Etiqueta: Carlos Enes

  • Médicos: o escândalo do Adicional

    Médicos: o escândalo do Adicional


    “Exclusivo: dermatologista ganhou 400 mil euros por 10 dias de trabalho no maior hospital público do país”. Este título sensacionalista abriu uma autêntica caixa de Pandora, cujos segredos ainda mal começaram a ser revelados. Tudo começou “a propósito de um caso”, mas rapidamente se multiplicaram as denúncias de situações semelhantes, envolvendo alegados abusos de médicos que, contornando o sistema, chegam a auferir entre 20 e 30 mil euros por mês.

    Os médicos envolvidos nestes “esquemas”, a confirmarem-se as acusações, terão usado o chamado Adicional para benefício próprio. Se assim for, não merecem comiseração. Mas para compreender o verdadeiro problema, convém olhar para a floresta e não apenas para a árvore.

    O Programa Adicional foi criado com o objectivo de reduzir as listas de espera — particularmente em especialidades com maior atraso, como a oftalmologia e a ortopedia — oferecendo incentivos financeiros para trabalho fora do horário habitual.

    Na prática, e sob orientação do Ministério da Saúde, as administrações hospitalares industrializaram o Adicional. Os blocos operatórios passaram a funcionar para lá do horário normal, incluindo sábados e domingos. O horário habitual manteve-se pouco produtivo, enquanto os turnos extra se transformaram em verdadeiras linhas de montagem. Para tal, seleccionam-se os casos mais simples e rápidos, maximizando a produção (e a facturação). Sem esta “desnatação”, os resultados impressionantes seriam impossíveis.

    Quem beneficia? Não são apenas os médicos. Enfermeiros, técnicos, auxiliares — todos recebem remuneração adicional. As administrações hospitalares asseguram financiamentos extra e os fornecedores de consumíveis registam aumentos consideráveis nas vendas.

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    Quando se operam 30 cataratas, compram-se 30 lentes intraoculares. Quando se realizam 6 próteses da anca, adquirem-se seis próteses. Quando se corrigem 12 hérnias com recurso a redes protésicas, estas têm de ser compradas.

    Segundo estimativas actuais, o custo médio de uma lente intraocular ronda os 950 euros, enquanto o de uma prótese total da anca varia entre 1.200 e 4.000 euros. Se, num domingo tranquilo, um hospital distrital realizar 30 cirurgias às cataratas e 6 próteses totais da anca, o SNS despende cerca de 40 mil euros apenas em próteses (28.500 euros em lentes e 12.000 euros em próteses da anca, a um valor médio de 2.000 euros).

    Um serviço de oftalmologia bem ‘adicionalizado’ pode gerar mais de 3 milhões de euros por ano só para o fornecedor de lentes. Imaginem as pressões que os administradores — pobrezinhos — devem sofrer para “adicionalizar” ao máximo… e até o próprio Ministério.

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    O leitor incauto questionará: «Mas não é importante tratar os doentes?». Sem dúvida. Mas vejamos os números de cirurgias às cataratas por 100.000 habitantes, segundo dados de 2022:

    • Portugal – 1.273
    • Bélgica – 950
    • Finlândia – 900
    • Dinamarca – 850
    • Países Baixos – 800
    • Hungria – 480

    É legítimo perguntar: estamos realmente a responder a uma necessidade ou a alimentar uma máquina?

    Disse, no início, que o caso dos 400 mil euros abriu uma caixa de Pandora — e é verdade. Mas não devemos esquecer que, segundo a lenda, o último item na caixa é a esperança. E é por acreditarmos que as coisas podem melhorar, que elas se mantêm em movimento.

  • O Fado, o VAR e os queixumes do Enes

    O Fado, o VAR e os queixumes do Enes


    Trazem-lhes os deuses — ou talvez tenha sido o Fado, essa entidade fatalista e caprichosa — a triste sina de nascerem com o coração tingido de verde e um irracional afecto por um felino de juba, mais talhado para rugir em peluches infantis do que para caçar campeonatos. Refiro-me, pois claro, aos sportinguistas, essa confraria de sofredores que, desde os tempos do senhor Salazar (e vá lá saber-se se não desde o domínio filipino), vagueiam pelo mundo a carpir mágoas de um presumido martírio futebolístico.

    Dizem-se vítimas de roubos. Mas não de carteiristas comuns — não, nada disso. Falam de assaltos metafísicos, conjuras cósmicas, espoliações transcendentes que transformam cada árbitro num Torquemada e cada fora-de-jogo num auto-de-fé. Gritam que lhes tiram campeonatos a ladro, como quem clama que o Olimpo lhes manda pragas. Só que, curiosamente, os roubos só ocorrem quando perdem. Se ganham, foi justiça divina.

    Ora, desde que apareceu o VAR, esperava-se que esses lamentos ancestrais fossem metidos num armário, junto com as faixas de campeão de 1982 e os cartazes do Balakov. Mas não. Agora que têm um olho extra em cada canto do campo, os sportinguistas passaram a desconfiar é do próprio VAR — acusando-o de ser um cíclope manhoso, a ver só para um lado. Aquiles, com o seu calcanhar exposto, queixava-se menos.

    E lá tenho andado com o Carlos Enes, bom camarada de ofício, sportinguista de pergaminhos, daqueles que faz da auto-comiseração um desporto paralelo. Nestes últimos dois anos, o Enes tem vivido num estado de euforia comedido — ganhando títulos atrás de títulos como quem apanha cerejas, sempre a medo de que o árbitro apareça a cobrar IVA desportivo no fim da partida.

    Pois bem, a caminho do Jamor para assistir à final da Taça, lá vinha o Enes no seu modo habitual: voz grave, semblante carregado, como um oráculo de Delfos depois de três cafés. “O VAR é o Tiago Martins”, murmurava ele com a solenidade de quem anuncia um eclipse total. “Está encomendado. Vai ser entregue ao Benfica de bandeja.” Ora, o Tiago Martins — e confirma-se, era mesmo ele — não é propriamente nome de quem inspire, nos sportinguistas, confiança. Diziam-me. Mas adiante. Eu já tinha ouvido história semelhante com o João Pinheiro, que afinal me saiu um João Pinacácia há duas semanas.

    Chegados ao Jamor, sol a prumo e cachecóis ao vento, o jogo começou com aquele nervoso próprio das finais em que há muito mais em jogo do que um troféu: há honra, há vingança, há memes por fazer. E o que vi em campo foi isto: um Benfica personalizado, bem organizado e, surpresa das surpresas, prejudicado em lances capitais — todos com a assinatura silenciosa do senhor do VAR, sim, esse mesmo: o Tiago Martins, o furta-leões.

    Corria o minuto 11 da final da Taça de Portugal, quando Luís Godinho, árbitro da partida, assinalou aquilo que, à primeira vista e aos olhos do comum mortal, parecia ser um penálti inequívoco a favor do Benfica. Bruma remata, Gonçalo Inácio interpõe-se com o braço esquerdo — e o apito soa como quem marca um destino. O gesto do árbitro parecia selar o castigo máximo, daqueles que em finais se escreve com letras maiúsculas e se discute nos cafés durante semanas.

    Mas não. As musas do Jamor, que agora têm nome técnico — VAR —, intervieram. E quem o árbitro Godinho ouviu no auricular foi o senhor Tiago Martins, homem de bastidores e ecrãs, daqueles que só existem verdadeiramente quando o jogo pára. A decisão foi revertida: antes de Bruma rematar, muito antes de Inácio meter o braço onde não devia, já tudo estava manchado pelo pecado original — um fora-de-jogo de Kökçü, que recebera a bola do flanco esquerdo em posição irregular. Sem o VAR que pilha leões, o Benfica teria inaugurado o marcador.

    Minuto 19. Dahl, veloz e ousado, entra na área do Sporting e cai. O árbitro, célere no gesto e firme no juízo, levanta o braço e castiga o benfiquista com cartão amarelo por simulação. Mas, como convém nestes tempos de escrutínio digital, o VAR deveria ter acordado para rever o lance com olhos de lince, porque parece mesmo — nas imagens — que Hjulmand tocou no pé de Dahl. Mas o VAR, qual dorminhoco numa tarde primaveril, não interveio. Nada viu. Afinal, pensei, o Tiago Martins até aprecia os leões.

    Minuto 50. Bruma marca e a nação benfiquista explode de alegria com o segundo golo, que mataria o jogo — por breves instantes, entenda-se. Pois bem, veio o VAR, o tal do senhor Tiago Martins, com o seu bisturi digital, cortar o lance até à raiz e encontrou-se um fóssil de falta na origem da jogada: Carreras terá entrado de pitons sobre o tornozelo de Trincão no acto da recuperação da bola. Um toque, um gesto, uma pisadela do passado — e zás! Golo anulado, falta marcada, cartão amarelo exibido com a elegância de um carimbo notarial.

    Tudo correcto, dizem. Mas ficou legitimado que se pode anular um golo se, algures no processo de construção — talvez numa posse de bola anterior, ou numa jogada que envolva uma troca de olhares suspeita — se encontrar uma falta esquecida, omissa ou até metafísica. E o Carlos Enes a queixar-se do Tiago Martins…

    Minuto 90+5. O jogo já vivia os seus estertores finais. O desespero leva Matheus Reis — talvez possuído por algum espírito guerreiro das estepes — a encerrar a tarde com um gesto digno de arte marcial. O benfiquista Belotti, caído no chão, pôs-se a jeito de servir de almofada ao pé esquerdo do brasileiro, que desceu com zelo e pontaria sobre a cabeça do adversário. Apagam-se cigarros com pisadelas mais suaves.

    Conduta violenta? Evidente. Lance de cartão vermelho? Óbvio. Intervenção do VAR? Pois… aí entra o mistério. O nosso querido vídeo-árbitro, tão atento às solas de Carreras e às sobrancelhas de Kökçü em fora-de-jogo milimétrico, entrou aqui em modo contemplativo — talvez em meditação transcendental.

    Nem um sussurro no auricular. Nada. Tiago Martins em silêncio sepulcral, como quem contempla o pôr-do-sol em paz interior.

    Se calhar, Matheus Reis pisou a cabeça do adversário com força insuficiente para activar os sensores do VAR. Ou talvez o protocolo não preveja agressões à cabeça se forem em tempo de descontos e em estilo zen.

    Depois disto, que resta mais para escrever? Que foi bonita a festa do Jamor? Que o Lage vai dar uma curva? Que o Rui Costa vai de vela? Que o Benfica deve procurar construir uma equipa decente? Que o Carlos Enes nunca mais invocará o VAR em vão?

  • Crime e milagre no Estádio Nacional

    Crime e milagre no Estádio Nacional


    Por felicidade, nesta final não morreu ninguém, embora o Andrea Belotti tivesse passado 25 segundos com o corpo inanimado na relva e o espírito no outro mundo, devido a flagrante homicídio.

    O crime de Matheus Reis, jamais visto num campo de futebol, do pelado do Canelas ao Santiago Bérnabeu do tempo dos galácticos, graças a Deus não foi tolerado no Céu, como jamais o poderá ser na Terra graças ao Conselho de Disciplina. São Pedro mandou o italiano de volta, inteirinho e ressuscitado, para o clube que o contratou.

    O caso precipitou um pedido formal de revisão constitucional, com carácter de urgência, por iniciativa do único associado e simpatizante do Benfica que anda de bem com os resultados.

    Ainda não tenho votos suficientes para a pena de morte, mas a prisão perpétua é tão certa como um penalty do Gyökeres que deve ser imigrante ilegal dar sempre golo.

    O galhardo e mucoso capitão da águia Vitória, mas só às vezes, que nunca por actos ou sequer pensamentos ferrou os dentes ou os pitons nas carnes dos adversários, apresentou na véspera uma proposta para descongestionar o jogo.

    Queremos jogar. Não percam tempo com paragens e faltas.

    Aos 47 minutos, Samuel Dahl — sueco com a situação regularizada na AIMA graças aos bons ofícios do dr. Fernando Seara — desequilibrou-se para cima do Génio Catamo. O antigo árbitro Jorge Coroado viu ali malícia, mas o árbitro vigente, afinal o único que conta para a verdade desportiva, lembrou-se da promessa de Nicolás.

    O juiz alentejano raciocinou como num sonho bem regado debaixo de um chaparro. Um nórdico chamado Samuel, tão branquinho de cara e de calções como o velho Nené ao contrário do Gyökeres, que anda sempre despenteado e de camisola amarrotada pelas manápulas dos defesas nunca iria desrespeitar o capitão e perder tempo com faltinhas.

    Quis foi jogar. Dou golo limpo e só não vou festejar para o topo norte porque neste estádio tenho medo de engenhos pirotécnicos.

    Luís Godinho, logo a seguir, também só vislumbrou a mesma “vontade de jogar” numa rasteira em que o Carreras rasgou as meias às riscas do Trincão, com a pressa de ir tomar banho a tempo de apanhar o primeiro TGV para Madrid. Infelizmente, a tecnologia de fora de jogo, que funciona mal num estádio inaugurado em 1944, com uma premonitória vitória do Sporting sobre o Benfica no prolongamento, arruinou a boa-vontade do árbitro e o plano terapêutico de Rui Costa.

    Reagindo ao sucedido, o maestro atirou o gurosan, o diazepan e a melatonina às pernas do Renato Sanches, e desatou a vazar áudios pela calada da noite.

    — Dez minutos de descontos! Era para o Sporting ganhar!

    De facto, os jogadores do Sporting não precisaram de fazer nada para isso. Bem pelo contrário. Passaram a semana de autocarro descapotável em autocarro descapotável, entre festas e tascas. Comeram tantos petiscos que uma dobradinha não poderia fazer-lhes grande diferença.

    — O Varadas cozinhou isto tudo. E põe a pimenta que quer! 

    Durante a primeira parte, os bicampeões nacionais foram discutindo entre eles o desinteressado discurso do engenheiro Moedas, com palavras escolhidas a dedo para arranharem na garganta do Ricardo Araújo Pereira quando se põe a encher balões só para gozar com a cara ele.

    — Que orgulho estar aqui convosco!  

    Assim enlevados, os defesas leoninos deixaram à vontade os dois turcos e o único Vangelis do Alto dos Moinhos. Respeitosamente, ficaram a admirar de longe as jogadas estudadas entre eles, ao ponto de se tornarem previsíveis, e os potentes pontapés para as nuvens, à procura do Belotti reunido com o São Pedro.

    Depois de sofrerem o golo, os foliões de verde-e-branco mudaram de atitude, mas só para manter as aparências. É certo que mostraram alguma impaciência em levantar os jogadores do Benfica do relvado, mas apenas para os convencer a rematar à baliza de vez em quando.

     — Temos muito orgulho em estar aqui convosco, mas vocês não sabem que até no totoloto é preciso jogar qualquer coisinha?

    Frustradas todas as tentativas de reanimar o adversário, os invencíveis leões acabaram por ser forçados, pelo resultado e pelo protocolo, a escalar as bancadas do Jamor para tirarem “selfies” com o dr. Santana Lopes e um deputado do Chega.

    Meia hora antes, na mesma tribuna, o malogrado presidente encarnado pediu um importante conselho ao primeiro-ministro, Luís Montenegro, que estava manifestamente divertido com a cena.

    Diz-me tu, que ganhaste as legislativas apesar da Spinumviva, como posso eu ser reeleito depois de um central abrir as pernas ao Trincão como fez o António Silva?

  • O bicampeão e a espinha na garganta dos favoritos

    O bicampeão e a espinha na garganta dos favoritos


    As sondagens falharam outra vez escandalosamente, em especial a realizada à boca da garganta por Bruno Lage pelo Natal.

    — Chegámos rapidamente ao primeiro lugar, saímos, mas vamos rapidamente lá regressar.

    Saiu-lhe a previsão furada, como torto o remate ao Vangelis do Alto-dos-Moinhos, quando em Braga tentou fazer uma jogada à Gyökeres, que se esforça por imitar nos treinos, no sofá e sabe-se lá onde.

    Se o Correio da Manhã quiser tratar assuntos de verdadeiro interesse, em lugar das eleições no Benfica e no círculo “Fora da Europa”, tenho provas engraçadas e embaraçosas de que o grego anda a fazer-se à irmã gémea da Inês Aguiar.

    —  Joana, υπόσχομαι ότι θα φτιάξω τη μάσκα μόνο για σένα [Eu ponho a máscara só para ti]!

    Cumprindo uma tradição iniciada no ano passado, que vai repetir-se por muitos anos para ser digna desse nome, o Sr. Director do PÁGINA UM e eu assistimos juntos às últimas duas jornadas nos estádios de Carnide e de Alvalade.

    Ainda avariado do apagão da casa dele, o Pedro desta vez decidiu preparar a jornada de véspera. Creiam ou não os leitores, deu a um jornalista tão independente, rigoroso e científico, que até faz inveja à National Geographic e ao New York Times, para perguntar à inteligência artificial se ainda poderia fazer “alguma coisa” para o Benfica ser campeão.

    Como resultado, Pedro Almeida Vieira apresentou-se na bancada de imprensa com a fita verde da credencial ao pescoço e vários amuletos escondidos nos bolsos: uma pata de coelho, duas penas de uma galinha vermelha, que comprou numa agência de viagens da Rua do Benformoso, e três minhocas roubadas à ração da águia Vitória, mas só às vezes.

    Eu, pressentido o perigo, calcei logo de manhã umas meias do Jubas, vesti a minha camisola verde que tem um leão-índio estampado, com cinco cruzes de pentacampeonato, e disse em voz alta, para o cão e os vizinhos, a “Oração à Luz”, poema maravilhoso de Guerra Junqueiro.

    Do lodo à águia, do metal à fera,

    Da fera ao anjo, do covil à cruz,

    Move-se tudo, existe e reverbera

    O Scott, o dr. Varandas, o Paulinho, melhor roupeiro do mundo, as irmãs Aguiar e eu próprio ficámos com a famosa estrelinha, bem alinhada pelos astros celestes.

    —  Que o leão hoje reine na Terra como o Sol no firmamento.

    Já o Di María, pelo contrário, quando levantava a cabeça nos derbies, ficava encandeado, daí nunca na vida dele ter feito um golo ao Sporting.

    — Papa Francisco, ¿por qué me has abandonado?

    Quando cheguei ao estádio, encontrei Beatriz Hjulmand e Duarte Gyökeres de mão dada, muito apaixonados. Nas costas deles eu vi a táctica de Rui Borges, o Mourinho de Mirandela, para rumar em festa pelas tascas recomendadas pelo jornal Expresso.

    O Pote, que é muito ciumento, é que se intrometeu na jogada, com um golo bonito e abençoado, e o passe decisivo para selar o resultado em carta para a eternidade.

    Aquelas trocas de bola despertaram o ponto G da multidão.

    — Gonçalves! Ggggggggggooonçalves! Gyökeres! Ggggggggggyökeeeeres!

    Por falar em G, de garganta, também é o que distingue os treinadores: de umas sai mosca, noutras entra um bicampeonato. Alheira, bacalhau ou passarinho frito, nas tascas finas é sem espinhas.

    — Eu nasci para ganhar.

    Perante a clareza da classificação final, no dia seguinte Pedro Nuno Santos anunciou que é candidato à presidência do Benfica.

    — Todas as sondagens me dão como favorito.

  • Conto de Natal da Segunda Circular

    Conto de Natal da Segunda Circular


    A esperança da Humanidade concentra-se no bondoso coração dos seres humanos que, apesar das alterações climáticas e do ruído dos aviões, ainda acreditam no Pai Natal.

    Eu acardito! – ensinou o criativo neolinguista Jorge, de apelido Jesus, numa conferência de imprensa bíblica e babilónica, no sentido babado do termo.

    Ainda hoje tal ensinamento guia os espíritos eleitos e escolhidos para enfrentar as agruras diárias do futebol profissional.

    – Acredito que vamos passar o Natal no primeiro lugar! – proclamou “mister” Bruno Lage para reanimar os 26 jogadores do plantel principal, cansados de correr em vão o ano inteiro, fardados de vermelho.

    Eu também acredito! – ecoou a mesma mensagem, num português tão impoluto que até parecia latim, Rui Costa aos ouvidos dos 298.948 sócios que sobreviveram a Roger Schmidt e dos seis milhões de fiéis do Benfica, vivos e mortos, ávidos e desesperados pela luz da boa nova.  

    E assim nasceu um conto de Natal nunca passível de ser sonhado por Shakespeare. O único escritor inglês mais famoso do que José Mourinho era temente a Deus e escrupuloso quanto baste para repudiar o enredo que ora vos venho apresentar. O “Conto de Natal da Segunda Circular” deverá antes ser creditado em desconto dos pecados do velhaco poeta António Ribeiro Chiado, por alguns autores considerado o mais remoto adepto encarnado a passar-se para o glorioso mundo espiritual e das estátuas.

    Acredita, homem mortal:

    Que lês? Que queres saber?

    Aqui jaz quem has de ser.

    No início de Dezembro, um remetente anónimo como os OVNI estrelados que, armados aos cucos, ou em águias, andam a sobrevoar o Pentágono e a Fonte da Telha enviou ao sr. presidente do Benfica um misterioso presente.  Vinha o dito cujo empacotado em papel de prata dourado, atado, de ponta a ponta e de par em par, por duas fitas pretas de licra, presas por colchetes, a recordar os espartilhos que nos velhos tempos decidiam campeonatos.

    Assim que descerrou o embrulho, os olhos de menino da Damaia brilharam como estrelas, só de avaliar os valores, facial e simbólico, da inusitada oferta: uma jarra da Vista Alegre, colecção especial de Natal/2024, assinada pelo promissor designer Inocêncio C. B. O departamento de scouting apurou tratar-se de um atleta já observado num treino de captação, em Évora, e referenciado como sobrinho-neto do lendário artista da inolvidável e quase gloriosa tarde de 22 de Março de 1959, vivida e passada no antigo estádio.

    Qual lâmpada de Aladino, do precioso bibelot vieram à luz um, dois, três, santa vaca do Presépio, um bando! de figurinhas de chocolate, de fabrico Ferrero Rocher: o Malheiro, o Melo, um Manso, outro Nobre, um Narciso, dois Freire, um Ferreira e o Manso repetido, entre outros, mais do que as mães, todos com nomes de reis magos prontos a satisfazer apetites e saciar desejos.

    Estátua do poeta António Ribeiro, conhecido por Chiado, no largo lisboeta com o seu nome.

    O maestro ficou tão comovido! Não logrou, sequer, reprimir lágrimas loucas de felicidade. Enxugou-as no seu lencinho branco de seda, oferecido por uma admiradora nos gloriosos anos de San Siro. Para ter subido aos altares, o santo bispo de Pavia tinha-a porventura mais comprida do que o Sérgio Conceição, que dois mil anos depois lhe vai seguir os passos. Aproxima-os o facto de ambos reverenciarem o Papa. Se o novo treinador do AC Milan lhe ofereceu muitas taças, San Siro é famoso por fornecer pães e peixes ao apóstolo Pedro. 

    Rui Costa sempre olhou para este episódio como a pedra fundadora de uma corrente de virtudes. De lenço encharcado nas mãos e olhos perdidos nas bancadas vazias, deu-se conta do perturbador paralelismo histórico. Pela primeira vez, pôs a hipótese de o mesmo estar na origem do pecado da multiplicação de pontos.

    Com o cuidado de um carregador de andores de relíquias, o menino-presidente pendurou as figurinhas, uma a uma, olhos nos olhos, no pinheirinho do seu espaçoso escritório de vistas amplas para o terceiro anel, com ar condicionado da marca Vitória e casa de banho revestida a mármores Carrara a azulejos grená. E rezou a todos a mesma oração, respeitosamente personalizada pelo evocativo.  

    – São Manso, deposito em ti toda a minha fé, como em todos os árbitros mártires e sacrificados VAR, entrados e saídos desta jarra abençoada. Amém e Aleluia.

    Santinho Malheiro, deposito em ti toda a minha fé, como em todos os árbitros mártires e sacrificados VAR, entrados e saídos desta jarra abençoada. Amém e Aleluia.

    Os VAR, para as leitoras do Benfica que detestam futebol, mas abençoam o entretenimento dos maridos, são uma novel espécie de árbitros, da família dos OVNI, razão para as ostensivas letras maiúsculas. Constituem o produto mal acabado, em permanente evolução, ou degenerescência, de uma inesperada conspiração entre as novas tecnologias e as velhas baixezas da condição humana. Usam muitas ferramentas, como imagens de alta definição, drones, sensores, animações 3D, “câmaras de curtos” (sic) e outras ainda mais esclarecedoras e por isso protegidas do olhar devasso do grande público. Quanto às deficiências físicas, tiveram origem em pandemias investigadas, para arquivamento jurídico-sanitário, nos anos oitenta do século XX: cegueira oblíqua, escoliose vertebral e balanite dos apêndices.

    Quando surgiram, no princípio deste século, os VAR pareceram aos incautos “lufadas de ar fresco”, curiosa expressão de grande riqueza semântica nos balneários e prostíbulos. De auscultadores e microfone, pareciam relatadores de futebol isentos e lavadinhos, imunes a tão decadentes doenças. Desgraçadamente, com o passar do tempo, esse juiz de todos nós, foram superando pruridos e preconceitos. Tal e qual como esperado pelos peritos mais experientes no campeonato nacional, tornaram-se umas verdadeiras máquinas de fazer e desfazer golos, muito jeitosas na violação de campeonatos e no abuso das almas inocentes.

    – Creio nos anjos que andam pelo Mundo – cantou a poeta Natália Correia, que tanta falta nos faz para conhecermos, verdadeiramente, o outro “mundo” que nos rodeia. Em todas as áreas, até no futebol, os mais virtuosos portugueses levam este maravilhoso verso à letra. 

    Eu acredito neste Conselho de Arbitragem! discursouo dr. Varandas, que é maior e vacinado, na consoada do clube.

    E tenho uma grande fezada no João Pereira! – confidenciou, neste caso em privado, a um apreensivo Hugo Viana.

    Esta solene profissão de fé cozinhou o mais generoso bodo aos pobres de que há memória na Segunda Circular. Foram sete jogos e 45 noites a esvaziar a despensa para engorda do adversário, à velocidade do Airton Senna às curvas no Mónaco. Quando se sentiu a bater num muro, o dr. Varandas desligou a Netflix e deixou a orgulhosa devoção masoquista cair morta na cama.

    – Peço muita desculpa pelo presente envenenado.

    Visionário declarado, como o Grande Chefe Passaláqua, num instante lambeu as feridas e no seguinte desembainhou a solução com recurso às mesmas armas.

    Há mais de um ano que Rui Borges estava no meu radar.

    De Carnide a Buenos Aires, os jogadores do Benfica continuaram a passar o Natal felizes e descansados, indiferentes a manobras militares e sem especiais preocupações de organização defensiva. À hora marcada para o jogo, levantaram-se do colchão de neve do primeiro lugar do campeonato e subiram ao relvado de Alvalade como renas da Lapónia, a dar toques de calcanhar com botifarras de marca.

    – Acardita, Ángel!

    Enquanto teve voz, “mister”Lage puxou pelos seus campeões do mundo de garrafinha na mão, a ver se aos golinhos de água lhes mostrava com cristalina transparência o caminho para o golo.

    Atira-te a ele, Nicolás!

    Só parou de gritar quando àqueles dois falharam as pernas e a ele estoirou na garganta a última corda vocal de barítono do Teatro Luísa Todi.

    Do outro lado, um treinador da temperança dos cavalos criados nas fráguas, preparou o jogo com a astúcia dos lobos da serra do Alvão.

    Creide que sodes la meyor equipa del campeonato!

    Disposto a acatar a mensagem, a estrela da equipa passou três dias e três noites a ler um dicionário bilingue sueco-mirandês, entremeado com o bestiário de Miguel Torga. E assim Viktor Gyökeres chegou à brutal iluminação táctica de que representa em campo a força indomável do Gävlebocken, bode com mais de 13 metros de altura, exibido em Dezembro no centro da sua terra Natal.

    Du kan inte stoppa mig så!

    Bem-dito, melhor traduzido em campo. Aos 29 minutos, deixou para trás as oito chuteiras dos defesas e fugiu com as canelas para a linha de fundo. Eles ainda torceram o pescoço para ver, como no cinema, uma bola amarela e redondinha como o milho cruzar a capoeira que juraram defender, de mão no peito e cabeça na conta bancária.

    Génio do Catano treinou nas tradicionais “corridas à galinha” dos natais da sua infância para ser o primeiro a chegar a estes cruzamentos com a história.  

    Cocorococóoo-cóoooohhh! – cantou a bola, ao sentir a pancada viril do atacante moçambicano.

    Estava manifestamente com saudades e desejos daquela inesquecível jogada nocturna que fechou o derby e as contas quanto ao campeão da época passada. A expensas e penas do velho e querido rival, o leão do Delta do Zambeze tornou a abrir a juba para a eternidade.

     – Que seja um bom Natal, para todos vós!

    O Natal de 2024 vestiu-se de vermelho por seis dias e uma solitária jornada. O Chiado passou essa semana a decretar alerta vermelho à saída do metropolitano, mas ninguém o quis ouvir.

    Tudo passa n’um momento,

    como bem se manifesta.

    Tudo não tem fundamento,

    tudo acaba, tudo é vento,

    (…)

    tudo é de pouca dura,

    o tempo tudo despeja.

    Antes de se despedir, o aliviado autor desta crónica agradece as leituras e pede, envergonhado, um desagravo por ter dito nas vésperas do jogo que não acredita no Pai Natal. Felizmente, como merecia, foi desmentido a tempo pelo sr. secretário de Estado das Infraestruturas.

    Vamos inaugurar o Aeroporto Luís de Camões com uma pista para o Pai Natal aterrar e um hangar para as renas – anunciou o dr. Hugo Espírito Santo, na mensagem oficial de boas-festas do ministério, inclusiva de pessoas e animais.

    A julgar pelo nome, este divertido e bem-humorado governante deve ser adepto do Sporting. Depois do derby, ainda na tribuna reservada aos jornalistas, compreendi finalmente os seus planos para a expansão aeroportuária de Lisboa. Não passam, afinal, de um caminho ardiloso para viciar o campeonato.

    – Como poderão Di María e Otamendi, sempre que forem passar o Natal à Argentina, aterrar a cinquenta quilómetros do estádio – e ainda assim chegar a tempo às jogadas?

    Foi pena nenhum deles ter comparecido na sala de imprensa. A pergunta passa a ser retórica e deixo aos leitores a resposta.


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  • A falta de acento

    A falta de acento


    Forçados a uma grossa e bruta alteração climática, dez graus a mais em tão-só três horas de viagem, poderia ter ocorrido aos milionários futebolistas do Manchester City, mais aos seus brilhantes penteados, delicadas tatuagens e adubadas maçãs-de-adão, irem preparar o jogo para os areais da Caparica. Faziam uma peladinha cinco contra cinco, mais o Haaland sempre à mama, a jogar para os dois lados, a ver se resgatava o moral e reparava a autoconfiança. No final, lambuzavam-se com um arroz de polvo no Barbas, onde os atletas das camadas jovens do Benfica têm dez por cento de desconto vitalício e direito a um gelado de morango ou framboesa por conta da casa.  

    Para despeito e frustração da nação benfiquista, um já desenraizado e por consequência desarrazoado Bernardo Silva, guia turístico da equipa celeste dentro e fora dos relvados, optou por sentar os afamados craques e o catalão detentor do record de 279 cuspidelas no banco de suplentes num só jogo da Premier League, à mesa do Solar dos Presuntos. E foi assim que o dito melhor treinador deste e do mundo do além, desembrulhou a sua infalível tática, para a história da Liga dos Campeões, em todas as línguas menos o castelhano, no famoso restaurante onde os lisboetas adentram esfaimados e se retiram satisfeitos, de barriga cheia e o espírito a entornar de sonhos com uma casinha em Ponte de Lima, ou da Barca, e muitas papas de sarrabulho nos anos de reforma.

    Ai carago, no Minho é que é bom!

    Para lá da rasteira, para cartão vermelho, à devoção do hirsuto e histórico adepto das águias, o pequeno em estatura mas de alto gabarito Bernardo também começou, logo na véspera do jogo, a desperdiçar escandalosamente as fidalgas ofertas do clube anfitrião. A primeira dessas condescendências, só para amigos dispostos a colaborar na farra, teria sido uma viagem, exclusiva e personalizada com camisolas antigas do Cristiano Ronaldo e as edições do dia do Record e do Correio da Manhã, no divertido e espaçoso autocarro anfíbio HIPPOtrip, passe a publicidade, de ida e volta entre o estádio de Alvalade e a praia do CDS. O glutão da Silva, cada vez com mais olhos do que barriga e cabelos para pentear, imaginando já ter à frente os adversários, soltou um grito barulhento de guerra aos empregados, registado em acta nas páginas electrónicas da revista NiT.

    Tragam tudo o que é nacional, porque o que é nacional é que é bom!

    O referido periódico sempre-em-linha relata que começaram a sair da cozinha, logo de entradas, “pratos tipicamente portugueses” como um “Polvo à Galega” (sic).  O octópode marinho foi servido em finas rodelinhas com molho muito picante, a fim de aquecer as hemorroidas dos comensais para 90 minutos de esforços e tropelias na fofa relvinha de Alvalade.

    Nas entrelinhas da NiT, não tanto nas minhas, com este polvo à galega tipicamente português fica a sugestão ao senhor ministro da Defesa, também ele um minhoto com ares e memórias de grandes noitadas em Vigo: se justamente anseia por uma recomposição de fronteiras, não seria mais interessante a conquista do Cabo Finisterra, em detrimento do promontório seco de Olivença?

    Como segunda entrada, os refinórios cityzens chuparam com concupiscência umas ameijoas à moda do poeta Raimundo de Bulhão Pato, que tão bem antecipara em verso aquela festa vespertina – e o jogo do dia seguinte –, com a precisão dos gastrónomos de novecentos:

    Amigos, à formosura

    Que nos cerca neste instante,

    Erga-se a taça escumante

    De purpurino licor.

    Vivo enthusiasmo rebente

    Agora de nossas almas,

    Caiam palmas sobre palmas

    Cada vez com mais ardor!

    Dito o poema pelo padeiro Matheus, num acento luso-tropicalista que soa a fado em inglês, encheram-se os copos de uma “selecção” de vinhos nacionais, “ao gosto de cada um”, e a sala transbordou em entropigaitados brindes: ao nevoeiro de Manchester, à independência da Catalunha e à bola de ouro do castelhano Rodri, que tanta falta lhes tem feito no meio do campo, quanto mais à mesa.

    Os pratos principais do banquete conservaram fresca a sofisticada frugalidade dos ilustres confrades.  Bernardo declinou a célebre “foda” em favor do cabritinho assado, também “à moda de Monção”. E condescendeu num arroz, mas de lavagante, sem saber que é um prato do dia corrente e alegadamente barato nas tascas de Oeiras.

    Para uma constelação de estrelas, um pijama de sobremesas. No meio do mesmo, a espreitar ousado, pudim Abade de Priscos, outro gastrónomo minhoto, eternizado por uma tão premonitória como franciscana frase, que hoje em dia daria direito imediato a coluna permanente no jornal A Bola e lugar cativo no Estádio da Luz:

     – Todo o burro come palha, a questão é saber dar-lha!

    No Minho, no tempo de padre Manuel Rebelo, o Abade de Priscos, os velórios eram um óptimo pretexto para fartos banquetes. Os amigos reuniam-se na casa do falecido para se despedir dele e desfrutar de uma última refeição “à pala”. As famílias mais abastadas contratavam um cozinheiro para confeccionar iguarias para dezenas de pessoas. Um desses mestres em bodas de despedida para a eternidade, salvo erro de Lanhelas, terra de boas solhas e afamadas bandas de música, ficou famoso por irromper nas salas a cheirar a cera e a defunto, a anunciar os paladares mais aromáticos da chouriça e do toucinho caseiros:

     – E então, choramos ou jantamos?

    Com um inexplicável travo a vinho verde branco dos beiços à garganta, os milionários futebolistas do City largaram do Solar dos Presuntos já bem anestesiados, directamente para o xixi e cama, no mais obscuro desconhecimento da íntima relação futebolística entre bandulhos cheios e tristes resultados. Fiados na cor das camisolas e embriagados de sono, nem rezaram ao anjo da guarda nem pediram a Deus perdão pelos pecados da gula, alardeado às Portas de Santo Antão, e de exibicionismo de taças, em pleno Terreiro do Paço.

    Em campo, sofreram o castigo da metamorfose. Entraram como lobos, esfomeados mas sem maneiras. Assim que fizeram um golo, atraiçoando indecentemente um samurai pelas costas, passaram a exibir as penas como pavões.

    No estádio, começou a cheirar a queimado. Pareceu um velório aos espíritos mais fracos, a carpir Rubem Amorim por tão triste e velhaca despedida.

    Aos 38 minutos, deu-se o regresso à normalidade. Geovany Quenda dominou a bola no peito com a perícia de um anjo e articulou um passe de magia, a rasgar linhas e impossíveis. Acordou a equipa, levantou o estádio e fez disparar o cometa Gyökeres para a baliza do topo Norte, como a estrela polar.

    É golo!

    Ao intervalo, com o jogo naquele empate manhoso, Morten Hjulmand fechou a porta do balneário ao treinador e mostrou os dentes brancos e o domínio das tradições portuguesas que fazem dele o capitão:

    E então, choramos ou rebentamos com eles?

    O resultado não estava escrito nas estrelas, mas antes nas botas do mágico Pote e do Trincão, a serpente do Minho, assim como na trela invisível com que o génio Catamo enforca defesas atrás de defesas nos minutos finais de cada desafio decisivo. Num espeto luso-nórdico, os pavões cityzens assaram como cordeiros, daqueles que são servidos em Monção pela Páscoa, com muita malícia e uma pitada de limão.

    Na conferência de imprensa, à falta de explicações para a táctica do 4-1 porque não entrou no balneário, o treinador de abalada falou do plano de jogo para a sua carreira.

    Ruben é sem acento.

    Não sabíamos, jamais o poderíamos ter imaginado, mas é mesmo. Falta a Ruben o acento no “é”, de José. E as cedilhas de ambição e de confiança em si próprio, para lutar e ser campeão da Europa, com uma equipa portuguesa bem nutrida de saboroso talento, que até dá gosto ver jogar.


    N.D. Esta crónica do Carlos Enes é publicada sob protesto, e apenas graças ao meu espírito de abertura à liberdade de expressão. Não que a crónica esteja mal escrita, pelo contrário; mas por glosar em torno de comida, quando, por falta dela (lembram-se do leitão de Negrais?! Nunca mais houve nada disso naquela pequena varanda cerca do Campo Grande), fui convencido pelo Carlos Enes a ir debicar algo ao intervalo fora do estádio. Acabámos a comprar asas de frango no McDonald’s, à falta de um Solar dos Presuntos nas proximidades, ou uma roulotte de torresmos, e perdemos, à conta disso, dois golos do Sporting. Podia ser pior? Podia. Por um triz, não houve um acidente de trabalho porque alguém, aventureiro, se quis meter em atalhos, ribanceira acima, ignorando umas escadas cinco metros à frente. Mas isso é outra história. De resto, ressalvo como um benfiquista de coração conseguiu pôr tantos sportunguistas felizes e agora a suspirarem pelo seu regresso ao estilo de um D. Sebastião de Alcochete.

    Pedro Almeida Vieira


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  • Juro que nunca festejei um golo do Sporting

    Juro que nunca festejei um golo do Sporting


    Armado de uma habilidosa trela invisível, o Génio Catamo puxou a bola para dentro até encontrar uma pista de descolagem entre os centrais. Nasceu nele, que eu vi e poderei testemunhar em tribunal, uma juba resplandecente de leão do Delta do Zambeze. Quando a perna esquerda do Aladino de Alvalade subiu ao céu, para urdir o retumbante remate de desenlace, eu abri a boca para um grito do catano, inconveniente e obsceno numa bancada de imprensa.

    – Está lá dentro! Está lá dentro!

    Uma tesoura da prestigiada marca luso-canadiana Stephen Eustáquio ainda cortou a relva num esforço inglório. De igual modo, o desesperado guarda da baliza adversária mergulhou como um perdido naquele rio selvagem. Debalde de água fria para ambos. Fatal como o destino, um filhote de leão em forma de bola voadora cruzou a grande área feito um raio e resolveu o clássico. Tendo eu gritado antes do tempo, já nem festejei o golo. Pensei antes em resgatar de imediato a reputação e a aparência de imparcialidade entre camaradas jornalistas.

    – Pedro, desculpa-me. Não devia fazer estas figuras credenciado pelo PÁGINA UM, mas foi um reflexo condicionado pelo meu início de carreira.

    E então recordei os gloriosos tempos na Rádio Alto Minho, a carregar pesadas bobines com quilómetros de cabo e mesas de mistura com dois metros por três de cursores de áudio. Ao lado de profissionais de gabarito, como Mário Gonçalves, Paulo Sérgio e o lendário Paulo Torres, mais reconhecido na Expo de Sevilha do que o José Rodrigues dos Santos, eu descrevia “o pormenor” das jogadas do Vianense e as noites gloriosas da Juventude de Viana no hóquei em patins. Quando me lembrava de dizer que um penalty a nosso favor tinha sido mal assinalado, o meu pai recebia no dia seguinte o pontual protesto de cidadãos indignados pela minha traição à cidade. Paciente, suportava estoicamente, sem comentários, os ouvintes que através dele tomavam a palavra. E depois insistia comigo para perseguir a verdade e o sonho de ser jornalista. Andei assim dos 14 anos até à maioridade. Descobri agora que, afinal, passei ao lado de uma valiosa carreira, a relatar os golos sempre em primeira mão, catorze segundos antes da concorrência.

    – Pedro, conheces outro relatador que cante golo antes de um remate de fora da área?

    O Senhor Director do PÁGINA UM respondeu que não, mas acrescentou que ando a cantar muito de galo, uma frase que lhe oiço desde que começámos a ir à bola juntos, na época passada. Eu acho que ele bem poderia personalizar tal censura com recurso estilístico a um animal verdadeiramente perigoso, como um leão ferido ou um cavalo puro sangue da Suécia. Considerando a queda dele para as aves amestradas, engulo com amizade a injustiça. E até concordo que devemos ter cuidado, em especial com as viagens dos árbitros ao Catar e outros vícios tão antigos como as velhas profissões. Ao fim de tantos anos de roubos de capoeira, estamos a expiar o tempo de presidentes, treinadores e atletas de aviário. A nossa festa é tão natural como a própria sede e a fome insaciável do Gyökeres.

    – Viste a raça do animal? Ainda gosto mais dele por ser bravo do que pelos golos atrás de golos que marca.

    Aos 92 minutos, com o resultado em aberto depois de um jogo de ostensivas oportunidades desbaratas, o namorado loiro da bela Inês foi despudoradamente derrubado pelo canivete canadiano de marca. Para o efeito, tal adversário, embora fresco e recém-entrado em campo como uma alface frisada, agarrou-se à mais bela e perigosa camisola do campeonato com as duas mãos que tinha mais ao pé, por manifesta falta de pernas para lhe aplicar uma tesourada. E o gigante sueco, em lugar de rebolar de dores e agredir a relva como ditam os tristes hábitos de violência doméstica da liga portuguesa, levantou-se como uma mola, de dentes afiados, a convidar o leão do Zambeze para a estocada final no adversário.

    – Eu passo-te a bola e vais ser tu a marcar, porque os meus pais podem estar a ver o jogo pela parabólica e cortam-me a mesada se me apanham a mentir duas vezes no mesmo jogo.

    Farnel do Sporting: sandes de leitão de Negrais, bem aviada…

    O génio moçambicano, outro rapaz educado e bem-mandado, sobretudo nos minutos de compensação pelo tempo gasto pelos adversários em rábulas e fitas manhosas, em menos de um minuto recebeu o passe, atrelou a bola, abriu a juba, fez golo e resolveu o clássico. Depois disso, festejou com os adeptos eufóricos nas bancadas, reconhecido pela assistência mas ainda intrigado quanto a tão insuperável generosidade. Só nos balneários, o mágico Pote, que tem muita graça, traduziu por gestos, com os dois pés que tem sempre à mão e os 32 dentes brancos de tantas piadas, as misteriosas razões do sueco.

    – Jag har aldrig gjort ett mål i mitt liv!

    Peço desculpa aos leitores interessados por me abster de traduzir. Se a entidade que censura a comunicação, para pontualmente justificar a própria existência, me apanha a reproduzir uma mentira despudorada, troca-me a carteira profissional por um cartão vermelho. Essa correspondência poderia agradar ao Pedro Almeida Vieira, que (ainda) é do Benfica e adora metê-los em tribunal, mas eu prefiro deixar em paz e ao pó a caixa do correio. Por favor, peçam ajuda ao dr. Google, ao mágico Pote ou a outro tradutor qualificado.

    – Jag har aldrig gjort ett mål i mitt liv!

    O cidadão Viktor Einar Gyökeres, nascido a 4 de Junho de 1998, em Estocolmo, Suécia, um metro vírgula oitenta e sete vezes noventa quilos de força bruta orientada, com residência e piscina em Lisboa, é suspeito de cometimento na forma continuada do crime de fraude sobre os valorosos e honrados defesas centrais adversários. Há indícios recolhidos e bem embrulhados nas bandeiras pelos funcionários fiscais de linha, de que o arguido proferiu aquela frase do início do jogo até sofrer uma falta inocente na grande área. Apanhado em flagrante ameaça e consumada violação da linha de baliza, alega ter-se inspirado numa entrevista recente do histórico presidente adversário.

    – Eu nunca comprei um árbitro. Isso não é verdade!

    Assim seja eu arrolado como testemunha, abonatória, e estou disposto a declarar que o arguido só disse a verdade. Pelo menos, nos exactos termos em que eu declaro, juramentado, não guardar qualquer memória de algum dia haver festejado um golo do Sporting. No último jogo, é verdade, gritei golo, mas foi antes do mesmo ser materializado. Ora, meritíssimo juiz, não pode tal descrição objectiva, factual e incontroversa da realidade, por mais adiantada, ser confundida com outra coisa que não o despretensioso relato de um profissional da imprensa desportiva, com 37 anos de experiência.


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  • Os sócios do Porto votaram para ganhar, eu votei em branco

    Os sócios do Porto votaram para ganhar, eu votei em branco


    A conquista do campeonato com recordes de pontos, vitórias, golos bonitos e mulheres notáveis – tanto que já há muitos casamentos marcados –, deixou o plantel do Sporting vulnerável. O balneário começou a meter água e pedidos de autógrafos por todos os lados. Os geniais mas exaustos e aliviados craques deram por eles emaranhados até ao pescoço – os mais baixos até à raiz dos cabelos – numa maré de cornetas de plástico, foguetes e debates sobre comportamentos adequados na sociedade portuguesa.

    O Kökçü não é conhecido por ser lá muito trabalhador – comentou um conhecido adepto do Benfica, já a pensar na Taylor Swift para salvar a época. E que época, caramba! Qual Gabriel Alves passado a escrito, o ilustre director do PÁGINA UM bem relatou, ao longo de 17 aborrecidas e aturadas jornadas, como foi enervante e dolorosa a temporada na Varanda da Luz. Apesar do esforço democrático de Pedro Almeida Vieira, o comentário do adepto de bancada parlamentar não mereceu quaisquer desculpas no balneário do Sporting.

    A princípio, os jogadores mergulharam em pequenas celeumas sobre direitos humanos e liberdade de expressão, que aos poucos degeneraram num burburinho generalizado, do Paulinho roupeiro ao Paulinho goleador, sobre a qualidade dos treinos do turco do Benfica. A polémica culminou na fundada suspeita quanto à existência de um plano concertado, a partir das mais altas instâncias e palácios, para retirar mérito à conquista do pátrio título e das raparigas mais bonitas de Lisboa. Coube ao presidente anunciar ao balneário um plano terapêutico para o completo restabelecimento da reputação do clube.

    Na final da Taça, é para rebentar com eles!

    Está bem que faltou ao dr. Frederico Varandas, provavelmente o melhor presidente do Sporting desde que sou nascido, a precisão retórica de um José Hermano Saraiva ou a profundidade científica de um Sousa Veloso. Mas, que diabo, os médicos já não prescrevem com a prosa do dr. Fernando Namora! Mais uma vez, um inocente e desadornado comentário, despido de quaisquer intenções malévolas ou maliciosas, não passou despercebido no balneário do Futebol Clube do Porto.

    A final da Taça de Portugal era, pois, um jogo de alto risco.

    Fui ao estádio com a irresponsável esperança de curar as traumatizantes memórias das finais recentemente perdidas contra a gloriosa Académica e o colossal Desportivo das Aves. Até mesmo a réstia de fé que arrastei para a tribuna de imprensa era infundada: por ver ao vivo Pedro Almeida Vieira escrever ao vento do Jamor, enquanto eu cruzava os braços de frio, agravei um resfriado com vários dias de evolução. Aprimorado com uma camisola verde que alegremente me cravou, orgulhosamente vestida na bancada dos jornalistas, o Sr. Director animou-me a ir resistindo, sem grandes espirros, a 120 minutos mais descontos daquilo.

     – Viste esta jogada? O Sporting este ano tem mesmo um ataque de rebentar!

    A equipa do Sporting entrou em campo com a desconcertante descontracção daquele inocente pónei que foi violado nos seus direitos à alface e à imagem num supermercado de Sintra, sem ao menos o PAN relinchar por ele de indignação em conferência de imprensa. Já os jogadores do Porto apresentaram-se como cavalos selvagens. Matreiro, o Otávio pediu respeitosamente ao Gyökeres para ir atacar para outro lado, que ele não queria passar vergonhas no Estádio Nacional. O St. Juste, qual anjinho a esbracejar as asas, ficou tão extasiado pelo golo mais bonito da tarde que não tardou a afogar a equipa na esparrela do adversário. Talentoso e artista, Evanilson tantas vezes tentou, sem sucesso, encandear o árbitro e enganar um valente guarda-redes de 19 anos, que já no prolongamento caiu morto na relva e foi mesmo penalty.

    Eu preparava-me para escrever o nome de Diogo Pinto no boletim distribuído pela Federação Portuguesa de Futebol aos jornalistas para escolhermos o homem do jogo. Senti-me tão confuso e contrariado que engoli em seco e votei em branco.

    Confortaram-me, em coro ruidoso mas bem ensaiado, os adeptos do Porto, soltando até ao fim excruciantes gritos de alívio de cada vez que uma quadrilha de defesas roubava a bola ao Puro-sangue do Sporting. Aquele estridente trauma terá sido infligido por dois golos de rajada, ao minuto 86, por volta das dez horas da noite de 28 de Abril de 2024. Acredito que esse acontecimento, que fica para a História dos Clássicos, foi mais chocante para eles do que para nós não termos verdadeiramente chegado a disputar a final da Taça de Portugal.

    Na véspera dos petardos do Gyökeres, deu-se um acontecimento muito mais importante para o futuro. Os corajosos sócios do Porto tiveram a sabedoria muito nortenha de votar em massa, limpar o clube e libertar a cidade. Deus ajude sempre quem muda com coragem! O Sporting honrou os seus adeptos e a sua História abrindo alas a um meritório e justo vencedor.

    O Pedro levou a camisola verde que lhe emprestei para casa. Diz que já fica para a final da Supertaça.

    Fica tu também, St. Juste! Da próxima vez, até ao fim do jogo – e da festa.


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  • Juba de luz a cruzar os céus

    Juba de luz a cruzar os céus


    Uma juba ciclópica incandescente atravessou o céu e pintou de branco e verde a foz do rio Douro, campanários, talhas e pomares do Minho ao Algarve, peixes, dunas e amantes nas praias de Portugal.  Cigarras, humanos e ovelhas entoaram em coro:

    – Tão resplandecente, não foi pássaro, super-homem ou avião. Assim brilhante, claro que foi o Sporting campeão!

    Antes do jogo começar, ao meu lado na bancada central, o telemóvel mais frenético do estádio é o do senhor director do PÁGINA UM. Ele aponta para todo o lado, compondo vídeos e fotografias aos ziguezagues, imolando as fintas rápidas e súbitas paragens do Trincão. Ao ver Pedro Almeida Vieira neste torpor místico e alucinado, compreendo como se sentiram Eduardo Gageiro, na manhã do 25 de Abril, e o astronauta Neil Armstrong de câmara na mão e pés na lua.

    Durante a semana, deu ao Inácio para ocupar o tempo a desafiar o Pote:

    – Aposto um jantar no Solar dos Presuntos em como não és capaz de um centro de jeito de fora da área para eu marcar de cabeça.

    E o orgulhoso transmontano, ainda antes de se fintar a si próprio tão bem fintado que não pôde guardar-se de pé e se esparramou no relvado a festejar ao comprido, respondeu crente e arrogante uma torga venenosa:

    Não só te acerto na testa com tanta força que até te ponho a risca ao meio, como ainda te pago umas férias nas termas de Vidago se desta vez imitares o Senhor Capitão Coates para golo, em lugar de cabeceares para o ar com esse bestunto de vento, esbanjando a minha arte para a bancada.

    Aos quatro minutos, os dois armaram a maravilhosa e profética jogada, mas a bola depois de fazer a risca no Gonçalo estremeceu o poste com a força insuportável de um aerólito. O homónimo guarda-redes do Chaves agradeceu o ansiolítico receitado pelo médico da equipa para ele se aguentar à estreia, na última jornada, contra o melhor ataque do campeonato.  Os dois atletas leoninos, que não estavam medicados para tão insólito desfecho, amuaram para o resto do jogo. Já o falso defesa e superlativo extremo Nuno Santos ficou a gozar como um perdido do outro lado do campo, sem nunca se aproximar demais para não cair em fora de jogo.

    – Nem todos nasceram para ser lindos e loiros, nem para assombrar guarda-redes com jogadas à Puskás por dá lá aquela palha.

    Vaidoso por trajar de azul celeste numa procissão de craques, excitado pela romaria de cachecóis, foguetes e marchas de “Viva o Sporting!”, o árbitro Manuel Oliveira agarrou-se ao microfone e deixou dito e luzido quem era o Tony Carreira da festa.

    O jogador número 13 não comete qualquer falta, por isso o penalty fica para daqui a bocado. Peço aos atletas do Desportivo de Chaves para entrarem na festa alçando braços em pose não natural. Prometo visionar tais gestos em conformidade com as leis da FIFA e da gravidade, e apitar resignado.

    Estes enervantes acontecimentos agravaram o torpor alucinado e místico que se apoderou do Pedro quando saiu do metro do Campo Grande e deu de caras com o estádio a cintilar de alegria. Sem sequer disfarçar um sorriso de retaliação e felicidade, desatou a apagar os ficheiros laboriosamente amealhados nas 17 jornadas desperdiçadas na Varanda da Luz, abrindo espaço para cada segundo, bandeira e foguete da festa do Sporting Clube de Portugal.

    Levou tão a peito a comparação com a barba, o penteado e as fintas do Trincão da minha primeira crónica no seu jornal, que hoje se vestiu de preto tal e qual o seu modelo apareceu na entrevista ao jornal A Bola, periódico centenário que neste campeonato descobriu, à custa de muitas piadas e memes, quem é o rei agora, da selva, dos céus e dos relvados.

    O jogador número 4 cometeu falta no início da jogada.

    O Tony dos árbitros persiste em desafinar aos nossos ouvidos, sem se atrever a pronunciar o nome do Senhor Capitão Coates.Que desfeita! Antes fechar os olhos e suspender as regras do que anular um golo limpinho e pleno de força, bola corrida e tão bem rematada.

    Felizmente, ao intervalo, o dr. Varandas mandou entregar ao artista uma camisola do Gyökeres autografada por Inês, a bela dele namorada. Esse precioso brinde regulamentar, simbólico da luminar união nórdico-lusitana, ofereceu a adeptos e jogadores uma segunda parte sem cantigas de Oliveira da Serra, ou Monte da Arrábida, e ao Pedro Almeida Vieira ocasião para expressar um inesperado desejo estatístico.

    – Já só faltam cinco golos para o Sporting chegar aos 100 no campeonato.

    Em plena bancada, o meu fiel amigo e ainda sócio do Benfica, descobre maravilhado que o Sporting é o detentor, desde 1947, do recorde de golos marcados num só campeonato: um, dois, três, 123, cento-e-vinte-e-três, 43 dos quais da autoria de Fernando Baptista de Seixas de Vasconcelos Peyroteo, provavelmente o maior avançado português de todos os tempos.

    Tanto invocámos Peyroteo e os outros violinos, Yazalde, Manuel Fernandes, Jordão e Beto Acosta, que se materializou mesmo à nossa frente uma jogada que só se descreve com o movimento das estrelas. O melhor jogador em campo, Luís Carlos Novo Neto, arrancou um passe de parábola supersónica, a abrir caminho ao cometa nocturno, Nuno Santos entrou em órbita sobre a linha de fundo, e Paulinho respondeu com a precisão e a simetria de um satélite. De pé esquerdo para pé esquerdo se faz golo à velocidade da luz.

     – Se o Paulinho mostra os dentes, eles até caem, até caem…

    O director do PÁGINA UM, confesso benfiquista, claramente ‘sequestrado’ pelo famigerado ‘Núcleo da Garagem’ no final do jogo entre Sporting e Desportivo de Chaves.

    Não caiu nenhum defesa, nem teve tempo para isso, mas caiu o estádio todo a celebrar o mais admirável resultado da época. Contra todas as previsões parvas e catastrofistas, Midas Gyökeres fez explodir o talento imenso do antes solitário e sacrificado ponta-de-lança da equipa.

    Manuel Oliveira acabou o jogo mais cedo para ir com a camisola autografada meter inveja aos amigos da Cervejaria Europa, de Gondomar. A taça atraiu ao relvado bandos de crianças e retratistas. E nós fomos comemorar para a garagem do estádio, onde assámos uma cacholeira de Alpalhão e duas alheiras de Chaves com fogo de pirotecnia.


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  • Vamos ver

    Vamos ver


    A notícia do dia é que o Sporting é campeão europeu de hóquei em patins, a mais portuguesa das modalidades desportivas.

    Tenho uma ‘cacha’ para os leitores do PÁGINA UM: o seu ilustre Director assistiu a tudo sem pregar olho nem tirar os óculos, como aconteceu em dois outros gloriosos momentos desta época. Confortavelmente aterrado no mesmo sofá com formato de nenúfar, vi-o sobreviver corajosamente aos dois golos do Génio Catamo. E jamais poderei esquecer o impávido espanto com que tentou travar, de braços retraídos e pernas no ar, a arrancada dos dois cometas nórdicos que acabou com as incompreensíveis dúvidas sobre o desfecho da meia-final da Taça.

    (O estádio grita “Rafa, Rafa” para bater um penalty. Foi lá antes aquele craque argentino que nunca pode ser substituído e é campeão do Mundo sem alguma vez ter marcado um golo ao Sporting. A harmonia continua na família do querido rival.)

    Ocasiões como as do Catamo, do Hjulmand e do Gyökeres são como sacramentos entre amigos verdadeiros de clubes rivais.

    – Pedro Almeida Vieira, estás convidado para a final da Taça! Nesse dia nem fazes mais nada, acordas e vens logo aqui ter a casa.

    Aqui no estádio, ao meu lado, o Pedro já escreveu umas 12 laudas de texto. Parece o Trincão a fintar os laterais, com ligeiras diferenças de tonalidade na barba, compensadas pelo corte de cabelo fiel ao modelo. Dribla o teclado e ao mesmo tempo consome gurosans de estatísticas ao telemóvel, para depois debitar gigas de resultados mais velhos do que nós ao meu ouvido, com a alegre efervescência dos comprimidos a alaranjar as águas. Manifestamente, o jogo interessa-lhe ainda menos do que a mim.

    (O estádio acorda o Senhor Director do torpor analítico e da sanha historiográfica-futeboleira aos gritos de Rafa, Rafa. Outra vez penalty. A julgar pela rasteira escandalosa que pregou às pernas do adversário, o guarda-redes do Arouca deve ser fan do Rafa. Cá de cima, parece-me um sueco da terra do Gyökeres, imagino que traumatizado desde o recreio da escola primária. E o árbitro apitou mesmo com vontade de alegrar a bancada. Rafa, Rafa? Desta vez marcou o turco que vai ficar com o lugar dele para o ano. O Roger Smith é tão exímio a mostrar quem manda como a culpar os outros pelas derrotas. Como foi golo, isto hoje já não descamba, nem vai dar grande notícia.)

    Notícia digna de registo foi a iniciação do Senhor Director do PÁGINA UM no glorioso Núcleo do Sporting Clube de Portugal da Garagem do Estádio de Alvalade. Aconteceu ontem, dia 11 de Maio de 2024, numa reunião extraordinária realizada no bairro da Graça, para assistir ao jogo no Estoril em comunhão de duas espécies.

    O Núcleo da Garagem tem sementes na abençoada terra de Alpalhão. Zé Sequeira, Major João Presumido, Fernando Cardoso, Cotrim, Severino Cunha, Tó Luís Joeirinha e Ti José Joaquim, este já no prado mais verde dos céus, foram os sete violinos fundadores. Antes e depois de cada jogo, no piso menos um do estádio, montam mesa farta de azeitonas, queijos de cabra e ovelha, cacholeiras, ovos com espargos, toda a sorte de petiscos, muitos vinhos e alguns doces.

    Quem ousa aproximar-se é sempre bem recebido. Eu fui um deles, um dia, e fiquei para sempre. Dantes, o Núcleo da Garagem reunia-se no Alvaláxia, para desespero dos restaurantes de comida rápida do recinto. Para o ano, já comemora 15 anos. Saborosas bodas de cristal, com vinho alentejano a transbordar dos copos.

    (O Rafa marcou um golo de bola corrida. Deve ter posto beicinho de desforra. É mais um benfiquista no estádio com vontade de contrariar o treinador. A orquestra da Luz continua afinada e, desportivamente reconheço, ele sempre foi um solista talentoso…)

    Pedro Almeida Vieira foi recebido pelo Núcleo da Garagem como se fosse o João Pinto. E eu juro que o vi aos saltos, bem embalado. E quem não salta? O Pedro estava muito, mas muito, muito mais divertido ontem do que hoje, que o Benfica ganhou cinco a zero.  

    Eu cumpri a minha parte do nosso trato, com visita ao Estádio da Luz, credencial de imprensa e esta crónica preguiçosa. Foi pena o Arouca ter ido de férias antes do jogo. Daqui de cima, confirma-se que o Benfica tem alguns grandes jogadores. Dou graças a Deus por não ser cego e me ter libertado do fanatismo clubista. Até gostava de ver o João Neves no Sporting mas felizmente isso é impossível. Hoje houve algumas jogadas bonitas, nenhuma como o vôo da águia.   Sonho com o dia em que haverá leões à solta no fosso do nosso estádio. Para já, só no relvado.

    Para o ano, disse-me o Pedro, se o Sporting for bicampeão aumenta exponencialmente a probabilidade de voltar a ser penta. É que nunca fomos só bicampeões. Vamos ver!


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