantêm vivos e activos. Outra parte é porque precisam de procurar todos os dias alimento que chegue para ingerir todo esse peso alimentar. E, finalmente, uma última parte destas doze horas é preguiça: a água doce não tem tão pouca gravidade como a água salgada, mas sempre tem bastante menos gravidade que a terra firme.


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  • O inferno é um estado de espírito

    O inferno é um estado de espírito

    Já não receio nada.

    Braço dados contigo,

    Desafio o meu século.

    Friedrich Schiller

    Século XVIII


    Sim, é verdade, tivemos eleições. E essas eleições dizem-nos coisas importantes. Talvez não tanto sobre Portugal, onde era evidente que já ninguém podia ver o PS nem morto[1]. E onde também já toda a gente esperava a grande subida do CHEGA, e aliás, pormenor sempre irritante, falava dela no tom fatalista de quem não pode intervir sobre uma catástrofe que já viu desenhar-se ao longe a mais de um ano de distância[2]. E, já agora, o que é de péssima educação, onde ninguém se lembra de saudar a tenacidade democrática do povo português, que, ao contrário de todas as previsões bisonhas de desinteresse com que andávamos a ser bombardeados, só se absteve nuns mínimos 38% e fez questão de ir às urnas dizer o que queria, mesmo que não queira o que nós queríamos que quisesse. Agora, essas eleições dizem-nos é muitíssimo sobre o nosso mundo e sobre todos os horrores com que poderemos vir a ter de viver muito em breve. E, nessa altura, se continuarmos anestesiados por uma comunicação social que não nos explica absolutamente nada sobre o que é que está realmente em curso no xadrez colossal de todos os países, a culpa do inferno que aí vem será toda, e apenas, de quem todos os dias se dedica à sabotagem dos nossos cinco sentidos[3]. Mas vamos todos lá parar. Tal como enfatizou em 2018 ao Vatican News o padre Athos Turchi, professor de Filosofia na Faculdade Teológica da Itália Central, “o inferno não é um lugar ou um espaço, mas antes um estado da alma”[4]. E já antes dele, em 2015, o Papa Francisco deixara muito claro que o inferno não é uma condenação, mas antes uma escolha[5]. “Ninguém é mandado para o inferno,” disse então o Santo Padre. “Quem para lá vai, por escolha própria, estará afastado para sempre da felicidade.[6]

    E então pensei que podia dar-vos umas boas imagens do que nos acontecerá se continuarmos a escolher a torto e a direito este inferno sem felicidade, sejamos nós crentes ou não. O estado de espírito que lá se encontra é igual para toda a gente.


    O Inferno são quatro paredes. Sem portas. Quem fez o Inferno não fez portas, porque quem está no Inferno está lá para sempre. E não entra por uma porta, consubstancia-se no Inferno por vontade do seu criador. E encontra-se logo entre quatro paredes.

    Do mesmo modo não existem nas paredes signos, asperidades, ilustrações ou motivos arquitectónicos. Qualquer um desses elementos poderia representar uma porta simbólica, e as portas do Inferno são portanto lisas.

    Nada permite diferenciar uma parede da outra. Nesse sentido, as quatro paredes do Inferno são uma concretização da quadratura do círculo. São um quadrado que é um círculo. Por isso ninguém poderá dizer nunca que conhece os quatro cantos do Inferno.

    O Inferno não tem dimensões. As paredes encostam-se ao seu ocupante até impedir os seus movimentos, e de seguida afastam-se até perder de vista. Jamais sabemos a que distância nos encontramos delas. Se fosse possível medir o Inferno, teríamos um início de entendimento da sua realidade. Uma porta. Talvez apenas mental, mas uma porta. Não há qualquer porta no Inferno.

    silhouette photography of trees

    No Inferno não existem direcções. Pela mesma razão que as quatro paredes formam um círculo, não existe nenhuma orientação no Inferno. Quem se consubstanciou no Inferno, tem apenas um ponto de referência: si-próprio. Referência inútil na circunstância, visto que o ser está carregado de sentido, e constitui portanto a antítese do Inferno. O ser e o Inferno não são compatíveis.

    No Inferno não há mais ninguém. É o nosso Inferno, com as nossas paredes. Sem nós, aquele Inferno não existiria.

    No Inferno nada responde. Procuramos signos, distâncias, direcções. Nada responde. Nunca haverá respostas. O Inferno é a interrogação perpétua. A parede.

    O Inferno não tem eco. Inúmeros animais guiam-se por ecos, as cores e os sons são ecos, o mundo é um eco multidireccional. No Inferno é inútil chamar, aliás não há ninguém, e também é inútil gritar para provocar um eco. Todo o grito se perde.

    No Inferno a noção do tempo desaparece rapidamente. Depois de consubstanciados entre as quatro paredes, tudo parece ter durado desde sempre e vir a durar para sempre.

    No Inferno não existem nomes. As palavras são inúteis. Não há nada para nomear. O Inferno são quatro paredes, chamadas paredes em todas as línguas do mundo. Não havendo nada para nomear, não havendo distância, e portanto perspectiva, não havendo tempo, as palavras confundem-se com o ser e não têm para onde ir.

    E agora digam lá. Todos os que escolhem nem sequer pensar em fazer escolhas e consideram mais confortável ignorar defesas ou exigências de direitos. Todos os que, pura e simplesmente, não têm qualquer espécie de paciência para se juntarem ao cheiro a suor dos seus semelhantes, na defesa seja do que for que os une a todos. Todos os que mentem. Todos os que se corrompem. Todos os que, ao longo dos anos, já mentiram tanto, e já se corromperam tanto, que fizeram dos seus próprios seguidores bandos incontáveis de mentirosos e corruptos, ou então desmotivaram por completo dezenas, centenas, milhares de pessoas que eram promissoras, que eram boas, que eram muito boas, que eram mesmo verdadeiramente excelentes[7]. Todos os demagogos sem vergonha que têm o descaramento pecaminoso de prometer grandes mudanças, sem nunca, por uma vez que seja, proferirem uma só palavra, quanto mais uma só frase, sobre a forma como essas mudanças serão construídas, pedra sobre pedra, por forma a chegarem, conforme o plano, a ver num dado momento a luz do dia. Todos os patrões da comunicação social que já bombardearam os portugueses com tanto lixo que acabaram por torná-los insensíveis e acríticos às verdadeiras notícias, verdadeiras reportagens, verdadeiras sátiras ou verdadeiros segmentos culturais. Todos aqueles que, com a mais acabada falta de escrúpulos e de remorsos, estão constantemente a movimentar-se nas sombras, com a intenção deliberada de, parafraseando a Greta Thunberg, roubarem o futuro aos filhos dos portugueses.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    Agora digam lá.

