Etiqueta: Casa das Letras

  • Hoje há segredos revelados, amanhã não sabemos

    Hoje há segredos revelados, amanhã não sabemos

    Título

    A História secreta dos alimentos

    Autor

    MATT SIEGEL

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Com o subtítulo, Histórias estranhas, mas verdadeiras, sobre as origens de tudo o que comemos, o escritor gastronómico norte-americano Matt Siegel conduz-nos numa viagem pelo tempo, desde que o Homem começou a usar o fogo para confeccionar os alimentos, revelando-nos curiosidades e factos pouco conhecidos sobre muito daquilo que comemos.

    Cada capítulo é dedicado a um alimento, mas a informação disponibilizada não se esgota nele ou se resume apenas a esse alimento. O autor, com mestria e um conhecimento enciclopédico, entrecruza inúmeras histórias e dados científicos, que dão corpo ao tema principal, guiando-nos através de vários campos do conhecimento e saciando o nosso apetite por estas curiosidades gastronómicas, numa visão por vezes bastante radical ou irreverente. Um olhar fresco e salutar sobre aquilo que pensávamos saber sobre os alimentos que nos chegam à mesa, num rosário de pequenas histórias que fizeram a História.

    O mel, por exemplo, serviu como arma de guerra ao longo dos séculos, tendo sido utilizado para infligir danos aos inimigos em vez de flechas, numa prática que remonta à Idade da Pedra: “Os homens das cavernas cobriam-nas com lama e atiravam-nas para cavernas inimigas; os exércitos romanos carregavam as catapultas com elas; os ingleses medievais atiravam-nas sobre as muralhas do castelo”. Curiosamente, a palavra bombardear vem do grego bombos, que significa “abelha”.

    Antes dos primeiros colonos chegarem ao continente norte-americano, a bordo do Mayflower, apenas setenta variedades de maçãs eram conhecidas e encontravam-se catalogadas em Inglaterra. Dessas, trinta e seis já haviam sido descritas e mencionadas no século I, na Roma antiga, por Plínio, o Velho. Contudo, no Novo Mundo, as maçãs não existiam, com excepção de algumas maçãs de jardim não comestíveis, pelo que os colonos plantaram as suas sementes trazidas de Inglaterra por volta de 1620. Numa geração, aquelas primeiras macieiras provocaram uma revolução  na história da maçã e prestes “deram origem a cerca de dezassete mil novas variedades, não incluindo as inúmeras experiências que não eram particularmente atrativas ou que não valia a pena catalogar.”

    As malaguetas “são agora as especiarias mais utilizadas no mundo, sendo cultivadas em todos os continentes”, inclusivamente na Antártida, onde foram plantadas numa estufa, “concebida para testar tecnologias de cultivo de plantas desenvolvidas para exploração espacial”. Diariamente, cerca um terço da população mundial consome malaguetas, um dos ingredientes essenciais na cozinha mexicana, norte-africana, coreana, tailandesa, indonésia, entre tantas outras.

    Por entre as grandes histórias surgem também as pequenas histórias ou curiosidades, que o autor vai desvelando com esmero e graça, como aquela das mulheres atenienses que coziam o pão “em forma de pénis e utilizavam azeite como lubrificante para fazerem brinquedos sexuais económicos, chamados olisbokollix (“dildo de pão”)”. Séculos mais tarde, na Inglaterra de Setecentos, as mulheres preferiram cozer “pães com a forma dos seus próprios órgãos sexuais (literalmente pressionando a massa contra a sua pele como um molde), devido a uma crença mágica de que os homens que os comessem se apaixonariam por elas.”

    Todo o livro transborda de gula e curiosidade, mas o único pecado que se poderá apontar talvez seja o facto dele ser um tanto ou quanto etnocêntrico, alicerçado numa influência norte-americana, bem como nos seus hábitos consumistas. É certo que as invenções culinárias dos “americanos” conquistaram e transformaram o mundo, mas ainda há mais mundo gastronómico com os seus segredos por desvendar. Não nos falte o engenho e o apetite.

  • Ferramentas para cativar, brilhar e vencer

    Ferramentas para cativar, brilhar e vencer

    Título

    Aprenda a ser carismático

    Autora

    OLIVIA FOX CABANE (tradução: Isabel Pedrome)

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Abril de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Nascida em Paris, filha de pai francês e mãe norte-americana, Olivia Fox Cabane é de origem judaica. Esta circunstância, aliada à eventual inépcia social, fez com que fosse discriminada, estimulando a estudar e a provar as suas valias. As duas licenciaturas em universidades internacionalmente reconhecidas – Pantheon-Sorbonne e Ludwig Maximilian de Munique –  assim o comprovam. Entretanto, foi directora de liderança numa startup inovadora de Stanford, tendo-se tornado conferencista e assessora de muitos líderes de empresas da Fortune 500 — como a Google, a MGM e a Deloitte —, bem como professora em Harvard, Yale, no MIT e nas Nações Unidas.

