Etiqueta: Ciência

  • Instituto Superior Técnico com processo no Tribunal Administrativo por recusar mostrar relatório alarmista sobre covid-19

    Instituto Superior Técnico com processo no Tribunal Administrativo por recusar mostrar relatório alarmista sobre covid-19

    É a 12ª recusa que o PÁGINA UM recebe de entidades públicas ou equiparadas quando solicita documentos administrativos sensíveis; e é o 12º processo de intimação que o PÁGINA UM faz entrar no Tribunal Administrativo de Lisboa. Desta vez, uma entidade universitária e científica decidiu que um (suposto) relatório alarmista fosse divulgado pela Lusa sem que ninguém mais o pudesse ver nem analisar. Além do processo por falta de transparência, este caso revela sobretudo o estado da Ciência nos tempos modernos.


    O PÁGINA UM avançou esta quinta-feira com um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa para obrigar o presidente do Instituto Superior Técnico (IST), Rogério Colaço, a dar acesso ao relatório revelado pela Lusa em 28 de Julho passado sobre o alegado forte impacte negativo dos Santos Populares na transmissão da covid-19, bem como a todos os dados numéricos e informação metodológica que levaram à sua elaboração.

    Mas não só. O PÁGINA UM também pede o acesso a documentos e informação para escalpelizar a relação existente entre o IST e a Ordem dos Médicos, por via de um protocolo anunciado em Julho de 2021.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes na sede do Ordem dos Médicos, em Julho do ano passado, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico recusa divulgar os estudos e os dados.

    Em causa está um suposto relatório – a que apenas a Lusa teve acesso, apesar do seu take ter sido difundido pela generalidade da comunicação social – com estimativas da transmissão causada pelo aglomerado de pessoas durante o mês de Junho nos Santos Populares (sobretudo Lisboa e Porto) e em festivais como o Rock in Rio.

    Recorde-se que as conclusões do alegado relatório do IST apontaram, segundo a Lusa – que nunca quis apresentar provas ao PÁGINA UM da existência do documento científico – que “houve cerca de 242 mil casos de covid-19 registados oficialmente devido às festividades dos santos populares e festivais como o Rock in Rio”. A notícia da Lusa salientava ainda, citando o alegado relatório, que “se juntarmos os casos não reportados oficialmente atinge-se o número de 340 mil”. E apontava ainda, expressamente, para as consequências: 790 óbitos devido ao levantamento das restrições e 330 óbitos associados apenas às festas populares de Junho.

    Mas, apesar da gravidade das conclusões do alegado relatório, o documento nunca foi tornado público e não foram divulgadas as bases em que os investigadores se fundamentaram para elaborar as estimativas noticiadas.

    Resposta de recusa do presidente do Instituto Superior Técnico ao PÁGINA UM, via e-mail, no passado dia 30 de Julho.

    As conclusões alarmistas do alegado estudo do IST não encontram respaldo nas evidências observadas durante o mês de Junho. Com efeito, enquanto decorreram as festas de Santo António, São João, Rock in Rio e outros festivais ao de Junho, os casos positivos de covid-19 foram sempre descendo.

    Por exemplo, para todo o país, no dia 1 de Junho a média móvel de sete dias estava nos 24.602 casos positivos para todo o país, no dia 8 tinha descido para 20.575 casos, no dia 15 já estava nos 15.368 casos positivos, no dia 22 baixou para os 12.939 casos positivos e no final do mês estava mesmo abaixo dos 10 mil casos.

    Durante o mês de Junho, os casos positivos de covid-19 aceleraram sempre mas na direcção da redução. Em Julho sucedeu o mesmo. De acordo com os dados do Worldometer para Portugal, no final de Julho contabilizavam-se 3.258 casos positivos (média móvel de sete dias). Em Agosto, os casos mantiveram-se sempre estáveis em redor dos 2.500 casos positivos.

    Esta acção em Tribunal surge depois de o PÁGINA UM ter solicitado o acesso ao relatório, tanto junto do IST, através do seu presidente e da assessoria de imprensa, como a um dos autores do dito relatório. O acesso ao documento e aos dados que supostamente serviram de base ao suposto relatório, foi sempre recusado. No dia 30 de Julho, um sábado, o próprio presidente do IST, Rogério Colaço,enviou mesmo, através do seu Galaxy, um e-mail reforçando a recusa: “O pedido formal ao presidente do IST está respondido e a resposta é negativa.”