    É num estado de espírito destes, um inferno sem mais ninguém, sem portas e sem palavras e até sem eco – é nesta quadratura do círculo infinita que querem vir a ter de passar o resto da vida e ainda mais a eternidade, dentro de uma mera e curta questão de tempo?

    Portugueses, aquela gente não lê e não pensa. Se quisermos que exista de facto alguma mudança, os agentes dessa mudança teremos de ser nós. O apocalipse já nos foi anunciado. Depois não poderemos dizer que não sabíamos.

    Responsabilidades destas parecem sempre tão esmagadoras da primeira vez que as encaramos que é normal sentirmos uma vontade nada desprezível de lhes virarmos as costas, argumentando que não há caminho.

    Mas acontece que há caminho.

    Um caminho de cabras escarpado encosta acima, por onde avançamos muito devagar e com muita prudência, não deixa lá por isso de ser um caminho.

    Provavelmente até estamos a falar de um caminho de onde se vão descobrindo, curva a curva, paisagens que ainda nunca ninguém descobriu antes de nós.

    Hão de ter reparado que a passagem sobre o Inferno com quatro paredes que formam um círculo e não têm portas é uma longa e belíssima charada que não parece escrita por mim.

    Não parece porque não foi[8].

    Então e se não foi, onde terei eu ido buscá-la?

    a bridge built into the side of a mountain

    Possivelmente a um daqueles primeiros livros das primeiras culturas do mundo de que por esta hora já se percebeu que eu tanto gosto. Ao LIVRO DOS MORTOS do Antigo Egipto, por exemplo. À GÉNESE DO MUNDO da Antiga Babilónia, também era plausível. E se fosse uma qualquer pré-configuração do Hades descoberta num fragmento Pré-Socrático ainda mais antigo do que todos os outros? Ah, deixem. Eu não passo a vida a jogar sempre ao mesmo jogo, e para esta história do século XXI fazer sentido a referência teria de ser, também, do século XXI. Os dez poemas em prosa sobre o inferno são da autoria do poeta discreto Filipe Jarro[9], e foram publicados em 2007 pelas edições Moura. Na dedicatória impressa, o autor até lhes atribui poderes mágicos: “Quando fechados na estante, incham até preencher o espaço que lhes cabe. Depois sei que rebentam. Espalham-se então as suas letras geneticamente pelo interior de todos os livros vizinhos[10] e aí ficam para sempre, alterando-lhes definitivamente o sentido, impedindo que sejam lidos, tomando conta deles.” Falar com o Filipe é uma festa, um exercício de ironia, de parte a parte uma crítica válida e um apoio precioso. Isso, desde já, nós podemos rever-nos na citação de Schiller e fazer muito mais do que tendemos a fazer agora. Tal como Schiller e Goethe injectaram uma nova saúde nas letras alemãs do século XVIII quando criaram o espaço de intercâmbio que veio a ficar conhecido como o Classicismo Weimar, nós podemos, devemos reencontrar os nossos amigos, apoiar-nos neles e dar-lhes apoio, rir tudo o que houver para rir e usar a dureza que ainda ninguém ousou usar – e, na radiância desta energia[11], enfrentar melhor a jornada.

    Já sabemos que vai ser muito dura.

    Vale a pena responder-lhe com o nosso melhor.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Pelos motivos óbvios que todos conhecemos, e credo, já basta. Eu não sou socialista, mas sou de esquerda. Andava cheia de vergonha, e esta pequena frase não se destina a funcionar como nenhum efeito de ironia.

    [2] Foi impressão minha, ou existiam bastantes e belíssimos contra-argumentos para aquelas frases promocionais completamente palermas deles? É que ao menos isso. Quem se opõe tem o dever de desmontar tudo o que tiver tempo para desmontar, seus bananas.

    [3] Ou seis, se contarmos a Intuição Feminina, como se fazia nos tempos da Revolução Científica.

    [4] Este senhor não é nenhum rebelde, ou então não ocupava a sua posição académica. Aliás, vejam-se já a seguir as declarações do próprio Papa, feitas aos fiéis em plena homilia.

    [5] Ambas as declarações foram feitas no âmbito da Semana Santa, que vai começar agora. Obviamente, já que rememora a morte de Cristo e todo o sofrimento padecido anteriormente, é a melhor altura do Calendário Católico para reflectir sobre o Inferno.

    [6] Na frase completa, proferia numa homilia em Roma, “… do Deus que dá a felicidade.”

    [7] E quantas vezes, pior ainda, atacaram aguerridamente essas pessoas para que não fizessem sombra aos videirinhos de que se rodeavam.

    [8] Vá lá, confessem. Deram logo por isso? Ou só estão a dar por isso agora? É que aquilo é lindo e quem me dera, mas eu não escrevo assim, nunca escrevi assim em 64 anos de vida e 40 de publicações, e não era esta noite, de repente, a meio do resto da crónica, que se acendia dentro do meu cérebro a luz brilhante de uma inspiração estrangeira.

    [9] Deixem-se de tretas. Somos amigos desde o tempo do liceu. Santo Deus, esta gente.

    [10] A bióloga que transcreve o texto acha que, aqui, a escolha deste geneticamente é um bocado duvidosa, sobretudo considerando tanto advérbio de modo que há no mundo — mas enfim, o livro é do Filipe, não é meu.

    [11] “radiância” eu tirei da dedicatória do Filipe. Palavra de poeta, mesmo.


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  • O abismo

    O abismo

    Como as de todas as outras paixões, as raízes do ódios são imprevisíveis.