    É autora do livro The net and the butterfly (editado pela Penguin em 2017), estando actualmente a escrever The genius myth: how anyone can learn to access their inner Einstein.

    Pelo seu currículo, desde logo se percebe que a autora tem experiência comprovada sobre o tema deste livro, Aprenda a ser carismático, agora publicado pela Casa das Letras. De facto, os seus exemplos decorrem da sua própria experiência adquirida na assessoria a muitos e reconhecidos empresários de sucesso.

    Neste livro, o leitor encontrará uma série de ferramentas e exercícios para aprender e aperfeiçoar técnicas com o objectivo de se tornar uma pessoa e /ou líder carismático.

    A primeira coisa que podemos desconstruir é a ideia de que o carisma é algo inato. Pelo contrário, o que a autora nos mostra é que, na verdade, podemos aprender a desenvolver uma série de comportamentos que nos conduzirão a adquirir uma personalidade carismática.

    Além de providenciar exercícios meditativos para nos tornarmos mais conscientes do momento que vivemos, ajuda-nos a focar na situação e nas pessoas com que nos defrontamos em cada momento.

    Os leitores familiarizados com as técnicas de meditação Vipassana (desenvolvida por S. N. Goenka, a partir dos princípios do Budismo) e Mindfulness (baseada na atenção plena) reconhecerão os exercícios de meditação sugeridos. Note-se, porém, que estes exercícios podem ser altamente profícuos não apenas para desenvolver uma personalidade ou comportamentos carismáticos, mas também para melhorar a concentração e o foco no essencial – algo tão importante nesta era dos dispositivos electrónicos e das notificações e distrações contínuas.

    Depois de percebermos que podemos desenvolver comportamentos e práticas – para ultrapassar os obstáculos, bem como a criar estados mentais mais adequados ao carisma –, a autora apresenta quatro tipos de personalidade carismática. Deste modo, podemos adquirir e aperfeiçoar as estratégias conforme o contexto.

    Com efeito, daqui podemos reter dois ensinamentos: o de que os tipos de personalidade não são estanques, e de que cada pessoa pode aprender e aplicar cada um deles em função dos desafios a superar.

    A ideia de que está nas mãos do leitor essa mesma aprendizagem perpassa toda a obra, sendo, por isso, um livro com um potencial enorme para quem quer ser bem-sucedido no mundo dos negócios.

    Mas não só. A empatia, a linguagem corporal e a afectividade (q.b.) podem ser ‘armas’ infalíveis para alcançar objectivos pessoais e profissionais que dependam de alianças, cooperação e coparticipação – formas de viver e trabalhar no mundo contemporâneo.

    Pelo exposto, é possível afirmar que todos têm a ganhar em ler este livro que nos ajuda a estabelecer relações pessoais e profissionais de forma mais consciente, harmoniosa e, até, calorosa.

    Atrevemo-nos a dizer que este livro é essencial para pessoas que têm ocupações como a de ‘influencer’ ou ‘lobista’, no qual encontrarão inúmeras ferramentas para se tornarem mais influentes e inspiradores. Mas, como referido, este livro pode e deve ser lido por todos aqueles que cuidam e lidam com muita gente, pois, nele encontrarão, por exemplo, formas para gerir o desconforto e situações difíceis.

    Excerto (página 56): “Lidar habilmente com qualquer experiência difícil é um processo em três etapas: afastar o estigma associado ao desconforto que essa experiência provoca, neutralizar e reinventar a realidade”.

  • Um maestro guiado por um sol maior

    Um maestro guiado por um sol maior

    Título

    Música, só música

    Autor

    HARUKI MURAKAMI e SEIJI OZAWA (tradução: Maria João Lourenço)

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Abril de 2022)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Nascido em 1949, na cidade de Quioto, Haruki Murakami já esteve várias vezes na lista de putativos vencedores do Prémio Nobel da Literatura. Mas, como alguns ironicamente referem, o japonês tem sido estranhamente esquecido. Talvez por isso, escreva cada vez mais sobre o que bem entender e sobre o que mais gosta: música… só música.

    Durante o curso em estudos teatrais, em Tóquio, Haruki Murakami abriu um bar de música jazz, The Cat, que manteve durante cerca de sete anos. A música jazz é, aliás, um cenário musical recorrente na sua obra, sendo, inclusivamente, uma forma de dar ritmo aos seus romances – uma das características mais prementes da sua obra, ainda que nem sempre visível na tradução portuguesa – provavelmente por ser efectuada indirectamente, a partir do inglês.

