Etiqueta: Casa das Letras

  • Scorsese espiritual

    Scorsese espiritual

    Título

    Conversas sobre a fé

    Autores

    MARTIN SCORSESE e ANTONIO SPADARO (tradução: Dinis Pires e Pedro Branco)

    Editora

    Casa das Letras (Outubro de 2024)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Mais do que serem meras ‘Conversas sobre a fé’, este livro, que resulta de um diálogo contínuo entre Martin Scorsese – um dos mais influentes cineastas contemporâneos – e o padre jesuíta Antonio Spadaro – com uma longa experiência em explorar as interseções entre cultura e espiritualidade –, deve ser lido sobretudo como um exercício de ‘confissão’,não tanto para um perdão, mas para uma auto-reflexão do conhecido realizador norte-americano, no contexto da sua vida e filmografia.

    De facto, embora o título sugira uma óbvia interacção entre Scorsese e Spadaro, os diálogos transformam-se sobretudo numa forma de conhecer os pensamentos e reflexões do realizador, numa profunda imersão nas dimensões humanas e transcendentais que lhe moldaram a vida e a obra, mas onde o jesuíta, que se coloca numa espécie de psicólogo espiritual, o conduz a reflectir sobre os mistérios da fé e a busca pelo sentido.

    A génese do livro, como explicado na introdução, remonta a Março de 2016, quando Spadaro e Scorsese se encontraram para discutir ‘Silêncio’, o filme de Scorsese sobre a perseguição aos jesuítas portugueses no Japão do século XVII. A obra cinematográfica, baseada no romance de Shūsaku Endō, tornou-se assim no catalisador de um diálogo que rapidamente ultrapassou o cinema para se tornar numa troca mais íntima e filosófica sobre a espiritualidade, a dúvida e a graça.

    A partir deste encontro inicial, os contactos dos dois aprofundaram-se, ao longo dos anos, e nessa intmidade revelam-se aspectos menos conhecidos da infância de Scorsese, o impacto da sua formação católica e a forma como a sua fé – muitas vezes turbulenta e desafiada – moldou a sua visão artística.

    O livro estrutura-se assim numa troca de ideias fluida, mas onde Spadaro se coloca apenas como interlocutor atento, guiando Scorsese por um percurso de memórias e reflexões, e simultaneamente introduzindo as perspectivas teológicas e culturais. Deste modo, de uma forma habilidosa, pela via destas conversas sobre fé – que, porventura, um jornalista não conseguiria –, Spadaro oferece-nos uma leitura perspicaz do percurso artístico de Scorsese, identificando as camadas de espiritualidade que atravessam filmes como ‘Táxi driver’, ‘A última tentação de Cristo’ ou o já mencionado ‘Silêncio’. Embora a sua abordagem seja de um enorme respeito intelectual, o jesuíta não abdica de provocar o cineasta, conduzindo-o a explorar os limites da sua compreensão sobre Deus, o sofrimento humano e a redenção. Em todo o caso, Scorsese não surge aqui como um devoto tradicional; antes sim alguém profundamente humano em constante questionamento e procura.

    Enquanto obra, ‘Conversas sobre a fé’ apresenta uma análise riquíssima das forças espirituais e culturais que moldam não só a criação artística, mas também a própria existência. No entanto, notam-se momentos em que o texto se torna demasiado autocentrado, especialmente quando as reflexões de Scorsese recaem em episódios conhecidos, já abordados em entrevistas. A ausência de uma análise mais crítica por parte de Spadaro, que frequentemente opta por concordar ou amplificar os pensamentos do cineasta em vez de os problematizar, pode não acrescentar nada de novo à obra do cineasta, mas enriquecem a transversalidade deste testemunho.

  • O ABC das hipersensibilidades

    O ABC das hipersensibilidades

    Título

    Alérgico

    Autora

    THERESA MACPHAIL (Tradução: Dinis Pires)

    Editora

    Casa das Letras (Junho de 2024)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Não estou a mentir quando escrevo que, assim que abri este livro, comecei a sentir pó nas narinas e uma ligeira comichão nos braços, mãos e olhos. Se há algo que aprendi ao longo da vida, é que a sugestão funciona. O nosso corpo reage à sugestão. Portanto, assim que li a palavra ‘alérgico’ no título da obra, o meu corpo começou a ‘inventar’ sintomas. Dirão que, se calhar me acontece sempre o mesmo quando pego num livro e que eu é não reparei. Mas, como estava com este livro nas mãos, fiquei mais atenta. Admito essa possibilidade, embora, conhecendo o meu corpo como conheço, ele é mesmo ‘sugestionável’. Ou ‘sensível’ a sugestões. Não me pergunta nada. Entra de imediato em modo de reacção. Até que lhe digo ‘calma, não se passa nada’ e ele lá se acalma e regressa ao seu ‘normal’. 

    De resto, este é um dos temas mencionados na obra: a definição de alergia e como saber se se é alérgico ou não. É algo mais complexo do que pensava. O certo é que, até 2030, metade da população humana sofrerá de algum tipo de condição alérgica, segundo estimativas citadas pela autora. Actualmente, a percentagem está na casa dos 40%.

    A autora não poupou em investigação e terá, acredito, de ter ‘lambido’ e estudado muitas páginas de livros empoeirados e cheios de ácaros para escrever esta obra. Apresenta-se como antropóloga, médica, ex-jornalista e professora associada de estudos científicos e tecnológicos que investiga e escreve sobre saúde pública global, biomedicina e alergias. Como se não bastasse, fez doutoramentos na Universidade da Califórnia, em Berkeley e em São Francisco (ou seja, esteve bastante exposta ao vírus do ‘wokismo’, o que nada tem a ver com esta recensão).

