Etiqueta: Cavalo de Ferro

  • Um lento quebrar de barreiras

    Um lento quebrar de barreiras

    Título

    Portugal: uma História no feminino

    Autora

    ANA RODRIGUES OLIVEIRA

    Editora

    Casa das Letras (Maio de 2024)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Até ao século XX, o papel das mulheres em Portugal foi amplamente condicionado por factores sociais, culturais e religiosos, que as relegaram para uma posição mais do que secundária. A Igreja Católica, com a sua profunda influência na vida social e moral do país, desempenhou um papel crucial na perpetuação da ideia de que a mulher deveria ocupar um lugar de submissão e discrição, sobretudo no contexto da família e do lar. O ideal feminino era o de uma figura devota, casta e, enfim, ignorante e pouco ou nada interventiva, cuja principal função era ser esposa e mãe, enquanto as esferas públicas e de poder eram exclusivamente dominadas pelos homens.

    A sociedade portuguesa, profundamente enraizada em valores patriarcais, reforçou durante séculos esses papéis tradicionais. A Educação, quando acessível às mulheres, era limitada a áreas consideradas apropriadas para o género feminino, como bordado, música ou religião, não incentivando uma formação intelectual mais robusta ou a participação activa na vida pública.

    Não surpreende assim que sobre um país que nasceu no século XII, o livro ‘Portugal: uma História no Feminino’, de Ana Rodrigues Oliveira, professora e investigadora da Universidade Nova de Lisboa, destaque, nas suas primeiras 533 páginas (num total de 626, incluindo bibliografia e um precioso índice onomástico) apenas figuras femininas ligadas à nobreza, como rainhas, regentes ou esposas de monarcas. Em muitos casos, mesmo de mulheres preponderantes na História de Portugal, não se duvide que a sua ascensão dependeu apenas e só ao berço e não tanto aos méritos que foram desenvolvendo.

    Somente a partir do início do século XX, as mulheres portuguesas começaram a conquistar maior visibilidade e a reclamar um papel mais activo na sociedade, mas o advento da República, em 1910 e, mais tarde, o Estado Novo trouxeram mudanças ambíguas para a condição feminina: por um lado, havia uma ênfase renovada nos papéis tradicionais de género, mas, por outro, também se abriam novas oportunidades, nomeadamente no campo da educação e do trabalho.

    Essa é a parte do livro, porventura, mais interessante, onde se releva o pioneirismo e ‘lutas’ de diversas mulhers que ‘ousaram’ desafiar as normas, desde Carolina Beatriz Ângelo, que reinvindicou o direito de voto das mulheres, até Maria de Lourdes Pintasilgo, a primeira (e única, até agora) primeira-ministra de Portugal. No meio, estão ainda mais sete mulheres com mais do que suficientes méritos para aqui constarem.  

    No entanto, lendo a obra de Ana Paula Rodrigues – numa escrita fluída, aqui ou ali demasiado fria e ‘professoral’, por vezes abusando de um estilo enciclopédico, sobretudo quando, no início dos capítulos, apresenta as biografadas -, mostra-se  constrangedor que um livro publicado em 2024 termine com Maria de Lourdes Pintasilgo, que chegou ao topo em 1979, embora sem ganhar eleições.

    Quais serão as razões para, em meio século de democracia, e com a universalização do ensino, que faz com que hoje as mulheres tenham mais formação do que os homens, Ana Rodrigues Oliveira não consiga incluir uma mulher nascida em data posterior a 1930, o ano de nascimento de Maria de Lourdes Pintasilgo? Pode ter sido apenas por ‘pudor de historiadora’, em não abordar tempos hodiernos, mas se pensarmos bem, talvez não seja apenas essa a causa. Faltam ‘candidatas’ para entrar num livro deste género. Na verdade, talvez as mulheres ainda não tenham conseguido, e infelizmente, romper o último bastião do poder masculino. Se é isso, agora a ‘culpa’ não pode ser assacada somente aos homens, até porque há mais eleitoras do que eleitores. E isso é como o ‘código postal’: meio caminho andado.