    Festas populares em Lisboa este ano tiveram grande fluxo, sem máscaras, mas os casos regrediram face a Maio.

    Saliente-se que em outros relatórios, as análises do IST são sempre assumidas pelos investigadores Henrique Oliveira, Pedro Amaral, José Rui Figueira e Ana Serro, mas sempre sob supervisão do presidente daquela instituição, Rogério Colaço, engenheiro de materiais e professor catedrático na área da nanotecnologia.

    Na sua ação junto do Tribunal Administrativo – o 12º processo desde Abril, sempre por recusa de acesso a documentos administrativos – solicita-se que o IST seja mesmo obrigado a disponibilizar “o acesso, para eventual obtenção de cópia, de todo e qualquer documento considerado como administrativo na posse do Instituto Superior Técnico – por publicamente ter sido elaborado e/ou utilizado por investigadores desta instituição universitária – relacionados com a avaliação epidemiológica da covid-19 (ou do seu agente infeccioso, o SARS-CoV-2)”.

    Nesse lote, pede ao Tribunal o PÁGINA UM, deve constar, obrigatoriamente, os dois relatórios sobre estimativas de transmissão da covid-19 durante as festas populares e festivais de música, cujas conclusões foram divulgadas por órgãos de comunicação social em 8 de Junho e em 28 de Julho, bem como os ficheiros informáticos contendo os dados usados para a sua elaboração”, bem como documentos científicos sobre a metodologia usada.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico, vai ter de justificar ao Tribunal Administrativo as razões para esconder relatórios e dados científicos, ou então terá de optar por os disponibilizar ao PÁGINA UM.

    Solicita-se ainda a “cópia do protocolo ou outro qualquer documento assinado entre o Instituto Superior Técnico e a Ordem dos Médicos para a realização das análises / estudos iniciados em 14 de Julho de 2021, bem como documentos que atestem a eventual (ou não) contratualização com efeitos patrimoniais dos envolvidos, quer seja pagamento ao Instituto Superior Técnico quer aos seus investigadores”.

    O processo de intimação para a prestação de informações, consulta de processos e passagem de certidões – já identificado com o número 2683/22.1BELSB – foi intentado pelo PÁGINA UM no último dia do prazo, porque se aguardou, até ao limite, uma resposta voluntária do IST, como instituição científica (ainda por cima pública) com especiais responsabilidade na transparência e debate científico.

    Como nunca houve manifestação de abertura, o Tribunal acabou por ser o derradeiro recurso. O IST terá agora 10 dias úteis para obrigatoriamente justificar ao Tribunal Administrativo a causa da recusa, havendo depois uma decisão teoricamente urgente.


    N.D. – Os custos e taxas dos processos desencadeados pelo PÁGINA UM no Tribunal Administrativo são exclusivamente suportados pelo FUNDO JURÍDICO financiado pelos seus leitores. Rui Amores é o advogado do PÁGINA UM neste e nos outros processos administrativos em curso. Até ao momento, estão em curso 12 processos administrativos, além de uma providência cautelar. Dois dos processos foram ganhos pelo PÁGINA UM em primeira instância, mas as duas entidades (Ordem dos Médicos e Conselho Superior da Magistratura) recorreram.

  • Nove investigadores ‘arrasam’ de cima a baixo gestão política e mediática da pandemia em revista científica de renome

    Nove investigadores ‘arrasam’ de cima a baixo gestão política e mediática da pandemia em revista científica de renome

    Com a espuma dos dias a desaparecer em redor da pandemia, começam a surgir investigadores com coragem para análises menos emotivas e mais científicas. Anteontem, na prestigiada BMJ Global Health foi publicado um extenso artigo de nove investigadores de diversas universidades dos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido onde não se poupam críticas aos abusos cometidos na gestão da pandemia que colidiram “com os direitos humanos e promoveram a polarização social, afectando a saúde e o bem-estar”.