    Jorge Luis Borges


    Aqui há uma semana acordei com telefones a tocar em protestos solidários, o correio electrónico cheio de mensagens encorajadoras, e o Facebook pejado de nomes feios destinados a uma pessoa que eu desconhecia em absoluto. Por fim, o meu editor fez-me chegar uma espécie de CV do Inferno que o tal desconhecido acabava de publicar no Diário de Notícias, onde até este mesmo PÁGINA UM era insultado por minha causa, e todos os acontecimentos desagradáveis de há vinte e quinze anos voltavam a ser esmiuçados em parágrafos intermináveis[1]. No entanto, e assaz curiosamente para quem se tinha dado a tanto trabalho de rememoração desagradável, tudo aquilo estava positivamente juncados de incorrecções. Comecei a ler o texto com toda a atenção, e a questão das tais incorrecções, incluindo erros nos anos dos acontecimentos e outras trapalhices muitíssimos piores, começou a despertar-me a curiosidade. Aquele chorrilho de grosserias parecia escrito à pressa por um estagiário[2] assanhado, e era um exemplo de livro de texto de como não se pode fazer jornalismo, mesmo se feito por um colunista. Comecei a tomar notas.


    A primeira estranheza era mesmo logo no princípio, na frase relativa à altura em que, quando ainda estava a meio do curso de Biologia, entrei para a redacção do semanário O JORNAL, e, quatro anos mais tarde, publiquei o meu primeiro romance. Ora, sendo que a frase começava com as palavras…

    “… nos seus tempos de oiro, muito novinha…”

              … só pude concluir que aquela pessoa estava, no mínimo, extremamente distraída.

    Não tive nenhuns tempos de oiro quando era muito novinha. Tive, isso sim, tempos exigentes em que estudava Biologia quando o resto do País estava todo bronzeado nas filas da camioneta para a Caparica[3], e trabalhava em jornalismo ao mesmo tempo, com dedicação por inteiro ao JORNAL e em mais não sei quantos ganchos para chegar ao fim do mês[4] – e, para onde quer que me virasse, esbarrava constantemente em boatos de que ia para a cama com toda a gente e mais alguém para conseguir fazer todas as coisas que fazia. Se isto são tempos de oiro vo,u ali já venho.

    A seguir o senhor admite que ADEUS, PRINCESA, o meu segundo romance, grangeou um grande respeito da crítica literária (não acrescenta, embora tivesse sido fácil de verificar, que esse respeito, e a consequente explosão de vendas, levou três anos a fazer o seu caminho). Segue-se uma passagem surpreendente, em que nos explica que, quando Vasco Pulido Valente o considerou “o melhor romance português desde OS MAIAS”, o fez apenas por “puro efeito de provocação” – e a pessoa interroga-se, “como é que ele sabe? Falou com o Vasco? E, a ser verdade, o Vasco havia de ser tão burro que lhe dizia isso mesmo na cara? Está bem que o Vasco tinha os seus defeitos – mas burro?” Quer dizer, poupem-nos. Quando eu era aprendiz de jornalista, escrevia uma patetice destas, totalmente infundada e baseada apenas no meu sentimento pessoal, e o Fernando Assis Pacheco ia-me à cara.

    Perfil’ sobre Clara Pinto Correia do ‘historiador’ António Araújo, professor universitário e também membro do Conselho de Administração da Fundação Francisco Manuel dos Santos, também conhecido por ‘Fundação Pingo Doce’.

    Já agora, só para atestar mais uma vez a total  falta de cuidado com que o autor destes dislates faz o seu trabalho, há uma altura em que envereda pela minha vida pessoal. E aí os seus erros, todos eles facílimos de verificar e de corrigir, acumulam-se de tal forma que alguém bem intencionado na redacção do seu jornal deveria ter arranjado uma desculpa inocente, como por exemplo falta de espaço, para cortar aquilo tudo e poupar ao mais puro dos ridículos um jornalista que pelos vistos tem preguiça de investigar.

    A primeira argolada é afirmar que eu sou a irmã mais velha das quatro.

    Valha-me Deus, o senhor, se não gosta de fazer perguntas, não pode ao menos consultar o Facebook?

    A nossa “primogénita” (como o descuidado me chama, da forma mais insultuosa deste mundo para toda a minha família) é a Maria do Rosário, não sou eu. E isto não é uma pequena curiosidade sem importância. Ao longo de toda a nossa vida adulta – e certamente da minha –, a Ró tem sido a nossa grande organizadora, protectora, aquela que no Verão nos junta a todas na praia, e no Natal e na Páscoa se certifica que toda a gente se consegue reunir, quem vigia a saúde de quem fraqueja, todo um papel de mana mais velha que nunca estaria no meu feitio assumir – e talvez todas nós perdêssemos muito com isso.

    Segue-se a história comovente dos meus passeios em Tremês com o meu Pai, de casa dos meus avós até ao pomar das macieiras. O senhor menciona as minhas palavras comoventes quando digo que as nossas conversas nesse caminho foram fulcrais para estruturar na minha mente os passos do meu futuro. E cita-me: “Numas lindas manhãs de sol, só nós os dois e a passarada.”.

    Porreiro.

    Para já, sou uma grandessíssima parola.

    E ademais, ao que tudo indica com a conivência do meu Pai[5], imagina-se perfeitamente o sol e a passarada a estruturarem os passos do meu futuro. Com flores no cabelo, sandálias, ganzas, e o ashram do Ravi Shankar.

    white sheep on white surface

    Ensinam-nos que os jornalistas não manipulam as fontes, mas este aprendiz de feiticeiro manipulou e não foi pouco. A minha frase sobre as caminhadas com o meu Pai que foram fulcrais  na estruturação do meu futuro eram antes,

    “Numas lindas manhãs de sol, só nós os dois, a passarada, e o anel de benzeno.”

    OK, é possível que a total ignorância do que pudesse ser um anel de benzeno tenha tornado aquela frase, escrita assim, incompreensível ao escrevinhador. Mas, uma vez mais: o jornalismo tem regras. Uma delas é que não se alteram as fontes. E, dê lá por onde der, de certeza que a internet está cheia de textos e videos a explicar o que é o anel de benzeno, como funciona, e a importância que tem na nossa vida. De certeza que até virá contado, algures, que Michael Faraday, o cientista que descobriu a sua estrutura em 1825, conseguiu chegar lá porque a viu claramente num sonho[6]. Descobrem-se coisas lindas, quando se faz investigação. Mas, com toda a evidência, estamos perante uma personalidade de todo em todo alérgica a dar um passo dentro de uma biblioteca.