    Esta antropóloga experienciou, na sua vida pessoal, o pior que pode acontecer no que toca ao tema das alergias. Quando tinha 24 anos, o seu pai, James MacPhail, morreu devido a uma grave reacção alérgica que sofreu depois de ser picado no pescoço por uma abelha. Tinha apenas 47 anos. 

    Anos depois, chega-nos esta obra, na qual Theresa MacPhail descreve muitos casos e exemplos de situações de pacientes que ajudam a ilustrar as diversas facetas da realidade de quem vive com algum tipo de alergia. Mais do que os casos, a autora debruça-se sobre a história, os mecanismos e o que a Ciência diz sobre essa condição que atinge grande parte da população.

    No caso do pai da autora, por exemplo, nem sequer sabia que era alérgico à picada de abelha. Quantos de nós seremos alérgicos a algo e nem sabemos? Desconhecer que se padece de uma alergia pode ser positivo, pois viveremos sem preocupação, mas também podemos morrer mais cedo, de algo que podíamos ter prevenido. Ou não, se olharmos a vida sob o conceito de destino e da crença de que tudo acontece por um motivo, mesmo a morte física. Nem que o motivo seja inspirar o nascimento de um livro que irá ajudar outros. 

  • O primeiro milionário da História

    O primeiro milionário da História

    Título

    O homem mais rico de sempre

    Autor

    GREG STEINMETZ (tradução: Isabel Pedrome)

    Editora

    Casa das Letras (Julho de 2024)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    É considerado o homem mais rico de sempre mas morreu apenas acompanhado das pessoas a quem pagava para o servirem. Quando estava no leito de morte, a sua mulher estava com o amante. Esta é a história de vida de Jakob Fugger, camponês tornado banqueiro e ultra-milionário, contada pelo norte-americano Greg Steinmetz, que foi jornalista e analista de bolsa. 

    A obra está recheada de factos e eventos que nos remetem para a época do Renascimento e para um mundo de Papas, Reis e Imperadores. Os detalhes ajudam o leitor a espreitar aquilo que terá sido a vida extraordinária do banqueiro alemão que se tornou milionário e esteve, segundo o autor, nas origens da Reforma de Martinho Lutero. Também terá patrocinado a viagem de circum-navegação de Fernão Magalhães. 

    Jakob Fugger era um plebeu, neto de camponeses, que se tornou comerciante e banqueiro. Nasceu e viveu na Alemanha nos séculos XV e XVI e, aquando da sua morte, acumulava uma fortuna que ascendia a cerca de 2%  da riqueza produzida na Europa. Conjugava talento, frieza, determinação e ousadia.

    Fugger conseguiu impor-se numa era de monarcas e em que a Igreja era poderosa.  As suas façanhas e o seu engenho para os negócios moldaram o mundo financeiro até aos nossos dias. Tinha influência na política, numa época em que dinheiro e guerras andavam de mãos dadas (e não andam hoje?). 

    Mas também “explorou trabalhadores, aterrorizou a família, combateu Lutero e financiou guerras contra o seu próprio povo em nome da ordem social”. Steinmetz cita, na obra, uma descrição de Fugger feita pelo fundador do partido socialista da Alemanha, Ferdinand Lassalle:

    “Agora todos estão nas mãos dos banqueiros

    São eles os verdadeiros reis do nosso tempo!

    É como se uma ventosa gigantesca em Augsburg

    Tivesse rodeado com todos os seus tentáculos

    Todo o país, e com isso sorvesse todo o ouro

    À tona de água para o seu interior.”

    Do Renascimento aos dias de hoje, há coisas que mudaram e outras não. 

  • Autobiografia de um romancista singular

    Autobiografia de um romancista singular

    Título

    Romancista como vocação

    Autor

    HARUKI MURAKAMI (tradução: Inês Rocha e Maria João Lourenço)

    Editora

    Casa das Letras (Março, 2024)

    Cotação

    13/20

    Recensão

    Haruki Murakami nasceu em 1949, na cidade de Quioto, Japão. Cresceu em Kobe e estudou teatro na Universidade Waseda em Tóquio. Começou a escrever aos 29 anos, tornando-se, ao longo das décadas seguintes, num dos mais aclamados e populares romancistas contemporâneos. Ouve a canção do vento foi o seu primeiro romance, com o qual ganhou o Prémio Gunzou de Literatura para novos escritores, em 1979. A este, seguiu-se Flíper, 1973. Estes dois curtos romances foram publicados, em Portugal, em conjunto pela Casa das Letras (2016), a editora que nos trouxe a maior parte das suas obras.

    O seu reconhecimento internacional viria acontecer com obras como Norwegian wood (1987) [2016, Civilização Editora], Kafka à beira-mar (2002) [2006, Casa das Letras] e 1Q84 (2009) [2011, Casa das Letras].

    São vários os prémios internacionais de literatura que Murakami ganhou, como por exemplo, o Prémio Tanizaki (1985), com O impiedoso país das maravilhas e o fim do Mundo [2013, Casa das Letras], o Prémio Franz Kafka (2006), com Crónica do pássaro de corda (Casa das Letras), o Athens Prize for Literatureem 2014, com a trilogia 1Q84. Em 2009, venceu o Prémio Jerusalém pela sua obra.

    Murakami também é tradutor e escreveu várias obras de não-ficção, de entre as quais se destacam Música, só música (de que se falou aqui), e Auto-retrato do escritor enquanto corredor de fundo, de 2009 – um livro recomendado pelo Plano Nacional de Leitura. A importância da corrida, como elemento da sua rotina diária, é, aliás, um dos temas deste Romancista como Vocação, original de 2015.

    Nesta obra, constituída por 12 capítulos, o autor japonês conta-nos, de forma aberta, simples e honesta, a sua trajetória como escritor, dando a sua perspetiva sobre a arte de escrever, que, no seu caso, é marcada pela fusão do realismo mágico com referências à cultura pop, explorando temas como a solidão e a alienação nas sociedades contemporâneas. A banda sonora é, com frequência, a música jazz.