    Nove investigadores norte-americanos, canadianos e britânicos acusam as políticas de vacinação contra a covid-19, seguidas pelos diversos países democráticos, de terem tido “efeitos prejudiciais na confiança do público, na confiança nas vacinas, na polarização política, nos direitos humanos, nas desigualdades e no bem-estar social”.

    Num extenso artigo de 14 páginas publicado na passada quinta-feira na prestigiada revista científica BMJ Global Health, os nove investigadores – que trabalham, entre outros centros, na Universidade de Oxford, Johns Hopkins University (Maryland), London School of Hygiene & Tropical Medicine, Universidade de Washington e Universidade de Toronto – questionam “a eficácia e as consequências da política de vacinação coerciva na resposta à pandemia”, recomendando aos decisores políticos que “retomem abordagens de saúde pública não discriminatórias e baseadas na confiança.”

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    Intitulado “The unintended consequences of COVID- 19 vaccine policy: why mandates, passports and restrictions may cause more harm than good”, o artigo aborda, em detalhe, como foi implementada a estratégia de vacinação maciça e as suas implicações em termos de psicologia comportamental (reactância, dissonância cognitiva, estigma e desconfiança), política e direito (efeitos nas liberdades civis, polarização e governança global), socio-economia (efeitos na desigualdade, capacidade do sistema de saúde e bem-estar social) e de integridade da Ciência e da Saúde pública (a erosão da ética da saúde pública e da supervisão regulatória). E também a forma ziguezagueante como políticos e media se comportaram.

    Reconhecendo que as vacinas tiveram impacto significativo na redução da taxa de mortalidade relacionada com a covid-19, os investigadores criticam sobretudo os mecanismos de coerção e estigmatização implementados nos últimos dois anos, que “provocaram considerável resistência social e política”, o que, segundo eles, tiveram “consequências prejudiciais não intencionais”, as quais “podem não ser éticas, cientificamente justificadas e eficazes.”

    Primeira página do artigo.

    Por exemplo, no caso da adopção dos certificados digitais, como passes sanitários para o acesso a determinados locais, os investigadores salientam que acabou por “colidir com os direitos humanos e promover a polarização social afectando a saúde e o bem-estar”, tendo sido usado com um fito “inerentemente punitivo, discriminatório e coercitivo.” Defendem, por isso, ser da máxima importância uma reavaliação “à luz das consequências negativas.”

    No artigo relembra-se também a manipulação da opinião pública em redor da eficácia das vacinas ao longo do ano passado para incentivar a adesão da população.

    “A lógica comunicada publicamente para a implementação de tais políticas mudou ao longo do tempo”, salientam os autores. Numa primeira fase dizia-se que a vacinação visava a “proteção dos mais vulneráveis”. Em seguida serviria para se alcançar a “imunidade de rebanho’, acabar com a pandemia’ e ‘voltar ao normal’, assim que o suprimento de vacinas fosse suficiente”. Porém,“no final do Verão de 2021” já passou a defender-se “a recomendação universal de vacinação para reduzir a pressão hospitalar e nas unidades de cuidados intensivos na Europa e América do Norte”.

    Sobre as políticas gerais da vacinação obrigatória, os autores admitem que têm sido cada vez mais desafiadas e questionadas, devido à diminuição significativa da eficácia contra a infecção, apontando também que estudos realizados em Israel e no Reino Unido mostram que a “vacinação forçada aumentou os níveis de contestação, especialmente naqueles que já desconfiavam das autoridades”, agudizando a polarização social.

    Neste aspecto, os media mainstream são particularmente criticados pelos investigadores, por terem usado “narrativas simplistas sobre percepções públicas complexas”, sobretudo quando sistematicamente optaram por catalogar as posições críticas como uma “consequência de forças ‘anti-ciência’ e de ‘extrema-direita”.

    Nessa linha, a pressão social sobre os não-vacinados chegou a níveis de perseguição. Por exemplo, ainda que a imunidade natural – adquirida por uma infeção anterior por SARS-CoV-2, tenha fornecido uma protecção significativa, mesmo superior à da imunidade vacinal, “muitos dos que foram infetados acabaram por ser suspensos dos seus empregos ou até mesmo despedidos”, no caso de não se terem vacinado, denunciam os investigadores. “Estas pessoas, ficaram impedidas de viajar ou de participar em eventos públicos”, acrescentam.