    A seguir, o despistado lista as várias alcunhas que fui tendo na vida. Num novo exemplo de péssimo jornalismo, mistura os nomes familiares com os nomes profissionais, e nunca percebe que eram, todos eles, nomes extremamente carinhosos[7]. Em África, os meus tios chamavam-me “Pretinha” – o que não era certamente um insulto, e aliás eu tinha imenso orgulho em ser a pessoa mais escura da família. Um namorado que tive no JORNAL chamava-me “Minhoca” com a maior ternura deste mundo. O autor que não consegue perceber nada disto estampa-se ainda mais ao comprido logo a seguir, quando explica que, “como retaliação” eu chamava aos meus colegas “os fósseis,”

    É preciso não me conhecer de todo.

    E é preciso não ter perguntado nada a ninguém.

    Antes de mais nada, não sou minimamente dada a retaliações. E depois, quem é que vai retaliar tratamentos carinhosos? Como expliquei milhares de vezes[8], a história dos fósseis vinha do tempo do liceu, em 1976, dois anos depois da Revolução. De cada vez que nós, os membros aguerridos do esquerdalho, passávamos o portão e esbarrávamos com “os fascistas” de corrente da moto na mão para darem cabo de nós, bem podíamos ficar com as pernas todas rasgadas que não nos abstínhamos da vingança. Íamos para casa de alguém que não tivesse lá os pais, ligávamos para um dos fascistas em causa, esperávamos que viesse a mãezinha ao telefone, e um de nós dizia, no tom mais ameaçador deste mundo,

    “Brigadas de Extermínio aos Fósseis. O seu filho que não saia de casa amanhã, ou não responderemos por nós.”

    Depois, no dia seguinte, o fascista faltava às aulas e nós fartávamo-nos de rir.

    black haired man making face

    É certo que eram outros tempos. Mas quando, aos vinte anos, de shortinhos e top porque era Julho, entrei para uma redacção onde as únicas mulheres eram a Edite Soeiro[9] e a Lurdes Feyo, ambas bastante mais velhas do que eu, e aqueles gajos todos, também mais velhos do que eu, começaram a atirar-se a mim como se eu tivesse nascido ontem, mas depois ficaram muito ofendidos porque os meus palavrões ainda eram mais criativos do que os deles – ah, sim, as BEFs voltaram a acender-se na minha memória e desatei a correr toda a gente a fóssil. Mas isto era no gozo. No gozo”, percebe-se a certa altura, é uma atitude que este jornalista limitado não entende.

    Vale também a pena salientar que há mais passagens interessantes relativas aos talentos de crítico literário deste personagem. A primeira é quando está a listar os diversos tipos de literatura que eu fui cobrindo nas mais de cinquenta obras que escrevi até hoje. Uma delas, segundo este entendido, é a “ficção científica” – com tanto azar, logo um género que eu francamente detesto. Ou seja, a minha produção literária está a ser-nos apresentada por uma pessoa incapaz de distinguir homenzinhos verdes de um outro género que, esse sim, é uma das grandes paixões da minha vida, a divulgação científica.

    Com uma cabeça destas, já não causa grande surpresa que, mais à frente, o grande crítico conceda que sou uma grande cientista (em matérias que ele ignora de todo) mas que os meus livros não prestam. Deduz-se que os leu todos com imensa atenção, que os sublinhou, que marcou as passagens desastrosas, porque só depois de um trabalho destes é que um bom jornalista poderia fazer semelhante afirmação. Vamos acreditar que sim e imaginar que o que deitou tudo a perder foi, digamos, o meu  livro infantil A HISTÓRIA HORROROSA DOS PEIXINHOS AMARELOS, sobre o qual seria interessante fazer-lhe algumas perguntas tão bem preparadas como a crítica literária dele. Mas já  repararam numa coisa? Santo Deus, os editores portugueses devem ser completamente cretinos, não é[10]? Para terem publicado tantos livros meus. E olhem que consegui enganar muito bem os americanos. E os japoneses, que traduzem o meu trabalho científico? Ora, nada mais fácil. Mais de metade do artigo é dedicado a dissecar a minha arte para enganar toda a gente. Por que é que não havia de enganar também os estrangeiros[11]?

    E olhem, segundo este apressado cronista de costumes também houve alguém que enganei muito bem quando fui casar-me a Las Vegas. Aquilo de que eu me lembro é de ter ido lá casar-me com o Dick, o pai dos meus filhos, o meu companheiro  de dezassete anos de vida no Massachusetts, e lembro-me de todos, todos, todos os pormenores. Mas como o autor do artigo escreve por ouvir dizer… fui a correr casar-me a Las Vegas com o autor “daquelas” fotografias, para atenuar a escandaleira nacional[12].

    Só depois disto é que volta a entrar a parte do interesse de Portugal por mim, que já agora corrijo.

    O grande interesse de Portugal por mim registou-se mais entre os 32 e os 40 anos – quando, entre várias outras coisas, já tinha clonado mamíferos muito antes de nascer a Dolly, coisa que o autor não parece ter minimamente registado… e, bem, tinha-se tornado completamente impossível ir para a cama com o mundo inteiro para conseguir fazer o que fazia, incluindo passar quinze dias na Ilha da Páscoa, correr a URSS de comboio e vir-me embora uma semana antes do sonho socialista acabar, doutorar-me, fazer clones, e ir estudar História da Ciência para Harvard. Estou a ler as trapalhadas de datas e de afirmações não atribuídas, a pensar que em jornalismo não se faz isto, e…

              … e depois descubro que o senhor distraído não é um jornalista.

    O homem que não estudou nada do que escreveu é um historiador, pelo que aqui eu já começo a ficar seriamente preocupada[13].

    Será que ele dá aulas?

    E ensinará ele aos alunos a expressarem-se desta forma que, se é errada em jornalismo, em História é pura e simplesmente inaceitável?

    black swivel chair beside rectangular brown wooden desk

    Parece que vive no Alentejo e continua a deslocar-se aos Estados Unidos.”

