Etiqueta: Cinema

  • As três regras de vida do Donald

    As três regras de vida do Donald

    O filme ‘The Apprentice – A História de Trump’, é uma ficção sobre os primeiros anos da vida daquele que foi o 45º Presidente dos Estados Unidos da América (EUA) e pretende ser o 47º, caso vença as eleições na primeira terça-feira de Novembro, dia 5. Poderá um filme mudar o sentido de voto do eleitor indeciso?

    Após o visualizar, numa ante-estreia dedicada apenas a jornalistas, vemos que não há propriamente uma novidade face a tudo o que já foi escrito e mostrado em documentários sobre aquele que foi eleito Presidente dos Estados Unidos em 2016, perdeu a reeleição em 2020 e tenta agora a segunda chance.

    Isso, no entanto, não tira o interesse ao filme. A obra tem o condão de nos levar ao ambiente da Nova Iorque dos anos 70 e 80 – é esse o limite temporal representado, sem qualquer referência aos anos mais recentes -, de modo a percebermos a construção e a aprendizagem do homem que quer voltar a sentar-se na Casa Branca. Tem representações notáveis de Sebastian Stan como Trump e, especialmente, de Jeremy Strong, no papel de Ron Cohn, o advogado sem escrúpulos que “constrói” o “aprendiz”. 

    Ali Abbasi, o realizador iraniano nascido em 1981 a viver em Copenhaga, contou com Gabriel Sherman como argumentista e, este, é um jornalista que exibe no seu curriculum a biografia de Roger Ailes, presidente da Fox News, o canal de televisão dito pró-Trump. O livro, publicado em 2014, tem o título “The Loudest Voice in the Room: How the Brilliant, Bombastic Roger Ailes Built Fox News – and Divided a Country”, que se pode traduzir para algo como: “A Voz Mais Alta na Sala: Como o Brilhante e Bombástico Roger Ailes Construiu a Fox News – e Dividiu um País”.  A eleição de Donald Trump, dois anos depois, sabe-se, dividiu ainda mais o País.

    Esperava-se então, dado o material original, que este fosse um filme que contribuísse ainda mais para a destruição da imagem de Trump. Uma produção prejudicial à sua reeleição, sobretudo dada a oportunidade da estreia – menos de um mês antes da ida dos americanos às urnas. Só que o filme é um filme. É uma obra de arte ficcional inspirada em factos verdadeiros e, mesmo com a cena onde Trump viola Ivana – coisa que o verdadeiro sempre negou -, o sentimento que fica é o de um retrato humano.

    O filme é neutro e sujeito a várias interpretações. E isso, com certeza, vai representar um desafio a quem o for assistir. Se com Trump sempre se tratou do “ama ou odeia”, será interessante saber se, quem o odeia, não irá relativizar a sua opinião (se quiser ser honesto consigo próprio), enquanto quem gosta, provavelmente irá ficar a gostar ainda mais – existe sempre uma certa dose de exagero em quem ama. Agora, caso haja na América dividida quem ainda esteja, nesta fase da campanha, a ponderar o seu voto, quiçás esta produção, apesar de ficção e com as devidas cautelas factuais, possa leva a uma decisão em relação às qualidades do homem da “Arte do Negócio”.

    man in black suit standing beside woman in black dress

    A cena inicial do trabalho de Abbasi e Sherman é o célebre discurso de Richard Nixon, a 17 de Novembro de 1973, onde o então presidente norte-americano, no auge do escândalo do Watergate, garantia aos seus cidadãos que não era um vigarista – “I’m not a crook”. A seguir, vemos uma Nova Iorque falida e violenta, onde um jovem Trump tem terreno fértil para cumprir com as suas ambições pessoais.

    E, para o seu sucesso, vai encontrar em Ron Cohn o homem que lhe ensinará três regras de vida:

    1 – Atacar, atacar, atacar;

    2 – Admitir nada, negar tudo;

    3 – Independentemente do que acontecer, reclamar a vitória e nunca admitir a derrota.

    Trump é o político que sabemos que vai cumprir com as regras. Já o demonstrou durante os primeiros quatro anos em que exerceu o poder e, ao contrário de muitos políticos antes de si, nunca enganou ninguém.


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  • Indiferente a polémicas, “Sound of Freedom” já facturou mais de 100 milhões de dólares

    Indiferente a polémicas, “Sound of Freedom” já facturou mais de 100 milhões de dólares

    Ainda sem data para estrear em Portugal, nos cinemas nos Estados Unidos o filme independente “Sound of Freedom” ultrapassou, em apenas três semanas, os 100 milhões de dólares de receita nas bilheteiras. Inspirado em acontecimentos reais, sobre o resgate de crianças vítimas de redes de tráfico sexual de menores, o filme foi bem recebido pela crítica e em vendas de bilhetes tem estado sempre no Top 3 dos mais vistos nos cinemas norte-americanos em Julho, rivalizando com filmes como a última sequela de “Indiana Jones”. O sucesso do filme contrasta com notícias negativas publicadas por alguma imprensa mainstream que, ainda assim, não travam este verdadeiro blockbuster de Verão. Sérgio Saruga, da distribuidora Pris Audiovisuais, diz que “há filmes mais polémicos na Netflix” e não exclui que pode vir a conseguir ter o filme em exibição em Portugal. Paulo Trancoso, presidente da Academia Portuguesa de Cinema, apela a que o filme seja visto como um filme, “despido” de polémicas.


    É um caso de sucesso de bilheteira nos Estados Unidos e rapidamente se tornou no filme sensação do Verão no país. Em apenas três semanas, “Sound of Freedom” , um filme baseado em eventos reais e protagonizado pelo actor Jim Caviezel, alcançou os 100 milhões de dólares de receita nas bilheteiras.

    Concluído em 2018, o filme foi colocado na prateleira pela Walt Disney Studios e acabou por ser comprado pela Angel Studios, uma distribuidora de filmes independente e plataforma de streaming que é orientada para conteúdos baseados na fé. Viu a luz do dia no dia 4 de Julho, data em que estreou no grande ecrã nos Estados Unidos.

    Apesar do seu orçamento de 14,5 milhões de dólares, o filme tem estado sempre no Top 3 dos filmes mais vistos nas salas de cinema do país rivalizando com filmes como a mais recente sequela de “Indiana Jones“, dos estúdios Disney.

    Uma cena do filme “Sound of Freedom”, com o actor Jim Caviezel como principal protagonista.

    O filme chegou a 3.285 salas de cinema, menos do que as 4.600 em que é exibido “Indiana Jones e o marcador do destino”. Mas, ao contrário do novo filme da saga “Indiana Jones”, o filme “Sound of Freedom” ainda não pode ser visto no grande ecrã em Portugal.

    A distribuidora Angel Studios adquiriu os direitos mundiais do filme e é provável que vá disponibilizar “Sound of Freedom” na sua plataforma de streaming.

    Em Portugal, a NOS indicou ao PÁGINA UM que não vai ter o filme em exibição nas suas salas. Segundo uma porta-voz da NOS, o filme não consta na sua lista de estreias, “para já até ao final do ano”.  Também a UCI não tem agendada a exibição do filme nas salas em Portugal.

    Cartaz a anunciar o filme que estreou no dia 4 de Julho nos cinemas nos Estados Unidos.

    Mas ainda há esperança para os cinéfilos portugueses que desejam assistir ao filme no grande ecrã. Um dos distribuidores de filmes em Portugal, a Pris Audiovisuais, não desistiu de trazer “Sound of Freedom” para ser exibido no país.

    Segundo Sérgio Saruga, da Pris Audiovisuais, as negociações para trazer o filme para Portugal ainda podem chegar a bom porto. Saruga indicou ao PÁGINA UM que “o filme ainda não tem distribuidor em Portugal mas os seus resultados nos Estados Unidos são bastante bons”, admitindo a possibilidade de vir a distribuir a película no país.

    Realizado e co-escrito por Alejandro Monteverde, “Sound of Freedom” relata a história verídica do agente Tim Ballard, que fundou a organização de combate ao tráfico sexual Operation Underground Railroad.

    O filme pertencia à 20th Century Fox mas esta foi comprada pela Disney, que acabou por colocar o filme na prateleira.