  • Jogos de luz e sombra

    Jogos de luz e sombra

    Título

    Uma brancura luminosa

    Autor

    JON FOSSE (tradução: Liliete Martins)

    Editora

    Cavalo de Ferro (Fevereiro de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Embora já (bem) reconhecido em Portugal antes de ser laureado com o Prémio Nobel da Literatura, um leitor desatento (ou com pouco tempo) tem nesta novela de Jon Fosse uma oportunidade de ouro para se introduzir na obra (e mente) deste ‘estranho’ escritor que usa  Nynorsk, o padrão menos usado do norueguês.

    Conhecido pela sua prosa minimalista e pelas suas obras de dramaturgia repletos de pausas, silêncios e repetições, Jon Fosse construiu em ‘Uma brancura luminosa’ – a opção da editora na ‘Kviitleik, que significa ‘Jogo de Luz’ – uma atmosfera abstracta mas meditativa a partir de um absurdo: um homem, que conduz sem destino, fica atolado e busca ajuda pela escuridão até encontrar uma ‘luz’.

    Numa prosa onde leitor entra também num espaço onde a luz e a sombra – tanto literal quanto metaforicamente – se entrelaçam, o resultado é uma escrita que, em simultâneo, revela e oculta, com frases ecoando de forma circular, voltando a emergir com ligeiras variações, como ondas, transmitindo, por vezes, um efeito quase hipnótico, meditativo, tornando-se assim numa experiência sensorial e emocional.

    Ao contrário das suas obras anteriores, os personagens tornam-se quase inexistentes, no sentido da sua relevância narrativa, funcionando mais como vozes, fragmentos de pensamento e de emoção, aparentando uma intenção de se captar somente a essência daquilo que significa estar vivo, num mundo onde o tempo e a memória se desvanecem de forma imperceptível.

    Apesar da característica técnica da repetição, uma das marcas de Fosse, nada se mostra redundante; cada iteração carrega uma nuance emocional ou simbólica diferente. Em alguns momentos, a repetição gera uma sensação de claustrofobia, como se as palavras e as ideias estivessem presas num ciclo eterno, numa cadência musical, que quase convida a meditações zen, não fosse a claustrofobia do escuro.

    Assim, num mundo literário cada vez mais focado em histórias rápidas e acessíveis, Fosse oferece uma alternativa rara e preciosa em apenas 54 páginas: a literatura como experiência espiritual, como reflexão existencial, como arte. 

  • Estórias de vida

    Estórias de vida

    Título

    Mentiras de mulher

    Autora

    LUDMILA ULITSKAYA (tradução: Nina Guerra e Filipe Guerra)

    Editora (Edição)

    Cavalo de Ferro (Outubro de 2023)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Mentiras de Mulher é um romance muito original porque não tem uma narrativa contínua em que as personagens se mantêm do princípio ao fim. É mais um “patchwork” narrativo, constituído por uma manta de retalhos de seis momentos particulares da vida da personagem principal, Génia, única personagem recorrente.

    No primeiro retalho, que dá o mote ao livro, conhecemo-la: uma intelectual soviética, com um casamento fracassado que, na companhia do filho, uma criança de três anos, está de férias numa estância balnear na Crimeia. O ambiente é pacato e rotineiro, até que chega Irene, uma ruiva exuberante, faladora e divertida que é hóspede habitual na casa e conta a Génia, que é russo-inglesa, viúva, filha de um espião comunista da Irlanda britânica e faz adivinhar que teve uma vida cheia de peripécias mirabolantes.

    As duas mulheres encontram-se todas as noites ao serão, bebericando vinho do Porto (feito na Crimeia – os tradutores optaram por designá-lo por Portwein), e Irene vai contando as desgraças pelas quais passou: quatro filhos e um marido todos mortos em circunstâncias diversas, carregadas de pormenores dramáticos, levando Génia às lágrimas e a nós leitores a compadecer-nos com o seu destino fatal. Com a chegada de outros hóspedes, Génia descobre que tudo o que ouviu de Irene era mentira e, desiludida, sem confrontar a mentirosa, parte para outro destino. Esta primeira história é um choque para nós também. Apanha-nos de surpresa, porque o relato é verosímil e cheio de pormenores perfeitamente plausíveis, apesar de muito dramáticos.

    Génia encontrará depois outras mulheres que com ela partilham histórias e episódios, uns mais caricatos que outros, mas que revelam a fascinante vida interior de mulheres e que a autora, num estilo ao mesmo tempo mordaz e terno, vai contando. São relatos de intimidade, histórias de lutos, adultérios, ligações escandalosas e ilusões perdidas, algumas artificiosas e rebuscadas, outras inofensivas e quase infantis.