    Parece?

    Mas o que vem a ser esta balda, este “parece”?

    Então e a verificação das fontes?

    Deveria ser bastante fácil investigar se eu estou ou não a viver no Alentejo – aliás, bastaria ler o mesmo PÁGINA UM pelo qual o nosso historiador, para me desprezar a mim, mostrou um desprezo alarve na sua peça. Da mesma forma, era só sondar o consulado americano e ficaria logo a saber que não – já não me desloco aos Estados Unidos, ou pelo menos certamente não em trabalho. E porquê? Santo Deus, se não quisesse perguntar-me directamente que perguntasse à Segurança Social Portuguesa: estou reformada antecipadamente por invalidez, demasiadamente doente para pode manter horários lectivos constantes e fiáveis.

    O que, acto contínuo, desmente outro “parece que” do nosso brilhante historiador: claro que, se estou reformada, já não sou catedrática na Universidade Lusófona.

              E, uma vez mais, que raio de desmazelo vem a ser este? Um historiador que faz o seu trabalho com seriedade, e que pelos vistos não tem coragem para esclarecer as suas dúvidas directamente comigo (que diabo, tenho um Facebook chamado Clara Pinto Correia e é meu hábito responder às mensagens que recebo) não é pelo menos capaz de agarrar no telefone, ligar para os recursos humanos da minha antiga universidade, e perguntar se eu ainda lá estou a trabalhar? A pessoa até treme, só de imaginar o que serão os seus artigos da especialidade. Consta. Parece que. Dizem. Bibliografia por ouvir dizer. E depois dizem que os alunos portugueses são medíocres, e que têm dificuldades de concentração, e que observam terríveis graus de absentismo. Mas por favor, está toda a gente a ver bem o exemplo que lhes chega de cima?

    Miguel Relvas perdeu, muito merecidamente, o seu grau de doutor. Mais merecidamente ainda, esta nulidade devia perder já o seu grau de historiador. Pode insultar-me à vontade, se isso lhe dá prazer. Mas não pode passar aos miúdos que estão a tentar definir a sua vida a noção de que um historiador é um insultador que manda vir como muito bem lhe apetecer com a maior das leviandades. Até pode tornar a minha irmã mais velha mais nova do que eu, porque, como toda a gente sabe, essas minudências nunca tiveram, nem nunca terão, qualquer espécie de importância. E então em História.

    E este pensamento horrível traz-nos de volta aos insultos.

    Infelizmente, em toda a rodada de maledicência destinada a dizer mal de mim, não é só o PÁGINA UM que come por tabela. Mais perto do fim (porque se há uma outra coisa fundamental em História que este historiador nunca consegue observar é a regra-mestra da sequência cronológica), chegamos à parte em que eu abandono os estudos (nada podia ser mais falso) e me entrego a actividades fúteis do pior gosto e menor qualidade.

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    Logo a primeira é ter aceite um papel secundário no filme do António da Cunha Telles KISS ME. Epá, tenham dó. Cubram o Cunha Telles dos defeitos de personalidade e feitio que quiserem[14]. Agora, para me deixar mal vista, ter a lata de chamar a um dos maiores  e mais pioneiros cineastas portugueses fútil, foleiro, de mau gosto, de má qualidade… um historiador não tem que perceber de cinema, mas, à semelhança de todos os outros  académicos como nós, quando não sabe não tem que ir estudar? E, pela descrição do filme que faz a seguir, será que foi mesmo vê-lo? Mesmo, mesmo? Um verdadeiro historiador teria ido. Este limita-se a vituperar que é um filme com a Mariza Cruz. Que, diga-se de passagem, se revelou aqui uma actriz excelente.

    A minha segunda actividade fútil e de muito mau gosto foi ter aceite participar, juntamente com Rui Zink, Carlos Quevedo, e Mariza Cruz, no júri do concurso da TVI A BELA  E O MESTRE. O historiador nem sequer menciona que o nosso papel era integrarmos o júri, e ainda por cima junta a Paula Bobonne ao nosso elenco. Aqui as suas trapalhadas são ainda mais imperdoáveis, porque todos os episódios ficaram gravados, o que lhe teria permitido consultá-los e tirar a limpo o que aconteceu. Qual quê. Ao melhor estilo psicanalítico, o senhor tece várias considerações sobre o que leva uma figura do mundo cultural a aparecer ali, sem a mínima menção a razões semelhantes para o Rui ou para o Carlos, também eles pessoas do mundo cultural. A ideia evidente de que uma mãe solteira com dois adolescentes rebeldes em casa pudessse precisar de dinheiro talvez não lhe tenha passado pela cabeça[15]; mas, uma vez mais, perguntar não ofende. Agora, este historiador é de tal forma avesso a investigar os seus temas que ignorou o ponto principal: chegada ao terceiro episódio, e com o nível do concurso sempre a descer, com ou sem necessidade de dinheiro eu não aguentei mais aquilo e demiti-me. No último programa em que apareci para me despedir, entrevistada pelos apresentadores sobre a minha decisão, disse, apenas, “Sou professora Universitária. Este não é o meu mundo. De certeza que outras pessoas farão muito melhor o que se esperou de mim que eu fizesse.” E foi então – então sim – que a Paula Bobonne entrou para o meu lugar[16].

    E claro que fez aquele papel muitíssimo melhor do que eu.

    Até é uma história interessante.

    Mas, se estamos a braços com um historiador que não sabe dar-se ao trabalho sério e árduo de fazer História…

    … em vez de verdadeiros factos apanhamos antes com chorrilhos de faits divers.

    Muito foleiros, ainda por cima.

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    E extremamente perigosos para a motivação futura de quem ainda anda a estudar, o que não pode ser dito de nenhuma forma elegante: é um verdadeiro crime.

    Sabes, caro homúnculo que se realmente estudou História depois tratou de se  esquecer dela, e cujo nome nunca serei capaz de memorizar? Vi no fim do teu textículo que, ao que parece, as citações de Nietzsche te dão prazer mesmo que sejam completamente descabidas. Então, por uma questão de caridade, sugiro-te que não gastes mais o teu Nietzsche comigo. Porque calculo que saibas como é que isto acaba:

    “Se olhares muito tempo para o abismo, é o abismo que vai olhar para ti.[17]

    Há poucas coisa mais perigosas do que o olhar de volta que o abismo nos manda quando ousamos olhar estupidamente para ele.