    Monteverde afirmou em entrevista que o adiamento até foi uma benção. “Para mim, este é o timing perfeito”, disse à Bounding Into Comics. “Eu acredito que se este filme saísse mais cedo, eu não acho que o público estava pronto. Neste momento, infelizmente, há publicidade para este filme, mas do lado errado. Todos os dias há estas atrocidades a acontecer nos noticiários por todo o lado. Crianças traficadas. Abusaram sexualmente de crianças por todo o lado.”

    Paulo Trancoso, presidente da Academia Portuguesa de Cinema, realçou que o filme “criou alguma expectativa”. “O filme vem bem classificado pela crítica e no IMDb tem uma classificação de 80%, o que é muitíssima qualidade, thriller bem feito”.

    A actriz Mira Sorvino numa cena do filme.

    Apesar de ter muito boas críticas e do sucesso de bilheteira, “Sound of Freedom” tem sido alvo de notícias negativas em alguma imprensa mainstream, como o The Guardian, que têm tentado colar o filme à direita e aos conservadores norte-americanos e ao fenómeno conspirativo QAnon – ligado a seguidores do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump. Entre os argumentos lidos em notícias negativas estão declarações públicas controversas de Caviezel.

    As notícias negativas surgem num contexto crescente da grande divisão que se assiste nos Estados Unidos, a que a imprensa mainstream não escapa, em que a generalidade dos temas são “arrumados” em “esquerda-direita”, “democratas-conservadores”.

    Sérgio Saruga, da Pris Audiovisuais, que assistiu a “Sound of Freedom”, “em Cannes, num circuito paralelo” disse que “há filmes bem mais polémicos na Netflix”. “Vejo que o filme pode ser mais polémico em outros países do que em Portugal”, adiantou.

    Paulo Trancoso destacou que, nos Estados Unidos, “estamos a falar de um país e uma sociedade divididos ao meio, em termos políticos”. Neste caso, disse, essa divisão acaba por “ajudar à notoriedade do filme”. Mas Paulo Trancoso defendeu que “o filme deve ser despido para ser visto como um filme de entretenimento”. “Tem que ser visto como um filme”, frisou.

    Certo é que, o público tem recebido bem o filme e, apesar das notícias negativas de alguma imprensa mainstream, as receitas deste blockbuster de Verão não param de crescer.

    E, numa sociedade norte-americana profundamente dividida ideologicamente, este filme independente arrisca não só acumular mais ganhos financeiros, como também tornar-se um exemplo de quão profunda se tornou a divisão na sociedade norte-americana, quando até um filme anti-tráfico sexual de crianças é visto como apenas mais um alimento para reforçar essa divisão.

  • Quando os cenários sobrevivem aos filmes 

    Quando os cenários sobrevivem aos filmes 

    A série “Rabo de Peixe”, disponível na plataforma Netflix, trouxe a vila piscatória da Ilha de São Miguel, nos Açores, para o estrelato. Os diversos locais de filmagem da popular série portuguesa arriscam agora a tornar-se famosos. Não será caso único. Em todo o Mundo, vários locais de filmagem de filmes e séries saltaram para a fama e hoje constituem um ponto de atracção turística, mesmo passado décadas de os holofotes do set se terem apagado. O PÁGINA UM mostra-lhe 12 cenários construídos ou já existentes que se tornaram locais de peregrinação.  


    O cinema e a televisão são poderosos e influentes veículos de conteúdos. Prova disso é a capacidade que têm de suscitar nos espectadores uma curiosidade acerca de locais até então absolutamente desconhecidos ou pouco falados. A nova série portuguesa da Netflix, “Rabo de Peixe”, é agora mais uma evidência disso: com um retumbante sucesso que a colocou no topo do ranking daquela plafatorma de streaming, conseguiu pôr a pequena e pacata vila piscatória açoreana “debaixo dos holofotes”.

    No entanto, para além desta produção gravada na Ilha de São Miguel, muitos são os exemplos deste fenómeno em que localidades são subitamente catapultadas para o centro das atenções por servirem de cenário a filmes ou séries televisivas.

    Por vezes, algumas até se transformam em pontos turísticos “imperdíveis”, atraindo milhares de estrangeiros oriundos de todo o mundo. Alguns, que já tinham uma considerável afluência de turistas, viram a quantidade de visitantes aumentar ainda mais. Outros ainda, obrigaram à construção de sets que ainda hoje, passados anos do seu lançamento, recebem ‘enchentes’ de turistas. Aconteceu com O Popeye, A guerra das estrelas, Harry Potter, e até os Monty Phyton.

    O PÁGINA UM destaca 12 desses locais (agora ainda mais) turísticos.


    Matamata, Nova Zelândia

    A verdejante Nova Zelândia não precisaria de incentivos adicionais ao turismo, mas a popularidade que a trilogia O Senhor dos Anéis alcançou fez engrossar a percentagem de turistas que se deslocavam àquele ponto do globo. Em 2012 – mais de uma década após o fim da trilogia –, um responsável da Tourism New Zealand, uma empresa que promove o turismo naquele país, revelou à Forbes que se tinha registado um aumento de 50% de visitantes desde o lançamento do primeiro filme, em 2001. Com efeito, esta sequela foi pioneira no fenómeno da corrida aos locais e regiões que servem de palco para produções televisivas.

    Hobbiton constitui uma das principais atracções, e esta vila dos icónicos hobbits situa-se, na vida real, na cidade de Matamata.  É lá que se encontra o Hobbiton Movie Set, que serviu de palco para as gravações de ambas as trilogias cujo “pai” foi o escritor J. R. R. Tolkien: O Senhor dos Anéis e Hobbit. Ainda em Dezembro passado, em comemoração do décimo aniversário de Hobbit: Uma viagem inesperada, a plataforma Airbnb anunciou que os visitantes passariam a ter também a possibilidade de pernoitar nas pequenas casas que serviram de cenário às filmagens.


    Castelo de Alnwick, Inglaterra

    É impossível falar de sequelas de sucesso sem mencionar Harry Potter, e o impacto do seu sucesso colossal no número de visitantes que rumaram a Inglaterra ou à Escócia para conhecer os locais de filmagem também foi significativo. Entre castelos, estações de comboios e catedrais, são vários os ‘cenários’ que através do grande ecrã ficaram na memória dos fãs e espectadores em todo o mundo, e que todos os anos continuam a percorrer os principais locais onde se protagonizaram vários takes da saga.

    A aldeia fictícia de Hogsmeade – que na sequela, é a única exclusivamente habitada por feiticeiros – é um destes pontos, recriada nos estúdios de filmagem da Warner Bros, em Leavesden, 20 quilómetros a norte de Londres, onde se pode visitar a Studio Tour London – The Making of Harry Potter.

    Por seu turno, a plataforma 9¾ da estação de King’s Cross, em Londres, é uma paragem obrigatória para quem visita a cidade pela primeira vez. Na mítica plataforma, os turistas podem reproduzir as cenas onde os aprendizes de feiticeiros desapareciam ao atravessar as paredes do terminal com os seus carrinhos-de-mão. Também o viaduto de Glenfinnan, na Escócia, é outro conhecido cenário emblemático da famosa saga, que ainda faz as delícias de muitos turistas e fãs de Harry Potter.

    O castelo de Alnwick, em Inglaterra, também teve um “papel” importante na longa história de Harry Potter, tendo aparecido nos primeiros dois filmes da sequela. Foi lá que, em A pedra filosofal, os aspirantes a feiticeiros, “montados” nas suas vassouras mágicas, aprenderam a voar pela primeira vez. O castelo serviu também para as gravações da conhecida série britânica Downton Abbey.


    Baía de Wallilabou, São Vicente e Granadinas (Caraíbas)

    O filme Pirata das Caraíbas: A Maldição do Pérola Negra, que em 2003 eternizou a personagem do pirata Jack Sparrow, interpretado por Johnny Depp, também deu visibilidade a algumas localidades de areia branca e águas azuis cristalinas por onde o inigualável personagem se aventurou. Uma delas é a baía de Wallilabou, onde se construiu a cidade-cenário Port Royal, para as filmagens da famosa saga.