    As histórias desenvolvem-se: a de Nádia, de 10 anos de idade, que inventa um irmão mais velho e mente de maneira muito divertida e invulgar; a mitomania de uma rapariga de 13 anos que diz ter um caso amoroso com um homem de 40, casado, pintor famoso e familiar de Génia, o que se revela ser uma fantasia dela embora o desenlace permita saber que há de facto, um adultério, mas com outros protagonistas.

    A história de uma jovem futura engenheira que descobre a poesia com uma velha professora de literatura, e que, após a morte desta, descobre que toda a poesia que lhe lera, como se fosse sua, era afinal de grandes poetas russos do início do século XX.

    Há também a aventura suíça de Génia que, tendo sido contratada para escrever um guião de um documentário, tem de entrevistar várias prostitutas russas que lhe contam todas a mesma história: são todas filhas de um comandante da Marinha, morto num acidente, violadas pelo padrasto e obrigadas a sair de casa e a fazerem-se à vida.

    É uma pena que com o decorrer da narrativa já não sejamos apanhados de surpresa e fiquemos, logo à partida, vigilantes à espera da próxima mentira, porque Ulítskaia construiu um naipe de histórias ternas e enternecedoras que relevam muito do sentido trágico da condição humana.

  • Uma autobiografia em dois contos

    Uma autobiografia em dois contos

    Título

    A Tília – Aniversário

    Autor

    CÉSAR AIRA (tradução: Miguel Filipe Mochila)

    Editora (Edição)

    Cavalo de Ferro (Setembro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Pode escrever-se uma autobiografia em dois contos? César Aira pode. E fê-lo com mestria, neste livro que nos conta a sua infância, no primeiro conto, e a idade depois dos cinquenta anos, no segundo. 

    A infância, em Pringles, foi marcada por uma árvore, a “Tília Monstra”, porque era enorme: “(…) vinte tílias das outras fundidas numa não teriam feito esta. Eu dera-lhe o nome de “Tília Monstra”, diz-nos o autor, logo na primeira página.

    Era à Praça da Tília que ia com o pai colher as flores para fazer chá: “O meu pai, consuetudinária vítima de insónia, ia à Praça com um saco, no começo do Verão, colher florzinhas de tília que depois secava e usava para fazer um chá que tomava à noite após o jantar. (…) E era bastante evidente que precisava daquilo, pois não houve homem mais nervoso do que ele. (…) além de nervoso, era irascível em último grau, sempre à beira de explodir, sempre em polvorosa. Bastava-lhe uma palavra, um gesto, e desatava logo aos berros como um louco furibundo. Precisava de muito menos para perder o controlo; subtilizava as causas até à magia; o adejar de uma borboleta no Japão provocava-lhe um ataque em Pringles.” A criança não saberia, mas o nervosismo do pai advinha do facto destes acontecimentos se passarem durante a presidência de Juan Perón.

    O pai de Aira (“um peronista convicto”) desenvolve uma profunda ambivalência em relação à vida após a queda do governo de Perón. A sua mãe, por outro lado, torna-se uma antiperonista convicta e dada a discursos “difamatórios e verdadeiramente delirantes”. Aira oferece pistas sobre as causas subjacentes do suposto desacordo político entre os pais, mas, surpreendentemente, não explora esses factos e leva-nos, antes, a apreciar outros episódios que lhe aconteceram a ele enquanto miúdo, filho único, num bairro operário, e fá-lo de uma forma encantadora.

    “A minha memória mais antiga do meu pai é vê-lo montado na bicicleta que usava para se deslocar para todo o lado na vila, até aos mais remotos confins, com uma longuíssima escada encaixada no ombro. A escada era o mais notável, e não creio que a cena me tivesse ficado gravada na memória se não estivesse presente. Era uma escada de madeira com pelo menos quatro metros de comprimento (não quero exagerar), e levar equilibrado semelhante trambolho na bicicleta devia requerer certa arte, ou pelo menos um hábito assíduo”. Ou então: “Em frente à casa havia um escritório de contabilidade onde passava os meus tempos livres. Fazia recados ao contabilista e ao empregado, que era seu sobrinho. Como o empregado faltava muito, o contabilista costumava deixar-me a tomar conta do escritório quando saía. A minha única função era estar ali e, se alguém viesse, dizer-lhe que ele saíra e que voltava já.”