    Não ser vacinado passou a ser alvo de uma discriminação automática, incentivada por políticos e mesmo pelos media. Discriminar ou rotular não-vacinados “tornou-se socialmente aceitável entre os grupos de pró-vacinas, media e o público em geral, que viram a vacinação completa como uma obrigação moral e parte do contrato social”, referem os investigadores, mas apontam as consequências nefastas: “O efeito, no entanto, tem sido o de polarizar a sociedade – física e psicologicamente (…) A política de vacinas parece ter impulsionado as atitudes sociais em direção a uma dinâmica nós/eles em vez de adaptativa com estratégias para diferentes comunidades e grupos de risco.”

    Para exemplificar, as atitudes hostis de responsáveis políticos, os investigadores elencam frases ameaçadoras e estigmatizantes de diversos políticos, como Emmanuel Macron, Justin Trudeau, Joe Biden, Jacinda Ardern e Tony Blair.

    A declaração do presidente francês, feita no início de Janeiro deste ano, é bastante reveladora da procura de estigmatização: “É uma pequena minoria que está a resistir. Como reduzir essa minoria? Irritando-os ainda mais… Quando a minha liberdade ameaça a liberdade dos outros, eu passo a ser um irresponsável e alguém irresponsável não é um cidadão”.

    Também a de Tony Blair é destacada: “Precisamos chegar aos não-vacinados. Francamente, se você ainda não está vacinado, se é elegível e não tem razões de saúde para não ser vacinado, você não é apenas um irresponsável, mas um idiota.” E também são salientadas duas intervenções do presidente norte-americano, uma das quais em Setembro do ano passado em que responsabilizava os não-vacinados pela manutenção da pandemia. Joe Biden garantia que se estava perante uma “pandemia de não-vacinados”. Como agora se sabe, as vacinas concedem uma protecção extremamente curta ou mesmo irrelevante na redução da transmissão.

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    Segundo os investigadores, “os governos abusaram [também] do poder, invocando um constante estado de emergência, evitando [assim] a consulta pública”, além de terem demonstrado “que confiavam excessivamente nos dados fornecidos pelas farmacêuticas”.

    Considerando também que “a confiança nas autoridades de saúde se perde quando estas não são transparentes” – até porque não existiu transparência sobre o impacto negativo das vacinas, o que “exacerbou as ansiedades sociais, frustrações, raiva e incerteza”, os investigadores concluem que “as consequências criadas por estas circunstâncias, provocam uma tensão entre os princípios constitucionais e bioéticos, especialmente em democracias liberais”. Razão que os leva depois a relembrar que “as estruturas éticas foram projetadas para assegurar que os direitos e liberdades sejam respeitados mesmo durante a emergência de saúde pública”.

  • O milagre da terra que a pandemia sujou

    O milagre da terra que a pandemia sujou

    Descoberta a partir de uma amostra de solo, a ivermectina já valeu um Prémio Nobel e o seu reconhecimento como “fármaco milagroso”. A pandemia, porém, manchou-lhe os créditos. Independentemente da sua eficácia no combate à covid-19 – que move paixões diametralmente opostas –, ninguém de bem poderá colocar em causa um bem da Natureza que deu (melhor) vida a milhões de pessoas.


    Até ao início de 2020, era um dos fármacos mundiais mais amado pela Organização Mundial de Saúde, elogiada por médicos e endeusada por investigadores. Os louvores vinham de todos os lados, sobretudo da comunidade de farmacologia, e logo no título de artigos científicos, que a consideravam uma wonder drug, um fármaco maravilhoso, ao lado da penicilina e da aspirina. Entre 1990 e 2019, o Google Scholar contabiliza cerca de 16.400 artigos sobre a ivermectina. Nenhum a maldiz. Pudera: o seu descobridor, o japonês Satoshi Omura e o irlandês William Campbell – que a “purificou” – foram galardoados com o Prémio Nobel da Medicina em 2015, pelas maravilhas produzidas por este “milagre da terra”.

    Hoje, no decurso de dois anos de pandemia, ivermectina é quase uma palavra maldita. Quem a invoca para o combate contra a covid-19, facilmente recebe epítetos como “bolsonarista”, “negacionista” ou “defensor do uso de medicamentos veterinários em humanos”.