    Port Royal é uma cidade real situada na Jamaica, que constituiu historicamente um dos mais importantes pontos comerciais da Marinha Real Britânica, até um sismo em 1692 ter afundado grande parte do território. Conhecida até por ser, no século XVII, “a cidade mais malvada do mundo”, tornou-se, de facto, um efervescente centro de prostituição, piratas e “malfeitores”. No entanto, para efeitos das gravações de Piratas das Caraíbas, o país escolhido não foi a Jamaica, mas São Vicente e Granadinas.


    Aldeia do Popeye, Malta

    O carismático marinheiro Popeye – cujo centenário se celebrará em 2029 –, embora seja um cartoon ficcional que habita sobretudo o imaginário colectivo, teve uma versão em “carne e osso” através do musical homónimo, de 1980, em que o actor Robin Williams deu vida ao personagem.

    Malta foi o país escolhido para as gravações da produção cinematográfica, onde se criou, na baía Anchor, o cenário denominado Popeye Village: uma aldeia pitoresca repleta de casinhas de madeira. Ainda hoje uma pujante atracção turística, os visitantes que por lá passam podem usufruir de passeios de barco, espectáculos e ainda ‘conhecer’ as personagens do filme.


    Escadarias Bronx, Nova Iorque

    O Joker, lançado em 2019 e interpretado por Joaquin Phoenix – e pelo qual o actor viria a ganhar o Óscar de Melhor Actor em 2020 –, foi um sucesso de bilheteiras. Não será, por isso, surpreendente que uma singela escadaria, na confluência da West Street 167 com a Anderson Avenue, localizada no conhecido bairro do Bronx, em Nova Iorque, tenha registado um elevado acréscimo de curiosos a querer pisar os mesmos degraus que o temível vilão usou na célebre “dança” vitoriosa. O cenário que, aliás, também deu origem a muitos ‘memes’, é hoje um ponto de atracção para fotografias.


    Dubrovnik, Croácia

    A Guerra dos Tronos, transmitida na plataforma HBO, tem certamente um lugar de destaque na história das séries televisivas. E o seu estrondoso sucesso faz com que conste na lista de produções audiovisuais que mobilizaram os espectadores a conhecer os locais de filmagem com os seus próprios olhos.

    Desde 2011 até 2019, as suas temporadas foram gravadas em diferentes localidades e países, nomeadamente a Irlanda, Croácia, Malta, Islândia e Espanha. Muitos dos fãs da série rumaram a estas regiões, aumentando consideravelmente a sua afluência turística – por vezes, de forma “dramática”. Vários destinos se poderiam destacar, mas um dos que mais turistas atraiu foi Dubrovnik, a cidade mais visitada na Croácia, e que ainda hoje faz manchetes pela quantidade de turistas que recebe, e que se deslocam até à chamada “Pérola do Adriático” para ver por si mesmos o verdadeiro cenário de “King’s Landing”.


    Maya Bay, Tailândia

    Lançado no início de 2000, o filme A Praia, protagonizado por Leonardo DiCaprio, fez aumentar a procura pelas paradisíacas paisagens tailandesas. Em particular, por Maya Bay, a praia que serviu de palco às filmagens, e que se tornou desde então uma das atracções turísticas mais proeminentes na Tailândia. E, de facto, a projecção mundial que este destino adquiriu com o filme não esmoreceu com o passar dos anos.

    Na verdade, o número de turistas atingiu proporções tais – chegou a atingir os 5 mil por dia, a par com 200 barcos –, que o local teve que “fechar as portas” em 2018 devido aos danos ambientais causados pelo excesso de visitantes. Na altura, as autoridades tailandesas anunciaram que a Maya Bay, localizada na ilha Ko Phi Phi Leh, fecharia por tempo indeterminado para que pudesse recuperar do impacto cumulativo. Apenas em Janeiro do ano passado é que a famosa praia voltou a reabrir, mas, por um curto período, voltou a fechar novamente entre Julho e Setembro.


    Ilha de Skellig Michael, Irlanda

    A íngreme e rochosa ilha de Skellig Michael, na Irlanda, foi classificada pela UNESCO Património Mundial em 1996, mas a saga A Guerra das Estrelas elevou o seu protagonismo a um novo patamar ao escolhê-la como cenário para as gravações.

    Com um impressionante mosteiro que se acredita datar do século VI, a montanhosa ilha irlandesa, cujas condições de acesso e permanência são bastante inóspitas – só pode, inclusivamente, ser visitada durante os meses de Verão – serviu de cenário para a sétima e a oitava parte da sequela: O despertar da força e O último Jedi. Em A Guerra das Estrelas, o remoto lugar representou o planeta Ahch-To.


    Senoia, Georgia (Estados Unidos)

    Em The Walking Dead, a cidade ficcional Woodbury, existe na vida real, mas não foi, no entanto, na Woodbury “verdadeira” o local onde se filmaram muitos takes da famosa série, mas sim Senoia, uma pequena cidade que fica também no estado da Georgia – o que causou um aumento vertiginoso de turistas na zona.

    Esta localidade já serviu de cenário para outras produções audiovisuais, mas ganhou um enorme protagonismo com esta sequela sobre os assustadores zombies, e é graças a ela que recebe muitos turistas, que lá visitam os mais conhecidos sets de filmagem que viram no ecrã.


    Hotel Park Hyatt, Tóquio (Japão)

    Também a visibilidade de alguns edifícios e hotéis de luxo atingiu os píncaros, depois de lá se terem filmado êxitos cinematográficos. Foi esse o impacto que o filme O amor é um lugar estranho, (Lost in translation, no original), de 2003, teve no hotel Park Hyatt Tokyo, localizado na capital nipónica. A realizadora Sofia Coppola escolheu-o para cenário para as gravações, depois de ter ficado impressionada com a estrutura.

    A marcante cena em que os protagonistas, Bill Murray e Scarlett Johansson, se conhecem, foi filmada no “New York Bar”, que, com uma vista panorâmica e privilegiada sobre a cidade de Tóquio, fica no último piso do hotel. Uma das suas suítes também “apareceu” neste filme, que chegou até a receber o Óscar de Melhor Argumento Original.

    O hotel, que fica no cimo da “metálica” infraestrutura Shinjuku Park Tower, assumiu, de facto, uma importância comparável ao de uma personagem. Coppola descobriu o local em 1999, após uma deslocação que fez para promover o filme As Virgens suicidas.   


    Hotel Del Coronado, Califórnia (Estados Unidos)

    Outro hotel que ganhou destaque graças à Sétima Arte foi o Hotel Del Coronado, situado no Sul da Califórnia. Neste caso, a “culpa” foi da comédia Some Like It Hot, de 1959, com uma das loiras mais icónicas do Mundo, a actriz Marilyn Monroe. O filme obteve seis nomeações pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, mas ganhou apenas o Óscar de Melhor Guarda-Roupa. De qualquer maneira, certamente que as vestimentas dos personagens foram realçadas pelo “pano de fundo” representado por este hotel de San Diego.

    A acção desenrolava-se em 1929, e talvez por isso a estética de Del Coronado, e a sua “arquitectura victoriana”, tenha servido na perfeição para dar vida ao argumento. Contudo, apenas o frontispício do hotel apareceu nas filmagens, apesar de os cenários utilizados pela produção para os takes gravados em interior serem extremamente semelhantes ao Del Coronado. Segundo o site oficial do hotel, quem o visita, mostra-se incrédulo quando descobre que apenas a parte externa do charmoso hotel foi usada para o filme.


    Castelo de Doune, Escócia

    Os britânicos Monty Python têm muitos méritos, e o humor e boa disposição que trouxeram a muitos espectadores é com certeza um deles. No entanto, entre gargalhadas, o filme Monty Python e o Cálice Sagrado, de 1975, teve ainda um outro efeito: tornou o Castelo de Doune, situado no coração da Escócia, um alvo de atenção e curiosidade.

    Embora os castelos de Stalker e Kidwelly também apareçam no filme, que satiriza a lenda da busca do Rei Artur pelo Santo Graal, as gravações utilizaram sobretudo o Doune, aproveitando os seus diferentes ângulos.