    Deu-se o caso dele e da família terem vivido num palácio abandonado, disputado numa questão de heranças que se prolongou durante anos, e que atiçou, também a imaginação do miúdo: “Todos os meus amigos viviam em casinhas mesquinhas e apertadas. A nós, sobrava-nos espaço, mas, num gesto de soberba dignidade de pobres, desprezávamo-lo e vivíamos num quarto. Até da galeria só usávamos o espaço correspondente ao nosso quarto. A mim, tinham-me proibido de entrar nos outros, embora a maioria não tivesse portas e fosse percorrida apenas pelos ratos.”

    “Uma vez a minha mãe contou, a meio do incessante tagarelar que empregava para acalmar o meu pai, que quando foram viver para ali, logo após o casamento, usava a lareira para cozinhar, com fogo de lenha, como na Idade Média. Entusiasmei-me, com o histórico snobismo das crianças. Teria gostado de vê-lo. Pedi que preparasse uma refeição, nem que fosse apenas uma, ao velho estilo, mas ela não me deu tal prazer. Prometi a mim mesmo que, quando fosse grande, voltaria à Idade Média as vezes que quisesse, a despeito do progresso.”

    No conto seguinte, o registo é completamente diferente. Uma conversa aleatória que teve com a mulher, enquanto passeavam e o leva a fazer esta declaração: “Tenho cá para mim que nos enganaram quando nos disseram que a sombra da Terra é que produzia as formas da Lua quando se interpunha entre a Lua e o Sol. Precisamente agora o Sol e a Lua estão ambos no céu, a Terra não se interpõe minimamente entre eles, e ainda assim não se vê completa. Mentiram-nos!”

    A mulher esclarece que ele é que está enganado e isso leva-o a uma reflexão sombria sobre a juventude desperdiçada, por causa de toda a informação que reteve e que pode, eventualmente, estar errada, o que o leva a uma desconsideração artística do seu próprio trabalho que, por sua vez o leva ao seu futuro potencialmente sombrio.

    Relembra que aos 40 anos iniciou um grande projeto, que implicaria um afastamento consciente dos seus “pequenos romances”, que ele considera marginais. Chama a esse projeto, Enciclopédia, imaginando-a como um livro abrangente de inúmeros conhecimentos. Mas aos 50 anos (é nos dias após esse aniversário que ele começa a narrativa), tudo o que ele tem é uma coleção de esboços e planos, sem uma única página manuscrita, e é improvável que este ambicioso projeto seja concluído. O conto passa a ser assim, também, uma profunda reflexão sobre a vida e o envelhecimento.

  • Kafka em dose tripla

    Kafka em dose tripla

    Título

    Punições

    Autor

    FRANZ KAFKA (tradução: Paulo Osório de Castro)

    Editora (Edição)

    Cavalo de Ferro (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Mestre, ou até  mais do que isso, na criação de mundos sombrios e opressivos, sempre trespassados por personagens alienadas e impotentes, mas criados numa atmosfera de normalidade exasperante, Franz Kafka é um dos mais fascinantes escritores do início do século XX, que prematuramente partiu há quase um século (1924), e que nos deixa a imaginar que mais obras conseguiria conjecturar se não tivesse morrido com apenas 40 anos.

    Embora tardiamente publicado em Portugal, nas últimas décadas as mais conhecidas obras de Franz Kafka têm vindo a ser sucessivamente reeditadas pelas mais diversas editoras, mas este Punições surge pela primeira vez no nosso país. Não é uma obra inédita em si mesma, mas a compilação pensada por Kafka para juntar a sua novela mais famosa, A metamorfose, originalmente publicado em 1915, a dois contos: A sentença (1913) e Na colónia penal (1919).

    Embora cada uma das histórias sejam una – tanto assim que A metamorfose, publicada pela primeira vez em Portugal em 1962, se encontra no catálogo de cerca de uma dezena de editoras, e Na colónia penal tem também pelo menos três edições (a primeira em 1998, a última em 2021, pela Relógio d’Água –, é a primeira vez que estres três textos são publicados conjuntamente, o que constitui, desde logo uma mais-valia económica, e sobretudo uma oportunidade de nos embrenharmos em dose tripla no universo kafkiano.