    Esta leitura concede ao leitor uma perspetiva intimista de como o autor desenvolveu o seu estilo único, influenciado pela sua paixão pela música e pela experiência de escrever noutra língua. Além dos aspetos técnicos da escrita, Murakami também dedica espaço ao propósito da literatura, ao papel do escritor na sociedade e à relação entre a vida pessoal e a escrita.

    Outro motivo que me levou a publicar estes «registos de discursos por fazer» prende-se com o desejo de reunir sistematicamente todas as reflexões que partilhei em diferentes lugares. Ficaria satisfeito se os leitores as encarassem como uma compilação abrangente (à data) das minhas opiniões sobre a arte de escrever romances” (p. 11).

    O primeiro capítulo é sobre esse ofício de escritor, “aquele que tem necessidade de fazer o que é desnecessário” (p. 26). É o seu ponto de vista, como é pessoal a perspetiva que perpassa todo o livro. Não é, por isso, desengane-se o leitor, um manual de escrita de ficção. Se é verdade que Murakami descreve o seu processo criativo, também reforça aquilo que é sobejamente sabido: trabalho, trabalho, trabalho e rotinas, rotinas, rotinas. A sua persistência e perseverança estão aliadas ao seu estilo de vida ativo e regrado, no qual a corrida diária é obrigatória. O autor enfatiza, assim, que a escrita além de ser uma vocação, é um trabalho árduo que exige muita disciplina e profunda dedicação. Ainda que seja interessante enquanto autobiografia, este livro fica aquém do já citado “Auto-Retrato do Escritor Enquanto Corredor de Fundo”.

    No capítulo 2, Murakami discorre sobre como deixou a sua atividade anterior – era proprietário de um bar de jazz, em Tóquio – para se tornar escritor a tempo inteiro.

    Para cada romance seleciona matéria-prima de uma das suas, por si designadas, gavetas mentais de ideias, memórias, personagens. Os capítulos 4 e 5 desvendam um pouco esse processo criativo e original. Na verdade, é provável que os que procuram receitas (não há, já se sabe) se sintam dececionados. Talvez não sejam os únicos.

    No capítulo 7 – Uma ocupação infinitamente física e individual – reforça a importância, para si, de manter o corpo saudável e em boa condição física para ser capaz de se sentar durante horas e horas a escutar o que tem guardado nas suas gavetas mentais. Murakami descreve o processo de trabalho exaustivo por que cada obra passa, implicando, pelo menos, quatro revisões. A primeira versão é escrita livremente, sem um roteiro definido. Na segunda, elimina as eventuais contradições das personagens; na terceira, adiciona detalhes aos cenários e ajusta os diálogos; e, na quarta, faz correções gerais antes de deixar o texto “descansar” e fazer a última revisão.

    O tema do capítulo 3 – A propósito dos prémios literários – é o principal motivo para a classificação atribuída. Arrisco a dizer que, para a maioria dos fãs (em que me incluo) acaba por ser irónico que, juntamente com Philip Roth, Murakami seja visto como um eterno candidato ao Nobel de Literatura.

    Desde Sputnik, meu amor (2005, Casa das Letras) que a sua escrita envolvente me impele a ler de uma assentada a maior parte dos livros que me chegam às mãos. Agora, ao ler as técnicas a que o autor recorre fica, de certa forma, justificado o sentimento ambivalente que alguns dos livros me causaram. Com efeito, livros houve em que me questionei se a fraca qualidade do texto em português se devia à tradução se à redação original. Mas como reconhece o autor, isso nunca impediu que continuasse a ler as suas histórias fantásticas, com enredos originais e repletos de personagens fantásticas, excêntricas e solitárias.

    Por isso, os leitores que são muitos e também eternos admiradores do escritor não precisavam de um tão extenso relambório de alusões sobre pertencer ou não aos círculos literários, ou sobre o porquê de ser ou não ser nomeado para mais prémios. Bastava, talvez, ficar a ideia de que sim, senhor, se sente frustrado pelas críticas que recebeu, em especial no Japão, e por não ser reconhecido como escritor de primeira linha no seu país – que justificam o capítulo 11 – Ir para o estrangeiro: novas fronteiras. Nós, os leitores não japoneses, agradecemos essas opções por viver além-mar e ansiamos por mais e novos romances.

    No final, talvez apenas reste a este, e a outros grandes romancistas:

    Against criticism we can neither protect nor defend ourselves; we must act in despite of it, and gradually it resigns itself to this” (frase atribuída a Goethe).

  • Da monotonia à liberdade

    Da monotonia à liberdade

    Título

    Caminhar, uma filosofia

    Autor

    FRÉDÉRIC GROS (tradução: Inês Fraga)

    Editora (Edição)

    Antígona (Janeiro de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Nascido em 1965, Frédéric Gros é professor de Filosofia na Universidade de Paris-XII e no Instituto de Estudos Políticos (Sciences-Po) de Paris, sendo também conhecido por ser editor das últimas palestras que Foucault proferiu no Collège de France. Trabalhou extensivamente sobre a História da Psiquiatria (Création et folie, PUF, 1998), a filosofia da punição (Et ce sera justice, Odile Jacob, 2001), o pensamento ocidental sobre a guerra (États de violence. Essai sur la fin de la guerre, Gallimard, 2006) e a noção de segurança (Le principe sécurité, Gallimard, 2012).

    Caminhar, uma filosofia é um seu original de 2009, tendo sido recentemente traduzido para português e publicado pela Antígona. Frédéric Gros começa logo com uma provocação ao afirmar que “Caminhar não é um desporto (…) não há resultados, não há números”, por mais que se queira associar o acto de caminhar ao consumo, caminhar é, tão-somente, “pôr um pé diante do outro”, “uma brincadeira de crianças”, “um só desempenho conta: a intensidade do céu, a magnificência das paisagens” (pp. 7-8).