    Anos mais tarde, Terry Jones, um dos actores principais, chegou a revelar que inicialmente a ideia era filmar também noutros castelos escoceses, mas a produção não conseguiu obter a autorização do Departamento do Ambiente do país. Para além de Monty Python, este castelo escocês que data do século XIV “participou” ainda nas filmagens de A Guerra dos Tronos e da série Outlander.

  • Nação valente

    Nação valente

    Título

    City on the Hill (2019)

    Género

    Drama: Crime

    País de origem

    Estados Unidos da América

    Plataforma

    HBO Max

    Criador

    Chuck Maclean

    Autores principais

    Fevin Bacon; Aldis Hedge; Jill Hennessy

    Nota

    7/10

    Recensão

    Originalmente distribuída pela rede de canais televisivos Showtime, em 2019, City on the hill é uma série norte-americana desenvolvida por Chuck Maclean, baseada numa história criada pelo famoso actor Ben Affleck, que, a par de Matt Damon, também a produz. Recordemos que esta dupla ganhou o Óscar Melhor Argumento em 1997 por O bom rebelde (Good will hunting), onde também se destacava o malogrado Robin Williams.

    City on the hill é um drama protagonizado por Kevin Bacon e Aldis Hodge, tendo como cenários os anos 90 na cidade de Boston, com a premissa de uma cooperação em constante conflito entre o agente do FBI Jackie Rohr (Bacon) e o Procurador-Geral Adjunto Decourcy Ward (Hodge). Conta ainda, em destaque, com a participação de Jill Hennessy, no papel de Jenny Rohr, mulher de Jackie.

    Bacon representa um agente veterano em final de carreira, cuja aprendizagem tem tudo de old school. Corrupção, abuso de drogas e maneirismos fazem de Jackie Rohr um polícia tão desprezível quanto necessário para a trama, onde a fronteira entre anti-herói e vilão se esvanece muitas vezes e só de quando em vez a moralidade aparece.

    Já Hedge é o oposto: ainda jovem, é um idealista, incorruptível, mas ambicioso, havendo linhas que não cruza, embora sabendo que , por vezes, há que “fechar os olhos” para apanhar criminosos e trazê-los à justiça.

    City on the hill não é, em todo o caso, uma história de detectives, nem um clichê típico de series de advogados. Junta sim dois aspectos conhecidos para criar um enredo bastante mais original e interessante, onde se explora a pobreza, o crime e até o racismo institucionalizado numa cidade como Boston.

    Não é propriamente surpreendente que a acção seja passada em Boston, porque tanto Maclean como Affleck e Damon foram criados nesta cidade do Estado de Massachussetts – e o Óscar que arrecadaram com O bom rebelde também tem aí o seu cenário.

    Disponível na plataforma HBO Max, City on the hill conta com três temporadas num tempo médio de 55 minutos por cada um dos seus 26 episódios. E se outros motivos não houvesse, aproveitem para assistir à brilhante representação da “decadência” de Kevin Bacon.

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  • Great Yarmouth: Provisional Figures

    Great Yarmouth: Provisional Figures

    Título

    City on the Hill (2019)

    Género

    Drama: Crime

    País de origem

    Estados Unidos da América

    Plataforma

    HBO Max

    Criador

    Chuck Maclean

    Autores principais

    Fevin Bacon; Aldis Hedge; Jill Hennessy

    Nota

    7/10

    Recensão

    Originalmente distribuída pela rede de canais televisivos Showtime, em 2019, City on the hill é uma série norte-americana desenvolvida por Chuck Maclean, baseada numa história criada pelo famoso actor Ben Affleck, que, a par de Matt Damon, também a produz. Recordemos que esta dupla ganhou o Óscar Melhor Argumento em 1997 por O bom rebelde (Good will hunting), onde também se destacava o malogrado Robin Williams.

    City on the hill é um drama protagonizado por Kevin Bacon e Aldis Hodge, tendo como cenários os anos 90 na cidade de Boston, com a premissa de uma cooperação em constante conflito entre o agente do FBI Jackie Rohr (Bacon) e o Procurador-Geral Adjunto Decourcy Ward (Hodge). Conta ainda, em destaque, com a participação de Jill Hennessy, no papel de Jenny Rohr, mulher de Jackie.

    Bacon representa um agente veterano em final de carreira, cuja aprendizagem tem tudo de old school. Corrupção, abuso de drogas e maneirismos fazem de Jackie Rohr um polícia tão desprezível quanto necessário para a trama, onde a fronteira entre anti-herói e vilão se esvanece muitas vezes e só de quando em vez a moralidade aparece.

    Já Hedge é o oposto: ainda jovem, é um idealista, incorruptível, mas ambicioso, havendo linhas que não cruza, embora sabendo que , por vezes, há que “fechar os olhos” para apanhar criminosos e trazê-los à justiça.

    City on the hill não é, em todo o caso, uma história de detectives, nem um clichê típico de series de advogados. Junta sim dois aspectos conhecidos para criar um enredo bastante mais original e interessante, onde se explora a pobreza, o crime e até o racismo institucionalizado numa cidade como Boston.

    Não é propriamente surpreendente que a acção seja passada em Boston, porque tanto Maclean como Affleck e Damon foram criados nesta cidade do Estado de Massachussetts – e o Óscar que arrecadaram com O bom rebelde também tem aí o seu cenário.

    Disponível na plataforma HBO Max, City on the hill conta com três temporadas num tempo médio de 55 minutos por cada um dos seus 26 episódios. E se outros motivos não houvesse, aproveitem para assistir à brilhante representação da “decadência” de Kevin Bacon.

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  • A festa continua, viva, e recomenda-se

    A festa continua, viva, e recomenda-se

    O PÁGINA UM esteve a acompanhar o Fantasporto no renovado Cinema Batalha. Leia as impressões de uma semana de cinema fantástico no Porto sob o olhar de Frederico Duarte Carvalho.


    Vamos ser claros: o Fantasporto não é um festival de cinema de terror, mas sim, como o nome o indica, é de cinema fantástico. Existe desde 1981, graças a dois nomes incontornáveis da cultura portuense: Mário Dorminsky e Beatriz Pacheco Pereira. Há terror nas salas, claro, pois o cinema é feito de emoções e o medo é uma das mais básicas de todas. Também há sangue, e muito. Mas ao ser mostrado numa tela, presumimos que é falso. É toda uma encenação a retratar a vida real, e um realizador não precisa de saber a quantidade exacta de sangue jorrado quando alguém morre na vida real: ele sabe que nunca será o suficiente.

    Aliás, foi essa a pergunta que fiz ao realizador belga Karim Ouelhaj: se não haveria demasiado sangue em algumas das cenas do seu filme sobre os dois filhos de um serial killer que repetiam as façanhas do pai. Ele sorriu e respondeu, com ar de menino inocente, que pretendia apenas fazer uma “expiação” de sangue. No fundo, o que lhe interessava, como artista, era criar imagens. E a conversa seguiu depois para os quadros de Caravaggio e a cena final, onde, num sofá, a irmã segura um bebé recém-nascido enquanto é abraçada pelo irmão, que acabara de matar homens que a tinham violado, incluindo o pai da criança. Enfim, um dia normal no Fantasporto.

    Megalomaniac, do realizador belga Karim Ouelhaj.

    Naquela altura em que conversávamos, estávamos longe de imaginar que o filme Megalomaniac iria vencer os dois prémios mais importantes do festival: Melhor Filme e Melhor Realizador. Mas já se intuía que o de Melhor Actriz poderia ir para a “mãe” da criança, Eline Shumacher, como se veio a confirmar. “Houve muita confiança entre nós para fazer este filme”, contou-me Karim. Não era fácil fazer o papel de empregada de limpeza numa fábrica e violada por colegas e que tem de se manter discreta em casa, enquanto o irmão rapta e mata mulheres. A assistente social que é morta por fazer demasiadas – e inúteis – perguntas que o diga…

    De origem marroquina, Karim é um realizador belga que, ao visitar o Porto durante a 43ª edição do “Fantas”, descobriu uma cidade pela qual se enamorou e onde gostaria de regressar: “Desta vez, para fazer uma história de amor”, como revelou. Ele não quer ficar preso a um género, como o terror que imprimiu em Megalomaniac.