    Tu tem lá cuidado com os teus futuros gatafunhos, piroso.[18]

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] E interminavelmente maus, além de interminavelmente mal escritos.

    [2] Ou mesmo, quem sabe, um “candidato a estagiário”, o escalão onde me arrumaram quem eu comecei a trabalhar no JORNAL.

    [3] Eram os exames de Julho. Por uma questão de princípios, nunca deixei nenhum exame para a segunda época.

    [4] Claro que este detalhe a criatura não poderia aber a menos que perguntasse ao Silva Pinto, mas, quando comecei a minha vida de jornalista – muito novinha, nesses tais tempos de oiro – o meu ordenado era de seis contos por mês. E eu aguentei-me como pude.

    [5] Que, ainda por cima, ainda passou ali uns anos consideráveis com bastante medo de que viesse a acontecer-me qualquer coisa como esta.

    [6] E vocês acham, porventura, que eu decorei isto tudo nas aulas de Bioquímica do segundo ano? Pelo amor de Deus. Fui agora mesmo ver à Wikipedia. Tal como o troca-tintas deveria ter feito, em vez de omitir o anel de benzeno quando cita a minha frase.

    [7] Não sendo psicanalista, atrevo-me a sugerir, perante esta estranha interpretação do sentido de nomes que só poderiam ser ou doces ou humorísticos, que talvez todas as alcunhas dele tenham sido insultuosas, razão pela qual não consegue interpretar nomezinhos queridinhos de outra maneira.

    [8] Uma vez mais, ele que investigasse, gaita.

    [9] Que, com o tempo, veio a ser a minha querida “Mãezinha”.

    [10] Bom, os editores e as pessoas que vêm ter comigo na rua a dizer “queria só que soubesse que o MAIS MARÉS QUE MARINHEIROS é o meu livro preferido!”. Ou que me escrevem para o Facebook a dizer “Fiquei  fascinada com o MAIS-QUE-PERFEITO, mas emprestei-o e nunca mais o vi. Onde poderei encontrá-lo agora?”O que é que  eu hei de dizer, “deixem-se de coisas e leiam o MOBY DICK?”

    [11] Uma vez estava no  aeroporto de Frankfurt cheia de fomne e de sede, e só tinha uma nota de dez euros no bolso das calças. Epá, meus amigos, enganei ali uns dinamarqueses que foi um gosto.História absolutamente verdadeira excepto no uso do verbo enganar. Confraternizámos enquanto comíamos e bebíamos, foi mais isso.

    [12] Desculpem, está tudo doido?

    [13] “Seriamente preocupada” é um eufemismo, claro. Quantos “historiadores”  destes existirão em Portugal?

    [14] E nem sequer são merecidos.

    [15][15] Os meus colegas do mundo cultural lá teriam razões como as minhas.

    [16] E adorou tudo Aquilo. De onde se prova que aquele não era mesmo o meu mundo, independentemente do dinheiro para pôr os meus rapazes rebeldes na linha.

    [17] Nietzche, citação muito famosa que o homúnculo certamente já conheceu mas depois esqueceu, como tudo o resto.

    [18] Citando Valete, RAP CONSCIENTE. Quem conhece o seu trabalho conhece a continuação.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

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  • Le Coup de Grâce: cinco minutos de felicidade

    Le Coup de Grâce: cinco minutos de felicidade

    Título

    Somos o esquecimento que seremos

    Autor

    Héctor Abad Faciolince (tradução: Margarida Amado Costa)

    Editora (Edição)

    Alfagura (Outubro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Aqui. Hoje.Já somos o esquecimento que seremos.A poeira elementar que nos ignorae que foi o rubro Adão, e que é agoratodos os homens, e que não veremos.Já somos na tumba as duas datasdo princípio e do termo. O caixão,a mortalha e a obscena corrupção,os triunfos da morte e as endechas.Não sou o insensato que se aferraao mágico som de seu nome:penso com esperança naquele homemque não saberá quem fui sobre a Terra.Sob o indiferente azul do céuesta meditação é um consolo.– Jorge Luís Borges

    Este livro deve o seu título a um verso deste belíssimo poema de Jorge Luís Borges (associado a ele há uma polémica interessante que pode ser lida aqui) que o pai do autor trazia, em manuscrito, no bolso, juntamente com uma lista de ameaçados de morte na Colômbia da época, e que foi salpicado de sangue no dia em que o assassinaram, a sangue frio, na rua, quando se dirigia ao velório de um amigo.

    Somos o esquecimento que seremos é um retrato íntimo de uma família, e descreve uma relação onde pai e filho se idolatram mutuamente; onde o filho mais do que justifica a sua adoração pelo progenitor, mas que parece nunca perceber o que leva o pai a confiar e a gostar de si tão incondicionalmente. Em que o pai é personagem principal e o filho lhe presta um maravilhoso tributo por ter sido, como homem, a todos os títulos, um ser superior. Diz o autor, logo na primeira página:

    O menino, eu, amava o senhor, seu pai, acima de todas as coisas. Amava-o mais que a Deus. Um dia, tive de escolher entre Deus e o meu pai, e escolhi o meu pai.” 

    E, de facto, trata-se de um amor filial enorme em que o autor, único filho rapaz, numa casa cheia de irmãs e outras mulheres, desenvolve numa relação íntima, visceral, com o pai e que não é muito comum ver-se.

    Eu gostava do meu pai com um amor que nunca mais voltei a sentir até ao nascimento dos meus filhos. Quando estes nasceram, reconheci-o, porque é um amor igual em intensidade, embora diferente e, de certa maneira, oposto.

    A 25 de Agosto de 1987, o pai, o médico colombiano Héctor Abad Gómez é assassinado por paramilitares em Medellín, uns dias antes de umas eleições em que era um dos candidatos. Seis balas na cabeça puseram fim a uma vida de luta contra a opressão e a desigualdade social, num país amordaçado pelo narcotráfico e pela política suja.