    Portanto, o leitor fica, de imediato, esclarecido quanto ao que o livro não é. Não é um manual de caminhada, não é um livro de auto-ajuda sobre os benefícios da caminhada, não é um roteiro com os melhores locais para empreender caminhadas, ainda que seja instrutivo em relação à origem do sucesso dos Caminhos de Santiago, num dos cerca de 30 capítulos, “Peregrinação”.

    É, sim, um convite à contemplação e à lentidão, numa espécie de transgressão aos ditames do quotidiano citadino. Por um lado, por se realizar “lá fora, ao ‘ar livre’”; por outro, somente “a aproximação lenta das paisagens” as torna familiares. “Quando caminhamos, a presença instala-se (…), o mundo persiste no corpo” (pp. 9-15).

    Nesta presença, que quase implica uma ausência de nós, há espaço para reflectir, para escutar, para escrever, para ser, para a liberdade, para fugir, para viver e morrer, também. Ou, tão-só, para nos cansarmos – para sentir o cansaço que liberta, tanto mais que a caminhada é, provavelmente, a mais monótona das actividades humanas.

    Em oposição à apologia da velocidade e da pressa contemporâneas, só a repetição monótona, numa cadência constante de uma longa caminhada, permite que experienciemos de forma vívida e intensa cada passo, cada instante, cada metro do caminho.

    Entre este convite à lentidão e à procura do cansaço são muitas as histórias de escritores, filósofos, artistas e outras personalidades com que Frédéric Gros nos deleita.

    Começa com “A paixão pela fuga” de Arthur Rimbaud, “um viandante, nada mais” que também caminhava para “fugir da ignóbil estupidez dos sentados”.

    Vamos, a capa, o chapéu, as mãos nos bolsos, e partamos!

    Para a frente é o caminho.

    Vamos!” (p. 25).

    Vamos, mas devagar, um pé depois do outro. Página a página para, lentamente, absorver o mundo que se impregna no caminhante, sozinho, de preferência. Como Nietzsche, Thoureau e Rousseau.

    “Walden, ou a vida nos bosques” de Henry David Thoreau é uma das grandes referências deste Caminhar, cuja época é fortemente marcada pelo nascimento do capitalismo. O autor norte-americano pressentia que o, então, emergente capitalismo seria um perigo para a Natureza. Propunha, por isso, uma economia que se baseasse em dar um preço a uma coisa em função do tempo de vida pura implicado. A apologia de uma vida simples, tão simples quanto caminhar.

    Para Nietzsche, caminhando oito horas por dia pelas montanhas, esta foi a condição da sua obra, defendendo que o pensamento “nasce de um movimento, de um impulso” (p. 105).

    Com Gandhi, a caminhada fez-se luta política em desobediência à ocupação britânica. A “Marcha do sal” foi concebida como uma epopeia coletiva, contando com a disciplina e sacrifício de todos quantos a integraram. “Algo de orgulhoso permanece na caminhada: estamos de pé. A humildade manifesta a nossa dignidade” (p. 158). 

    As caminhadas urbanas também são invocadas, por intermédio de Walter Benjamin que, socorrendo-se de Baudelaire, deslizou, qual fláneur, por entre a multidão, mostrando como a cidade se fez paisagem. Também Kant tinha a sua caminhada diária, numa disciplina que o libertava, numa repetição obstinada que lhe dava a oportunidade de estabelecer mais um raciocínio estético para a sua ética.

    A caminhada pode, então, ser entendida como uma atitude filosófica, desde os peripatéticos na Antiguidade até à atualidade, como é o caso do autor, Frédéric Gros, que caminha para se encontrar, para se perder e para se cansar.

  • Amor proibido em tempos de guerra

    Amor proibido em tempos de guerra

    Título

    In memoriam

    Autora

    ALICE WINN (tradução: Sebastião B. Cerqueira)

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Janeiro de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    In memoriam, escrito por Alice Winn e publicado pela Casa da Letras, é um romance emocionante que nos transporta para os horrores e complexidades da Primeira Guerra Mundial, enquanto entrelaça uma história de amor ilícito entre os protagonistas, Gaunt e Ellwood.

    A narrativa desenrola-se entre os acontecimentos da guerra, começando em 1914, num colégio interno na Inglaterra rural. Gaunt e Ellwood são dois jovens estudantes que lidam com as suas próprias lutas internas num espaço de masculinidade latente, sendo ambos confrontados, por razões distintas, com as realidades cruéis do conflito iminente. 

    A autora retrata habilmente o contexto histórico, mergulhando-nos em paisagens vívidas e caóticas que nos transportam para o mundo sombrio da guerra, ao mesmo tempo que explora temas como o patriotismo, o sacrifício e o trauma da guerra. 

    Alice Winn consegue como que apaziguar-nos, ao alternar todos aqueles horrores com a beleza poética e algum humor. A inclusão de excertos de poemas da obra de Lord Tennyson, e de outros poetas, contribui para serenar o leitor. Como se houvesse camadas sobrepostas entre a humanidade que é e a humanidade possível.

    A autora também recorre às pausas na narrativa para integrar a página do jornal de Prehshutian, adicionando uma camada de realismo à história e destacando a tragédia dos jovens soldados que perderam a vida na guerra.

    A inclusão do Preshutian baseia-se no jornal do colégio onde a autora estudou, Marlborough College de 1913-1919, e no qual se pode verificar a idade dos jovens mortos em guerra e que ficaram nos memoriais e nos quadros de honra. O que quer que isso signifique… importa, sim, relevar que se torna, mais uma vez e infelizmente, premente refletir sobre o passado. Tanto mais que vivemos num tempo em que acontecem várias guerras em simultâneo – lembrando que, afinal, continuamos a cometer os mesmos erros.