    A oncocercose, ou cegueira dos rios, é uma das mais incapacitantes doenças na África e América Letina, agora com cura graças à ivermectina.

    Independentemente da sua eficácia ou não contra o SARS-CoV-2, invectivar – ou seja, injuriar – a ivermectina é uma das acções mais injustas para um medicamento que já salvou milhões e milhões de pessoas, sobretudo em países subdesenvolvidos, de doenças mortais ou incapacitantes como a oncocercose (cegueira dos rios), a estrongiloidíase, a filariose linfática (também conhecida como elefantíase) e outras doenças parasitárias.

    Em 2016, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considerava a ivermectina como um fármaco com “capacidade para controlar a transmissão da malária”, uma vez que mata os mosquitos Anopheles que a ingerirem se estiver no sangue humano. E, na verdade, não houve quase nenhuma doença em que não se tenha experimentado os seus efeitos.

    Além do seu uso veterinário, a ivermectina tem sido utilizada ou testada, com maior ou menor sucesso, no tratamento de uma panóplia de doenças humanas, desde miíase, esquistossomose e triquinose até leishmaniose, tripanossomíase africana (também chamada doença do sono) e americana (doença das chagas), passando ainda por certos tipos de asma, epilepsia (por exemplo, síndrome de Nodding) e afecções neurológicas. A sua acção antibacteriana também tem sido estudada – por exemplo, no controlo da tuberculose e da úlcera de Buruli –, bem como os seus efeitos antivirais.

    A sua acção contra o SARS-CoV-2 foi apenas mais uma tentativa de confirmar a sua fama de “fármaco maravilhoso”. Porém, aquilo que, por agora, mais conseguiu foi ver “conspurcados” os seus créditos, sobretudo por quem, vivendo as suas vidas sossegadas na cómoda Europa, nunca conheceu os seus milagres por terras de pobreza e miséria.

    A “descoberta” da ivermectina foi sobretudo um achado, fruto do acaso. Em 1973, Satoshi Omura, um bioquímico do Kitasato Institute de Tóquio, decidiu recolher um pouco de solo junto a um campo de golfe de Kawana, na região de Shizuoka, no centro da principal ilha japonesa. Foi uma única colheita, num dos sacos que Omura costumava trazer consigo, mesmo em momentos de lazer. Dali descobriu a existência de uma estranha bactéria, baptizada de Streptomyces avermitilis, cujos produtos de fermentação tinham poderes antiparasitários.

    Satoshi Omura, colhendo solo do local onde colheu a primeira amostra da bactéria que daria origem à ivermectina (© Andy Crump)

    Essas propriedades das então chamadas “avermectinas” seriam depois “purificadas”, já nos laboratórios da farmacêutica norte-americana Merck & Co (conhecida na Europpor Merck Sharp & Dohme, ou simplesmente MSD), por William Campbell, então já com dupla nacionalidade. E daí nasceria a ivermectina, como uma substância de largo espectro antiparasitário. Jamais, sem a recolha de Omura tal seria possível, até porque em mais lado nenhum se descobriram, até agora, aquelas bactérias.

    Durante a sua primeira década de “vida”, a ivermectina foi administrada apenas em animais, tratando doenças que causavam prejuízos de muitos milhões de euros no sector pecuário. Por exemplo, o Brasil é um dos países com maior utilização como remédio veterinário.

    Ainda somente em animais, a ivermectina logo revelou ser extremamente eficaz contra a maioria dos vermes intestinais comuns (excepto ténias), e a sua administração por via oral facilitava o uso. Além disso, não apresentava sinais de resistência cruzada com outros compostos antiparasitários.

    Mas esse foi apenas o seu ponto de partida. Em 1981, a MSD – que registou a patente da ivermectina – conseguiu autorização para uso humano, graças ao seu poder contra algumas das denominadas Doenças Tropicais Negligenciadas (DTN). Seis anos mais tarde, a farmacêutica tomou uma decisão rara no mundo deste sector: libertou a patente e criou um programa de doação contínua, permitindo o uso da ivermectina em programas da OMS contra a oncocercose, uma doença desfigurante e incapacitante causada por um nemátodo parasita (filárias) das espécie Onchocerca volvulus.