    Este é, pois, um livro dedicado às memórias, ao pai e a uma época conturbada e de crescente violência política na Colômbia dos anos de 1970 e 80. Duas décadas depois, o filho, um dos mais prestigiados autores da Colômbia escreve esta obra-prima.

    Médico de profissão, o pai de Hector dedicou-se a lutar contra a falta de oportunidades iguais num país mergulhado em violência, desigualdades sociais e violação constante dos direitos humanos. Entre diversos episódios – uns caricatos, que arrancam sorrisos; outros comoventes, capazes de nos levar às lágrimas -, somos apresentados à sociedade colombiana e a outros modos de vida.

    O meu primeiro contacto com o sofrimento não foi em mim, nem em minha casa, mas nos outros, porque, para o meu pai, era importante que os filhos soubessem que nem toda a gente era feliz e afortunada como nós e parecia-lhe necessário que conhecêssemos desde crianças o padecimento, quase sempre devido a desgraças e a doenças associadas à pobreza, de muitos colombianos.

    Do relato verídico contado na primeira pessoa, tecem-se considerações detalhadas (e polémicas) sobre o papel da religião católica na América Latina. Também as correntes políticas — comunismo, socialismo, liberalismo e conservadorismo — têm um destaque primordial, bem como os conceitos de «esquerda» e de «direita», essenciais para a compreensão de todos os factos descritos por Héctor.

    É uma história densa e comovente, desprovida de lugares-comuns. É a história de uma dor que cicatrizou, mas que prevalece. De uma memória que permanece pela força das palavras e que quer evitar o esquecimento de um humanista que viveu em prol dos outros, e para uma sociedade mais livre e justa. E ainda o principal responsável pelo filho que educou e que sempre incentivou:

    Creio que o único motivo por que fui capaz de continuar a escrever todos estes anos e de entregar os meus escritos à imprensa foi saber que o meu pai teria desfrutado mais do que ninguém com a leitura destas páginas minhas que nunca pôde ler. Que não lerá nunca. É um dos paradoxos mais tristes da minha vida: quase tudo o que escrevi foi escrito para alguém que não me pode ler.

    É um belíssimo livro que não se esquecerá facilmente. 

  • Dinheiro sujo

    Dinheiro sujo

    A única diferença entre a realidade e a ficção é que a ficção tem que ser credível.

    Mark Twain


    Esta história é absolutamente real, e, nessa condição, parece horrivelmente fantasiosa. Tem a ver com segredos que não são possíveis e sentimentos que não são credíveis, todos eles  revelados por uma única frase que um contabilista me repete duas vezes, a segunda mais contundente do que a primeira: “a doutora passe uma procuração ao seu advogado para ele ir lá ver o que se passa.” E eu, feita parva, ainda falo com o advogado a espernear: “se é para os bancários dizerem quem é que penhorou a minha conta e em quanto, porque é que não basta ir lá eu? Eles não têm a obrigação de me dizer o que se passa com a conta?” E o meu advogado, com os ouvidos cheios de conversas iguais: “Pois têm, Clarinha, pois têm. Mas nunca te vão dizer nada.” E eu, furiosa: “Mas porquê, pá? Porquê? A conta é minha, não é?” E ele, com um suspiro: “Pois é, Clarinha, pois é. Mas, quando há porcaria, eles têm um medo doido de dizerem seja o que for aos titulares das contas.” Medo? MEDO? Mas isto é o quê, é algum offshore na Colômbia onde se movimentam nas sombras personagens sem rosto de um romance do Graham Greene?


    Esclareça-se já que este sítio suspeito onde as pessoas têm medo de falar não está localizado em águas internacionais, os contabilistas que não o dizem claramente mas sabem muito bem que esse medo existe não trabalham para nenhum offshore, e os advogados que já não podem nem ouvir falar de penhoras que ninguém quer explicar aos titulares das contas não viajam em Executiva pelo mundo ao serviço de uma grande ONG de socorro aos lesados de grandes promessas a prazo que afinal eram grandes extorsões à ordem. Muito pelo contrário. Todas as pessoas envolvidas por esta novela financeira estão tranquilamente aqui, em Estremoz, à excepção dos bancários que se distribuem, em dias alternados, pelo eixo Estremoz – Vila Viçosa – Borba.

    Tanto medo, tanta procuração ao advogado, tanto conselho codificado do contabilista num cenário tão bucólico.

    a group of people walking down a hallway

    E, partindo do princípio saudável de que este estranho medo não me afecta só a mim, tanto alentejano tranquilo que tem por lei o direito de saber quem é que lhe penhorou a conta e em quanto, mas em vez disso anda para aí à toa porque os bancários se fecharam em copas e ainda hoje estão fechados.

    É que eu, vá lá. Posso estar um bocado à toa, mas sempre tenho para onde me virar. Tenho um óptimo contabilista que me dá bons conselhos e não cobra separadamente por eles, e um grande amigo que pode ser muito lento mas é seguramente muito entendido na matéria. Mas nem toda a gente tem estas benesses. Se eu já ando de cabeça perdida com o silêncio da banca, imagino o inferno que tudo isto será para quem tem que enfrentar sozinho esse mesmo silêncio. Entretanto o tempo passa, as taxas de juro aumentam, e a nossa possibilidade de falência vai crescendo, crescendo, crescendo.

    Esta penhora que afectou a minha conta foi a primeira penhora que alguma vez afectou a minha vida. Eu estava, portanto, completamente virgem na matéria. O banco tinha a obrigação legal de me fornecer todas as informações que me ajudassem a compreender a situação e depois a lidar com ela. Mas, de facto, tendo em conta a forma como funcionam as penhoras também tinha a possibilidade ilegal de me deixar completamente pendurada, já que qualquer bancário com quem eu falasse podia sempre inventar um pretexto para não me dizer fosse o que fosse.

    O primeiro bancário com quem eu falei disse-me que essas informações só podiam ser fornecidas pelo gerente do balcão.

    O gerente do balcão, misteriosamente, de cada vez que eu lá ia estava sempre em Borba ou em Vila Viçosa, e portanto não podia falar comigo.

    grayscale photo of man holding paper

    Entretanto, e ao contrário de todos os outros bancos que são normais e fecham pelas três da tarde, aquele banco passa a fechar à uma e ao meio dia e meia já está tudo em pé, de pasta na mão.