    Somos levados a virar a página atrás de página, pela narrativa envolvente que se enquadra na ficção histórica e cuja pesquisa se reflete na verosimilhança dos confrontos. O romance dá-nos, então, uma visão detalhada e realista da época da Primeira Guerra Mundial, destacando a brutalidade das trincheiras e os efeitos devastadores das batalhas na vida das pessoas. 

    É, sem dúvida, de elogiar a escrita de Alice Winn, particularmente se se tiver em consideração que é o seu romance de estreia.

    Não obstante, em alguns momentos parece um pouco previsível no que à ideologia de género concerne, podendo mesmo ser criticada por aqueles que se revejam num retrato mais ou menos violento dos relacionamentos homossexuais. O sentimentalismo pode ser, igualmente, considerado um pouco excessivo, sobretudo pelo uso de alguns clichés. Reforça-se, porém, que isso não retira qualidade a este romance histórico que expõe as atrocidades cometidas então e que, mais uma vez, se repetem.

    Numa entrevista ao The Guardian, a autora, de 30 anos, revela que era disléxica e que só aprendeu a ler aos nove anos, tendo sido fortemente influenciada pelas leituras que a sua mãe lhe fazia. Alice Winn estudou literatura inglesa em Oxford, depois de viver em Paris e ter estudado no Colégio interno de Marlborough, também no Reino Unido.

  • Manual para ser feliz

    Manual para ser feliz

    Título

    Construa a vida que quer

    Autores 

    ARTHUR C. BROOKS; OPRAH WINFREY (tradução: Sofia Ribeiro)

    Editora

    Casa das Letras (Dezembro de 2023)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    No sítio de Arthur C. Brooks encontramos alguma informação sobre o autor, que é professor de Prática de Liderança Pública na Harvard Kennedy School e de Prática de Gestão na Harvard Business School, onde leciona cursos sobre felicidade, liderança e empreendedorismo social.

    É o criador da popular coluna “How to Build a Life” na revista The Atlantic, e autor de 13 livros, incluindo o bestseller do New York Times de 2022, “From Strength to Strength e Love Your Enemies”. É um orador reconhecido pelas palestras sobre felicidade humana, trabalhando também para aumentar o bem-estar dentro de empresas privadas, universidades, agências públicas e organizações comunitárias.

    É provável que em Portugal (e noutros países) tenha ganhado, agora, visibilidade pela parceria estabelecida com Oprah Winfrey, uma das figuras públicas mais influentes e admiradas do mundo inteiro.

    Com 70 anos feitos recentemente, Oprah tem já um legado enorme em diversas áreas do show business, nomeadamente como apresentadora, jornalista, atriz, empresária, repórter, produtora, editora e escritora. Ganhou vários Emmy pelo programa “The Oprah Winfrey Show” – provavelmente o talk show mais conhecido e visto em todo o mundo. 

    É possível acompanhar uma série de outras atividades subscrevendo o seu sítio: OprahDaily.com.

    Como se pode ler na contracapa deste “Construa a Vida que Quer – A arte e a ciência de se tornar mais feliz”, publicado pela Casa das Letras, Arthur C. Brooks e Oprah Winfrey chegaram à conclusão, durante um jantar, que aquilo que as pessoas querem é ter mais alegria, mais amor nas suas vidas e um propósito. Não querem ter muitos seguidores nas redes sociais, nem muito dinheiro; querem ser felizes.

    Se o parágrafo anterior parece transpirar alguma ironia, é provável que, no mínimo, os potenciais leitores deste livro de autoajuda se sintam curiosos quanto à desvalorização eventualmente dada às questões materiais por parte de Oprah Winfrey.

    Ironias à parte, A arte e a ciência de se tornar mais feliz pode ser um manual muito útil para as pessoas que se sentem assoberbadas pela necessidade de corresponder e mostrar as evidências materiais de sucesso da contemporaneidade. Um tempo profundamente marcado pela partilha da vida privada nas redes sociais, nas quais se dá a impressão de que são todos imensamente felizes com as coisas que compram, sejam esses objetos mais ou menos imponentes, ou a acumulação de experiências extraordinárias, como viagens para ilhas de sonho.

    O que os autores vêm lembrar é que a felicidade está muito longe dessa materialização que, de tão ostensiva, se torna vazia – como pode ser a vida de muitos dos que transportaram as suas vidas para os écrans.

    Para este curso para se ser mais feliz, o livro está dividido três partes.

    Na primeira parte, os autores procuram demonstrar que a felicidade não é o objetivo, tanto mais que a felicidade não é a ausência de infelicidade. Além disso, a infelicidade não é o inimigo – é possível ser-se feliz, vivendo com circunstâncias que causam infelicidade. Um pouco na linha de que depende muito da perspetiva com que olhamos para o que a vida nos proporciona, sendo certo que aqueles que veem o copo meio cheio estão mais perto destes princípios.

    Na segunda parte, o leitor é convidado a usar o poder da metacognição para reconhecer que a linguagem do amor e da gratidão, sobretudo se registados num diário, são imprescindíveis para compreender e gerir as emoções, sem se deixar controlar por estas.

    Em primeiro e segundo lugar, há que observar e registar as emoções; de seguida, criar uma base de memórias positivas e, em quarto lugar, dar significado e aprender com as partes difíceis da vida. A redação reflexiva está, por isso, implícita – o que significa que deve haver um trabalho contínuo e mesmo árduo.

    Uma das ideias desenvolvidas nesta segunda parte refere-se à mudança de foco, de deixarmos de nos concentrar tanto nas nossas necessidades e passarmos a olhar mais para os outros e para o que podemos fazer pelo seu bem-estar: uma fonte de felicidade.

    Na terceira e última parte do livro, os autores procuram mostrar que são, fundamentalmente quatro os pilares que sustentam uma vida mais feliz: Amigos, Família, Trabalho e Fé. É no equilíbrio destas bases de satisfação que seremos capazes de perceber que a felicidade é algo intrínseco, que deve ser de dentro para fora – e que não está no contexto ou nos bens materiais exteriores à nossa existência.