    Este parasita, transmitido pela picada de uma mosca preta do género Simulium, permanece no hóspede durante anos, maturando sexualmente e libertando depois milhões de larvas microscópicas sob a pele. Além de graves lesões cutâneas, também o sistema linfático e o nervo óptico são afectados. No limite, causam cegueira. A doença, que assombrou durante séculos os países mais pobres, desenvolve-se sobretudo em comunidades ribeirinhas – daí ser também conhecida por cegueira dos rios.

    William Campbell, recebendo o Nobel da Medicina em 2015, pela descoberta da ivermectina (© Nobel Media AB 2015. Foto: Pi Frisk)

    Antes da introdução da ivermectina no Programa Africano de Controle da Oncocercose, estimava-se que entre 20 milhões e 40 milhões de pessoas sofriam de oncorcecose, e cerca de 200 milhões estavam sob risco de infecção, sobretudo na África subsariana, Iémen e diversos países da América Latina.

    Anos mais tarde, graças à ivermectina, o objectivo de controlo desta doença passou para um nível superior: a sua eliminação.

    Desde que teve início, o programa incentivado pela OMS possibilitou a distribuição gratuita de mais de quatro mil milhões de embalagens de ivermectina em dezenas de países. Segundo a OMS, a cegueira dos rios já foi erradicada na Colômbia, Equador, México e Guatemala, enquanto Venezuela, Uganda e Sudão estão próximos de atingir esse objectivo.

    Em meados da década de 1990, a ivermectina foi, igualmente, considerada um excelente tratamento para a filariose linfática. Também conhecida por elefantíase, esta doença é provocada por um parasita que se concentra nos vasos linfáticos, causando um inchaço da pele e dos tecidos, nomeadamente nos pés, pernas e genitais. A eficácia deste fármaco levou também à sua introdução no programa da OMS contra a filariose linfática, sobretudo em regiões onde coexiste com a oncocercose. Em 2015, quase 374 milhões de pessoas necessitavam de tomar regulamente ivermectina para evitar esta doença.

    O Programa Africano para o Controlo da Oncocercose 1995-2019 estimou que a administração em massa de ivermectina também conferiu benefícios secundários em termos de Saúde Pública, devido ao seu impacte em infecções não-alvo. Durante o período 1995-2010, estima-se que, por via da sua administração, se tenha conseguido um acréscimo de cerca de 19,6 milhões de anos de vida à população africana, tanto no controlo da cegueira dos rios como de outras doenças parasitárias.

    Considerada extremamente segura – por ter efeitos secundários mínimos e poder ser administrada por via oral sem necessidade de supervisão médica –, este antiparasitária e anti-inflamatória poderá ainda ter outras propriedades.

    Fábrica da farmacêutica portuguesa Hovione, em Macau, que produz ivermectina.

    Surpreendentemente, ou não, apesar de 40 anos de sucesso global incomparável, os cientistas ainda não têm certezas absolutas sobre como a ivermectina funciona para controlar todas estas doenças, embora aparente agir através de processos imunorregulatórios. Sabe-se, contudo, que possui elevada lipossolubilidade, o que a faz distribuir-se rapidamente pelo corpo, eliminando, por exemplo, as microfilárias dos vasos linfáticos periféricos com grande rapidez e efeito de longa duração.

    Mas esses aspectos já pouco importaram para que, em 2015, Omura e Campbell tenham tido o reconhecimento do Comité Nobel. Mas quem talvez devesse receber essa honra fosse, afinal, a bactéria Streptomyces avermitilis. “Eu apenas dispus do poder dos micróbios”, confessaria Satoshi Omura aquando da conferência de imprensa de entrega do Nobel da Medicina.

    Uma das (muitas) curiosidades da ivermectina é a sua actual “costela portuguesa”. A Hovione, uma farmacêutica nacional sediada em Loures, produz este medicamento para uso humano desde 1997 na sua fábrica em Macau, e é atualmente o maior produtor mundial. Na verdade, fabrica o princípio activo em forma de pó, que depois segue para os quatro cantos do Mundo para ser transformado em comprimidos ou em gel, e ser comercializada a preços acessíveis.

    Texto editado por Pedro Almeida Vieira