    A história que venceu a edição deste ano do histórico festival portuense é baseada no caso de um serial killer da vida real conhecido como O carniceiro de Mons, a cidade belga onde, entre Janeiro de 1996 e Julho de 1997, apareceram os corpos desmembrados de cinco mulheres. Um crime ainda por resolver e que levou Karim a imaginar: “E se o carniceiro morreu, mas teve filhos que, passados 20 anos, retomaram as mortes”? A ideia deu um filme premiado e, agora, o filme que Karim pretende fazer no Porto, se vier a ser uma história de amor, poderá, quem sabe, dar mais prémios.

    Karim Ouelhaj

    Em competição, embora sem ter vencido nenhum prémio – excepto a honra de ter estado presente na selecção oficial à primeira tentativa –, esteve o filme S.Ó.S, do jovem realizador português (33 anos) Tiago Santos. Nascido em Lisboa, mas a viver em Viseu há quase 30 anos, o realizador é músico profissional e freelancer na arte do vídeo. Fundador de “A Toca do Lobo”, fez, entre outros, a curta-metragem Alpha – história sobre lobisomens, filmada em Lafões (Viseu), “terra de Lobisomens também”, como destacou.

    Para o Fantasporto, juntamente com os co-produtores João Silva – mais ativo atrás das câmaras, com efeitos visuais e concepção de arte e design –, e Ivo Saraiva, mais activo à frente da câmara, Tiago trouxe um filme com um título ambíguo – entre um apelo de emergência e a aventura de um homem sozinho num cenário pós-apocalipse – esta produção tem ainda a particularidade de ter sido feita com “zero” de orçamento: “O material de vídeo era material já usado por mim na minha vida de freelancer na videografia. Foi filmado com uma Sony a6400 e duas lentes, uma 16mm e uma 50mm. A caracterização do Ivo foi feita com roupas dele e outras minhas. Os acessórios foram emprestados por amigos que praticam airsoft. Filmámos literalmente em frente de minha casa, num parque da cidade – felizmente, Viseu tem bastantes. A casa é uma que está para venda, cedida pelo Luís Pinto, personagem principal do ‘Alpha’. Era do seu avô e fica relativamente perto do centro de Viseu”.

    E assim se consegue ter o sonho de fazer cinema em Portugal…

    Ainda mais impressionante, visualmente, foi um dos cenários deste filme de Tiago: o parque aquático do Almargem, um espaço abandonado e que o realizador português caracteriza como “a nossa pequena Chernoby”. Pediu-se aos donos a autorização de filmagem, mas não chegou qualquer resposta.

    Vai daí, não estiveram de modas: “Embora não tenhamos recebido qualquer resposta ao nosso pedido para filmarmos, enviámos um termo de responsabilidade e sentimo-nos encorajados com outros testemunhos nas redes sociais. Decidimos arriscar ao estilho de ‘guerilla filmmaking’ e filmar lá. Achámos um desperdício não filmarmos na nossa pequena ‘Chernobyl’, embora sem autorização oficial. Não consigo dizer grandes detalhes sobre o local, apenas sei que era um grande projeto para a região e que foi abandonado, felizmente para nós”.

    Para provar ainda que é possível fazer produções cinematográficas em Portugal praticamente sem meios técnicos – e isto nem sequer se deveria dizer, pois depois ainda vão dizer que não se precisa gastar dinheiro na cultura –, temos o exemplo do trabalho do português Pedro Gil Vasconcelos que, com um telemóvel filmou a sua experiência num caminho de Santiago e também fez um pequeno filme nas férias na Turquia, tendo vencido já prémios de curta e micro filmes.

    Mas houve um português que ganhou um prémio internacional. Tito Fernandes, natural de Barcelos, a viver entre Hollywood e o Reino Unido, trabalhou nos efeitos especiais de filmes bem conhecidos como Star Wars – The Force Awakens, Interstellar e o The Dark Knight. Só que ele quer ter o nome debaixo do título do filme, em vez de aparecer apenas nos créditos finais e ser reconhecido pelos amigos. Subiu ao palco na noite da entrega dos prémios para receber o prémio internacional de Melhor Curta-Metragem, pelo filme Incubus, onde, durante 16 minutos, uma mulher debate-se contra os seus medos.

    O filme de Tito Fernandes demonstra um realizador já feito, do qual se espera com ansiedade o momento em que será possível aventurar-se em longas-metragens. No seu pequeno filme, o português usa efeitos especiais na construção de um monstro e fica-se a pensar como seria se a técnica evoluísse para uma ficção com assinatura portuguesa. O filme, que é também um alerta contra a violência doméstica – daí o trauma da mulher com os seus medos –, venceu ainda a categoria de melhor filme português.

    O Fantasporto tem de ser visto do princípio ao fim. Desde a cerimónia de abertura até ao encerramento, uma semana depois. Há quem consiga estar todos os dias na sala principal, com três – ou até quatro – sessões diárias. Que o diga, por exemplo, Pedro Afonso, natural dos Açores, técnico de desenho e cinéfilo, que dedicou uma semana de vida para alimentar o seu site Laxante Cultural com os resumos e apreciação de todos os filmes que passaram na sala principal do Fantasporto.

    Pedro Afonso, cinéfilo e autor do site Laxante Cultural.

    Regressar ao cinema Batalha, leva-nos a um dito muito portuense que é o “bai no Batalha”, assim mesmo, à Porto. Mário Dorminsky não gosta da expressão, pois acha-a depreciativa, visto a expressão designar algo que é uma “treta” – a origem é do tempo em que o cinema Batalha, como grande sala, simbolizava todo o cinema da cidade do Porto e, quando alguém refutava uma história que lhe era contada como sendo exagerada ou digna de ficção, o interlocutor rematava com o dito “bai no Batalha”, expressando o seu sentimento de descrédito do relato, sendo mais parecido com a trama de um qualquer filme de ficção projectado na tela do Batalha. Mas para o portuense, para o amante de cinema, é sempre um prazer ir ao Batalha.

    O novo Batalha recuperou – e bem – as pinturas originais de Júlio Pomar, mandadas esconder pela polícia do Estado Novo, contudo tem detalhes que precisam de ser revistos. O bar fecha a horas que não são as mais propícias ao ambiente de um festival. A zona dos corredores não permite um convívio após filmes. E os convidados internacionais, aqueles que irão depois falar bem ou mal da cidade, são confrontados com a sopa dos pobres à saída do edifício. A ficção da tela do “bai do Batalha” ganha outros contornos realistas quando se está na rua em frente. A lembrar-nos que esta é a sociedade que soubemos fazer.

    Uma sociedade onde a guerra na Ucrânia é também uma realidade e que, nesta edição do Fantasporto, esteve presente, ainda que de forma discreta e menos mortal do que aquela que se passa no terreno. Nem todos os que estiveram no Porto entre os dias 25 de Fevereiro e 5 de Março saberão que o consulado da Ucrânia no Porto enviou à direcção do Fantasporto uma queixa formal pela exibição de uma curta-metragem russa.

    Sleeping Beauty, o filme em questão, tem a particularidade de ter sido filmada debaixo de água. Conta a clássica história da bela adormecida através apenas de música clássica e bailado. Não é uma novidade cinematográfica, mas garante sempre um belo efeito, sobretudo neste caso em que a realizadora, Jana Nedzvetskaya, é uma conhecida designer de moda e responsável da marca Miss Lo – da palavra inglesa para amor, “love”. A curta insere-se em anteriores trabalhos levados a cabo pela designer russa, que é conhecida por ter feito apresentações de moda com a mesma técnica de filmagem.

    Acontece que para o consulado ucraniano no Porto, a exibição daquele filme russo suscitou “preocupação”, porque “o Kremlin usa várias armas, incluindo armas que matam as almas e destroem a consciência da gente. O Kremlin é conhecido há muito tempo por usar a cultura e o seu ‘poder’ de influência para manipulação e propaganda política. O Estado agressor faz amplo uso das ferramentas da diplomacia pública e cultural para expandir a sua influência nos círculos académicos e artísticos estrangeiros, bem com no público, em todo o mundo”, afima-se.