    Por isso, mais do que uma receita, é um trabalho individual para aceitar com serenidade o que não se pode mudar e de encontrar amor e coragem para construir o equilíbrio necessário para manter aqueles quatro pilares.

    É uma leitura que se pode indicar ao leitor que está disponível para se dedicar ao autoconhecimento e sem a ambição de ser milionário, como a Oprah Winfrey.

  • Da feminilidade na pós-modernidade

    Da feminilidade na pós-modernidade

    Título

    Seios e óvulos

    Autora

    MIEKO KAWAKAMI (tradução: Renato Carreira)

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Agosto de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Apesar deste Seios e óvulos ser o seu primeiro livro traduzido para português, Mieko Kawakami, nascida em 1976 em Osaka, estreou-se na literatura como poetisa em 2006 e publicou a sua primeira novela, My ego, my teeth and the world, em 2007.  

    A autora já recebeu diversas distinções literárias no Japão, incluindo o Prémio Akutagawa, o Prémio Tanizaki e o Prémio Murasaki Shikibu. Mieko Kawakami também fez parte da lista dos autores seleccionados para o International Booker Prize em 2022, com o livro Heaven (2021). Traduzido para inglês como Breasts and eggs, tornou-se um grande êxito internacional, considerado um livro “notável” pelo New York Times, e um dos 10 melhores livros de 2020 pela revista TIME.  

    O título do livro em inglês e a respectiva tradução em português remetem directamente o/a leitor/a para os temas das duas partes da história de três mulheres japonesas: Natsu, a narradora, é uma jovem escritora de 30 anos que vive em Tóquio; Makiko, a sua irmã mais velha, é anfitriã num bar de Osaka, e a sua filha de 12 anos, Midoriko.  

    Na primeira parte do livro, mãe e filha fazem uma visita a Natsu em Tóquio, com o objectivo de Makiko fazer uma operação de implantes mamários a um preço acessível. Porquê aumentar o tamanho das mamas? O ponto de partida para uma descrição tão realista como peculiar dos mamilos de Makiko. O corpo feminino é, com efeito, um dos protagonistas do livro. A sua transformação e a sua experimentação, narrada por intermédio do diário da adolescente Midoriko, contribui para o diálogo interior da narradora sobre o papel da mulher na sociedade patriarcal japonesa.  

    Mais do que as questões de género associadas às identidades sociais que tendem a pautar as discussões contemporâneas, o que está em causa é o poder que a mulher tem para decidir sobre o seu corpo e os papéis atribuídos às mulheres, ainda de submissão, em muitos contextos, nomeadamente da pobreza, no qual as irmãs Makiko e Natsu cresceram em Osaka e do qual lutaram para sair. Sem êxito – o que percebemos na primeira parte do livro. Os ovos (de aves) parecem ser a principal fonte proteica para estas mulheres e são uma metáfora para o que se segue.

    Na segunda parte do livro, dez anos após aquela visita, Natsu continua a escrever, mas sem grande convicção – mais por falta de concentração e foco. A sua atenção está centrada, principalmente, em como ter um filho sem o acto sexual. O sexo é algo que abomina.

    A sua pesquisa pela procriação (não muito clinicamente) assistida – tema tabu no Japão – transporta-nos para outras questões éticas relacionadas com a parentalidade, nomeadamente sobre a necessidade que os filhos, com pai desconhecido, têm em saber quem é o seu progenitor biológico. 

    Estas e outras questões são as angústias vívidas da narradora, que se refugia, numa primeira parte, na descoberta da identidade feminina manifestada no diário da sobrinha adolescente. O salto para a segunda parte do livro é de tal ordem, que o contacto com a irmã e a sobrinha são apenas isso: telefonemas e mensagens. 

    É natural que esta obra seja cativante, na medida em que esta narrativa de autoficção realista permite que o/a leitor/a se identifique com os dilemas das personagens. A perspectiva feminina sobre o seu corpo não costuma ser descrita de forma tão natural como crua, levando a leitora a questionar-se sobre a sua própria feminilidade e qual a origem do seu auto-conceito. 

    Os media muito têm contribuído para essa hétero-construção, muito raramente consentânea com o modo como cada mulher observa e sente o seu próprio corpo. Além dos padrões e falsas expectativas disseminados pelos media, também os papéis da mulher, nomeadamente o da maternidade, perpassam as conversas e o quotidiano das personagens, quase todas mulheres. 

    Os ditames e normas sócio-culturais tendem a formular uma ideia de maternidade que ultrapassa a mulher, de tal modo que muitas mulheres se sentem menos mulheres por não serem mães. Isto, por um lado. Por outro, a reflexão interior da narradora sobre a ideia de maternidade ainda associada à paternidade. 

    Este ‘ainda’ é, por assim dizer, o busílis de Natsu. Este ‘ainda’ é um tema do antropocentrismo. Sem dúvida que muitas outras ‘dificuldades’ estão a ser estudadas com o objectivo de nós, humanos, ultrapassarmos esse ‘empecilho’ que é o corpo, do qual somos proprietários e em relação ao qual, cada vez menos, saberemos o que fazer. 

    Desta feita, o livro é cativante para quem aprecia as questões de género e do papel da mulher nas sociedades contemporâneas.  

    O realismo das descrições é, igualmente, envolvente, na medida em que ao contrário de outros autores japoneses, como Haruki Murakami, temos acesso à cultura e modos de vida deste país tão fascinante como longínquo.