    Acabei por encostar um bocadinho mais o primeiro bancário à parede, comentando com ele que sabia perfeitamente que aquela penhora ou era das Finanças ou era da Segurança Social. Ele ouviu-me, abanou afirmativamente com a cabeça, e lá suspirou “pois é, são sempre as sanguessugas.

    Dadas as circunstâncias, foi graças a este expediente que fiquei a saber que a penhora era das Finanças.

    E fiquei, também, absolutamente furiosa, porque obter de um banco este tipo de informação não deveria obrigar nenhum cidadão a recorrer a qualquer tipo de expedientes. Mas é que nunca na vida.

    Foi quando o contabilista sensato me disse, duas vezes, para eu passar antes uma procuração ao meu advogado.

    Como se a vida fosse um filme.

    Epá, se é, tirem-me deste filme por favor.

    Eu estava tão indignada com aquele comportamente surreal dos bancários que ainda voltei sozinha ao balcão de Estremoz. Desta vez fui atendida por outro funcionário. Uma senhora madura, com aquele ar posto em sossego de quem já ali anda há muito tempo. Ah, esta de certeza que ia ajudar-me.

    Recitei outra vez a minha litania.

    Recebi um pagamento de 250 Euros por uma tradução. Esse pagamento entrou na minha conta, e logo a seguir saiu. Foi assim que suspeitei logo da penhora, embora não tenha recebido nenhum aviso nesse sentido, fiscal ou outro. O seu colega já viu isso comigo, e já confirmou que é uma penhora das Finanças. Tenho mais pagamentos para receber,  mas não quero que eles sejam sumariamente penhorados. Quero saber qual é o valor total da penhora, e como é que eu posso negociar o seu pagamento.

    a man standing in front of an atm machine

    Ãh? Pareço mesmo uma pessoa crescida a falar.

    A senhora madura esquadrinhou cuidadosamente o seu computador, foi dizendo hm-hm e ah-ah, acenou várias vezes, e por fim fez-me um sorriso profissionalmente simpático.

    Eu nem queria acreditar no que ouvi a seguir.

    Não se preocupe, porque está tudo bem com a sua conta. Está a zeros, sem nenhum saldo negativo.

    Ó sua grandessíssima cabra!

    Claro que a conta estava a zeros, uma vez que as Finanças limparam tudo o que entrou. E claro que voltarão a limpar o que voltar a entrar se eu entretanto não fizer nada para alterar o rumo das coisas.

    E claro que a senhora madura tinha a obrigação legal de me alertar para tudo isto.

    Saí dali a bater com os pés de cólera e falei com o meu advogado nesse mesmo dia. Ainda deixei escapar uns berros, porque, acima de tudo, eu não percebia. Se a lei manda os bancários fazerem uma coisa, por que é que eles se esforçam tanto para fazer outra? O que vem a ser este filme? O que é que eles ganham com isso?

    Não ganham nada,” disse-me o meu advogado. “Por causa das contas penhoradas, os bancos até perdem dinheiro.

    Então eles fazem isto porquê?

    Porque têm medo.

    Têm medo?

    Pois têm.

    Mas medo de quê?

    Então… ó Clarinha… como é que tu dizes? Ah, têm medo da própria sombra! Têm medo de fazer porcaria, têm medo uns dos outros, têm medo dos chefes, controlam-se, espiam-se, é um ambiente de cortar à faca.

    woman walking with shadow

    Eu sei, de fonte incontestável, que os bancários são uma classe muito castigada. Em plena euforia do governo Guterres e da EXPO98, eram o grupo profissional que mais procurava o acompanhamento dos psiquiatras[1]. Entre várias outras coisas horrivelmente humilhantes, chegaram a ter que vender ao balcão férias no Algarve e jogos de faqueiros, uns em aço e outros em prata[2]. A vida deles é dura? Decerto. Mas e a nossa? Se calhar não é? Precisarei de voltar a dizer que os portugueses, quando chegam ao ponto de abrir contas nos bancos de Estremoz, não estão necessariamente a usá-las para ocultar os milhões que desviaram para aquele seu opulento offshore na Grande Caymão[3]?

    Ora bolas[4].


    PÓ, CINZA, E NADA

    Já agora, para vos provar que sei mesmo imensa coisa sobre dinheiro sujo, vou contar-vos uma história que se passou comigo na Grande Caimão, quando fui velejar à volta do mundo no três mastros de um comandante sueco meu amigo.

    Aquilo a gente chega lá e a rua principal é toda ela bancos, que têm diante deles, no passeio, um porteiro muito jovem e simpático que nos convida sempre a entrar. Tudo isto se passa no rés-do-chão, e no primeiro andar ficam os bares e os restaurantes para os clientes fazerem horas, quase todos com vista para o porto. Como já estávamos todos um bocado fartos da comida do iate, decidimos ir almoçar numa daquelas esplanadas simpáticas.

    De repente vimos uma grande fumarada, e percebemos que estava alguma coisa a arder no porto.

    Perante a leviandade dos outros comensais, que nem sequer se dignaram a desviar o olhar, fomos nós a correr ter com o porteiro, a gesticular e guinchar sobre a questão do incêndio.

    Ah,” disse-nos o jovem bonitão, muito simpático. “Não se preocupem. De certeza que é alguém que pegou fogo ao barco.”

    O quê?

    Pois. Não é? Um gajo tem um montão de documentos incriminatórios, certo? Então deita-os todos para o porão do barco… faz-se ao mar… atraca na Grande Caimão e…” – gesto dramático – “up in smoke!

    Uau!” – disse logo eu, que sou uma verdadeira bandida e não consigo deixar de ficar legitimamente impressionada com estas coisas.

    E, declarando-me assim culpada, esta caixa de texto substitui por hoje as notas de rodapé.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] António José Albuquerque, com. pers., 2005.

    [2] Idem.

    [3] A avaliar pela maneira enfurecida como as Finanças me tratam, é sempre onde eu imagino que “eles” imaginam que eu tenho o meu opulento offshore.

    [4] Só para que conste, devo a caixa de texto que ilustra esta crónica ao meu grande e terno amigo e protector Luís Laureano Santos.


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