    A carta enviada à direcção do Fantasporto ainda acrescenta que “enquanto continua a guerra russa contra a Ucrânia e continua o sofrimento dos civis, enfatizamos a importância de encerrar a cooperação com todas a instituições no campo da cultura, bem como representantes da Rússia no estrangeiro”.

    Sleeping beauty, filme russo exibido, sob protesto do cônsul da Ucrânia.

    Frisa ainda a carta assinada pela cônsul da Ucrânia no Porto, Alina Ponomarenko, que “a cultura russa ou se manifesta apoiando a guerra iniciada pelo regime de Putin ou não considera necessário expressar uma posição clara, silenciando a guerra na Ucrânia”, terminando com o apelo de que “agora é necessário limitar a influência da cultura russa no mundo”, pois esta é “uma cultura que lançou as bases ideológicas desta guerra, uma cultura que pode justificar furtivamente a agressão da Rússia, uma cultura que a Rússia sabe usar para os seus próprios objectivos”.

    Em contraponto, a mesma carta expressava gratidão ao Fantasporto por ter exibido o filme ucraniano Sashenka, de Oleksandr Zhovna. Filmado a preto e branco, contrasta perfeitamente com o filme russo. Enquanto o primeiro é uma fábula colorida e conta uma história de príncipes e princesas, em “Sashenka” temos uma história centrada na União Soviética dos anos 70, sobre um rapaz obrigado a viver como se fosse uma rapariga – porque a irmã morrera antes do seu nascimento. Obra doentia, com uma interpretação igualmente perturbante do actor Dmitry Nizhelsky, deixou marcas, embora não o suficiente para garantir prémios.

    Menos polémico, mas igualmente de Leste, mais concretamente da Polónia, houve a oportunidade de apreciar em estreia europeia o mais recente filme do polaco Krzystof Zanussi, Perfect Number. Uma obra simples e perfeita sobre temas complicados como Deus, sentido da vida, acasos e matemática. Um realizador que caminha anónimo pelas ruas do Porto, passando por pessoas que ignoram que aquele homem, por exemplo, já venceu um Leão de Ouro em Veneza, em 1984 – com o filme “A Year of the Quiet Sun” – ou que foi ele que, em 1981, fez o primeiro documentário sobre a vida do cardeal polaco Karol Wojtyla até se tornar no Papa João Paulo II.

    Outra presença de peso cinematográfico neste festival – houve muitos mais, eu sei, mas que me perdoem os outros, como os participantes filipinos, japoneses, ingleses, húngaros, franceses, norte-americanos, colombianos, etc. –, foi certamente o britânico Anthony Waller. Digo britânico porque os seus pais são naturais da ilha das Brumas, mas ele nasceu em Beirute, fala alemão e russo e vive no Mónaco.

    Anthony Waller foi mais uma daquelas boas razões para o Porto e o seu festival fazer muito sentido. É seu o filme de 1995 Lobisomem americano em Paris, a sequela ao filme de John Landis, Lobisomem americano em Londres. Durante o Fantasporto houve ainda a oportunidade de assistir ao seu filme de 1994, em cópia restaurada, Mute witnessNão falarás. Um thriller com rasgos de emoção digna de Hitchcook, passado em Moscovo, onde uma norte-americana, assistente de produção de uma equipa de filmagens norte-americana, é testemunha de filmagens proibidas da máfia russa – os chamados filmes snuff, onde as mortes são reais. Só que ela tem um problema: é muda.

    Sashenka, filme ucraniano em competição.

    Uma das maiores atracções deste filme de Waller, no entanto, é o facto de ser um dos últimos filmes do grande actor britânico Alec Guiness. E a razão disso daria mais um filme. É um prazer ouvir o realizador contar como conseguiu ter aquela estrela no seu filme. Uma lição.

    Anos antes de fazer o filme, Anthony Waller estava a estudar cinema na Alemanha, graças a uma bolsa que vencera na escola de cinema do Reino Unido, como patrocínio do realizador John Schlesinger. Um dia aparece Alec Guiness a quem Waller diz que gostaria de o ter um dia num filme. O homem da Ponte do rio Kwai, o príncipe Faisal do Lawrence da Arábia e, finalmente, o Obi-Wan Kenobi do Star Wars, disse-lhe que isso até poderia acontecer, mas ele já estava com a agenda preenchida para os próximos dois anos. É então que Waller atira: “E amanhã de manhã, pode ser?”.

    Perante aquele desafio, Alec Guiness disse que sim e, durante a noite, Waller arranjou uma equipa e material. De manhã, gravou três cenas dentro de um carro nos anos 30. Inicialmente, seria um filme com gangsters em Chicago. As cenas são de noite e Alec Guinness faria o papel de um vilão, o The Ripper, onde diria algumas falas sobre “onde estava a rapariga” e a importância de não deixar testemunhas. Aquelas filmagens estiveram guardadas durante quase dez anos, até que, finalmente, foram montadas para uma história em Moscovo. O material original com Alec Guiness permitiu que, com a inversão da imagem em algumas cenas e diálogos com intercomunicadores, disfarçando a voz do actor, servissem para o dobro do tempo na edição final. Lição de cinema.

    Presente na qualidade de júri, Waller recebeu ainda o prémio de carreira, assim como o realizador da Estónia, Elmo Nuganen, cuja trilogia sobre o boticário da Idade Média, Melchior, fizeram as delícias de quem os viu. As obras do realizador da Estónia são marcadas por uma cinematografia de cores vivas e uma encenação cuidada. O próprio realizador é um reputado encenador e, quando subiu ao palco para receber o seu prémio, percebeu-se bem essa formação teatral. Sobretudo quando disse, na sua língua, como foi poder nadar no Atlântico. Mesmo sendo no Porto, em Março.

    Muito mais haveria para dizer, mas este relato das impressões da 43ª edição do Fantasporto não poderia deixar de mencionar o filme L’órafo (O ourives) do realizador italiano Vincenzo Ricchiuto. Ficou de fora da competição por ter chegado já fora do tempo, mas ainda assim decidiu-se, e bem, incluir na programação aquele que é a primeira longa-metragem de um realizador com mãos experientes.

    A história de um casal de reformados que monta uma armadilha a um grupo de três assaltantes, numa história com luz e fotografia cuidada, interpretações de algumas figuras conhecidas da cena artística italiana e com um guião que permite momentos de tensão e humor. Um filme bem conseguido e que mereceria ser visto por mais pessoas.

    O filme da sessão de encerramento é outro momento de destaque. Desta vez, a honra coube à primeira mulher turca a realizar um filme de ficção-científica. Serpii Altin trouxe à Invicta o filme Once upon a time in the future: 2121, uma versão turca de um 1984. Vale a pena pela partilha cultural – pois muito do cinema que passa no Fantasporto tem esse condão universalista –, com uma cinematografia a fazer lembrar a simetria de um Wes Anderson, referência assumida da realizadora. Mas o mais perturbador é a ideia da história, onde o tema são os mesmos de todo o mundo, onde não há a esperança um futuro radioso, mas sobra-nos aquele onde a sociedade está cada vez mais controlada.

    As pessoas vivem em habitações subterrâneas, submetidas à Lei da Escassez, onde o sistema controla a vida e a comida. O aspecto mais perturbador é que a sociedade culpa os mais idosos das guerras anteriores que destruíram o mundo e, as “novas gerações” – assim mesmo tratadas – são as mais protegidas. Aliás, quando nasce uma criança, a pessoa mais idosa da família é eliminada da sociedade.

    Uma teoria de substituição avançada. Para pensarmos na hora da despedida e enquanto não chega a edição de 2024, marcada no mesmo Batalha, para os dias 1 a 10 de Março. Está já na agenda!