    A música clássica, tema da obra agora em análise, também já se sentira de forma implícita em diversos romances, nomeadamente nos dois volumes de A morte do comendador.

    Das viagens surrealistas, através das quais nos deixamos enlevar em quase todos os seus romances, Haruki Murakami viajou, desta vez, pelo mundo da música clássica e acompanhado pelo famoso maestro Seiji Ozawa, nascido em 1935.

    A paragem compulsiva do maestro, provocada pela descoberta e recuperação de um cancro, em 2009, permitiu uma série de encontros entre estes dois homens excepcionais, dos quais resultaria um conjunto de seis conversas, agora editada, em Portugal, pela Casa das Letras.

    Para os leitores aficcionados por Haruki Murakami, este livro não será propriamente uma surpresa, uma vez que já estamos habituados a ter a música como personagem-sombra ou como elemento primordial da cena – de tal modo, que somos convidados a escutar a música referenciada. Como afirmou algures o autor, ao escutar uma determinada música, o leitor é impelido a ler com determinado ritmo.

    Este Música, só música não é, assim, apenas para os amantes do género ficcional surrealista, mas sobretudo para os melómanos, em particular para os amantes da música clássica que sintam curiosidade pelos meandros das orquestras e respectivos maestros.

    Director musical da Orquestra Sinfónica de Boston durante quase 30 anos, Seiji Ozawa assumiu o mesmo cargo nas Orquestras de Chicago e de Toronto e na Ópera Estatal de Viena – a qual dirigiu até 2010. Um maestro genial, cuja origem nipónica terá desconcertado muitos públicos, entre os quais os de Itália, onde terá sido apupado, aquando da direcção da ópera Tosca, de Puccini.

    Este é um de muitos episódios descritos e partilhados pelo maestro, que, certamente, encantará os curiosos e apaixonados pela música clássica. Tanto mais que a mencionada intertextualidade musical que perpassa toda a obra de Murakami se torna, aqui, ainda mais óbvia.

    Ao convidar o maestro a escutar os concertos para piano de Beethoven, a Sinfonia Fantástica de Berlioz, entre várias outras sinfonias, momentos e interlúdios, para iniciar e guiar as conversas, Haruki Murakami também está a incitar o leitor a entrar na conversa de forma activa.

    A história das interpretações de Gustav Mahler é um dos exemplos e se, em simultâneo, escutarmos os 3º e 4º movimentos da 1ª sinfonia de Mahler – a grande paixão do maestro –, teremos a sensação de estarmos na mesma sala que os interlocutores.

    Além de Seiji Ozawa, ficamos a conhecer outros maestros, em particular Leonard Bernstein, de quem Ozawa foi assistente durante duas temporadas, ou o seu mentor, Saitō Kinen, em homenagem a quem criou uma Fundação e respectiva orquestra, organizando um festival anual em Matsumoto, em honra do mesmo maestro japonês.

    Num dos encontros, Seiji Ozawa admite que as conversas (guiadas – uma espécie de entrevista aberta) o terão ajudado a organizar as suas memórias, e a perceber o quão terá mudado e mesmo evoluído ao longo do tempo.

    Este é, na realidade, um dos grandes feitos das entrevistas para a construção de “histórias de vida”, a partir das quais não só os leitores ganham, e muito, mas também os próprios entrevistados, que têm oportunidade de se sentar numa plateia fictícia e olhar para o palco que foi a sua vida. Neste caso, isto não é sequer uma metáfora. Efectivamente, foi o que sucedeu, graças à preparação magistral de Murakami e à sua erudição musical.

    Uma curiosidade: os parágrafos estão alinhados à esquerda, para gerar uma leitura mais agradável. Se é verdade que essa estratégia ajuda, também o é o teor do livro, cujo prefácio de Martim Sousa Tavares nos acirra ainda mais a vontade de ler, conhecer, aprender e escutar música – a personagem principal.

    Por isso, sim: Música, só música para nos encantar.

  • Um improvável e absurdo herói

    Um improvável e absurdo herói

    Título

    Volodymyr Zelensky: biografia

    Autor

    SERGII RUDENKO (tradução: Elena Luchyna)

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Maio de 2022)

    Cotação 

    13/20

    Recensão

    Num ápice, poucas semanas após a invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin, uma figura internacional eclodiu não apenas pelas televisões, rádios, jornais e revistas – e, claro, pelas redes sociais e Internet em geral –, mas também nos escaparates das livrarias: Volodymyr Zelensky.

    Transformado em “três pazadas” num Winston Churchill do século XXI, o antigo comediante ucraniano mereceu, em apenas dois meses, o interesse dos dois principais grupos editoriais portugueses: a Leya (através da Casa das Letras), que publicou Volodymyr Zelensky: biografia, do ucraniano Sergii Rudenko, e a Porto Editora (através da Ideias de Ler), que publicou Zelensky: o herói improvável, dos jornalistas australianos (originários do Leste Europeu) Andrew L. Urban e Chris Mcleod. Está anunciada ainda a edição pela Esfera dos Livros, para este mês, de Volodymyr Zelensky: na cabeça de um herói, dos jornalistas franceses Régis Genté e Stéphane Siohan.

    No estrangeiro ainda há mais. Muitos mais. Para aí uma dezena de obras com o presidente ucraniano como foco central. Existe mesmo uma colecção – já vai em três volumes – intitulada War speeches, de Volodymyr Zelensky: dois com os discursos de Fevereiro e Março deste ano, e outro com os de Abril. Presume-se que esteja a caminho o de Maio, e a ser escrito o de Junho…

    Na Amazon já está em pré-lançamento, para O ainda longínquo Outubro, o livro Volodymyr Zelensky in his own words, de Lisa Rogak e Daisy Gibbons. 

    A apresentação é muito sui generis, caracterizando o momento mediático que se vive: “Zelensky é o herói que não sabíamos que precisávamos – ou talvez precisássemos. Neste momento, o mundo quer saber mais sobre o heróico e inspirador presidente da Ucrânia, e a melhor maneira de fazer isso será com Volodymyr Zelensky in His Own Words, um extenso livro de citações que abrange as palavras e opiniões de Zelensky sobre um amplo espectro de questões – de guerra e paz a mudanças climáticas e direitos LGBTQ. Os leitores poderão abrir o livro em qualquer página e ver onde Zelensky está. Dada a sua vida anterior como comediante e actor mais famoso da Ucrânia, há muitas citações que fornecem uma imagem mais subtil desse homem que encantou e inspirou pessoas ao redor do Mundo.” Zelensky é o novo Messias.

    Que não haja dúvida sobre a barbárie que se vive na Ucrânia com a invasão  da Rússia de Putin, nem sobre a corajosa postura de Volodymyr Zelensky, aos 44 anos de idade, e depois de um passado profissional ligado ao entretenimento. No entanto, algo não bate certo quando o marketing subverte completamente a realidade – ou, neste caso, o conteúdo de uma pretensa biografia, que, por vezes, nem é.

    Com efeito, no caso de Volodymir Zelensky: biografia, que se decidiu ler, estamos perante uma honesta, embora não extraordinária, análise política do sexto presidente da Ucrânia – que, até certo ponto, é independente, embora o  jornalista ucraniano Sergii Rudenko, compreensivelmente, se deixe arrastar pela emoção quando aborda a invasão perpetrada Rússia –, mas que não encaixa em quase nada daquilo que a editora releva na badana: 

    “Este livro apresenta Zelensky começando como um presidente pela paz e tornando-se um presidente de guerra. Em episódios que destacam a subida ao poder de Zelensky da forma mais honesta e aberta quanto possível, e sem retoques, lemos sobre o triunfo de Zelensky em 2019, mas também sobre as suas diversas derrotas no Olimpo político. A história do homem que, sem qualquer experiência política ou conhecimento relevante, prometeu aos ucranianos mudar o seu estado. Um homem com a confiança de 13,5 milhões de eleitores. Uma pessoa que compreendeu que confiança implica responsabilidade. O homem que aceitou o desafio que é Vladimir Putin, tornando-se chefe do Estado ucraniano neste período difícil. Por último, o livro fala sobre a mudança de opinião pública – mas não apenas pública – de Zelensky, passando de um presidente com poucos sucessos e um mau ranking para um presidente a protetor do seu povo, defendendo não só a Ucrânia, mas igualmente a liberdade da Europa.”

    Porém, ao discorrer pelo livro de Sergii Rudenko – claramente escrito, em grande medida, antes da invasão russa –, somos confrontados com um político saído literalmente de filme – o Servo do Povo – e que nada mudou na política ucraniana desde a sua independência da União Soviética: corrupção, nepotismo, criação de oligarquias e uma exploração do povo sem contemplações. 

    Os primeiros capítulos desta obra de Rudenko mostram, de uma forma bem expressiva, a improvável ascensão de Zelensky assente no seu mediatismo, mas também numa máquina de propaganda sustentada por oligarcas e por amigos de índole questionável. A sua impreparação para o cargo trespassa em todas as páginas. O nepotismo, idem. Os contorcionismos e golpes palacianos, também.

    Na verdade, ao longo da leitura deste livro – que chega a ser penosa, não pela qualidade da escrita mas pelos episódios relatados que nos incomoda por vergonha alheia –, mais do que suscitar simpatia por Zelensky ou empatia pelo povo ucraniano, surge um estado de incredulidade. 

    Sem esquecer os horrores cometidos pela Rússia contra o povo da Ucrânia – e sabendo-se que com Putin e o seu regime, este é, porventura, o país menos recomendável para se viver em liberdade na Europa –, Zelensky não pode ser apresentado como um modelo para a Democracia. Chega a ser ofensivo querer casar Zelensky com um democrata. Este livro de Rudenko prova-o.

    Por fim, um problema estrutural desta obra – em certa medida, compreensível –, é a ausência de informação que permita um melhor enquadramento dos leitores no contexto político da Ucrânia. Assim, aspectos da política interna e dos políticos ucranianos referenciados por Sergii Rudenko dificilmente são compreendidos pelo leitor português. Acresce que os (estranhos) nomes dos intervenientes na cena política não ajudam.

    Mas isso, como se defende, constitui um problema compreensível: afinal, não fosse a guerra e ninguém em Portugal estaria interessado em publicar um ensaio jornalístico sobre um presidente da Ucrânia. Nem um, quanto mais três livros.

    Por outro lado, com uma estrutura em 38 capítulos, não cronológicos, mas incidindo sobretudo no período a partir de 2019, Rudenko não consegue sair de um registo demasiado jornalístico, e demasiado especulativo. Alguns capítulos são simples crónicas. Pouco ou nada é dito sobre os contornos políticos que acabariam por desencadear a invasão da Ucrânia. Em muitas partes falta-se substância, ou pelo menos substância para que um não-ucraniano entenda tudo na perfeição.

  • A perigosa queda do homem

    A perigosa queda do homem

    Título

    Espermagedão: a fertilidade masculina em queda livre

    Autor

    NIELS CHRISTIAN GEELMUYDEN (tradução: Maria de Fátima Carmo)

    Editora (Editora)

    Casa das Letras (Abril de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Espermagedão – um termo inusitado, mas que nos traz à mente o Armagedão, a derradeira batalha bíblica entre as forças do Bem e do Mal.

    Não é mero acaso: o objectivo do título é precisamente causar impacto, pois o livro constitui um alerta sobre o qual o subtítulo logo nos elucida: “a fertilidade masculina em queda livre”. Batalha final ou não, o que o autor nos diz é, inegavelmente, estarmos na iminência de uma hecatombe: a qualidade do esperma no mundo ocidental caiu 60% em menos de 40 anos. Associada a este problema está, também, uma dramática redução nos níveis de testosterona.

    Niels Christian Geelmuyden, um conhecido ensaísta norueguês, tem sido também um dos poucos jornalistas a fazer soar os alarmes sobre esta crise que assombra o sexo masculino. Neste livro, Geelmuyden faz eco de estudos científicos e de opiniões de especialistas em reprodução e fertilidade.   

    Aos que pensam que não precisam de se preocupar porque não planeiam ter filhos, o autor faz uma advertência: a incapacidade de gerar bebés não é a única consequência negativa que advém de uma fraca reserva de espermatozoides, ou de gametas masculinos “pouco nadadores”. Geelmuyden indica outros efeitos perniciosos, como seja uma maior susceptibilidade a doenças como o cancro, nomeadamente dos testículos.

    E, como se tudo isto não fosse suficientemente apocalíptico, o norueguês alerta que similares problemas já se encontram no mundo selvagem, com diversas “bizarrices”: peixes-machos a pôr ovos, répteis com pénis mais curtos e incremento da homossexualidade e a bissexualidade no reino animal.

    Quanto a possíveis causas que expliquem este boom de infertilidade, existem muitas. Dir-se-ia até, demasiadas, como expõe Geelmuyden. No livro ocupam quatro vezes mais páginas do que as que nos oferecem soluções, o que pode não ser muito tranquilizar para os leitores.

    Aparentemente, os “gatilhos” que tornam os homens inférteis (e também as mulheres) estão por todo o lado: poluentes, pesticidas, água da torneira, sedentarismo, organismos geneticamente modificados, flúor, soja, etc., etc., etc.

    Espermagedão faz-nos, assim, dar conta de que, no mundo actual, estamos mergulhados num ambiente pouco amigável, ou mesmo hostil, à homeostase e à fecundidade dos nossos corpos.

    Na quarta parte, em que se pretende responder à pergunta sobre o que podemos fazer, encontramos conselhos variados. Alguns, lembram-nos a sabedoria ancestral das nossas avós, como “comer fruta e legumes” e “dormir o suficiente”; outros, espelham os hábitos do típico millenial do século XXI, como, por exemplo, a recomendação de “não guardar o telemóvel no bolso”; e, finalmente, temos aqueles que não nos deixam esquecer que estamos na era da tecnologia, como a congelação de amostras de esperma e a procriação medicamente assistida.

    Já bem no final do livro, “entramos” numa espécie de filme louco de ficção científica com soluções mais radicais. Por exemplo, fica-se a saber que, já em 2016, investigadores espanhóis anunciaram ter produzido esperma humano a partir de células da pele. Em simultâneo, o livro fala-nos de cientistas e especialistas em bioética, como Henry T. Greely, que anunciam que “daqui a vinte ou quarenta anos, o sexo para fins de reprodução terá quase deixado de existir”.

    Geelmuyden levanta, por isso, uma série de questões pertinentes também do ponto de vista ético: “Onde nos conduzirá  tudo isto, no longo prazo? O que nos espera? Será um admirável mundo novo ou uma barbárie tecnológica de contornos estranhos? Poderemos adivinhar os desígnios do despotismo dos manipuladores biológicos vestidos de branco? O poderio mundial será transferido para os laboratórios?”

    Um dos principais méritos de Espermagedão, e que torna urgente a sua leitura, reside na necessidade de percebermos que um problema é real para que o possamos resolver. Em suma, só podemos derrotar o “papão” da infertilidade se soubermos que ele anda por aí à solta. Se, alheios à sua existência, o ignorarmos, a Humanidade, como a conhecemos, corre um sério risco de desaparecer.

  • Um guia desperdiçado

    Um guia desperdiçado

    Título

    Lisboa em 10 histórias

    Autores

    JOKE LANGENS e DIRK TIMMERMAN (tradução: Pedro Branco e Marta Jacinto)

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Março de 2022)

    Cotação

    10/20

    Recensão

    Por vezes, são os estrangeiros que, pelos seus olhos, nos revelam o quão bela e pitoresca é a nossa cidade. São eles que, amiúde, nos convencem, no entusiasmo dos seus encómios e deslumbres, a desfrutar de pequenas maravilhas que, por tão presentes no nosso quotidiano, nos escapam, se esfumam no bulício das nossas trepidantes e alheadas vidas.

    Por esse motivo, aprecio sempre a visão dos estrangeiros sobre Portugal e, particularmente, Lisboa. Na historiografia portuguesa e olisiponense, sobretudo dos séculos XVIII e XIX, são célebres os relatos dos costumes e paisagens por olhos estranhos, para o nosso bem e para o nosso mal, pela visão de estrangeiros como Charles Fréderic de Merveilleux, Charles Brockwell, Joseph Baretti, Charles François du Périer (conhecido por Dumouriez), James Murphy e, em especial, Lord Byron.

    Não se exigiria que Lisboa em 10 Histórias, da belga Joke Langens (em parceria com Dirk Timmerman, que curiosamente não aparece na capa), publicada pela Casa das Letras, viesse refazer essa tradição do quotidiano de uma cidade desvendada por olhos estrangeiros para surpreender também os nativos.

    Mas, convenhamos, sendo este livro, como todos, uma aposta editorial – que assim “condicionará” a possibilidade de outro projecto similar nascer nos tempos mais próximos –, esperar-se-ia que fosse exigido muito mais. Dos autores e da edição.

    Com efeito, Lisboa em 10 histórias anuncia na badana que na capital “não existe esquina, passeio ou recanto (…) que não esteja repleto de histórias por contar”, mas depois reduz-se a um mero repositório, em quase toda a sua extensão, de descrições como que retiradas de um qualquer vulgar compêndio histórico, cheio de lugares-comuns ou mesmo baseando-se em mitos sem sustentação na História.

    Um dos casos mais marcantes (ou chocantes, pelo menos para mim) surge no capítulo sobre o terramoto de Lisboa, onde o papel supostamente pragmático do futuro marquês de Pombal é, também aqui, artificialmente sublimado. Um erro crasso. E também erradamente se salienta uma falsa rapidez na reconstrução da chamada Baixa Pombalina, que, na verdade, demorou décadas.

    Isto já sem falar na questão religiosa, que também de forma errada é abordada: na verdade, nunca houve, naqueles tempos, uma visão científica sólida que defendesse a causa natural dos terramotos, e uma das primeiras medidas régias pós-terramoto até foi o pedido ao Papa para que o jesuíta São Francisco de Borja fosse “tido como patrono e protector” do Reino de Portugal contra novas calamidades deste género. Só a queda em desgraça dos jesuítas, após o atentado ao rei D. José I, terminaria com esta veneração.

    Enfim, não ajuda na apreciação desta obra que logo a seguir, na sua quarta história, seja apresentada uma temerária tese logo no título: “Como Napoleão criou de forma involuntária o Fado”. A sequência de acontecimentos que os autores associam Napoleão ao fado são, na verdade, risíveis, e no mínimo são mais fracos do que aqueles que aliariam, se alguém assim quisesse, D. Afonso Henriques à nossa mais célebre forma de canto. Dizer que a História do Fado aqui retratada é demasiado forçada é um eufemismo.

    Com estas duas “maleitas”, o livro tem depois dificuldades em se redimir. Embora a escrita seja escorreita, o registo nunca excede o tom jornalístico, demasiado descritivo, sem rasgos nem chama, mesmo quando o tema é a calçada portuguesa, a recuperação do Chiado, a Lisboa dos hotéis e seus espiões, a frente ribeirinha da Expo, os elevadores e eléctricos que dominam as colinas, ou a arte urbana – capítulo, aliás, de uma inaceitável pobreza franciscana, por se ater somente às obras do artista plástico Bordalo II.

    O livro tem também uma enorme, enormíssima falha, pouco compreensível numa editora prestigiada. A escolha das fotografias é fraca, do ponto de vista qualitativo, os locais não estão identificados em legenda (portanto, impossível de ser visitado numa edição com pretensões a ser um guia), e existem falhas gritantes.

    Não se compreende, por exemplo, que o capítulo do terramoto não tenha a foto de um dos seus símbolos – as ruínas do convento do Carmo –, e depois surjam três fotos distintas deste monumento no capítulo referente à recuperação do Chiado após o incêndio de 1988. O fogo não chegou às imediações do Largo do Carmo, ó céus! E, no capítulo do fado, nem um(a) fadista ou uma casa de fado com o seu ambiente nocturno para amostra.

    O livro terá tido editor?

  • Da sociedade pandémica portuguesa – uma sátira

    Da sociedade pandémica portuguesa – uma sátira

    Título

    A despedida de Ulisses

    Autor

    FRANCISCO MOITA FLORES

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Março de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Nascido em Moura, em 1952, o escritor Francisco Moita Flores é conhecido por ter sido presidente da autarquia de Santarém (2005-2012), e colaborador em vários periódicos e televisão, comentando política nacional e temas sociais. Mas grande parte da sua vida passou pela Polícia Judiciária, embora tenha cursado História.

    Todas estas experiências lhe terão dado um repertório interminável para a ficção. São já vários os seus romances que resultaram em séries televisas e cinema, nomeadamente Os polícias, A raia dos medos, Alves dos Reis, O processo dos Távoras e A Ferreirinha.

    A despedida de Ulisses, a sua mais recente obra, mais do que um romance poderá ser entendido como uma descrição da vida portuguesa durante os primeiros meses da pandemia, causada pelo SARS-CoV-2. A crueza e o realismo custam a digerir, fazendo-nos questionar: mas não é suposto que a literatura nos transporte para outros lugares, outras paisagens, outras vidas?

    O truque de Moita Flores é, neste aspecto, brilhante. A viagem é a de um Ulisses, entre o passado ressentido – pela miséria que o obrigou a deixar os estudos durante a ditadura – e o futuro por que anseia viver com a reforma à vista. Um futuro, espera ele, inteiramente dedicado à sua paixão: a pintura.

    A pandemia, com o primeiro estado de emergência, é um boicote à sua reforma, que de idílica pouco tem. É aqui que entra a mestria de Moita Flores, que intercala os acontecimentos do “estado pandémico da nação” com as viagens interiores de Ulisses.

    A arte foi, é – e a nossa esperança é que continue a ser – o reduto da beleza, o lugar para resgatar a nossa Humanidade.

    Entre as discussões sobre onde comprar papel higiénico ou latas de atum, os pretextos para sair, como comprar brócolos, e a chegada pomposa dos ventiladores, que afinal não se sabe por onde andam os restantes trezentos e tal, Moita Flores enleva-nos com a descrição do Louvre e das sensações e emoções estéticas causadas pela contemplação d’A Origem do Mundo, de Gustave Courbet, ou a Morte da Virgem, de Caravaggio, entre muitos outros. É como se a intenção do autor fosse a de nos permitir uma pausa entre a estupidez e a miserabilidade humanas e a criação e a arte grandiosas, também humanas.

    Este é um romance que nos leva do extremo da mediocridade política portuguesa até à criatividade, bondade, dedicação e beleza que sobrevivem, em potencial, em cada um de nós. Assim nos desliguemos da televisão, das notícias, das redes sociais…

    Eis aqui um romance que perpassa, sob a forma de sátira, por algumas temáticas contemporâneas, ajudando a desconstruir e a compreender a propaganda mediática a que estamos sujeitos.

    É a quantidade de temas e a sua superficialidade, juntamente com alguns lugares-comuns, que nos inibe a uma nota mais alta. Note-se, porém, que o que Moita Flores aborda é o suficiente para que os mais atentos se revejam nas discussões pobres, que a cada momento chegam como que em vagas, para distrair e entreter os que por elas se deixam assoberbar.

    A lucidez é a da personagem principal, Ulisses, que “contracena” com a sua mulher, Florência – um triste retrato de parte da população portuguesa, cuja comicidade só não é maior pela trágica semelhança com a realidade.

  • A construção e edificação da raça ariana

    A construção e edificação da raça ariana

    Título

    O delírio nazi: os académicos de Himmler e o Holocausto

    Autora

    HEATHER PRINGLE (tradução: Isabel Pedrome)

    Editora

    Casa das Letras (Fevereiro de 2022)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Heather Pringle, jornalista e escritora canadiana é uma conceituada autora, com várias obras publicadas, entre as quais se destacam The mummy congress e In the search of ancient North America. Também é editora emérita da revista de divulgação científica Hakai, e publicou vários artigos na National Geographic, para a qual trabalhou vários anos coimo freelancer

    Antes de se dedicar à escrita, Heather Pringle foi investigadora num museu e trabalhou como editora. A sua formação e gosto pela arqueologia tem sido o mote para as suas pesquisas pelos meandros da História e dos mortos.

    Vencedora de dois prémios de jornalismo científico, Heather também ganhou o prémio de não-ficção Hubert Evans com a obra, agora, publicada pela Casa das Letras, e já traduzida para sete idiomas.

    Começando com a vida e ambição de Heinrich Himmler – o segundo homem mais poderoso da Alemanha nazi –, a autora descreve as fases e respectivos intervenientes do processo de edificação do Instituto Ahnenerbe. O grande objectivo desta instituição era demonstrar a existência e a origem de uma raça humana mais digna de admiração, e até de submissão.

    Todas as pessoas, directa ou indirectamente, associadas ao Instituto foram escrupulosamente pesquisadas e documentadas. Através desta investigação minuciosa, a autora constrói uma linha condutora de todo o processo inerente às pesquisas desta instituição que, no final, terão contribuído para alcançar aquilo que Himmler mais desejava: demonstrar a existência de uma raça superior.

    Note-se, porém, que Hitler se opunha a muitos dos empreendimentos de Himmler. Na opinião do primeiro, era conveniente que se ultrapassasse a superstição e misticismo. Foi precisamente, esse, o grande esforço de Himmler, o de encontrar e fundamentar cientificamente a origem e existência de uma raça humana superior: a raça ariana.

    Aquilo que mais impressiona nesta obra é o detalhe e a profundidade. De uma forma meticulosa, Heather Pringle descreve, como quem conta uma história repleta de pormenores articulados, as vidas de cada uma das personagens, a fundação e evolução dos trabalhos do Instituto Ahnenerbe sob a alçada de Heinrich Himmler.

    O controlo do Estado foi visível na ascensão de Himmler e do nazismo, o que se viria a repercutir nas próprias universidades. Na verdade, as SS estenderam os seus tentáculos aos mais diversos sectores da vida alemã, criando aquilo os historiadores viriam a designar de “Estado dentro do Estado”. A Ciência ao serviço do Estado, a Ciência ao serviço do nazismo.

    Himmler planeava “controlar tudo o que seria ensinado nas salas de aula da universidade. Desta forma, as versões nazis da história, da pré-história, da genética e da biologia acabariam por substituir a verdadeira investigação académica” (pp. 138).

    Esta obra de 2006, recentemente traduzida para português e publicada pela Casa da Letras, é, sem dúvida, um convite à reflexão, não apenas sobre o Holocausto, mas igualmente sobre as guerras da contemporaneidade. Em particular, sobre a construção das narrativas que tentam justificar as guerras, pela parte de quem detém o poder.

    Podemos, pois, afirmar ser obra de leitura obrigatória para quem se preocupa com a busca da verdade e pela missão da Ciência. Afinal, porque, para compreender o presente e intervir para um futuro com esperança, é fundamental conhecer e compreender o passado.

    Seremos nós capazes de aprender com a História?