    Em A sentença – o mais curto dos três textos, que pode, mais apropriadamente ser considerado um conto –, dedicado a Felice Bauer, noiva de Kafka, surge-nos um homem condenado que ignora o motivo da sua execução, o que, convenhamos, é um ponto de partida nada incomum no universo de Kafka. Tal como sucede em O processo, esta história permite sobretudo reflectir sobre a arbitrariedade do poder e a impotência dos indivíduos perante a falta de transparência e inacessibilidade do sistema judiciário. A Justiça não deseja assim fazer justiça, sendo uma mera máquina de opressão.

    Já em A metamorfose, a célebre história de Gregor Samsa, o caixeiro-viajante que acorda transformado em insecto gigante, serve sobretudo para uma análise das reacções familiares e da sociedade perante uma transformação, acabando sobretudo para expor os processos de alienação, de solidão e de incomunicabilidade.

    Por fim, Na colónia penal, o leitor acaba por ser (também) o viajante que assiste às entusiásticas descrições de um oficial que supervisiona uma máquina de execução com o condão de escrever a sentença na pele do condenado (que também ignora até os crimes de que é acusado), apresentada como o símbolo da violência inerente à justiça e a uma burocracia desumanizada, que perpetuam a violência.

    Porém, mais do que essas reflexões mais filosóficas, e cada vez mais actuais, destes intemporais textos de Franz Kafka, o leitor pode e deve apreciar o seu estilo literário, ainda extremamente moderno, visual e depurado. Uma leitura obrigatória, ainda mais após os distópicos tempos que (ainda) vivemos.

  • Correntes de plástico

    Correntes de plástico

    Título

    Histórias bizarras

    Autora

    OLGA TOKARCZUK (tradução: Teresa Fernandes Swiatkicz)

    Editora

    Cavalo de Ferro (Setembro de 2022)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Nascida na Polónia, em 1962, Olga Tokarczuk, sendo psicóloga de formação, é sobretudo escritora, ensaísta, poeta e guionista. É ainda uma forte activista social, cujos compromissos políticos terão motivado ameaças de morte no seu país.

    Foi também a primeira autora polaca a ganhar o Prémio Internacional Man Booker Prize, em 2018, com Flights (2017) – a tradução inglesa de Bieguni (2007) –, além de ter recebido outros prémios relevantes de literatura, o maior dos quais o Prémio Nobel de Literatura, de 2018, pela sua “imaginação narrativa, que com uma paixão enciclopédica representa o cruzamento de fronteiras como forma de vida”.

    Este cruzamento de fronteiras, narrado de forma livre, como afirma a própria autora, é o que nos envolve neste conjunto de 12 Histórias bizarras – ainda que Olga Tokarczuk nos alerte que o “virar de páginas está a passar à história”.

    Em cada um dos contos desta obra, publicada em Portugal pela Cavalo de Ferro, o seu objetivo é alcançado: mais do que entreter, Olga Tokarczuk provoca o leitor, convocando-o a reflectir sobre alguns dos temas e questões prementes da humanidade ou da sua ausência.

    Com efeito, a tensão é permanente. De forma latente, o leitor é quase obrigado a posicionar-se (ou, pelo menos, a pensar) em face de determinadas situações e dilemas éticos, nomeadamente, em relação à necessidade urgente de se proteger o que ainda resta do Planeta Terra.

    Numa das histórias, As crianças verdes, a natureza é descrita como “um grande nada”. Mas não apenas. Ainda no mesmo conto, o narrador, ao reflectir sobre os acontecimentos que viveu enquanto médico de Sua Majestade em 1656, observa que uma das grandes causas da guerra é a religião, porque esta “divide mais do que une, o que não é difícil de admitir, tendo em conta a quantidade de cadáveres resultantes de motivos religiosos, incluindo as guerras hoje em dia travadas” (p. 24).

    Em Conservas, a autora concede um certo apaziguamento ao castigar um filho pelo seu “pecado” da preguiça: a mãe deixa-lhe uma série de frascos de conserva, preparados enquanto ele se dedicava “à sua ocupação preferida: esvaziar latas de cerveja sucessivas e seguir dois grupos de homens, que (…) corriam atrás de uma bola…” (p. 42).