    Os premiados de 2023 do Fantasporto

    Cinema Fantástico

    Grande Prémio – Megalomaniac, de Karim Ouelhaj, com produção de Florence Sâdi

    Melhor Realizador – Karim Ouelhaj (Megalomaniac)

    Melhor Actor – Tom Huges (Shephard)

    Melhor Actriz – Eline Shumacher (Megalomaniac)

    Prémio Especial do Júri – Demigod: the legend begins, de Chris Huang Wen-Chang

    Melhor Argumento – Convenience story, de Satoshi Miki

    Menção Especial – Stone turtle, de Woo Ming Jin

    Semana dos Realizadores

    Melhor Filme – Narcosis, de Martijn de Jong

    Prémio Especial – Kaymak, de Milcho Manchevski

    Melhor Realizador – Hans Herbots (Ritual)

    Melhor Argumento – The game, de Péter Fazakas

    Melhor Actor – Zsolt Nagy (The game)

    Melhor Actriz – Thekla Reuten (Narcosis)

    Menção Especial do Júri – The grandson, de Kristóf Deák

    Orient Express

    Melhor Filme – Kargo, de T. M. Malones

    Menção Especial – Stone turtle, de Woo Ming Jin

    Curtas Metragens

    Melhor Curta – Incubus, de Tito Fernandes

    Filme Português

    Melhor Filme – Incubus, de Tito Fernandes

    Melhor Filme Escola – Quando a terra sangra, de João Morgado

    Menção Especial – The space in between, de Joana Dantas

    Prémios não oficiais

    Prémio da Crítica – Immersion, de Takashi Shimizu

    Prémio do Público – Life of Mariko in Kabukicho, de Eiji Uchida e Shinzô Katayama

    Prémios de Carreira

    Ferdinand Lapuz

    Krzystof Zanussi

    Elmo Nuganen

    Anthony Waller

  • Uma perspectiva cultural a partir do Chiveve

    Uma perspectiva cultural a partir do Chiveve


    [notas “quase arquivadas”, que publicamos em sentida homenagem ao povo da Beira pela catástrofe que o atingiu, quinze anos depois de estas terem sido redigidas]

    Este texto não resulta de uma investigação. Quando muito, decorre de algumas reflexões praticadas em função de uma vontade de efectuar uma pesquisa. O seu objecto central é o cinema. Não os filmes, não os textos singulares, ou qualquer corpus singular que os inclua.

    Pretende, sobretudo traçar as linhas muitos gerais relativas à possibilidade de reflectir sobre o cinema enquanto fenómeno cultural. Não apenas sobre a existência do cinema enquanto conjunto de películas, textos e de discursos recebidos pelos espectadores, mas também sobre o cinema como sistema de produção e circuito de distribuição.

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    Sentimos a necessidade de determinar, desde já, dois elementos constituintes do objecto cultural que temos em vista: o objecto discursivo que entendemos por cinema, encarando o fenómeno na sua máxima generalidade; e o tempo/espaço como unidade delimitante  em que decorre ou se manifesta esse fenómeno. Parece-nos que o segundo elemento é o que deve ser esclarecido em primeiro, no discorrer das nossas perplexidade, dado que este se nos afigura como termo motivador principal destas notas que têm em vista estruturar uma base para futuras pesquisas.

     Assim, tal como fica indicado, logo à partida, pelo título desta nossa exposição, o local onde centramos a nossa atenção é uma pequena parcela do território Moçambicano, a cidade da Beira.

    Curiosamente, do ponto de vista cultural que aqui nos importa, esta é uma das poucas localidades importantes do país que não mudou de nome depois da independência. No entanto, é importante precisar, para tornar mais clara a nossa exposição, que o período histórico a ter em conta como momento cultural, é da fase final do domínio colonial português. Um momento de crise ideológico-político-militar que é importante ter em conta como unidade específica dentro da formação discursiva que a ocupação colonial gerou.

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    Quanto ao cinema, sem nunca perdermos de vista o espaço africano a que fazemos referência, tem tantas acepções, hoje em dia, que se torna necessário esclarecer, desde o início da nossa reflexão, qual é a acepção em que o tomamos quando falamos dele (cf. Fárid Boughedir, 1974: 123, in Présence Africaine, nº 90).

    De facto, o cinema tem sido qualificado como arte, indústria, comércio, meio de expressão, meio de informação, meio de educação. De um modo geral, ele é tudo isso, mas, para um cineasta, crítico e comentador com foros de teorizador como Boughedir, de origem tunisina, o cinema deve ser encarado, sobretudo, pelo seu “aspecto educativo, quer dizer, tendo em conta o seu efeito sobre o público” o que o leva a considerar que há dois géneros de cinema: “o que faz evoluir o espectador no sentido do progresso e o que o faz estagnar cobrindo-o de mentiras” (p.123).

    Do nosso ponto de vista, o que importa sublinhar, tendo em conta as nossas próprias indagações, é a sua dimensão de arte. Não colocamos a óptica, evidentemente, no lado selectivo e até elitista que tal conceito arrasta, mas enfatizamos, antes, o lado de linguagem elaborada, de linguagem de modelização secundária (segundo o conceito de Lotman) que o cinema tem primordialmente.

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    É num momento posterior, decorrente do reconhecimento que cinema funciona, sobretudo, como construção representativa altamente elaborada, que nos parece importante colocar a tónica da sua relação com os públicos que atinge. É claro que, colocando ênfase nessa dialéctica entre a representação ficcional (mais ou menos fantasmática, ideologicamente alienante) e a  função educativa, abrimos o debate fundamental que se trava entre o discurso persuasivo das classes e dos grupos dominantes e réplica mais ou menos activa e consciente dos destinatários.

    Nem sempre, contudo, o encontro ou desencontro de opiniões ou de imaginários é fácil de delinear. Como sustentam Ella Shoat e Robert Stam “o cinema” sobretudo o de Hollywood, combinava a narrativa e o espectáculo para contar a história do colonialismo da perspectiva do colonizador” (2002).

    Por outro lado, um dos horizontes mais antigos e constantes que se manifesta no discurso de resistência ao colonialismo, o que se pretende reforçar, do ponto de vista do colonizado, é a representação da sua autenticidade, dos seus valores, dos princípios que o fortalecem na sua humanidade e que o tornam um sujeito integral no interior da sua cultura. Admitindo que estes são os pólos da questão, interessa sublinhar, desde já, que o seu delineamento não fácil. E talvez não seja possível. De qualquer modo, a nossa intenção quanto a essa matéria, aqui, é ter a noção desses traços discretos da contradição ou do confronto. Apesar disso, não tentaremos colocá-los, pelo menos no seguimento desse confronto, na nossa argumentação.

    O fio da nossa reflexão desenvolve-se num terreno mais indefinido. Não porque preconizemos contemporizações, mas porque nos importa interrogar alguns dos matizes segundo os quais o confronto se dá ou o debate emerge na formação discursiva colonial, no momento histórico discreto, perceptível, em que a dominação política colonial enfraquece. É um momento curioso. Não damos por ele no momento.

    Golden Gate Bridge

    Ninguém podia assegurar, na véspera do 25 de Abril, que este ia acontecer. Por outro lado, as dinâmicas político militares e os discursos ideológicos e culturais que os acompanhavam, não se encaminhavam para esse momento. As frentes de batalha estavam desenhadas quando o 25 de Abril, no interior das hostes ocupantes, revelou quão profunda era a fractura nele inserida.

    No caso específico de Moçambique, e, muito em especial, no espaço cultural da cidade da Beira, registam-se vários fenómenos que nos permitem interrogar a variação cultural que o cinema introduziu na dinâmica ideológica. À superfície, a cidade da Beira é constituída por uma classe dominante liberal. Mesmo nos momentos mais árduos da defesa dos bastiões coloniais, os grupos sociais que constituíam a classe média alta da cidade revelavam-se bastante liberais.

    Não se defendia abertamente o regime, o discurso anti-salazarista era bem tolerado e as instituições culturais permitiam a emergência pouco dramática dos discursos da oposição. É claro que, por coerência interna do apoio à defesa das “províncias ultramarinas”, não eram permitidas simpatias de qualquer espécie pelos grupos “terroristas”, ou pelos “agentes da desordem”. Não era pensável defender abertamente a Frelimo, por exemplo. Mas por virtude da sua própria hipocrisia, o discurso oficial dominante não podia impedir, por exemplo, que fosse defendido o anti-racismo e que o apartheid da África do Sul fosse condenado.

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    Numa situação oficial, na presença de uma autoridade em funções, a África do Sul não poderia ser condenada. Contudo, em situações menos oficiais e mesmo em intervenções oficiosas, em crónicas jornalísticas, por exemplo, esse ataque, desde que não fosse hiperbólico ou disparatado, era possível.