  • Mulheres na guerra de caneta em punho

    Mulheres na guerra de caneta em punho

    Título

    As enviadas especiais

    Autora

    JUDITH MACKRELL (tradução: Isabel Pedrome)

    Editora

    Casa das Letras (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Traçar perfis de mulheres marcantes é algo que já consta do “currículo” de Judith Mackrell, e um ofício para o qual tem inequívoco talento. A biógrafa britânica e crítica de dança no jornal The Guardian, lançou, em 2013, Flappers: Six Women of a Dangerous Generation, sobre seis artistas arrojadas que viveram com intensidade os ‘loucos anos’ 1920. 

    Em As enviadas especiais, editado no início deste  ano pela Casa das Letras, a escritora escolheu novamente seis figuras femininas mas por motivos diferentes: estas fizeram História, no século passado, por pavimentarem o caminho para outras repórteres de guerra, numa época em que a sua representação nestes trabalhos era escassa. No final da Segunda Guerra Mundial, cerca de 250 jornalistas mulheres tinham conseguido acreditação junto dos Aliados para reportar o conflito, mas até lá o caminho foi sinuoso.  

    Estas seis pioneiras tiveram de lutar contra convenções sociais, o preconceito, e muitos outros obstáculos perante uma realidade dominada pelo masculino. Contornaram as dificuldades com engenho, criatividade e coragem, como os factos comprovam. Por exemplo, Martha Gelhorn viu-se “obrigada” a se infiltrar num barco-hospital da Cruz Vermelha para desembarcar na praia de Omaha um dia após o Dia D. 

    Além de Gelhorn, as outras cinco “protagonistas”, que ficamos a conhecer em pormenor no final da leitura, são Sigrid Schultz, Virginia Cowles, Helen Kirkpatrick, Lee Miller e Clare Hollingworth. Com excepção desta última, que era britânica, todas de nacionalidade norte-americana.  

    Nesta obra são descritas as suas trajectórias como repórteres de guerra, revelando também as vidas que levaram depois da Segunda Guerra Mundial, e que continuaram a ser tudo menos aborrecidas, para além de longas. Por exemplo, Clare Hollingworth atingiu a meta dos 105 anos, tendo falecido em 2017. Foi a responsável pelo “furo do século”, ao noticiar o deflagrar da guerra, com a invasão da Polónia pela Alemanha.  

    A bravura destas jornalistas, plasmada nos acontecimentos relatados neste livro, valeu honrosas distinções: Helen Kirkpatrick recebeu a Medalha Presidencial da Liberdade, e Virginia Cowles – que quase foi presa em Espanha, em plena guerra civil –, foi distinguida com a Ordem do Império Britânico (OBE).

    Mesmo assim há muitas diferenças entre elas, embora em alguns casos os seus caminhos se tenham cruzado: Martha Gelhorn e Virginia Cowles tornaram-se amigas, apesar dos feitios pouco compatíveis e divergências políticas: a primeira apoiava ferozmente os republicanos, que combatiam a ditadura franquista, enquanto a segunda assumia uma postura de maior imparcialidade. A amizade, contudo, não foi isenta de crispação, e desenvolveu-se em grande parte como tentativa de ‘colmatar’ o sentimento de serem uma minoria feminina no meio dos homens. 

    Feitas as apresentações de cada uma delas, a narrativa desenvolve-se com histórias “entrelaçadas”, condensadas em 16 capítulos e quase 500 páginas. Profícua em detalhes sobre a vida pessoal (e também íntima e até sexual) das correspondentes, é notória a profundidade da investigação levada a cabo pela autora, que fez também uso dos seus diários, notas e registos. 

    As enviadas especiais expõe assim a complexidade das dinâmicas entre as jornalistas e os homens de quem estavam rodeadas, que se revestiam de diversas maneiras: romances sólidos ou fugazes, parcerias, amizades e também o oposto, nomeadamente “desamores”, traições, antipatias e competitividade.  

    Pela negativa, salientamos a omnipresente retórica feminista da obra, que por vezes se torna enfadonha – mas que não surpreende, dado o contexto actual. É perceptível um tom que diminui os homens, insistindo em apontar-lhes inúmeros defeitos, ao passo que as menções a virtudes são “guardadas” exclusivamente para as repórteres, a quem até os traços mais condenáveis nunca merecem reprovação, mas somente elogios.  

    Um dos exemplos é o caso amoroso entre Ernest Hemingway e Martha Gelhorn – que viriam a tornar-se marido e mulher, por poucos anos –, iniciado quando o famoso escritor ainda era casado. Explicando como o romance adúltero serviu para abrir muitas portas à (então aspirante) jornalista, a autora mostra-se complacente com Gelhorn, apontando a “crise” histórica que assolava o Ocidente, e que justificava a transgressão de quaisquer limites morais.  

    A propósito, é patente a forma como as repórteres souberam utilizar o seu ‘charme feminino’ para obter vantagens como jornalistas. Lee Miller, a fotojornalista que cobriu a libertação de Paris e esteve nos campos de concentração nazi de Buchenwald e Dachau, foi acusada por colegas (homens) de granjear sucesso profissional através da sua sexualidade.

    No todo, contudo, esta é uma obra sólida e bem documentada, recheada de dados curiosos. Desde a proximidade entre Martha Gelhorn e os Roosevelt e de Lee Miller com Pablo Picasso, à relação de relativa confiança de Singrid Schultz e Hermann Göring, um dos deputados mais prominentes do partido nazi, estabelecida com o intuito de obter informações privilegiadas sobre os líderes do Terceiro Reich.  

    A obra termina com uma espécie de balanço, em que a autora sugere haver ainda um longo caminho a percorrer para a igualdade, na cobertura de “guerras, revoluções e catástrofes” (pág. 491). Contudo, entre os traumas e horrores da guerra suportados pelas repórteres, torna-se cómico, mas elucidativo, que a Judith Mackrell faça alusão às palavras da jornalista britânica Kate Adie que, cinquenta anos depois da Segunda Guerra Mundial, afirmou: “Nunca é fácil (…) «baixarmo-nos […] no meio do deserto […] e fazermos chichi à frente de 2 mil tipos»”. (pág. 490)

  • As cozinhas do Mundo sem papas na língua

    As cozinhas do Mundo sem papas na língua

    Título

    A cook’s tour: em busca da refeição perfeita

    Autor

    ANTHONY BOURDAIN

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Março de 2023)

    Cotação

    C17/20

    Recensão

    Como espectador useiro e vezeiro que fui dos programas televisivos de Anthony Bourdain (1956-2018), confesso a estranheza que sobre mim se abateu durante a leitura deste livro, tão só porque conhecia de antemão a trágica maneira como o autor havia desaparecido.

    E essa estranheza foi-se formando paulatinamente a cada linha, a cada parágrafo, a cada virar de página, em que o ex-chefe de cozinha, agora transformado em estrela televisiva, perseguia a “receita perfeita” por todo o mundo e enaltecia o prazer de estar vivo e das coisas boas que nos conferem essa alegria, em particular as associadas ao comer e ao beber.

    Publicado em 2001, dezassete anos antes da sua morte prematura, A cook’s tour: Em busca da refeição perfeita foi escrito no rescaldo do sucesso planetário que o anterior livro Cozinha confidencial: aventuras no submundo da restauração (2000) lhe granjeara, e depois de Anthony Bourdain ter iniciado um programa de televisão acerca das gastronomias e culinárias do mundo.

    Por volta dos seus 45-46 anos, Bourdain teve uma crise existencial e decidiu não mais continuar “a atabalhoar brunches num café qualquer de West Village”, antes que o seu cérebro se transformasse em papa. Em conversa com o seu editor, disse-lhe: “Vou viajar por todo o Mundo, a fazer o que quero. Fico em bons hotéis e em barracas. Como comida assustadora, exótica e maravilhosa, faço coisas porreiras como vi nalguns filmes, e vou procurar a refeição perfeita.”

    Além da refeição perfeita, Bourdain também queria aventuras, entusiasmar-se com emoções e arrepios melodramáticos, ver o Mundo. “Tudo dito, no entanto, a escrita deste livro tem sido a maior aventura da minha vida. Cozinhar profissionalmente é difícil. Viajar pelo mundo, escrever, comer, e fazer um programa de televisão é relativamente fácil. É melhor do que preparar o brunch.”

    O enfant terrible da cozinha vai discorrendo sobre as suas aventuras num tom muito pessoal, irreverente, por vezes bastante confessional, polémico ou a chamar os bois pelos nomes, com pormenores históricos de contexto sócio-económico, mas também cultural, com múltiplas referências à Literatura, à Música ou ao Cinema. Os chefs de cozinha também são muitas vezes citados, uns mais conhecidos (Gordon Ramsay) do que outros, bem como figuras públicas ligadas à culinária (Nigella Lawson), salpicando as narrativas com inúmeras descrições pantagruélicas, umas de fazer crescer água na boca, outras de torcer o nariz.

    Eis dois exemplos: num mercado em Saigão, Anthony Bourdain encontrou uma mulher a fritar uns passarinhos minúsculos, com “cabeça, patas, asas intactas, com as entranhas a rebentarem amareladas, saltando de barrigas fritas douradas”, nada que o assustasse. Tinham bom aspecto e cheiravam bem: “Compro um, pego-lhe pelas patas, e a mulher sorridente a encorajar-me, a dizer-me que estou a fazer bem. Coloco-o inteiro na boca, roendo até às patas, bico, cérebro, pequenos ossos crocantes e tudo. Delicioso.” Não há limites para o seu apetite: “Na manhã seguinte, estou de volta ao mercado, onde tenho um pequeno-almoço saudável de hot vin lon, essencialmente um embrião de pato cozido, ainda na casca, com bico meio formado e pedaços de matéria crocante escura enterrados na gema parcialmente cozida e clara de ovo translúcida.”

    Atento e respeituoso dos cerimoniais da mesa em cada país, como por exemplo o pão em Marrocos: “Aqui não se pega simplesmente no pão; espera-se para ser servido”. Pormenores importantes mas que ajudam e fazem parte da integração de Bourdain à mesa de qualquer pessoa. E essa era outra das suas extraordinárias características. Tanto se podia sentar à mesa a comer com um simples pescador como estar rodeado dos mais ilustres chefs no mais conceituado restaurante do Mundo, com o mesmo prazer, irreverência e sentido crítico. Sem papas na língua.

    Para terminar, transcrevo um excerto magnífico e revelador do tom apologético que Anthony Bourdain aplicou na caraterização de certos ingredientes e de como estes foram importantes na sua vida:

    “O que é uma ostra, senão a comida perfeita? Não requer preparação ou cozedura. Cozinhá-la seria uma afronta. Ela fornece o seu próprio molho. É um ser vivo até segundos antes de desaparecer pela garganta abaixo, por isso sabemos – ou deveríamos saber – que é fresca. Aparece no seu prato como Deus a criou: crua, sem adornos. Um pouco de sumo de limão, ou talvez um pouco de molho mignonette (vinagre de vinho tinto, pimenta preta moída, um pouco de chalota finamente picada), é o máximo de insulto que pode ter contra esta magnífica criatura. É comida no seu estado mais primitivo e glorioso, intocada pelo tempo ou pelo homem. Um ser vivo, comido para sustento e prazer da mesma forma que os nossos antepassados o comiam. E elas têm, pelo menos para mim, a atração mística acrescida de toda essa memória sensorial – o significado de ter sido o primeiro alimento a mudar a minha vida. Culpo a minha primeira ostra por tudo o que fiz depois: a minha decisão de me tornar cozinheiro, a minha procura de emoção, todos os meus horrendos erros na busca do prazer. Culpo aquela ostra por tudo. De uma forma simpática, claro.”

    Depois de ler isto só nos apetece comer ostras.