    A verossimilhança de Uma história verdadeira é angustiante pelo modo como a autora trata a perda de identidade, a qual se constrói por intermédio de uma série de símbolos que distinguem os seres humanos uns dos outros. Num país estrangeiro, um professor perde a sua dignidade, ao ser confundido com um assassino, sem ter como provar o contrário. Ao perder os documentos, a roupa e o seu estatuto e papel, veiculados por essas mesmas garantias simbólicas fica sem chão. E se fosse o leitor? – a questão que nos inquieta. Uma história verdadeira também nos remete para a indiferença gritante e galopante ante a miséria dos outros.

    O insólito verosímil perpassa outros contos que nos conduzem pela ficção científica, a distopia e a fantasia. As realidades fragmentadas descrevem-nos a crescente desumanização e a busca pela eternidade, como acontece nos contos A montanha de Todos-os-Santos e Calendário dos feriados humanos.

    As fronteiras entre a cultura mais ancestral e a de um futuro de ficção científica esbatem-se, dando origem a catástrofes bizarras que procuram dar resposta a uma das grandes questões da humanidade: Para onde vamos?

  • Em busca (e destruição) do Planeta B

    Em busca (e destruição) do Planeta B

    Título

    O homem ilustrado

    Autor

    RAY BRADBURY (tradução: Paulo Tavares)

    Editora (Edição)

    Cavalo de Ferro (Junho de 2022)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Ao ler determinado tipo de livro e/ ou autor, fica-se com a sensação de que há pessoas muito à frente do (e no) seu tempo. Como se tivessem acesso a informações a que a generalidade dos mortais não tem, e provavelmente não quer ter e, diríamos até, tem raiva de quem tem.

    Pois bem, este O homem ilustrado é uma espécie de premonição, com tantas histórias passadas em Marte, com tantos cenários apocalípticos e com tantas censuras e restrições ao pensamento e à leitura.  De tal modo assim é que ficamos na dúvida quanto à data da sua publicação.

    O autor de Fahrenheit 451 e de Crónicas marcianas vai remetendo alguns episódios de O homem ilustrado para essas obras, sendo que a ideia dos livros a banir perpassa uma série de capítulos.

    Também a fuga e a busca por planetas alternativos são uma constante, daí que nos interroguemos acerca da intensidade e amplitude de tal criatividade, se é que se pode dizer isto. Como se o autor tivesse escutado vozes e as tivesse transcrito… quem sabe seja mesmo o caso.

    Na verdade, o autor não está sozinho, convoca outros tantos génios e/ ou “hereges”, como Huxley, Orwell, Dickens e até Hitchcock para nos demonstrar que estamos a perder hábitos de leitura. Pior do que isso, o autor como que nos alerta para o perigo de “vida” dessas obras que são consideradas, tal como em Fahrenheit 451, obstáculos ao bom funcionamento e ordem da “paz” social.

    Não obstante, é a guerra, a escassez, o caos e a ausência de “humanidade” que pintam um cenário num futuro que, infelizmente, parece mais próximo e real do que o género de ficção científica, no qual este livro se integra.
    Original de 1951, nesta obra, agora, reeditada pela Cavalo de Ferro, Ray Bradbury recorre ao artifício de um homem todo tatuado para nos contar uma série de pequenas narrativas, que só na aparência o são.

    Até nisso o escritor foi audaz, uma vez que, no fundo, o conjunto se pode compreender como uma grande narrativa – a da fuga da humanidade de si própria…

    Para quem se quer distanciar das teorias da conspiração fica a questão: qual o propósito desta reedição? Preparar-nos para um futuro (quase presente) ou provocar-nos e incitar-nos para que revisitemos a História?

    Bom, está visto que a Humanidade não consegue aprender com o passado, pois os tempos em que vivemos só nos demostram que somos cada vez mais idiotas – e quando dizemos idiotas é mesmo isso, imbecis. Só tanta imbecilidade e falta de reflexão justifica a hipótese de se prolongar uma guerra como a que está a decorrer (mesmo que haja uns poucos a lucrar com isso), e de se acreditar que há vida em Marte e que vamos ser muito mais felizes lá, depois de destruirmos o que cada vez menos resta da Terra.

    Se o leitor está a fechar o dispositivo ou a clicar para mudar de página depois de tanto pessimismo, fica o desafio: leia O homem ilustrado e descubra as diferenças de mentalidades, desejos e esperanças (vãs) de alguns dos personagens.

  • África é outro planeta

    África é outro planeta

    Título

    Paraíso

    Autor

    ABDULRAZAK GURNAH (tradução: Eugénia Antunes)

    Editora (Edição)

    Cavalo de Ferro (Maio de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Abdulrazak Gurnah, o surpreendente prémio Nobel da Literatura de 2021 (ninguém estava à espera), nasceu em 1948, em Zanzibar, Tanzânia, mas vive, desde a década de 1960, no Reino Unido, para onde fugiu, devido às convulsões políticas, no seu país, que levaram à perseguição, de cidadãos de origem árabe, como é o seu caso.

    Começou a escrever aos 21 anos e a temática da sua obra passa pelos estudos pós-colonialistas, a vivência dos refugiados entre culturas e continentes, procurando sempre uma verdade que foge à explicação simplista e que é de alguém que sofreu na pele essa situação.  Para além disso, como profundo conhecedor do seu continente, Gurnah apresenta-nos uma África plural, multicultural, e não o retrato de um continente uniforme.

    África é, de facto, um caldeirão de culturas que o autor nos descreve, com mestria, trazendo-nos a sua sensualidade, cheiros e cores e beleza selvagem omnipresentes em toda a obra.

    A ação deste Paraíso, originalmente publicado em 1994, passa-se no tempo imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial, ou seja, no preciso momento em que o complexo e tenso sistema social pré-colonial, da atual Tanzânia, se desmorona na presença dos primeiros europeus no território, os alemães.

    São eles uma presença mítica, neste romance, e de quem se diz que “comem ferro” e são “cintilantes homens encarnados com pêlos nas orelhas” e que, para além disso, “apoderaram-se das melhores terras sem pagar uma única missanga, forçam as pessoas a trabalhar para eles e, qual praga de gafanhotos, a sua voracidade não conhece limites ou pudor”.

    O romance conta-nos a história de Yusuf, que, aos doze anos, é entregue, pelo próprio pai, a um rico comerciante a quem se habituara a chamar tio. Parte um dia, com ele, numa viagem de comboio e “nunca ocorreu a Yusuf, nem por um instante, que iria ficar afastado dos pais por muito tempo ou que talvez não os tornaria a ver”. Foi isso mesmo que aconteceu.

    Na sua nova vida, como escravo, Yusuf soube, por Kahlil, companheiro de infortúnio de quem se tornará amigo, e lhe diz logo no primeiro encontro: ”Quanto ao teu tio Aziz, para começo ele não é teu tio (…) está aqui porque o teu Ba deve dinheiro ao seyyid. Eu estou aqui porque o meu Ba lhe deve dinheiro…só que já morreu. Deus tenha piedade da sua alma”.

    E é neste mundo que a criança vai crescer e tomar consciência de que aquele a quem chamava tio não é, realmente, seu tio e sim seu senhor, “um comerciante implacável de subtis odores e modos”, hábil nos negócios e admirado (e invejado) por muitos.

    Grande parte do livro narra, precisamente, a expedição de Aziz e Yusuf e uma caravana enorme de transportadores e servos, capatazes e guias através da África profunda, numa viagem de milhares de quilómetros comercializando vários produtos e matérias primas que trocam, compram, vendem e dão de tributo a tribos por onde vão passando, sofrendo as mais variadas violências e ataques quer de animais, quer de homens.

    Há referências a uma montanha nevada, um lago que conseguem atravessar num único dia e algumas quedas de água majestosas, mas não há nomes, nem mapas. “Escrevi presumindo que quem lesse conheceria o terreno e reconheceria o Kilimanjaro e o lago Tanganica.” disse o autor, numa entrevista ao El Pais. E de facto é possível ver o caminho que eles seguem, mas, ao não nomeá-lo, abre-se de alguma forma a possibilidade de que seja mais mítico, e de que o que é narrado possa acontecer noutro lugar qualquer. “O leitor pode imaginar sem ter que se vincular a um lugar específico”, acrescentou Gurnah, na mesma entrevista.

    Nessa viagem Yusuf deixa de ser criança, mas continua a importar-lhe mais a beleza das paisagens por onde passam, no coração do país, e a do jardim da casa do seu senhor e as histórias que ouve aos seus companheiros de viagem e aos habitantes dos lugares por onde vão passando, do que a sua própria liberdade. Yusuf é um escravo, mas não se sente como tal, e só mesmo no final do livro veremos um gesto de resistência e de libertação, surpreendente pela decisão inesperada que toma.

    Um livro de uma agradável leitura misto de romance, novela, literatura de viagens e História.

  • O tempo tocado por um acordeonista

    O tempo tocado por um acordeonista

    Título

    Vidas seguintes

    Autor

    ABDULRAZAK GURNAH (tradução: Eugénia Antunes)

    Editora (Edição)

    Cavalo de Ferro (Fevereiro de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Devo começar por avisar os leitores de que abordo sempre os livros sobre o colonialismo e/ou o pós-colonialismo com enorme desconfiança. Sei, por experiência, que as equações branco = colonizador = mau e preto = colonizado = bom são tão falsas quanto nefastas. Essas equações fazem, infelizmente, parte do corpus do pensamento contemporâneo, e poucas ou raras são as obras sobre o tema que lhes escapam.

    Não se pode dizer que Vidas seguintes seja uma dessas obras, mas pode – e deve – dizer-se que tem pelo menos o mérito de não as abraçar de olhos fechados. O romance é bastante crítico em relação aos usos e costumes locais, embora trate diferentemente os horrores dos colonizadores e os horrores das personagens indígenas. Verdade seja dita que a colonização alemã foi particularmente brutal, e é compreensível que o autor adjective mais a sua brutalidade do que a dos usos e costumes que descreve.

    Isto dito, Vidas seguintes é a história de quatro personagens: Ylias, Afiya, Hamza e Khalifa, que acabam por se encontrar apesar de, à partida, só Afiya e Ylias (irmãos) se conhecerem. Tem um escopo temporal de aproximadamente 80 anos, se bem que o miolo da história se concentre em 60 desses anos.

    A acção decorre na região que é agora a Tanzânia – começa quando era parte da África alemã, passa para os anos de colonialismo inglês e mal menciona a independência.

    Ylias alista-se nas terríveis tropas coloniais alemãs, Afiya casa-se com Hamza que se torna colega de Khalifa. O quarteto nunca chega a sê-lo, pois Ylias desaparece bastante cedo da narrativa, e só se mantém presente porque a irmã não perde a esperança de o rever. Só no último capítulo saberemos o que lhe aconteceu.

    Contada no habitual estilo sóbrio, factual e de poucos adjectivos da literatura anglo-saxónica, as histórias prendem-nos desde muito cedo para não mais nos largarem. As personagens vão-se construindo pouco a pouco, desde o início e vão-se «solidificando», sedimentando ao longo das respectivas histórias.

    A técnica narrativa do autor é sublime. Joga com o tempo como um acordeonista com o seu instrumento, ora esticando-o ora encolhendo-o com uma maestria excepcional. Um capítulo pode cobrir dez anos, e outro um ou dois, e tudo flui “naturalmente”.

    Este livro é excelente tanto para quem se interessa apenas pelo estilo como para quem dá a prioridade ao enredo. Nada aparece forçado, um erro tão frequente nestas histórias de pessoas que se encontram “por acaso”.

     A tradução é boa. Há uma grande quantidade de termos em suaíli, que não estão traduzidos, aparentemente uma escolha do autor.

    Até ganhar o Nobel (2021), Abdulrazak Gurnah era pouco conhecido fora do Reino Unido. Nasceu em Zanzibar em 1948, abandonou a ilha e foi para Inglaterra em 1968 devido à perseguição de que os naturais de origem árabe foram alvo depois da Revolução de Zanzibar (1964).

    De 1980 a 1982 foi professor na universidade de Kano, na Nigéria e de 1982 até à sua reforma (2017) deu aulas de literaturas inglesa e pós-colonial na universidade de Kent.

    É autor de uma dezena de romances, vários contos e de obras de não-ficção – ensaios e crítica. Esteve por duas vezes nas listas do Booker mas nunca o ganhou. Em 2006 foi eleito fellow da Royal Society of Literature. O Nobel provocou uma corrida às suas obras, muitas delas esgotadas ou difíceis de encontrar.