    Por outro lado, a África do Sul, com os seus princípios anglo-saxónicos, com muito prestígio da dimensão liberal “anglo”, sobre o puritanismo mais estreito dos Boers, era apologista de uma fruição cultural sem barreiras. Assim, por exemplo, para regressarmos ao objecto da nossa abordagem, o cinema que passava pelas salas das grandes capitais da África do Sul, os filmes que circulavam nos seus cine-clubes, eram obras que, no entender da vigilância censória, não podiam entrar em Portugal. Só não podiam, na nação austral, era ser francamente anti-apartheid.

    Ora, um fenómeno curioso que se dava em Moçambique era a circunstância de os filmes serem importados directamente da África do Sul, aproveitando o circuito de distribuição que a alimentava, sem passarem pelo mecanismo censório que imperava em Portugal. É verdade que existia uma censura em Moçambique, mas ela funcionava de modo local.

    Os filmes eram censurados por habitantes de Lourenço Marques e da Beira, sobretudo, que eram cidadãos do mesmo nível e estrato social a que pertenciam os espectadores. Se tivermos em consideração que o público dominante dos cinemas é, na altura, uma classe que se pode considerar de elite, constituída, sobretudo, por cidadãos “brancos” ou por alguns raros elementos de origem africana, ou negra, ou mesmo miscigenada, pertencentes a uma burguesia de quadros qualificados, percebemos que os valores em causa, quando se tratava de cinema, eram bem diferentes dos que vigoravam em Portugal.

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    Esquecemos, neste olhar em que apresentamos quase  um idílico falanstério tropical − constituído pelas classes médias cosmopolitas, dependentes do colonialismo, mas sem o apoiarem directamente, ou, pelo menos, abertamente −, as classes populares, as de pé descalço, as dos maltrapilhos, operários, tarefeiros, serviçais e desempregados que, por não corresponderem aos princípios do “direito de admissão”, nem sequer se aproximavam dos cinemas.

    Não falamos do cinema suburbano e itinerante que os servia, porque mal o conhecemos: apenas a referência de alguns amigos que o frequentaram, brancos como o poeta Rui Nogar, ou “pessoas de cor” como José Craveirinha, nos permite fazer ideia dele. Por caricatura, a partir da factualidade, e para servir de exemplo, podemos dizer que entre os filmes (da verdadeira e genuína série B, então) mais projectados entre os “autóctones” constavam, como clássicos,  os que tinham como herói Tarzan.

    Estamos a falar de um mundo ou de um país onde a representação da vida real da maioria da população não se praticava. Nem mesmo em documentários, como posteriormente foram feitos ainda que de modo insuficiente, pelo governo que liderou a independência.

    Sambizanga, realizado em 1972 pela francesa Sarah Maldoror.

    Um filme, como o de Sarah Maldoror, Sambizanga (1972), sobre a luta de libertação, era impensável então nos cinemas africanos na Área de influência em que Moçambique colonial se inseria. Mesmo mais tarde, essa obra importantíssima, que tão carinhosamente foi promovida pela Frelimo, não teve a importância cultural generalizada que merecia.

    Mesmo para os cidadãos das classes menos desfavorecidas, nas quais nos podemos incluir, como cidadão residente na Beira, na época, jornalista a tempo inteiro e crítico de cinema, dentro das atribuições profissionais, Moçambique, no cinema ou na imagem “cinematográfica” não existia quase. Algumas reportagens de acolhimentos a “autoridades da Metrópole”, eram as que mais fielmente apresentavam a população. Sempre festiva e de aspecto “despreocupado”, nunca faminta ou carente.

    A ficção cinematográfica, é verdade, glorificou Moçambique. Sem um único exterior local, a película Chaimite, de Brum do Canto (1952), constrói aquele que podemos considerar o maior filme épico português. Moçambique está lá. Talvez também lá esteja uma parte da alma Moçambicana. Gungunhana é maltratado, mas, pelo seu peso histórico especifico, ainda hoje pode justificar uma recuperação crítica do filme. Mas esta não se pratica. É uma presença fantasmada. Como o Moçambique representado é apenas uma alusão de localização.

    Dos moçambicanos contra os quais se bateu Mouzinho de Albuquerque apenas temos as sombras. Sombras de guerreiros caricaturadas… de algum modo, curiosamente, ensombrando as glórias portuguesas. Podemos, ainda hoje, lamentar que esse filão épico não tenha sido explorado.

    Parece que  faltou aos defensores da pátria portuguesa, nos seus melhores momentos artísticos, todo o ambiente cultural, a profunda vivência de uma má consciência com a que se desenvolveu num John Ford, por exemplo. Manoel de Oliveira vem, em visões africanas obtidas em exteriores do Senegal, reevocar, por vezes de modo muito produtivo, essa dimensão da épica. Mas o que ele nos apresenta é uma “África” colonial portuguesa, não este território ou aquele. Ele fala mais da essência da guerra do que do fenómeno conflitual e dos labirintos da sua continuidade. E filma África no Senegal…

    Neste ponto, tocamos no centro nevrálgico da questão que se coloca a um cinema moçambicano, o das suas faltas estruturais. Do colonialismo herda-se pouco. Herdam-se perdas, sobretudo. As heranças são mais as dívidas do que as estruturas. E quanto mais pobre a Metrópole, menos são as possibilidades do futuro… Talvez seja isso que nos explica a razão pela qual um cineasta como Rui Guerra, que constou desde o princípio entre os maiores do Cinema Novo Brasileiro, se “afastou” de Moçambique.

    two reels

    Não pretendemos analisar o fenómeno mas apenas registá-lo. Não foi, de certo, pela falta de simpatia do cineasta pela revolução moçambicana, nem pelo desinteresse dos dirigentes moçambicanos, que a aproximação não se deu. Nem pela falta de interesse de um público de língua portuguesa interessado no cinema… Mal ou bem, a um Sembéne Ousmane foi possível migrar da literatura para o cinema, no Senegal… porque herdou uma estrutura diferente: a não menos colonial, mas mais poderosa máquina de produção francesa.

    Notemos, no entanto, que a actividade cultural em torno do cinema não era nada conformista, no tempo da ocupação colonial, mesmo no auge da guerra ou ainda quando esta já era desfavorável ao regime português. Quatro cinemas, em várias sessões diárias, chegam a alimentar os lazeres ou os interesses culturais das classes sociais menos desfavorecidas, vivendo das benesses do seu estatuto social.

    Nós próprios praticámos uma crítica de cinema constante no jornal Notícias da Beira. O director do jornal (F. Gomes) era sócio maioritário da empresa proprietária dos cinemas, e seu administrador…

    Tivemos confrontos e desentendimentos, tentou ameaças, mas nunca me demitiu da função. Rui Nogueira escrevia crónicas de Cinema que publicava na página cultural que era dirigida por mim… e não defendia os filmes que mais interessavam comercialmente. A sua actividade nunca cessou, até ao momento em que foi possível manter colaboradores (não o era depois da Independência).

    Fachada do Cinema “3 de Fevereiro”, na cidade moçambicana de Beira, entretanto desactivado.

    A crítica de cinema já era uma tradição no jornal, iniciada, com total independência e isenção por Rui Coelho de Campos, que deixou de a fazer por ter regressado definitivamente a Portugal, quando comecei a fazê-la. Manteve-se, até depois da independência, quando a sobrevivência do Jornal já não era possível nos mesmos moldes. Era quase uma instituição cultural.

    Também o cine-clube, do qual fiz parte, com sede no Auditório à Beira do Chiveve, promoveu as sessões de cinema mais ousadas que era pensável ousar em território português: Ciclos de Eisenstein, por exemplo!…

    Promoveu festivais de cinema em que o inconformismo político, cultural e ideológico era um dos grandes valores. Vasco Branco, por exemplo, concorreu mais do que um ano a esse festival. José Cardoso, durante muitos anos dirigente do INC de Moçambique, depois da independência, cineasta amador anteriormente, à data em que elaborámos estas notas preparava-se para publicar as suas memórias cinéfilas. Aguardamos a possibilidade de as conhecer. São três volumes com profusas informações sobre o cinema que existiu… não existiu… devia ter existido… em Moçambique.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora