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    Florbela Espanca


    Cercada por mitos que a etiquetam, Florbela Espanca (1894-1930) é, intermitentemente, evocada pelo emblema que foi, como mulher, na Lusitânia, reprimida, e a poetisa desenquadrada e sem cânone.

    O primeiro mito não pesa apenas no convite ao esquecimento da escrita, sobretudo da lírica, já que a diarística e a narrativa parecem ajudar a construir a imagem da pessoa com quem nos envolvemos, ao passar na rua, por ela ou pela sua memória: pesa no quadro hermenêutico que lhe criamos e nos horizontes (sem expectativas) com que lhe cerceamos os sentidos. O segundo mito, reiteradamente desconjuntado por novas leituras, nunca se poderá desmontar inteiramente, porque Florbela é, insistente e resumidamente, a que “não se integrou no modernismo” circundante e que, dos modelos clássicos, “retirou apenas a moldura restritiva do soneto, sem ter renovado a sua grandeza criativa”.

    Contra este quadro irá a nossa intervenção actual, com a qual pretendemos reforçar argumentos em torno da alta qualidade e rigor na elaboração discursiva que a poetiza atinge, no trabalhar o modelo estrófico do soneto, segundo a disposição extremamente inovadora dos tropos, pelo cruzar de duas figuras enunciativas fundamentais: a elegia e a apóstrofe. Presumimos, basicamente, que a poesia de Florbela recolhida num só livro, que se tem designado, laconicamente, por Sonetos, sendo a que mais percorre a leitura, a atenção e a memória dos seus receptores (e, eventualmente, destinatários), estabelece um sortilégio de apelo que não passa, sobretudo, pelo conteúdo da mensagem, ou pelo estatuto de referencialidade vivencial que, daí, possa ser presumida. Emerge, sim, dos procedimentos poéticos que elabora, persistente e variadamente, numa recursividade que gera efeitos de vertigem pela omnipresença de um dispositivo enunciativo que funciona como o retorno da (quase) mesma mensagem a um(a) destinatário/a marcado por um destino. Tudo se passa como se a entidade apostrofada, um poeta, um destino poético fosse portador de uma palavra adereço, uma insígnia, MORRERÀS, reiterada, desdobradamente, em epitáfios.

    Os dizeres que preenchem a sua poesia são lapidares e sentenciosos, marcados pela vontade de, ainda em vida, proclamarem o aqui e o sempre da morte, numa intimidade de autorreconhecimento em sombras e imagens especulares, que primam, já, pela marca da alteridade espectral, como se patenteia, inteiramente, em “Dizeres Íntimos”, por exemplo:

    É tão triste morrer na minha idade!/ E vou ver os meus olhos, penitentes/ Vestidinhos de roxo, como crentes/ Do soturno convento da Saudade!// E  logo vou olhar (com que ansiedade !… )/ As minhas mãos esguias, languescentes,/ De brancos dedos, uns bebés doentes/ Que hão-de morrer em plena mocidade !//  E ser-se novo é ter-se o Paraíso,/ É ter-se a estrada larga, ao sol, florida,/ Aonde tudo é luz e graça e riso !// E os meus vinte e três anos… (Sou tão nova !)/ Dizem baixinho a rir: «Que linda a vida ! …»/  Responde a minha Dor: «Que linda a cova!» (1980, p.45[1]

    O que a voz declama, antecipadamente, é o estado da morte, a visão de si como outro, auto-revelação que se avança, como um quadro apresentado em prolepse. Poderíamos quase dizer que a apóstrofe, jogando numa intimidade de si para si, constrói, como epitáfio, a estátua da defunta antecipada pela voz do próprio sujeito poético, com a nitidez lapidar da elegia. Reconhecermos a elaboração de uma tal formulação poética exige, antes de mais, que nos alonguemos um pouco na caracterização das figuras que aqui evocamos, especialmente as que temos vindo a referir como dominantes. No entanto, devemos desde já anunciar que, além da elegia e da apóstrofe, as várias figuras que convergem para elaboração dos sucessivos êxtases e estases, variações da forma estática, deverão merecer, também a nossa atenção, através de um especial esclarecimento.

    A elegia[2], no seu sentido mais geral, como o notam os autores da respectiva entrada no Dicionário de Princeton, “em sentido moderno, é poema curto, normalmente formal ou cerimonioso no tom e na dicção, ocasionado pela morte de uma pessoa” (entrada ELEGY, p. 322) . Não é, no entanto, apenas a expressão do lamento, como outras formas poéticas de expressão do pesar, nem se apresenta tão breve e seca como o epitáfio, pois revela-se, muitas vezes, portadora de uma referência ou uma atitude apaziguadora ou mesmo consolatória.

    Numa perspectiva mais ampla, que pretenda apresentar um denominador comum da elegia nas suas variadas emergências ao longo da história, nas diversas literaturas ocidentais, pode dizer-se que é um poema de meditação sobre o amor e/ou a morte. Não é por acaso que a sua origem etimológica vem do termo grego “elegos”, que significa “lamento”, origem a que um tratadista francês do século XVI, Sébillet, faz referência: “Lamentos e deplorações parecem estar na elegia que não os expressa claramente. Porque elegia quer dizer lamento”. No entanto, definindo-a mais especificamente, diz o mesmo autor que a elegia é “triste e flébil: e trata com singularidade as paixões amorosas […]” (cf. in Goyet, 1990, pp. 140-141 e 128-129).

    Amor e morte, sim, em conjugação, numa tonalidade pessoal de quem medita acerca de um “desgosto, quase sempre amoroso”, cavando em negrume “a nostalgia e a melancolia” que “são os temas apropriado ao tom elegíaco” (Aquien, 1993, p.120; entrada élegie[3]). Contudo, sobre os modos de essa temática se formalizar, de se pormenorizar em motivos, é um poeta como Boileau que, na sua Art Poétique, mais nos esclarece:  “La plaintive Élégie, en longs habits de deuil./ Sait, les cheveux épars, gémir sur un cercueil./ Elle peint des amants la joie et la tristesse,/ Flatte, menace, irrite, apaise une maîtresse./ Mais, pour bien exprimer ces caprices heureux,/ C’est peu d’être poète, il faut être amoureux” (Art Poétique, Canto II, versos 39 a 44).   

    Toda a poesia de Florbela está cheia desses índices, desses motivos representativos do estado amoroso e do sentimento de luto e morte que lhe anda ligado: “No lânguido esmaecer das amorosas/ Tardes que morrem voluptuosamente/ Procurei-O no meio de toda a gente./ […] Em toda a nossa vida anda a quimera/ Tecendo em frágeis dedos frágeis rendas…/  – Nunca se encontra Aquele que se espera!…” (“Le Prince Charmant…” p. 88). Note-se, neste exemplo, o efeito declamatório do soluçar, representado por todos os processos de entrecortar do discurso, desde o encavalgamento, logo entre o primeiro e o segundo verso, e as suspensões, verdadeiras formas emblemáticas da prece desenquadrada do ritual, evoluindo enquanto pulsar anímico. Não se trata, fundamentalmente, de enunciar a melancolia, declamando estados anímicos de dor, sofrimento e angústia.

    Fundamentalmente, é todo um cenário a evocar essa intimidade fúnebre, deslizando a ladainha para a enumeração macabra: “Poeiras de crepúsculos cinzentos. Lindas rendas velhinhas, em pedaços, […] meus cabelos,  como brancos fantasmas, […] Monges soturnos deslizando lentos, […] Ergue-se a minha cruz dos desalentos !” (“Cinzento” p. 92); […] Traçaste em mim os braços duma cruz, […] Minh’ alma […] É nesta noite o nenúfar de um lago” (“Nocturno” p. 93); […] Castelos, um a um, deixa-os cair …/ Que a vida é um constante derruir e palácios do Reino das Quimeras!/ E deixa sobre as ruínas crescer heras./ Deixa-as beijar as pedras e florir!/ Que a vida é um Continuo destruir/De palácios do Reino das Quimeras” (“Ruínas” p.96).

    Não está ausente, nesta poesia, uma terminologia abstracta para referir estados de espírito. No entanto, ela é quase sempre reforçada, no seu sentido pleno, por um décor complementar de motivos, que se tornam verdadeiros significantes fundadores do sentido. Verifica-se isso, por exemplo, num soneto como “Neurastenia” (p. 49), onde, depois de declarado o sentimento abstracto de “tristeza”, o sujeito poético declina toda a série substantiva que constitui o estado de alma:

    “Um sino dobra […]/ a chuva, brancas mãos esguias,/ Faz na vidraça rendas de Veneza …/ o vento desgrenhado chora e reza/ Por alma dos que estão nas agonias!/E flocos de neve, aves brancas, frias,/ Batem as asas pela Natureza …/ Chuva … tenho tristeza! Mas porquê? !/ Vento. .. tenho saudades! Mas de quê? !/ Ó  neve que destino triste o nosso I/ Ó chuva! Ó vento! Ó neve! Que tortura!/ Gritem ao mundo inteiro esta amargura, […]”.

    Não obstante a imensa força poética com que esta figuração fecunda os sonetos de Florbela, dando espessura à postura elegíaca fundamental que a todos atravessa, a manifestação poética que deles emana não teria o asserto profundo de clamor cósmico, em busca de resposta sempre perdida ou sempre adiada, se a apóstrofe não se fizesse sentir irradiantemente como vociferação, vocalização da paixão. O poema “Este Livro…” (p. 37), que serve de frontispício ou proémio à sua obra, e a representa desde que foi poema de abertura da sua obra de estreia é revelador dessa vocação vozeante:  

    Este livro é de mágoas. Desgraçados/  Que no mundo passais, chorai ao lê-lo!/ Somente a vossa dor de Torturados/  Pode, talvez, senti-lo… e compreendê-lo./ Este livro é para vós. Abençoados/ Os que o sentirem, sem ser bom nem belo!/ Bíblia de tristes … Ó Desventurados,/ Que a vossa imensa dor se acalme ao vê-lo !/ Livro de Mágoas … Dores .,. Ansiedades !/ Livro de Sombras … Névoas e Saudades!/  Vai pelo mundo … (Trouxe-o no meu seio … )/ Irmãos na Dor, os olhos rasos de água,/ Chorai comigo a minha imensa mágoa,/ Lendo o meu livro só de mágoas cheio ! …”       

    Patenteia-se aqui um excelente exemplo  de apóstrofe, que  Fontanier caracteriza do seguinte modo: “diversão súbita do discurso pela qual nos desviamos de um interlocutor (objet), para nos dirigirmos a um outro, natural ou sobrenatural, ausente ou presente, vivo ou morto, animado ou inanimado, real ou abstracto, ou para se nos dirigirmos a nós próprios”  (1968, p. 371”). Todas as possibilidades enumeradas pelo retoricista francês do século XIX podem ser encontradas em Florbela: em “Castelã da Tristeza”, deparamo-nos com a figura ficcional, nascida da metáfora, tornada interlocutora: “Vivo sozinha em meu castelo: […] Castelã da Tristeza, vês? … […] Castelã da Tristeza porque choras […]?” (p.40); em “Dizeres Íntimos”, surge a entidade abstracta, quase em psicomaquia alegórica: “E os meus vinte e três anos … (Sou tão nova !)/ Dizem baixinho a rir: «Que linda a vida ! … »/ responde a minha Dor: «Que linda a cova!»” (p. 45); em “Pequenina”, o vocativo inflecte para uma interlocutora de acaso, presumível alter ego da entidade poetiza, ou projecção desta numa criança com a qual identifica a sua própria infância: És pequenina e ris … […] Pequenina que a Mãe de Deus sonhou,/ Que ela afaste de ti aquelas dores/ Que fizeram de mim isto que sou !” (p. 48); em “A Maior Tortura” dedicado “A um grande poeta de Portugal”, a entidade anónima designada em epígrafe é apostrofada: “[…] Não ser poeta assim como tu és”; em “A Flor do Sonho”, evoca-se o próprio ser da natureza, tornado objecto onírico: “Ó flor que em mim nasceste […]” (p.50); e ainda, como em  “A Voz da Tília”,  a reversão total da origem enunciativa permite que o ente inerte da natureza domine o discurso, onde a voz da “poetiza” é tão só pouco mais do que um verso contextualizante, ainda que a sua pessoa seja o destinatário:

    Diz-me a tília a cantar: «Eu sou sincera,/ Eu sou isto que vês: o sonho, a graça;/ Deu ao meu corpo, o vento, quando passa,/ Este ar escultural de bayadera …/ E de manhã o sol é uma cratera,/ Uma serpente de oiro que me enlaça…/ Trago nas mãos as mãos da Primavera …./ E é para mim que em noites de desgraça/ Toca o vento Mozart, triste e solene,/ E à minha alma vibrante, posta a nu,/ Diz a chuva sonetos de Verlaine … »/ E , ao ver-me triste, a tília murmurou:/ “Já fui um dia poeta como tu …/ Ainda hás-de ser tília como eu sou … »” (p. 147).

    Deste circuito em que o anímico, o abstracto, o inerte e o humano se interpenetram, sobressai uma imensa figura matricial, uma espécie de Cibele que “ordena e dirige a potência vital” e que, “de forma quase delirante, simboliza os ritmos da morte e da fecundidade, da fecundidade pela morte” (cf. Chevalier e Gheerbrant, p. 331 – entrada CYBÈLE), que transforma a voz poética em mera intermediária e difusora do seu discurso. Presença que já Jorge de Sena observara quando afirma: “[…] não são as deusas helénicas da escultura, tornadas cânones de beleza, mas as deusas misteriosas da terra e do céu, as que viveram de facto no coração dos Gregos. Se quisermos um ciclo mítico da feminilidade de Florbela, podemos pôr: noite, terra, lago, sombra, noite, e o ciclo recomeça: «Mas eu sou a manhã: apago as estrelas»” (1988, p. 41). Sobre esta assunto, aliás, retomaríamos, sem grandes alterações, o que já escrevemos num outro lugar:

    A própria coquetterie, o jogo amoroso culto, civilizado, com processos de «salão», tem, na poesia de Florbela, uma representação selvagem, uma matriz substanciai fortemente impregnada de natureza, madeira, mater. Mas não é o campo que se torna palco da sociabilidade cortesã. Não são os elementos da natureza que se ritualizam no jogo do “fin amour”). É a árvore que se impõe como modelo de elegância airosa, que fornece os padrões do arrebatamento amoroso, num universo onde os elementos permutam a sua essencialidade que é, apenas, circunstancial” (in Lopes, Fernando,  Martinho (e outros), 1997: 231).

    Toda esta dimensão cósmica é propiciada, por assim dizer pela apóstrofe. No dizer dos teóricos e estudiosos da retórica e dos mecanismos da poética, a apóstrofe é uma espécie de provedora do lugar da mise en scène do arrebatamento, da entrada em contacto com as esferas apenas acessíveis à inteligibilidade, da comunhão com a ordem superior e misteriosa das coisas. Ainda no dizer de Fontanier, a apóstrofe “não é nem a reflexão, nem o pensamento despojado, nem uma simples ideia: é, sim, o sentimento, o sentimento excitado no coração, até explodir e expandir-se para o exterior, como que de si próprio” (1968, p. 372).

    Primeira edição de “Livro de Mágoas”, a primeira obra de Florbela Espanca, publicada em 1919.

    Em termos retórico-estilísticos, a apóstrofe, por modalidade vocativa, quase sempre sob a aspectualidade de exclamação, diz respeito à entidade que, explicitamente, actua como enunciador. Assim, a voz do poeta, face ao seu ouvinte/leitor, apostrofa quando, sem mudar de encenação enunciativa, ou seja, no contexto em que se dirige ao seu receptor postulado (ouvinte/leitor), inflecte o seu discurso na direcção de um destinatário ausente do espaço encenado, nomeadamente fazendo parte do universo diegeticamente referido.

    No interior de uma narrativa, por exemplo, a apóstrofe pode vir de um narrador auto-diegético, que relata uma situação em que se insere, como personagem/actor vivendo os feitos que narra, mostrando a situação que se lhe apresenta aos sentidos a um destinador (narratário) a quem subitamente se dirige com um comentário ou com uma apreciação que não é para ser “ouvida” pelas personagens do contexto em que se encontra.

    Com dirão Mazaleyrat e Molinié, “a apóstrofe só aparece como figura quando o contexto indica que se dirige a um alocutário puramente imaginário, mesmo em relação a seres ficcionais” (1989, p. 28[4]). É claro que, no texto lírico, a mais comum ocorrência é a de se tomar como contexto básico o que é composto por um enunciador/poeta e um enunciatário/leitor, sendo a inflexão, por norma, a da interpelação de um ser presente no universo referido como enunciado e não naquele em que processa a enunciação. Contudo, a espessura do jogo poético assenta na ilusão de se puxar para a dimensão da enunciação (miticamente a do real onde o autor e o leitor se encontram) os elementos fantásticos do imaginário.

    Por essa razão, assume-se que um dos objectivos da apóstrofe é fazer comunicar os dois universos, ultrapassando a barreira que os torna absolutamente incomunicáveis, pelo menos segundo a exigência de um empirismo cauteloso e crítico, sob a vigilância da racionalidade positivista, que se processam com alheamento da hipótese metafísica da inteligibilidade, ou da possibilidade aberta pela verosimilhança poética, quando activa o processo da “suspensão da descrença” (Coleridge). Assim, percebe-se bem porque é que, no dizer de Jonathan Culler, as “apóstrofes” poéticas “podem complicar ou romper o circuito da comunicação, colocando questões sobre quem é o destinatário” pelo que se tornam “embaraçantes” (2001, p. 150).

    A proposta que Culler faz é a de que se pode, até certo, ponto “identificar a apóstrofe com a própria lírica” (2001, p. 151)  partindo do princípio de que a apóstrofe parece encenar o próprio sistema de enunciação do lirismo, chegando alguns críticos a apresentá-la como dominante, por vezes  omnipresente, em quase todos os sistemas de lírica historicamente determinados.

    Essa posição parece ser assumida, por exemplo, num enunciado como o de Northrop Frye, no seu Anatomia da Crítica:

    O poeta lírico normalmente finge estar conversando consigo mesmo ou com outrem: um espírito da natureza, uma das Musas (note-se a diferença com o épos onde a musa fala por intermédio do poeta), um amigo pessoal, um amor, um deus, uma abstracção personificada ou um objecto natural. […] O poeta, por assim dizer, volta as costas para seus ouvintes, embora possa falar por eles, e embora eles possam repetir algumas de suas palavras atrás dele” (Frye, 1973,p. 245).    

    Segunda obra de Florbela Espanca é de 1923, uma edição de autora.

    É claro que o termo apóstrofe não é empregue. Contudo, parece evidente que a descrição que é feita, aqui, do acto de enunciação do poeta lírico corresponde, nos traços essenciais, à que é feita do acto enunciativo da apóstrofe, nos estudos e manuais de poética e de retórica. Lembrando-nos, quase ao acaso, de alguns dos mais belos e recordados poemas portugueses de todos os tempos, desde as cantigas de amigo, em que se interpelam as “flores do verde pino”, até aos poetas modernos, nomeadamente Pessoa, quando incita a rapariga distante, que não o ouve, a comer chocolates, em “A Tabacaria”, passando pelo modelo absoluto e arrebatado do soneto “Alma minha e gentil…”, de Camões.

    Se acrescentarmos a este nosso elenco, colhido em rápida auscultação da nossa memória de leitores, a constatação, mais sustentada, de Laurence Perrine, A. W. Halsall e T. V. F. Brogan (in New Princeton Enciclopedia[5], entrada APOSTROPHE), de acordo com a qual “134 dos 154 sonetos de Shakespeare contêm uma a. e que 100 são directamente endereçados a uma senhora ou a um amigo”, vemos que a apóstrofe é muito recorrente[6] e, como nos dizem os exemplos que apresentámos, fortemente ligada à elegia.  Assim, a pergunta que se torna fundamental fazer, segundo Culler, sobre a apóstrofe é: “Que papel têm as apóstrofes no poema”. Cremos que, procurar responder, com ele, a esta pergunta, é formularmos a caracterização de um dos aspectos fundamentais que encontramos na poesia de Florbela Espanca e fundamento da sua grandeza poética.       

    É claro que, em primeiro lugar, deve notar-se que a percentagem de poemas de Florbela que apresentam, de modo evidente, a estrutura da interpelação, ao nível da enunciação, é bastante grande. No Livro das Mágoas, primeira obra que publicou e que constitui a primeira parte da sua obra recolhida em Sonetos, encontramos o claro enunciado apostrófico no primeiro soneto “Este livro”: […] “chorai ao lê-lo” […]; no quarto “Castelã da Tristeza: […] “vês? A quem?” […]; no sétimo “Torre de Névoa”: a resposta dos poetas, como inversão da apóstrofe; no nono, “Dizeres íntimos”, onde o mesmo mecanismo de reversibilidade aparece, tal como o apresentámos acima; no11º, “Neurastenia”: […] ”Chuva…tenho tristeza […]; no 12º,“Pequenina”: […] “És pequenina e ris” […]; no13º, “A Maior Tortura” […] “Sou como tu” […]; no 14º, “A Flor do Sonho”: […] “Ó flor que em mim nasceste” […]; no 15º, “Noite de Saudade”: […] “Porque és assim tão escura” […]; no 16º, “Angústia”: em reversão a pergunta da angústia  […] “«O que te resta?…»”; 17º, “Amiga”: […] “Deixa-me ser a tua amiga” […]. Para abreviarmos esta contagem de simples indicação, enumeramos os poemas seguintes do livro em que aparece qualquer destas formas de vocativo, de discurso directo instituindo explicitamente um “tu”: 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 30º, 31º, 32º.   

    Num cômputo final, podemos dizer que 21 poemas com explicitação da apóstrofe, num conjunto de 32, é indicador que nos permite falar com segurança de uma imponente presença de um tal dispositivo de enunciação. E isto sem contarmos os casos em que, nos restantes poemas, a figura aparece disfarçadamente, sob a forma de um desdobramento da personagem poetisa, criando a solidão como o lugar que se defronta com a ausência, onde o outro não surge como ouvinte ou como voz, mas quase como instância transcendente, como se patenteia em “Eu” (3º soneto do livro): “Sou talvez a visão que Alguém sonhou,/ Alguém que veio ao mundo pra me ver/ E que nunca na vida me encontrou !” (p.39).

    woman leaning against a wall in dim hallway

    Este último caso é muito curioso, pois estabelece um horizonte cósmico de vastidão, no qual a afirmação do eu se processa sempre por desajustes de percepção, por desencontros e mesmo por impossibilidade transcendental de o “eu” se constituir, exactamente pela exclusão quase metafísica do “outro”, necessário como presença para formar os contornos do Eu. É claro que, nesta ontologia, existe um extravasar primário dos lamentos do eu, numa espécie de ladainha de adolescente face à “incompreensão do mundo onde nunca é inteiramente reconhecida”. Contudo, o interessante, em Florbela, é a habilidade de remanejar o filão de lugares-comuns estafados do ultra-romantismo, particularmente os bordões frásicos do lirismo declamatório (a que nem um Antero foi inteiramente imune, diga-se de passagem) para os redistribuir numa complexa proclamação do ser como objecto dos “outros”, ou lugar vazio para o grande “Outro” que o/a deveria constituir.

    Esta constante tentativa de apresentação do Eu como entidade constituída, tem, no desenvolvimento da toada de ladainha, uma espécie de meta escritural. Em muitos dos seus poemas é óbvia a vontade de deixar patente a forma de um epitáfio, os dizeres necessários e suficientes para instaurar a morte como completude, única forma de o Eu, dissoluto por não ser encontrado, por não encontrar eco, achar forma final onde é despojo como ente, arrojado como uma natureza morta. Lapidares são, forçosamente, os elementos da sua morada. Di-lo por exemplo, em “A Minha Dor”:

    A minha Dor é um convento ideal/ Cheio de claustros, sombras, arcarias,/Aonde a pedra em convulsões sombrias/Tem linhas dum requinte escultural.//Os sinos têm dobres de agonias/Ao gemer, comovidos, o seu mal…/E todos têm sons de funeral/Ao bater horas, no correr dos dias”.

    A passagem pelo mundo é, aliás, uma espécie de experiência ritual em que as pessoas, as coisas, os elementos da natureza com quem o eu se cruza, talham a sua forma final, forçosamente, pelo que a sua formulação tem sempre o tom lapidar do epitáfio. Voltamos a encontrar esse modelo expressivo, por exemplo, numa obra sua já de pleno desenvolvimento, O Livro de Soror Saudade. No soneto, “Mistério”, podemos ler: “Gosto de ti, ó chuva, […]./Pelo meu rosto branco, sempre frio,/Fazes passar o lúgubre arrepio…/Das sensações estranhas, dolorosas …/Talvez um dia entenda o teu mistério …/Quando, inerte, na paz do cemitério,/O meu corpo matar a fome às rosas!”      

    Se, de facto, apostrofar é, como afirma Culler, “desejar um estado de coisas, tentar fazer com que isso aconteça, pedindo aos objectos inanimados que se curvem aos nossos desejos” resultando daí que “a função da apóstrofe seria fazer dos objectos do universo forças que respondem: forças às quais podemos pedir que actuem ou deixem de actuar ou, ainda, que continuem a comportar-se como antes”, então, “o poeta que apostrofa identifica o seu universo com um mundo de forças sensitivas” (2001, p. 154). Ora, vendo bem, essa parece ser a constante construção da poesia de Florbela, como vamos encontrar, já plena maturidade de produção lírica, em “Noitinha”, soneto recolhido em Charneca em Flor:

    A noite sobre nós se debruçou …/ Minha alma ajoelha, põe as mãos e ora!/ O luar, pelas colinas, nesta hora,/ É água dum gomil que se entornou ..// Não sei quem tanta pérola espalhou!/Murmura alguém pelas quebradas fora…/F1ores do campo, humildes, mesmo agora,/ A noite os olhos brandos lhes fechou … //Fumo beijando o colmo dos casais…/Serenidade idílica das fontes,/ E a voz dos rouxinóis nos salgueirais,//Tranquilidade… calma… anoitecer … /Num êxtase, eu escuto pelos montes/ coração das pedras a bater …

    De tal modo é intensa evocação das vozes plangentes, em murmúrio, o tom geral interpelativo sustentado em cada um dos itens, para lá da sua forma superficial de constatação, que todo o soneto parece um sibilino circular de observações de um mundo que maravilha e provoca a exclamação, onde tudo parece expressivo e perceptivo, animais, plantas e próprios “entes” minerais. A dramaticidade, constantemente assumida por Florbela, patenteia-se, aqui, de modo quase retoricamente esplendoroso.

    De facto, intensifica-se, neste trecho da sua poética, o apelo à “leitura onde o vocativo da apóstrofe é um mecanismo que a voz poética usa para estabelecer com um objecto uma relação que o ajuda a constituir-se. O objecto é tratado como um sujeito , um eu que implica, por sua vez, um certo tipo de tu. Aquele que invoca, com sucesso, a natureza, é alguém a quem a natureza deve, por sua vez, falar” (Culler, 2001, p. 157).

    O universo que o discurso patenteia é aquele onde o poeta já não necessita de utilizar, explicitamente, o vocativo, para ostentar a sua íntima relação com as coisas e comunicar, mesmo com aquelas que, aparentemente, são insensíveis, incapazes de reacções, frémitos ou manifestações de vitalidade. Este poeta, que domina inteiramente a apóstrofe, que visiona a sua própria prostração na morte, vive já na pura intimidade de uma transcendência espiritual, é capaz de sentir as vozes e as palpitações dos próprio minerais, bem como perceber os sinais anímicos que todos o universo emite. A sua constituição como presença poética é tão forte que, habitualmente, é o tu a quem as vozes das pedras, das árvores, das bênção e das inclemências da natureza se dirigem.

    Assumimos, em relação a Florbela, o funcionamento da apóstrofe enquanto afirmação da transcendência, por ela ser, em quase todos os momentos, a manifestação do desejo de permanência do poeta, ou mesmo do desejo enquanto afirmação da presença. Como diria Culler, “o poema nega a temporalidade” (200, p. 168) sobretudo pelo uso da apóstrofe ou da função interpelativa: “ A apóstrofe resiste à narrativa porque o seu agora não é um momento na sequência temporal, mas o agora do discurso, da escrita” (Culler, 2001, p. 168).

    person sitting on blue wooden bench on beach during daytime

    Citando De Man, ele vem lembrar-nos que “«a ameaça latente que reside na prosopopeia, nomeadamente porque, fazendo os mortos falar, a estrutura simétrica do tropo implica, da mesma maneira, que os vivos emudeçam, petrificados na sua própria morte»” porque a ficção da interpelação, como aquela que surge no epitáfio, “«adquire, desse modo, uma conotação sinistra, que não é apenas a da própria mortalidade, mas, também,  a de entramos, nesse momento, no mundo petrificado dos mortos»” (Culler, 2001, p. 169).

    Não seria demais sublinhar, com alguns exemplos, como essa reversibilidade está, quase sempre, presente em Florbela. Entre os seus primeiros poemas, poderíamos destacar “Torre de Névoa” onde se lê: “pus-me, comovida, a conversar/Com os poetas mortos, todo o dia.” Mas o tema da reversibilidade do estado de natureza inerte, quando se faz a evocação dos mortos, ou dos entes inanimados, é constante. Lemos, em Charneca em Flor, em “A Um Moribundo”, o consolo que vem, como promessa, da voz de um moribundo evocado.  Nesse livro, ainda, a própria natureza inerte, a água da chuva, por exemplo, em “Mistério”, transmite, por contacto, as sugestões da “verdade”: “Pelo meu rosto branco, sempre frio,/ Fazes passar o lúgubre arrepio/ Das sensações estranhas, dolorosas…// Talvez um dia entenda o teu mistério…/Quando, inerte, na paz do cemitério,/ O meu corpo matar a fome às rosas!”.

    Como todo o grande poeta, Florbela é, sobretudo, atenta ao ritual de enunciação em que discursa e mima para as fantasmáticas sombras dos destinatários, fantasias dos actos de comunicação e de contacto, representadas, como tal, no enunciado. Mesmo nos elementos do mundo ou imagens do corpo que escolhe, Florbela é, até certo ponto, uma herdeira, mais ou menos consciente, das grandes fontes do romantismo. Podermos pensar, ao ler o enunciado do seu poema, “As Minhas Mãos”, quando afirma, “mãos de enjeitada porque tu me enjeitas…/Tão doces que elas são! Tão a meu gosto!/Pra que as quero eu – Deus! – Pra que as quero eu?!/ Ó minhas mãos, aonde está o Céu?/Aonde estão as linhas do teu rosto ?//”, que, tal como afirma Culler, sobre o provável leitor de “This Living Hand”, de Keats, o receptor do poema da poetisa portuguesa “procurará ignorar a sua morte, será cego ao facto de” ela “estar mort[a]o através de um acto de imaginação” se formos capazes de “aceitar um tempo puramente ficcional no qual podemos acreditar que a[s] mão[s] est[ão]á de facto presente[s]  e perpetuamente estendida[s] para nós, através do poema” (2001, p. 171).        

    Colocando a apóstrofe nesta dimensão discursiva, percebemos que, no fundo, Bakhtine, sem que disso fizesse explícita questão, não fez outra coisa senão teorizar a grande encenação lírica, quando, para quase todos os exegetas, esse era um género menorizado no grande grupo dos discursos monológicos. Nada menos verdadeiro! Percorrendo a apóstrofe e prosopopeia de Florbela, é o poderoso modelo dialógico de Bakhtine que nos ocorre para, mais cabalmente, podermos explorar o sistema enunciativo da poetisa. Como encerramento provisório desta abordagem (que, como se vê, não explora satisfatoriamente o seu objecto, pretendendo ser apenas introdução a um conjunto de problemas por explorar) deixamos expressa essa perspectiva bakhtiniana através da síntese que dela faz um seu exegeta:

    Quando o terceiro participante é puxado para o discurso através da personificação ou da apóstrofe, a segunda pessoa deve ser antiteticamente situada ou seduzida – assim, inscrita – como testemunha ou aliado. […] É interessante que, para Bakhtine,  o diálogo é não dialógico  […]. Este só pode existir mobilizado pela tentativa de usurpação de uma sempre imaginária posição de primeiro falante pelo Ouvinte (ou Leitor), através da qual aquele (o primeiro falante que, personificando o seu destinatário, apenas pode simular retrospectivamente a posição da primeira pessoa) é representacionalmente como que morto pelo acto de fala, tornando-se, por sua vez, uma terceira pessoa – antes da “sentença” (Cohen, 1998, p.85).

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Activa

    ESPANCA, Florbela, Sonetos, Lisboa, Bertrand, 1980

    Passiva

    CHEVALIER, Jean e A. Gheerbrant, 1982, Dictionnaire des symboles, Paris, Laffont

    COHEN, Tom, 1998, Ideology and Inscription, Cambridge, University Press

    CULLER, Jonathan, 2001, The Pursuit of Signs, Londres, Routledge

    FONTANIER, Pierre, 1968, Les figures du discours, Paris, Flammarion

    FRYE, Northrop, 1973, Anatomia da Crítica, S. Paulo, Cultrix

    GOYET, Francis, 1990, Traités de poétique et de rhétorique de la Renaissance, Paris, Le Livre de Poche

    LOPES, Óscar, 1997, F. J. B. Martinho (e outros), Florbela Espanca – A Planície e o Abismo, Lisboa, Vega

    SENA, Jorge de, 1988, Estudos de Literatura Portuguesa – II, Lisboa, Edições 70


    [1] Citamos sempre os poemas de Florbela segundo a 18ª edição da obra, tal como foi publicada pela Bertrand em 1980.

    [2] Apoiamo-nos amplamente no texto das entradas (ELEGIA, APÓSTROFE e outras, correspondentes a conceitos de poética e retórica aqui utilizados) de The New Princton Encyclopedia of Poetry and Poetics, publicado por Alex Preminger e T.V.F. Brogan, Princton Paperbacks, Nova Jérsia, 1993; do Dictionnaire de poétique et de rhétorique, de Henry Morier, PUF, Paris, 1989; do Vocabulaire de la Stylistique de Jean Mazeleyrat e George Molinié, PUF, Paris, 1989; do Dictionnaire de rhétorique, de George Moilinié, Le Livre de Poche, 1992; e do Dictionnaire de poétique de Michélle Aquien, Le Livre de Poche, Paris, 1993. Outras referências serão oportunamente indicadas no corpo do texto. 

    [3] Ver nota 1

    [4] Ver nota 1

    [5] Ver nota 1.

    [6] Não só é recorrente como surge nos maiores poetas, em poemas de elevada importância: “o hipócrita leitor” de Baudelaire, no poema que serve de frontispício a Les fleurs du mal, o destinatário/leitor de Walt Whitman, nas “Inscriptions” com que abre o seu Leaves of Grass, “O my songs”… do poema “Coda” de Pound. Esta enumeração não pretende ser exaustiva: é apenas uma breve amostra de como se apresenta a possibilidade de a apóstrofe ser uma figura, ou melhor, um dispositivo discursivo, que se pode circunscrever como figura da enunciação, ou mecanismo estruturante do modo lírico, o qual enquadra e enforma a estrutura do modo de apresentação da lírica. 

  • Lobo Antunes

    Lobo Antunes


    A primeira impressão amplamente positiva que este livro de Lobo Antunes nos causa é de uma continuidade inovadora que parece afirmar-se como o traço mais marcante da capacidade inesgotável da sua criação.

    Dentro dessa impressão muito genérica, um conjunto de aspectos a destacar liga-se, de imediato, à linhagem literária em que a obra, do nosso ponto de vista, se inscreve. Com efeito, tomando-a na continuidade, num primeiro momento, a criação romanesca de Lobo Antunes aparece-nos inserida, de modo muito forte, na decorrência de um cânone, de uma família literária, que constitui o núcleo central de profunda revolução desenvolvida no romance por algumas atitudes autorais.

    Podemos chamar modernistas a essas posições criativas e de manifestos poéticos – mais ou menos ficcionais –, até pelo paralelo que encontramos entre elas e as criações, em outros campos artísticos, que são reconhecidas como tais. Essas atitudes, de um modo geral, têm a ver, sobretudo, com o questionamento da representação espacial na sua articulação problemática com os vectores do tempo. De facto, uma espécie de preocupação dominante marca a produção artística, desde os princípios do século XX e, de um modo geral, ela procura de resolver, de maneiras controversas e variadas, a inscrição da quarta dimensão nos horizontes de percepção, construindo objectos em que não só é representada a relação das três dimensões clássicas do espaço com o tempo,  mas também a do observador com o observado.

    Dentro dessa ordem de ideias, alguns romances fundamentais na produção literária ocidental, como os de Joyce, Proust e Faulkner, por exemplo, apontam claramente para a problemática dessa questão. Corroborando a importância de tal revolução modernista no romance, quase toda a produção do que se chamou o nouveau roman não faz mais do que reforçá-la. Para isso, instaurou como elemento dominante da criação romanesca o interesse explícito pela própria poética do romance, chegando alguns dos romances da “escola” a serem narrativas sobre a escrita de um romance.

    Ora, não é por mero exercício de construção de um panteão que evocamos esses nomes e essas escolas: o começo do romance de que aqui falamos sobretudo convoca-nos, de imediato, duas das figuras centrais fundadoras desse modernismo: Joyce e Proust. A entidade voz que abre, por assim dizer, o discurso narrativo de  Que farei quando tudo arde? não pode deixar de nos evocar o universo de caóticas incursões imagísticas do estado semi-onírico de Molly Bloom, em Ulysses, de James Joyce, ou o universo de devaneio, num despertar mais ou menos embriagado, que se desenha em imprecisos contornos de invenção lexical em Finnegans Wake, do mesmo autor; como também não nos deixa esquecer o estado errático da imaginação do narrador de A la recherche du temps perdu, de Marcel Proust, logo nas primeiras linhas do romance, quando procurava adormecer.

    Se, por um lado, o despertar é francamente evocado, de imediato, nas primeiras linhas do último romance de Lobo Antunes: “Tinha a certeza que sonhara aquele sonho na véspera ou na antevéspera/ na véspera/ e por isso mesmo, sem acordar, pensava” (p.11) – por outro lado, o adormecer também aparece igualmente como importante momento do processo do discurso da voz atribuível à mesma personagem, no penúltimo capítulo do romance: “Quando morávamos juntos, me deitavam no colchão guardado debaixo da cama, o desenrolavam na cozinha a explicarem/ – É noite Paulo/ e ficava às escuras sentindo o que chamávamos o mar lá em baixo e não era mais que o rio, a foz do rio, o sítio onde o Tejo por alturas da ponte, cansado de tropeçar em montanhas, barragens, castelos, moinhos, planícies/ julgava eu/ desoladas chega finalmente ao oceano e se dissolve nele numa espécie de suspiro ou assim, quando morávamos juntos e ficava às escuras vendo a porta do quintal que surgia no halo do muro, pensava sempre que as lágrimas, as discussões acabavam, os meus pais/ vocês (…)” (p.611).

    Esse é um dos processos segundo os quais o romance de Lobo Antunes estabelece aquilo que chamaríamos, aqui, o peculiar pacto de verosimilhança que o instrui. Segundo este, no vago do perceptível, na vacilação da racionalidade, o princípio da identidade dilui-se e o aqui e o agora dificilmente instauram fronteiras. Mas, note-se, a construção do momento do sono e do sonho como base em que se firma a origem das vozes, não é o único processo a dissolver os contornos em que é possível assegurar o efeito da realidade em causa e identificar os objectos de conhecimento; outros dois motivos reaparecem constantemente a incomodar a nossa “suspensão da descrença”: a evocação dos percursos das personagens pelas clínicas psiquiátricas e o facto de o consumo de drogas ou álcool ser frequente nalgumas delas.

    Ora, se as vivências passionais são as fibras centrais das intrigas que se desenham e se o quotidiano das personagens é assolado pela própria marginalidade de algumas profissões ou modos de vida, como a prostituição, o transformismo (ou travestismo como também se diz muitas vezes) e a representação em circo como palhaços, completa-se o quadro da inquietante estranheza, no interior deste universo ficcionalmente construído, pela evocação permanente do momento da morte, do enterro, da perda dos parentes. Assim, enquanto ritual do enterro, ou a evocação do corpo morto, modulam a figura que se constrói com entidade perdida, a vacuidade das vidas que se apresentam como meras memórias, pela impossibilidade de lhes encontrar um esteiro de autenticidade, lança fortes colorações de suspeita sobre a verosimilhança das personagens.

    Desse modo, o verosímil que se constrói não assenta sobre uma ética do socialmente instituído, do empiricamente reconhecido pelo grupo dominante, normativo, a que se chama todo social, como verdadeiro. Tendo o núcleo restrito da sociedade, representada fabulatoriamente, perdido as referências racionalmente aceitáveis que pautam os valores de verdade, – a heterossexualidade procriativa, a representação da autenticidade sexual, a vigília, a sobriedade e a sanidade mental – sendo as figuras dos mortos mais fortes afectivamente do que as dos vivos, podemos dizer que os processos de representação se constroem como perturbantes mecanismos de inquirição da verdade.

    Lembraríamos, a propósito da importância que a evocação dos mortos e dos rituais de inumação tem no adensar da problemática da existência perspectivada pelos familiares amigos e conhecidos que lhes sobrevivem, As I lay dying, de William Faulkner, que se institui como modelo da narrativa do século XX exactamente pelo modo como usa o momento do enterro como cenário central e ponto nodal onde se tecem, em confrontos, as paixões e se visionam as acções em litígio.

    Também é essa obra uma das que funda, pela criatividade que o autor americano com ela produz, a pluridiscursividade[i] dramatizada dos monólogos no romance. Resulta tal processo do facto de a narrativa avançar pelo entrecruzar, por vezes coerente, mas muitas vezes contraditório e mesmo paradoxal, dos vários discursos que, por assim dizer, representam o fluir de várias consciências em torno de um acontecimento central que unifica a acção. Com tal procedimento, Faulkner tinha intensificado e valorizado aquilo que já era notório, mas não dominante, em Dostoievski  – dado que, neste, esse encontro de vozes, embora nem sempre em sintonia, concordância ou mesmo em coerência interlocutiva, ainda se assemelhava muito ao discurso do diálogo típico do romance oitocentista.

    Ora, Lobo Antunes, que, desde o seu primeiro romance, se caracteriza por um processo narrativo que se desenvolve pelo cruzar de vozes que nem sempre entabulam diálogo umas com a outras, leva, neste romance, o desenvolvimento de tal tradição a um ponto limite a que poderíamos chamar a dominância absoluta da polifonia em ruptura (Bakhtine, 1970: 33), ou, para usarmos termos mais simples, a dominância das sentenças em co-ocorrência sem estabelecimento de diálogo. Explicando ainda melhor, tudo se passa como se as vozes, representando personagens – por vezes personagens evocadas por uma delas –, se quisessem fazer ouvir pelas outras sem, contudo, darem atenção ao que as outras dizem.

    hands formed together with red heart paint

    Paulo, por exemplo, parece ser a personagem suporte desta narrativa, visto ser a partir da sua que todas as outras emergem – e aquela cujo nome é mais frequentemente evocado como elemento central do drama que se constrói como intriga (cf. M.A. Seixo, 2002: 428-429). No entanto, não é inteiramente evidente que isso seja sempre assim. Por exemplo, um dos capítulos começa com uma voz que se deixa perceber como a da mãe de Paulo invectivando o sujeito da escrita: “O meu filho Paulo que o aldrabe se lhe der na gana/ e o senhor a acreditar nele e a escrever ou a fingir que acredita nele e a escrever ou nem sequer a acreditar nele e a escrever…” (p.495).

    É claro que, desse modo, fica posta em causa – pela aceitabilidade do princípio da contradição de duas afirmações antagónicas relativamente aos factos apresentados – a autenticidade de todos os ditos, incluindo o escrever que se presume (embora ninguém o afirme) que é o do escritor. A dúvida sobre a actividade da escrita como registo da verdade, aliás, é lançada de modo ainda mais evidente quando uma das vozes se manifesta como repórter e se revela incapaz de escrever o artigo em que fala do travesti, pai de Paulo, e do seu enterro, não só pelo contraditório dos depoimentos como pela impossibilidade de fornecer os “pormenores” que lhe parecem necessários e que o chefe de redacção anula por os considerar uma “mania” que “estraga a prosa” (pp. 257-262).

    Uma outra tradição que seria de evocar aqui é a do modernismo português de Raúl Brandão, dado que o terror e a piedade se revelam como a grande paixão deste romance, em simultâneo com a paródia e o espectáculo de circo que resultam do confluir das várias personagens e cenários do romance.

    Esta passagem, que se liga à voz/ escrita da personagem do jornalista, falando do pai de Paulo que foi palhaço e transformista, pode servir de exemplo dessa dívida para com o autor de A farsa: “a criatura chama-se Soraia senhor, foi a sepultar anteontem (…)/ veja a Soraia nessa esquina/ um acento grave e uma maiúscula que a fita não imprimiu/ a regressar das discotecas da Rua da Imprensa Nacional, umas caves de degraus na penumbra e nos fins dos degraus a música, as bailarinas, a cerveja em conta, a empregada/ dona Amélia/ com um tabuleiro de chocolates, perfumes e tabaco americano, o paraíso dos puros de coração, homossexuais, viciosos, melancólicos, transformistas, lésbicas e solitários como eu que perderam o seu ideal há trinta e cinco anos” (p. 260). De Brandão, parece-nos, é, assim, o culto de uma situação obsessiva, permanente, recorrente, expressa no acumular hiperbolizante dos elementos de um universo de desregramento, dor em paroxismo e “espanto” face aos indícios surpreendentes do mundo.

    gray microphone in room

    No entanto, o modelo mais directo do recurso a essa cena-quadro, quase estática ou repetitiva, núcleo dramático, de ressonância trágica, em torno do qual se vai compondo o mosaico das imagens, parece-nos ser José Cardoso Pires, sobretudo o de O Delfim. É dele que virá o modelo que Lobo Antunes tão bem cultiva dos fragmentos de acções, frases enigmáticas, diálogos em desentendimento, quadros perceptivos pouco  nítidos aglutinando-se em torno de um núcleo mítico-fabulatório, uma espécie de narrativa arcaica à qual se vêm juntar todas as fantasias, fantasmas e vivências. Tudo como se a dimensão afectiva desse núcleo perdido, apenas salvaguardado a custo e com imprecisão na memória, desencadeasse a intensidade da paixão e tornasse quase impossível o desenrolar seguro e aprazível da vivência e a sua fruição como realidade conquistada para a estabilidade do sujeito exactamente porque à nossa voz se opõe, perversamente, a voz do outro.

    É assim que a voz de Paulo evoca o que há de inquietante na sua situação: “Se pudéssemos conversar não importa onde/na casa da praia, os Anjos, o Príncipe Real, a cave/um lugar onde fôssemos não os fantasmas de agora, mas as pessoas de dantes, fantasmas vocês que perdi e fantasma eu que os procuro entre sombras falando-vos como falam os mortos…” (p.477). Evocação de uma casa, um lugar de origem, uma família em que se revelaram os primeiros gestos do afecto e os estados emocionais fundadores, o romance desenvolve-se como um percurso pelos labirintos da memória e da fantasia, pelo reconstruir dos mitos e pela tentativa da melhor interpretação da situações dramáticas para fazer regressar o seu herói, eventualmente Paulo, filho do erro e do equívoco – uma mãe afectivamente abandonada, um pai palhaço e travesti (não era Laios homossexual, segundo algumas versões do muthos?), uns pais adoptivos sem grandes rasgos de espírito, uma sociedade  despojada de ideais – a um humos original acolhedor.

    A narrativa, desse modo, não se assemelha a um cursor linear, partindo de uma necessária carência, para a busca de uma etapa final de reencontro e plenitude ou, pelo menos, para uma compreensão do que no Cosmo é um enigma. Quase ao contrário, do que se parte é do turbilhão fundador do discurso, da evocação dos mortos como inevitáveis personagens do pesadelo, dos entes perdidos como obsessivos adversários no percurso do sujeito que busca a elementar verdade em que assenta o seu ser, e que parece poder resumir-se numa pergunta: “de onde venho?”.

    person holding white book

    O fascinante é que o que se lhe apresenta nos labirintos da memória, independentemente de ser verdade ou fantasia, não passa do teorema da impossibilidade da sua origem em conformidade com os valores do humano: a mãe violada, pagando um favor e não desejando um filho, e um pai desqualificado como “paternidade”. Palhaço ou travesti, ora a paródia do homem ora a sua inversão sexual (Carlos? Soraia?), a imagem do pai só se inscreve socialmente na marginalidade ou na perturbante diferença.

    Recorrentemente são as franjas marginais que pautam o lugar da morte e o ritual do enterro do pai: os mulatos, os travestis, os palhaços, os cães vadios. Com a mãe anulada enquanto mulher não desejável, integrado na família insignificante dos pais adoptivos, lançado no mundo da droga, a voz que circula, fazendo emergir as outras – dos seus parceiros, entes queridos perdidos ou figuras ameaçadoras das instituições ou das sombras – o potencial protagonista só se pode exprimir pelo drama que monta sobre o fundo obcecante do terror de si próprio como morto: “falando-vos como falam os mortos e respondendo palavras minhas, não vossas, o que espero que digam sabendo  que não diriam desse modo, se pudessem contar-me o que não conheço e talvez prefira não conhecer, o que sucedeu antes do meu nascimento ou quando era pequeno demais para entender que sucedera e apenas me permito inventar, conforme as cartas antigas inventam o passado” (p. 477).

    E não será essa uma das forças maiores da ficção – ensinar-nos por entreposta experiência fantasiada como a nossa voz é inventada pela dos outros, voz pela qual nos criamos um eu mítico que só existe em plenitude ontológica como oposto aos outros que, até certo ponto, são fantasia nossa, tal como os delineamos pela nossa voz?  

    graffiti on wall during daytime

    No emergir confuso das vozes em multidão, delineando-se e desaparecendo, por vezes no mesmo enunciado, uma das grandes figuras que nos parece tutelar a encenação destas vozes que dizem, repetem, reformulam e desdizem os factos é o ruído. Ora, como nos ensina tradicionalmente a teoria da informação, o ruído é uma tendência de perturbação da boa circulação da mensagem mas, inversamente, é o modo pelo qual se intensifica a informação, a nível semântico, quando ultrapassamos o nível meramente tecnológico da comunicação e a emergência da ambiguidade se afirma como elemento importante na produção de sentido.

    Do ponto de vista da “boa clareza”, o ruído não deve existir: mas uma mensagem sem ruído corre, no entanto, o risco de se tornar transparente. No limite, não transmite informação, é imperceptível, por tanto repisar os elementos que a tornam redundante: o que é dito em acréscimo é exactamente igual ao que já foi dito. O ruído, ao contrário, concentra informação, na medida em que provoca um máximo de busca de conhecimento e uma quase perda dos apoios do reconhecimento.

    Estas considerações em que resumimos de modo simplificado algumas das consequências das teorias de Shannon e Weaver[ii], permitem-nos adiantar uma suposição sobre este labirinto de vozes, tal como ele é usado por Lobo Antunes. Dividiríamos, para melhor compreensão, essa suposição em dois horizontes de possibilidade: um afirmaria que aumentando a indeterminação semântica, pela multiplicação das vozes em antagonismo e contradição, a fábula – que se resume a um número muito pequeno de factos que residem numa história traumática (e mesmo clínica) de um jovem drogado – adensa-se como enigma e espaço de interrogação existencial e antropológico – resultando que uma espécie de enigma da vida e da morte surge no amontoar de repetições, contradições e sobreposições em que se nega o desenrolar da  intriga; o outro horizonte reforçaria o anterior pelo que dá de vislumbre de um dizer da multidão – não a vox populi, no entanto, mas antes a voz da massa, o acumular repetitivo do dizer ao qual já é indiferente a origem da fonte porque, se nenhuma é qualificada, todas se anulam – uma espécie de enigma do enunciar, uma vez que não é possível atribuir uma personalidade ao dizer.

    person smoking

    Ora, assim, o enigma desloca-se, curiosamente, do dito para o dizer como acto, e não tanto pelo sentido do enunciado, mas pela forma da entidade que formula. A suspeita que cultivamos, assim, como interrogação fecunda, é a de que a prática do ruído produtivo, a ambiguidade que instaura a dúvida como entidade heurística ou figura epistemológica em Lobo Antunes, não se processa tanto ao nível das distorções semânticas, como ao nível das distorções (ou ruídos) de enunciação. O que nele se torna central e dominante, sobretudo neste romance, não é tanto a inquietação do sentido, pela indeterminação, fragilidade ético-psicológica das personagens, ou mesmo a sua duplicidade, que as tornaria pouco dignas de confiança, como a inquietação do sentido pela complexidade e distorção das instâncias de enunciação. Não se trata mais de interrogar que tipo de verdade ou falsidade cada personagem comporta, sobretudo a partir da validade dos seus fazeres ou dizeres – trata-se, sim, de questionar a própria possibilidade de representar ou de meter em cena (encenar, no sentido mais forte do termo) a voz.

    Tudo se passa – para recorrermos ao exemplo do teatro e da semiotização do seu pôr em cena as personagens, dado o palco ser o lugar onde o encenar da voz é menos “equívoco” – como se as falas se deslocassem das didascálias a que pertencem e se infiltrassem nas que lhe são vizinhas e que, por vezes, numa lógica de empastelamento da presentificação cénica, as falas fossem produzidas pelos nomes das personagens às quais são dirigidas.

    Desse modo, a enunciação resvala, em muito casos, de um sujeito que aparentemente a suportava – que era o sujeito da enunciação, responsável, aparentemente, do dizer, seu garante “psicológico”, “epistemológico” e semântico – para o sujeito do enunciado ou mesmo para o vocativo da frase, passando a responsabilidade da frase a ser, também, do “ele”, de quem se fala, ou do “tu” a quem se dirige.

    black Corona typewriter on brown wood planks

    As consequências mais evidentes de uma tal prática – que sumariámos através das suas ocorrências mais notórias, omitindo as variações de registos de enunciação que já eram formulações típicas de Lobo Antunes e mesmo  procedimentos de narração similares dos autores que prefigurariam o seu cânone mais ou menos explícito (a que aludimos logo no princípio do nosso trabalho) – são, parece-nos: lançar uma opacidade significativa sobre o suporte mais evidente do discurso enquanto coerência lógica, inequívoca (ou unívoca – “univocal”, leia-se) e detentora de uma razão última das coisas; desenvolver uma cenografia do discurso romanesco onde a presença das vozes da narração e da narrativa se entrelacem numa evidência de fazer poético, sem que assista a nenhuma delas mais autoridade – no plano do conhecimento ou do interrogar dos enigmas  (de uma epistemologia, tal como a vimos conceptualizando aqui) – do que às outras; e uma reinscrição do autor no universo poético da própria criação, enquanto ser textual, que estabelece com a História e com o real uma relação problemática, muito mais inserido, como parte no enigma que dá sentido ao acto poético, na obra do que seu condutor. Surge, desse modo, muito mais como joguete do enigma do que como detentor de um saber que poderia pretender dissolver o mistério e retirar ao acto poético a sua dimensão inquiridora central.

    Acompanhamos aqui, inteiramente, o juízo de Maria Alzira Seixo formulado a propósito exactamente deste romance (embora com alcance para o conjunto da obra do autor – ampliação que, em linhas gerais, propomos de modo similar):

     “a questão autobiográfica só tem sentido se o traço que remete para a figura do escritor, para a sua circunstância ou para a sua experiência, criar uma interpelação  do texto em relação àquele que o lê,  e obrigar essa interpelação a seguir um caminho de conjectura  quanto aos labirintos da produção artística. Isto é: o que é importante, (no excerto do romance citado pela autora em que a voz ora se autonomeia Paulo – nome da personagem – ora António, nome do autor: António Lobo Antunes ) não é tanto que a personagem se nos comunique com o nome de António (…) mas que entre o nome da ficção, Paulo, e o nome do ficcionista, António, se crie uma hesitação de identificação (sobretudo num romance que tematiza a identidade), hesitação essa que é justamente o que faz ler um romance como «mundo possível», e que, na hesitação comungante entre o real (sensível, mas inapreensível) e o imaginário (apreensível, mas apenas sensível nos riscos que continuam a escrita e configuram a sua representação mental) do romance as imagens se desprendam para virem interferir com o real e o imaginário do leitor e com ele entrem em diálogo de problematização ou actuação do pensamento fecundante” (2002: 476).

    book lot on black wooden shelf

    Embora  o tratamento do autor se coloque como questão central na estratégia da poética de Lobo Antunes, o espaço epistemológico que ela abre, a este nível da enunciação, reformula toda uma concepção do tratamento do saber e do conhecimento a que a literatura aspira. Muito especialmente no romance, sobretudo quando as suas formas são inquietadas até ao limite, como é o caso das obras de Lobo Antunes e desta muito particularmente, o modelo de mundo possível aberto retoma com a extrema veemência o postulado do verosímil, tal como Aristóteles o colocou  na sua poética: não tanto como algo que se “concede” à literatura pela condescendência da filosofia (ou da metafísica, ou da epistemologia, como suas partes constituintes fundamentais) para o poético poder ter um direito de cidadania, mas como uma afirmação de valor, sendo o verosímil um importante processo de construção da verdade suprema, inteligível (aletheia), e não um equivocado percurso em concorrência com a verdade do logos racional (episteme).

    Ora, para que o saber se represente no literário, parece-nos, há um lugar que tem de ser minimizado, para que a ficção (a suspensão da descrença, que leríamos como o verosímil, neste caso) ganhe força, e a ambiguidade se instale como mecanismo epistemológico: o do centro detentor do saber final. Na filosofia, é ao “primeiro” Platão, concretamente ao de Íon, mas mesmo o de Crátilo, por exemplo, que temos de nos reportar, para percebermos quanto “Sócrates”, o primeiro, representa esse autor sem “autoridade”, que circula entre o seus pares, buscando a inteligibilidade que está para lá dos saberes. E é contra uma autoridade como a do segundo “Sócrates”, o da República (do primeiro livro em diante, dizem-nos os especialistas), que o romanesco de Lobo Antunes se formula. E é nesse sentido que pensamos residir a grande força da encenação das vozes em torno de um centro que todos partilham mas ninguém assume em plenitude de direito.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Bakhtine, Mikhail, 1970, La Poétique de Dostoievski, Seuil, Paris

    Jakobson, Roman, 1963, Essais de linguistique générale, Seuil, Paris

    Martinet, Jeanne, 1976, Chaves para a semiologia, Dom Quixote, Lisboa

    Seixo, Maria Alzira, 2002, Os romances de António Lobo Antunes, Dom Quixote, Lisboa     


    [i] Reportamo-nos aqui, evidentemente, ao uso que Bakhtine faz do termo polifónico   para falar das vozes do romance, sobretudo no de Dostoievski (cf. Bakhtine, 1970: 332-39)

    [ii] Sobre esta matéria complexa, de cuja dimensão paradoxal tiramos fundamentos para algumas explorações na ordem do poético, remetemos para os textos de Jakobson e de J. Martinet constantes na nossa bibliografia, nos quais apoiamos as nossas hipóteses. Considerando que pode ser “«ruído» tudo o que é responsável pelo malogro de um acto sémico” Jeanne Martinet (1976: 36) abre-nos a perspectiva para pensarmos quanto o poético e o literário vivem  exactamente do malogro do acto monossémico. E cremos estar correctos ao pensarmos quanto a compreensão do poético pelo ponto de vista da estilística deve às observações de Jakobson acerca da importância do “«barulho semântico»” (1963: 95), pelo que este  permite de “ambiguidades  ao receptor” que “caracterizam as ambiguidades da poesia e do jogo de palavras” (Jakobson, 1963: 94). Sem esse ponto de vista certamente que a famosa e fecunda “teoria” do desvio ou não existiria ou teria muito mais dificuldades em se sustentar.

  • Fialho de Almeida

    Fialho de Almeida


    Quase sempre a coloração do fantástico, em Fialho de Almeida (1857-1911), manifesta-se em regime realista, sob duas formas hiperbólicas dos traços disfóricos: a caricatura e a intensificação dos aspectos desagradáveis ou mesmo atemorizantes dos objectos e dos eventos – a primeira tendente à revelação humorística, o outro à catarse (piedade e temor, ou mesmo terror) quase de feição trágica.   

    Muitos leitores e comentadores da obra de Fialho reconhecem que, como diz Raul Brandão, “«as descrições perderam a proporção, as figuras e a realidade, transformadas em figuras de dor e de grotesco»” (in Coelho, 1969: 220), resultando que, segundo Jacinto Prado Coelho, “se denunciam, [nele] os reflexos das estéticas impressionista e pré-rafaelista” (1969: 220).

    Fialho de Almeida

    Reconhece-lhe este crítico, aliás, um “romantismo temperamental, condicionado pelo materialismo e pela nevrose decadente” que inclinaria o autor de Os Gatos a uma “inquietação impulsiva e fragmentária” e o tornariam, também, poderoso na sua expressividade “pelo sortilégio com que transmite sensações” (Coelho, 1969: 221-222). É partindo deste ponto, amplamente partilhado pela tradição dos estudos da obra de Fialho, que Óscar Lopes acrescenta o conceito de expressionismo para situar, periodologicamente, a obra do autor das crónicas de Lisboa Galante, na sua articulação com as tradições poéticas e as estéticas que enquadram a sua obra:

    Chamo aqui expressionista a uma técnica literária que em vez de uma tipificação da realidade bem reconhecível termo a termo (técnica naturalista), em vez de simples lampejos mais subjectivantes onde a análise costumeira se omite mas continua possível a identificação global do objecto (técnica impressionista, também utilizada por Fialho em Os Ceifeiros), se substitui o modelo do senso comum da realidade por um outro modelo que, na sua estrutura de conjunto, é aparentemente irreal mas nos faz sentir algo de importante [notando-se], antes de mais, que essa estética tem, quase sempre, um ar opressivo de pesadelo, de horror traduzido por situações irreais” (Lopes, 1987: 188).

    A designação parece-nos justa e toda a tradição gótica (O. Lopes reconhece estar presente, em Fialho, a de raiz germânica) poderia considerar-se no escoramento do gosto de Fialho pelo macabro onde, sem dúvida, se anunciam as vesânias e as fulgurações de anomalias que marcam a sua obra, dimensão que lhe é reconhecida como decadente, decadentista ou, ainda, de romantismo tardio.

    Pormenor de As tentações de Santo Antão de Jerónimo Bosch

    Como termo de comparação, no campo da pintura, do gosto reinante, sobretudo nas suas crónicas, Óscar Lopes evoca Rembrandt e Goya. Reiteramo-lo quanto ao segundo, especialmente… já que de tempos mais remotos nos pareceria de evocar, mais do que o lado “negro” de Rembrandt, a alucinação alegórica de Bosch ou de Callot.

    Um dos textos que o ilustre estudioso que acabamos de referir considera mais representativo dessa atitude expressionista é a crónica “O Enterro do Rei D. Luís” publicado no volume I de Os Gatos:

    … As fisionomias dos nossos homens públicos depõem desagradavelmente a sua favor. […] A maior parte são pequenos monstros de olhar estrábico, ou vago, ou fugidio, ou injectado; caras balofas, olheirentas, dissimétricas, com um estigma, algumas, do quer que é de inquietador, que a gente não sabe o que seja, mas lá está a servir de síndroma à maqueira, oculta, e a prevenir a opinião contra a boa-fé dos esforços deles, em prol da causa que juraram servir.  […] Há uma mistura de porco e cão de fila, de malandro e de títere, em muitas daquelas faces de primeiros oficiais de secretaria, de governadores civis, de tenentes-coronéis, de generais, de bispos, de deputados, de conselheiros de estado e de ministros” (2006: 101-102).

    Muitos dos Caprichos de Goya poderiam servir-nos de exemplo do elo que liga Fialho à iconografia fantástica. O “Porque esconderlos”, ou “Estan calientes”, poderiam ter como título complementar a frase de Fialho que acabemos de citar: “Há uma mistura de porco e cão de fila, de malandro e de títere, em muitas daquelas faces…”. Mas a composição pode ir mais longe, como podemos ver um pouco adiante, na mesma crónica, e a evocação inflectir para a fantasia terrífica que inspira As Metamorfoses de Ovídio, as maravilhas genesíacas de um Bosch ou as fantasias de Callott, bem como as ficções literárias, herdeiras deste último, de Hoffmann ou de Gautier, quando Fialho afirma sobre as verdadeiras caras que se revelam:

    Exemplos dos Caprichos de Goya

    quando a máscara lhes tomba, e por detrás do cortesão surge o carnívoro, tigre ou hiena, que do seu antro segue o fio de um plano tenebroso, sindicato ou emboscada política, venda da pena ou  venda da palavra… […]. A passagem dos grotescos é uma ovação macabra e ininterrupta” (2006:102-103).

     Relacionar Fialho com o imaginário gótico que acompanhou o emergir do romantismo na literatura ocidental, ou com a soturnidade de uma certa pintura carregada de melancolia ou de alusão ao terror e ao fantástico, não resulta apenas do que se patenteia, como figuração, quando analisamos os seus escritos de pendor mais ou menos fantasioso, ou com horizontes relativamente delimitados pelo jornalismo. Ele próprio evoca os mestres que o inspiram, face a imagens que percepciona e transmite, como, por exemplo, encontramos expresso na crónica “De Noite”, recolhida em Lisboa Galante:

    É assim um grande leque de casarões, de que a noite não deixa aperceber senão bocados, e de cuja sobranceria soturna a fantasia só evoca monstruosidades e tragédias. Naquela enorme mancha a preto e branco, semelhante a um  pesadelo hugoesco que Goya e Rembrandt houvessem reproduzido a água forte, a vista, uma vez repousada do sobressalto da primeira visão, compraz-se agora em procurar, na tumultuosa embriogenia das formas, sítios familiares por ela conhecidos, como outros tantos  pontos de referência para a apreciação geral do panorama” (1994: 123).

    Ainda na mesma crónica, sobressaem outras evocações do mesmo filão:

    É o nocturno quem desde então se apodera da cidade, uma vez fechadas as lojas, escurecidas as ruas, os americanos e trens feitos mais raros, para dar larga aos seus caprichos, monomanias, análises e doenças; porque é ele que na chateza honesta da cidade ainda alimenta no peito a verde chama macabra do fantástico, que Edgar Poë tanto se compraz em ver bruxulear, como uma flor de civilização, podre e funérea, à superfície das grandes degringoladas sociais. […] Mas como o homem das multidões de Edgar Poë, outros caminham sempre de roda dos prédios fechados, farejando, retrocedendo, seguindo atrás de um, seguindo atrás de outro, em circuitos de angústia, agarrados à última esperança, e à caça sempre, condotières do vício, de apaziguarem a nevrose que desorienta e exaspera no mais recôndito das suas afectividades doentias” (1994:126 e 128).

     The Two Pantaloons – Callot, 1616 Etching (British Museum, Londres)

    De facto, não seriam despropositadas aqui, a completar esta perspectiva, as palavras de Hoffman sobre o desenhador francês, ao prefaciar os seus contos, ou “fantasias à maneira de Callot”, como ele diz em subtítulo:

    “[…] Os seus desenhos são apenas reflexos das aparições fantásticas que a magia da sua invenção evoca […]. A ironia, que confronta o homem e a besta para tornar irrisórios os comportamentos humanos dignos de piedade, é sinal de um espírito profundo; e estas figuras grotescas de Callot, com uma parte humana e outra bestial, desvelam ao olhar perspicaz de um observador sério todas as alusões que se escondem sob a máscara da bufonaria” (1969: 18[i]).

    É claro que o próprio Hoffmann, nas suas narrativas, em geral, usa sem parcimónia o imaginário fantástico, o qual acolhe o misto de bestiário e caracteriologia populares, bem como os esboços de monstros, que servem de signos semanticamente saturados no folclore, para estruturar uma visão do mundo, atenta sobretudo à orgânica da sociedade e das suas éticas.

    O sistema narrativo que ele privilegia emparceira, em grande parte, com as raízes do gótico que Ann Radcliffe usa, mas é, também, devedor do imaginário dos contos populares e das figurações teriomorfas e infernais que este segrega. Ambas as vertentes transparecem no excerto do seu conto, “O vaso de ouro”, que em seguida apresentamos:

    photo of library with turned on lights

    Em frente da pobre rapariga ajoelhada, hirta como uma estátua de mármore, distingues [tu, leitor] neste momento, acocorada no solo, uma criatura descarnada, de pele acobreada, de nariz recurvado como o bico de um abutre e com uns olhos de gato, lançando chispas; do manto negro que lhe cobre os ombros saem braços esqueléticos e lívidos e, mexendo o caldeirão infernal o ente lança gritos de assustar no desencadear da tempestade. Perante o espectáculo agitado desta cena satânica, digna de um Rembrandt ou de um Breughel do Inferno, creio que os teus cabelos, amigo leitor, se terão eriçado, ainda que tenhas mostrado, até agora, uma coragem inabalável” (Hoffmann, 1969: 257-258[ii]).

    Alongámo-nos na transcrição para demonstrar claramente como, em grande parte, a construção deste tipo de narrativa desenvolve essa técnica, tão cara aos expressionistas, de incluir, na sua mise en scène, o olhar e o pathos do espectador, patente em obras que se manifestaram, um século depois de Hoffmann ter publicado as suas narrativas, ao princípio na Alemanha, em variados sistemas expressivos como a arquitectura, as artes plásticas, o teatro e o cinema, sobretudo, embora tenha transparecido nas artes em geral.

    A técnica que tem em conta a focalização do leitor ou espectador, incorporada nas narrativas, reforça as dimensões plásticas e os posicionamentos de perspectiva que se desenvolveu desde o romance gótico até ao film noir, passando pelo cinema expressionista. Assim, compreende-se melhor o alcance da hipótese colocada por Óscar Lopes, acima transcrita, sobretudo tendo em conta o que ele escreve em seguida:

    “[…] Eu suponho que as criações mais originais de Fialho como ficcionista apontam a este processo, que as tradições de audácia fantasmagórica do Romantismo germânico (e já reconhecemos o interesse de Fialho por tal literatura de mistério e fantasmagoria) ajudaram a eclodir, mais tarde, sobretudo nos países de língua germânica. […] Notemos, antes de mais, que essa estética tem, quase sempre, um ar opressivo de pesadelo, de horror traduzido por situações irreais. Ora, em descrições do contista, tão frequentemente concebidas como quadros pictóricos, lá surgem repetidos, quase maníacos, os epítetos de rambrandesco, goyesco ou a evocação das gravuras de Doré, funcionando como uma espécie de símbolo estenográfico do belo horrível que o tenta […] onde […] o cronista desata «o bestiário da alucinação doida e disforme» com amplificações por vezes retorizadas, mas em todo o caso com garra alucinante.  […] O autor mais ou menos mostra aperceber-se de estar utilizando a fantasmagoria como meio de expressão de coisas a que os processos naturalistas não chegam” (Lopes, 1987: 188-190).  

    O filão aqui referido constituiu-se, de modo mais ou menos sistemático, em paralelo com outras configurações reconhecidas como marcas  diferenciadoras que caracterizaram a emergência e a formulação poética do romantismo: o apelo do irracional, a afirmação do eu como fonte e destino da verdade – mesmo quando se convoca o imaginário fantástico, a fantasmagoria e as percepções distorcidas do mundo empírico –, o confronto do bem e do mal com particular apreço pelas dimensões perturbantes, terríficas mas fascinantes, deste, bem como uma retórica da persuasão, toda ela assente na autenticidade de uma voz pessoal, que convoca a cumplicidade e compaixão do ouvinte ou do leitor, relativamente às representações elaboradas pela entidade enunciativa.

    Talvez nunca a entidade autoral se tenha confundido tão completamente com a voz e o ponto de vista autodiegético, ou de enunciação lírica, como aconteceu com os autores que hoje reconhecemos como componentes da constelação romântica, nos espaços europeus e americanos. Mesmo os primeiros escritos que anunciam tendências que se viriam a revelar dominantes no romantismo, ainda no século XVIII, lidam com essa retórica em variados escalões de veemência, buscando, do leitor, não uma anuência, mas uma adesão arrebatada.

    Leviatã, Doré (ilustração para a Bíblia)

    Não é a crença, a convicção mais ou menos racional, que estabelece o pacto poético entre o público leitor e a produção de uma Radcliffe ou de um Hoffmann, mas sim o arrepio ou o estremecimento emocional que  nos arrasta para o percurso das heroínas – sobretudo das heroínas, porque elas predominam, como vítimas do terror ameaçante – e ainda, também, a compaixão, a sintonia afectiva, a confabulação onírica, cujos mecanismos, motivos e componentes se agregam em torno da vítima, como um bastidor de dispositivos e hipóteses que, num registo de exigência racional e realista, teríamos dificuldade em aceitar ou mesmo conceber.

    Abandonando as convenções poéticas que asseguravam a estabilidade da razão pela inclusão ou enclausuramento do fantástico no plano do mitológico, do religioso ou da licença poética da fabulação alegórica, apenas para efeitos de exempla, o romantismo vem colocar, como possibilidade do experienciável, a verosimilhança do fantástico.

    O que é extraordinário, para as vivências e consonâncias perceptivas da comunidade, revela-se possível nos universos ficcionais e romanescos da produção literária que antecede e anuncia o romantismo, bem como numa boa parte da produção dos românticos e das posteriores gerações, desenvolvendo-se, a partir da época realista, num sub-género que as histórias e as genologias literárias vão arrumando sob o título de literatura fantástica.

    O satanismo, que acompanha o gosto parnasiano de um Baudelaire ou de um Gautier, a efabulação do retorno dos mortos ou da emergência de entidades infernais, no quotidiano dos seres vivos habitando universos regidos pelos princípios de uma normalidade em que isso não é possível, invadem as narrativas como acontecimentos extraordinários ou, mais frequentemente, são sugeridos por sinais aos quais não se sucede o fenómeno extraordinário, que apenas o anunciam in absentia, mas que vêm lembrar aos humanos que a estabilidade e normalidade do mundo em que vivem podem ser ameaçadas pelos seres do outro mundo. Como diz Todorov, o fantástico nasce da ambiguidade gerada pela possibilidade dessa ameaça:

    “[…] Realidade ou sonho? Verdade ou ilusão? Num mundo que é, efectivamente, o nosso, o que nós conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não se pode explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar. Aquele que se apercebe do acontecimento deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e as leis do mundo continuam a ser o que sempre foram; ou o fenómeno aconteceu realmente, é uma parte integrante da realidade e, então, essa realidade é regidas por leis que ignoramos. […] O fantástico ocupa o tempo desta incerteza; uma vez escolhida a resposta, abandonamos o fantástico para entrarmos num dos dois géneros vizinhos: o estranho ou maravilhoso” (1970: 29).

    Derretendo (possível auto-retrato?) de Rembrandt

    Digamos, desde já, aproveitando esta cómoda arrumação proposta por Todorov (que é interessante por ser simples e nos ajudar a encaminhar a reflexão, através de um percurso que se revela, muitas vezes, resvaladiço), que podemos vislumbrar, como ponto de partida, para o entendimento da dimensão da obra de Fialho a que Óscar Lopes chama expressionista, fortemente marcada pelo gosto decadentista e pelo satanismo finissecular, o enquadramento de alguns dos seus textos no género estranho, de que fala Todorov. De facto, Fialho busca, quase sempre, a caricatura com objectivos críticos, ou a parábola em que o efeito hiperbólico do extraordinário produz um efeito de argumentação ética ou ideológica. O efeito derrisório causado por este procedimento não deve ser ignorado nem mesmo minimizado.

    Não se trata, no entanto, de um maravilhoso como o que Flaubert constrói, num dos seus contos, ou mesmo em boa parte do seu Tentations de Saint Antoine, ou como aquele que Eça convoca nas suas parábolas bíblicas.         

    As distorções produzidas na caricatura ou na parábola crítica de Fialho, pelo facto de guiarem a imaginação através de um processo de metaforização, em que as analogias, os reconhecimentos e as enfatizações põem a percepção e o discernimento alerta, geram um modelo de representação que agudiza, pelo estranhamento (e, por isso, a designação de estranho, aplicada ao género, é tão adequada), a nossa capacidade de congeminar hipóteses sobre aspectos da realidade, da sociedade e dos valores humanos que, de outro modo, permaneceriam ocultos. Quanto a esse procedimento, ele está mais perto do visionarismo satanista dos românticos do que nalgum do imaginário feérico dos seus contemporâneos.

    Podemos perceber essa proximidade num conto em que o espírito da vida boémia (parisiense por excelência, deve notar-se) se manifesta aberta e hiperbolicamente, “Le club des hachichins”, Théophile Gautier explora o filão já cultivado por Hoffmann e, embora o hiperbolize, procura tornar patentes as raízes do fantástico a que é devedor:

    Peu à peu le salon s’était rempli de figures extraordinaires, comme on n’en trouve que dans les eaux-fortes de Callot et  dans les aquatintes de Goya : un pêle-mêle d’oripeaux et de haillons caractéristiques, de e formes humaines et bestiales; en toute autre occasion, j’eusse été peut-être inquiet d’une pareille compagnie, mais il n’y avait rien de menaçant dans ces monstruosités. C’était la malice, et non la férocité qui faisait tiller ces prunelles. La bonne humeur seule découvrait ces crocs désordonnés et ces incisives pointues” (Gautier, 1993: 180).

    Como se vê neste texto de Gautier, a dimensão do fantástico e do terrífico pode aproximar-se francamente da caricatura, da alusão crítica pela via do inquietante, sem por isso se desligar inteiramente da estética do fantástico, tal como ela foi cultivada pelos românticos e pós-românticos, inclusive os realistas e naturalistas, sobretudo naquelas criações que os estudiosos das estéticas modernas têm designado por gótico. É esse filão que, muitas vezes, parece inspirar Fialho, mesmo quando, aparentemente, pretende fazer o mais puro naturalismo, como acontece nos seus primeiros contos.

    Quanto a essa dimensão, poderíamos evocar aqui os trechos mais marcantes do seu conto longo, “A Ruiva”, do qual, só para exemplo, colhido quase ao acaso, apresentamos um trecho em que, ao efeito macabro, vem juntar-se o anelo de o macaquear, de o tornar caricatura do cenário do terror:

    Começou a amar principalmente os mortos que paravam à porta do cemitério em ricas berlindas douradas, entre filas de gatos-pingados lúgubres de tochas acesas, e puxados por seis parelhas cobertas de crepes. Visitava-os na casa da observação, acocorada a um canto com o olhar absorto, durante as vinte e quatro horas que os caixões ali passavam abertos, e onde contemplava, deitados na pétrea imobilidade derradeira, os que na sua vaidade egoísta, corruptos e miasmáticos, iam habitar em sepulcros de mármore, com figuras sentimentais na fachada e pomposas inscrições nas lápides. Pode dizer-se que aprendeu a ler no cemitério, quando curiosa na sua pobreza esfrangalhada queria saber os nomes e posições ocupadas no mundo pelos que habitavam aquela branca cidade de mármores, de que se julgava rainha” (2003: 16).

    Na composição das figuras dignas de pasmo que enchem as suas narrativas, quer sejam do foro da crónica interventiva ou de costumes, quer sejam ficcionais, quer sejam, ainda, um pouco de ambas, cultivadas em textos de escopo memorialístico, verificamos que a tradição do conto maravilhoso e o estilo da narrativa estranha se conjugam, num hábil compromisso que possibilita a emergência de um fantástico sui generis, o qual parece apresentar-se a cada um de nós como fazendo parte do nosso quotidiano, presumivelmente presente se dobrarmos certas esquinas malfadadas, que o destino nos apresenta sem nos ter preparado para isso.

    grayscale photo of people sitting on bench near trees

    E é verdade que a estranheza inquietante, embora seja mais própria das grandes metrópoles, onde reina o anonimato e o desconhecimento mútuo entre indivíduos que, de súbito, convivem na mais estreita intimidade, pode surgir, igualmente, nas sociedades rurais, onde a crendice é mais cultivada. Pode surgir, por exemplo, nos traços fisionómicos de um conterrâneo, de um vizinho aparentemente normal na sua singularidade, sobretudo quando nele reparam mais atentamente. É o que acontece na crónica, com forte componente de fantasia, “O Anão”, de O País das Uvas, ao descrever a personagem que dá título à narrativa:

    Reparando bem, havia até nas feições dele alguma coisa de herbívoro, flagrante à vista. O focinho, aguçado e móvel, mascava sempre. As bosseladuras da testa tinham tendências cónicas de chibato. Era típico o ar espantadiço com que escutava os rumores dispersos pelo campo. Vinham a ele os rebanhos, como a um irmão de armas. Os mesmos bodes, com o seu espirituoso donaire mefistofélico, lhe reconheciam um ar de família. E roçavam-se-lhe amorosamente pelos ceifões as cabrinhas coquetes, como quem suspira: «Desposa-me!»” (s/d: 87).   

    A tentação de Fialho pelo fantástico da fisionomia é tão grande que lhe invade mesmo os textos onde seria de esperar a moderação retórica da argumentação ponderada, talvez exaltada das adjectivações de aprovação ou desaprovação, mas cautelosa no modo de fazer o retrato a pessoas que lhe mereciam respeito como, por exemplo, os seus confrades. Mesmo nos textos em que louva, como acontece com o que escreve sobre Malheiro Dias, não abandona o fascínio pelo bestiário: “Dois olhos pretos, stellares, d’animalzinho sagaz que ficasse infantil por um principio de graça, inherente ás espécies de felinos […]” (1923: 99). Não espanta, por isso, que, ao referir-se a Eça, com quem mantém um perpétuo contencioso, nem sempre fácil de entender, o seu fisionomismo recorra a um bestiário de inspiração satânica:

    silhouette photograph of trees with foggy weather

    Olhem bem essa masque de face cavada e nariz astuto, com olhos de myope alternadamente coriscantes e doces, bocca fina, que sob as azas do bigode, aos cantos se atormenta numa ironia que faz na sua conversa e na sua proza, um scintillar de espadas em duello. Ao premir na orbita o monoculo, as sobrancelhas negras estranhamente arqueadas approximam-se e palpitam, como remiges em azas de corvo, pondo na physionomia, o que seja de um cunho mephistophelico” (1923: 104).

    É claro que Eça aparece, aqui, quase reproduzindo em pessoa o “senhor das trevas, do qual ele próprio propõe a imagem, o molde descritivo, de maneira algo hilariante, em O Mandarim:

    Toda a sua originalidade estava no rosto, sem barba, de linhas fortes e duras; o nariz brusco, de um aquilino formidável, apresentava a expressão rapace e atacante de um bico de águia; o corte dos lábios, muito firme, fazia-lhe como uma boca de bronze; os olhos, ao fixar-se, assemelhavam dois  clarões de tiro, partindo subitamente de entre as sarças tenebrosas das sobrancelhas unidas; era lívido – mas, aqui e além na pele, corriam-lhe raiações sanguíneas como num velho mármore fenício” (1992: 89).   

    De facto, Fialho de Almeida parece ter levado às últimas consequências, de modo sistemático, refinado e original, o recurso à figura do animal, como “material” para a construção de metáforas, ou mesmo alegorias que procuram ser emblemáticos exempla das características humanas, sobretudo as instintuais, tendo servido, desde as origens da organização social da humanidade, quer para revelar as dimensões da animalidade no homem, quer para “tomar a diversidade das espécies para suporte conceptual da diversidade social” (Lévi-Stauss, 1986: 129)[iii].

    fountain pen on black lined paper

    Não andaria longe, por isso, dos mestres que evoca. Pela associação de imagens, a simples figuração de brilho e negrume – que costuma ser já, quase, uma catacrese da sinédoque com que se designam os olhos e as sobrancelhas: “pontos luminosos e traços negros” –, quando se evoca o corvo, é  transformada na própria tonalidade infernal, sobretudo quando o movimento da “remiges”, gera a feição mefistofélica, sobrancelhas unindo-se, arqueadas sobre o olhar penetrante (muito aberto e fixo, como que para hipnotizar, como sugere o movimento do monóculo). O corvo surge aí, então, como a ave de mau agoiro, de missão necrófaga, que plana sobres os campos de batalha, para arrebatar os cadáveres, ou aparece como Malphas, figura infernal, que um demonólogo como Collin de Plancy define do seguinte modo:

    Vice-presidente dos infernos, que aparece sob a forma de corvo. Quando se mostra em figura humana, o som da a voz é rouco; constrói cidadelas e torres inexpugnáveis, derruba as muralhas inimigas, faz encontrar bons obreiros, fornece espíritos familiares, recebe sacrifícios e engana os sacrificantes. Quarenta legiões lhe obedecem” (2002: 291).       

    O manancial do simbolismo animal parece não se esgotar é repleto de versáteis composições. Como Durand diz sobre Goya:

    Dos Caprichos aos Desastres da Guerra, o pintor espanhol fez uma inultrapassável análise iconográfica da bestialidade, símbolo eterno de Cronos e de Tânato. Vamos ver sobrepor-se a esta primeira face teriomorfa do tempo a máscara tenebrosa que, nas constelações estudadas, as alusões à negrura do sol às suas devastações deixavam pressentir” (1989: 65).

    Em boa verdade, esta tendência para uma fantasia aberta às hipóteses do fantástico é constante em Fialho, tornando-se uma tentação maior nas crónicas ou nas narrativas que se apresentam como registos de ocorrências pouco comuns mas que são publicadas em recolhas contendo textos que podem ser entendidos como reportagens ou notas de jornalista.

    Podemos ler, em “A Condessa”, um desses textos que tanto nos sugerem a crónica de eventos reais como a ficção, contidos em Lisboa Galante, o seguinte:

    Entanto, à medida que ela ia embocetando, com lascívias de panterazinha domada, todos os proventos da sua galante profissão, impava o Chiado de não fazer a sua convivência. […] Eram gastrálgicos de ventre alto, trinta anos fanados com primeiros pés de galinha ao canto das órbitas; pequenos crustáceos de redacção, vilegiando na esteira das coristas da Trindade; jovens loiros de esporas e vincos cebáceos na copa mole dos feltros; enfim, dominadores ricos, herdeiros do alto comércio, aristocratas de nariz em bec: ou glaucos militarzinhos pobres, que o rumor dos breaks elegantes, ou o trote das parelhas em voga, não deixavam resignadamente aceitar a miserável vida que levavam” (1994: 84).  

    O que chama a nossa atenção e nos desafia a aprofundar, em mais amplas indagações, a desenvolver em lugar que possa acolher mais alargada exposição, o culto do fantástico e o uso da figuração terrífica em Fialho de Almeida, é o modo como ele se processa textualmente no conjunto da sua obra.

    De facto, Fialho não é um autor de textos fantásticos: as construções das suas intrigas desenvolvem-se segundo a dominante naturalista, sob o pendão hegemónico do cientismo positivista, e as suas crónicas reportam-se a eventos que se revelam empiricamente reais, num cotejo com os noticiários do seu tempo e com as crónicas da historiografia que os subsumem.

    Ele não pratica evasões ou escapadelas pelo imaginário fantasioso, como Eça o fez, através da alegoria, da história terrífica ou mesmo do género fantástico propriamente dito (como nas lendas de inspiração bíblica, no conto “O Defunto” ou em O Mandarim), ou como Ramalho Ortigão, quando acompanha Eça na fantasia romântica da “estrada de Sintra”.

    Trata-se, efectivamente, de inserir a sugestão do terrífico, do anómalo ou do extraordinário no interior do mais chão e zeloso realismo, no registo da crónica em regime realista, por vezes com propaladas argumentações de teor positivista, quase em registo experimentalista de um Claude Bernard. Tudo se passa como se argumentasse que o universo é banal e repetitivo, de tal modo que o que de mais estranho nos ocorre cabe no território do previsível, nas regiões da catástrofe aniquiladora e da morte – mas que, contudo, as zonas terríficas, que estão para lá da nossa possibilidade experiencial, se fazem anunciar por sinais, por quadros prenunciantes da dissolução e do fim, que se revelam como coruscantes imagens ameaçadoras, implacáveis e medonhas.

    brown wooden panel door beside gray concrete wall

    De algum modo, é esse imaginário que está presente na cena de “Os Pobres” recolhido em O País das Uvas, no qual o próprio impulso sexual, a onda do desejo, se transformam num imaginário de pesadelo, num enredo cósmico que parece não ter fim, e que poderia emblematizar o horizonte de toda a obra de Fialho. Como encerramento desta matéria, citamos, na íntegra, a cena aludida:

    Já sob o império das raivas de multiplicação que radiam dela, o descalção se arrasta, de braços estendidos, à procura do centro histerógeno de pecado, enquanto da outra banda a fêmea se debate num desespero semelhante ao que lhe dá. Andam assim nas trevas procurando-se, de rastos como cobras, lacerando os farrapos,  os torsos na espiral do mesmo adusto anseio; e afinal acham, o contacto das suas carnes dá na sombra uma crepitação de escamas de imundície, quando alfim ele, súbito liberto, pelas impunidades da treva, das suas preocupações de hediondez, ala sobre ela o monstruoso corpo de colosso, que fosforeja e estria, como um mastodonte  cioso, os grandes músculos. E as unhas rasgam-lhe os rins, a cravá-la em si com fúrias de chacal. Cavas, opressas, ouvem-se as respirações suflar bestialidade, e de ambos os dois as sedes são vorazes, e o resfôlego das duas máquinas irmana-se, rimando os urros e sofreguidões das suas virgindades envelhecidas a pontapés, sob os desdéns carnais de toda a raça humana” (sd: 41).

    Não poderíamos encontrar melhor exemplo, para ilustrar o processo de intromissão súbita e pontual do fantástico, recorrente e sistemático a pautar a sua obra, patente numa impressionante quantidade de textos que foram dados a lume em volume.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Activa

    Almeida, José Valentim Fialho de, 1956(?) e 2003, Contos, Clássica, Lisboa (1881)[iv]

    Almeida, José Valentim Fialho de, 1912, A Cidade do Vício, Clássica, Lisboa (1882)

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    [i] Traduzimos o texto francês, vertido do alemão para esta língua por Henri Egmont, com revisão final de Albert Béguin.

    [ii] Traduzimos o texto francês, vertido do alemão para esta língua por André Espiau.

    [iii] Sobre a matéria aqui tratada, relativa à amplitude a à força semântica do animal ou das variedades de animais evocadas, apoiamo-nos, além das obras referidas, nas entradas respectivas do  Dictionnaire des symboles de Chevalier e Gheerbrant, 1982, Laffont, Paris.

    [iv] Para citação de texto actualizado utilizamos a edição de 2003, publicada sob a direcção de Vasco Graça Moura.

  • Mário Cláudio

    Mário Cláudio


    Um conjunto determinável e evidente de grandes vectores pode revelar-se, para quem tenha acompanhado a obra de Mário Cláudio como romancista, na engrenagem poética da sua criação ficcional[1]. Não funcionando todos os que consideramos mais pertinentes ao mesmo nível ou instância de discurso, não se revelando todos no mesmo plano textual, procuraremos apresentá-los de acordo com uma arrumação dentro desses planos. Tal discriminação apenas tem valor de matriz teórica, ou seja, apenas pretende conceptualizar hierarquizadamente um conjunto de mecanismos poético-narrativos pertinentes, que permitam tornar mais clara a formulação epistemológica tal como ela se gera enquanto verosímil na narrativa do autor portuense.

    Para uma melhor orientação sistemática de leitura, é segundo os diversos planos, dentro dos quais conceptualizamos o funcionamento dos discursos e dos textos, que congeminamos arrumados os fenómenos mais globais que nos parecem pertinentes na poética de Mário Cláudio, salvaguardando sempre que essa discriminação apenas tem valor heurístico tendo em vista a análise da obra. Quando emergem como efeitos poéticos não é sob essa discriminação, mas sim como enunciados, que significam na globalidade sincrética da dinâmica simbólica e imaginária, que vários códigos regulam, quer na produção quer na leitura. 

    Mário Cláudio

    No plano a que chamaremos do discurso romanesco (muito próximo daquilo a que Genette chama a narraçã0[2]) destacam-se, como processos dominantes da poética romanesca de Mário Cláudio, a ficcionalização do autor por um lado; e a articulação dos pontos de vista com as vozes que narram, por outro, numa dinâmica que não sendo propriamente a do paradoxo, é quase sempre a do desajuste. No plano da construção da narrativa propriamente dita, destaca-se a hipertrofia do descritivo, em claro diálogo/demarcação com os procedimentos do naturalismo oitocentista, acompanhada por uma usurpação do lugar do narrador linearmente épico por um sujeito poético que comenta e refracta as posturas e discursos das entidades da narrativa – narrador ou personagens.

    Do ponto de vista da história ou fábula contada, ganham relevo dois aspectos que são talvez os mais evidentes e fascinantes na produção de Mário Cláudio: o narrado aparece ou sob a caução da personagem histórica, que não é ficcional mas “biografada”; ou como matéria que a narrativa fabula reportando-se, de imediato, à crónica, simulando a clara intenção de construir um discurso historicamente factual, seja a matéria abordada a privada ou familiar, seja a do discurso memorialístico ou do diário, ou seja, ainda,  a do quotidiano que circula na comunicação de massas.

    O conjugar destes diversos mecanismos, de forma original e cada vez mais bem regulada, permite a criação de um dispositivo poético a que chamaríamos aparato estético da escrita como espectáculo da enunciação, o qual funciona do seguinte modo: um sujeito enunciativo aborda o documento, pretexto da história a construir, e transforma-o numa equação em que o objecto de ficção se destaca pela relação que mantém com a História do seu tempo, mas sob os efeitos de transformação do discurso poetizante do autor. Completa o efeito da espectacularidade o facto de uma das posturas preferidas de Mário Cláudio ser a da contemplação do álbum (ou do suporte de documentos em geral), compondo a partir do instantâneo fotográfico ora a aura da pose[3], ora a digressão da pequena narrativa anedótica, ora a perífrase da ampliação descritiva.

    A espectacularidade estética de que falamos tem em conta, sobretudo, dois factores dominantes na ficção de Mário Cláudio já aludidos acima: a importância da visualidade mesmo quando o discurso é argumentativo; e a passagem do instantâneo à pose e mesmo à composição descritiva por alongamento do discurso (a hipotipose). O início da narrativa que inaugura, por assim dizer, na obra do autor, o “ciclo romanesco[4]” propriamente dito, Amadeu, fornece-nos bons exemplos de ambos os processos segundo os quais a fábula se vai tecendo como romance ainda que, quase sempre, em constante de invenção poética, renunciando a ser linearmente narrativa[5]. Lemos, de facto, logo nas primeiras linhas:

    “A Casa é uma teoria volumétrica por entre vegetação, maior do que todo o Mundo, impossível de arrumar. Por torres e telhados se levanta, paredes de cal alternando com panos de muralha, e um bestiário a habita, nela cirandando ou em torno lhe correndo, heráldicos bichos esguios, indistintos da paisagem. Na construção, que não obedece aos caracteres do meio, um pouco ao revés de certa convicção de sangue da família, a vida se concentra na cozinha que ele virá a pintar. É uma quadra enorme e enegrecida, trespassada de aromas que compõem uma história culinária remontando muito além do clã, ao horizonte de raças de loiro baço, olhos de verde sequíssimo, deuses que nas faldas do Marão apenas reclamam exíguos sacrifícios de bagas de arbusto, pequenos mamíferos amedrontados. Amadeu percorre a Casa a grande velocidade, na espécie de tontura que lhe dá a infância, ingénuo do destino a conferir ao fogo que a brincadeira não sabe extinguir” (1993: 11[6]).

    Este excerto, que nos limitámos a “colher” das primeiras linhas da obra que nos parece ser fundadora da série que afirma Mário Cláudio como um dos grandes romancistas portugueses contemporâneos, é um perfeito exemplo dos vários mecanismos que estão na origem da arte (ou técnica) de composição que o caracteriza. Em primeiro lugar, é de notar a importância que ele dá à visualidade, patente pela própria abundância de um vocabulário que hiperboliza o visual, quase até à sua glorificação, quer pelo descritivo dominante, quer pelo uso do vocabulário típico das várias técnicas da construção do visual.

    Em segundo lugar, patenteia-se a posição privilegiada de uma perspectiva narrativa que nunca se submete à necessidade de sequencializar a acção segundo a exigência de sucessivas actuações ordenadas pela cronologia e verbalmente expressas pelo domínio do pretérito perfeito – ao contrário, dominam as formas do presente e do futuro. Tudo se passa, enfim, como se a voz do narrador, caracterizada por uma forte expressividade linguística e um notável aparato cultural, transmitisse um poder de conhecimento que, em relação ao objecto apresentado, não conhece limites: move-se para a infância da personagem, prevê-lhe o futuro, conhece os fundamentos genealógicos da família, o quadro cultural antropológico e os fundamentos míticos e simbólicos do imaginário que determinarão o futuro da personagem.

    Sem abdicar, em nenhum momento, dessa omnisciência de ponto de vista, o privilégio autoral de Mário Cláudio introduz, no entanto, uma imensa variação de sujeitos que colaboram com o narrador autoral, quer aparecendo como vozes independentes, quer fornecendo-lhe pontos de vista a partir dos quais a entidade mais recuada do discurso (a que se confunde com o autor enquanto enunciação primeira do discurso) desenvolve as suas digressões, por vezes em narrativas propriamente ditas, mas,  mais frequentemente, em descrições e discursos argumentativos e avaliativos.

    São bons exemplos dessa versatilidade os troços de narrativa em que um narrador homodiegético emerge, como diarista do trabalho do biógrafo de Amadeu que trabalha em Santa Eufrásia de Goivos. Alguns excertos desse diário permitem-nos acrescentar alguns traços esclarecedores relativos ao mecanismo de narração de Mário Cláudio.

    “Considera-se um biógrafo. Reúne documentos, ouve quem ouviu do homem, acrescenta a tudo isso estâncias da própria existência. Este meu Tio Papi pretende justificar-se. A vida apenas se lhe torna inteligível na vida de outrem, e é isso quase tudo quanto o move. Falando do pintor Amadeu é de si que fala, por ele viaja até à infância, emerge à superfície das águas trazendo entre os dentes um pequeno tesouro cintilante. Mas é-lhe pouco exacto o itinerário, arrogante também. Vejo-o quando passo no corredor e esqueceu a porta entreaberta, de camisa impecavelmente alva, às vezes ao pescoço o foulard de seda natural, infantil ex-libris, a pena suspendida do papel, o braço esquerdo apoiado no cotovelo e sustentando o cigarro entre o polegar e o médio” (1993:16).

    Embora antepostas, as considerações afectam como um comentário o olhar momentâneo: e, obviamente, a ideia de uma imagem captada no instante é apenas a máscara do documento, de um instantâneo divisado pela nesga da porta, que inscreve, de facto, a pose bem elaborada do escritor.

    A recorrência do processo é notável, embora variem os mecanismos de perspectiva e os sentidos atingidos sejam diversificados. Por exemplo, em O pórtico da glória, o narrador, biógrafo da própria família, referindo-se ao seu tio-avô, refere-se-lhe como se o captasse numa fotografia de um álbum, tirando os efeitos temporais e de perspectiva mais surpreendentes, inclusivamente pela sugestão dos instrumentos de óptica que apoiam a visão:

    “Vejo-o à distância, empenhadíssimo em fiscalizar o funcionamento da fábrica, utilizando os conhecimentos técnicos, proporcionados pelo curso de engenheiro mecânico, intencionalmente abraçado, no afã de corresponder às urgências da acção em que a tribo se implicava. E distingo, reflectidas nas lentes de aros dourados, que nunca abandonaria, o rol de uma estrita lista de encomendas, que não consigo precisar em que época se teria cumprido. A tinta negra, porventura pela mão do defunto guarda-livros Evaristo Nunes, decorre sob o vidro que os aumenta os itens seguintes [e seguem-se seis linhas de enumeração]. E uma mancha de tristeza parece toldar a face de José Bolet, abreviado nome, que reivindicaria, e não logro precisar donde provirá ela, se da folhagem de um plátano que se agita, na tarde de magro sol, se de alguma agrura da alma a qual não achou aquilo que desesperadamente procura, mas que percebe quão inútil lhe será a desistência da frustração” (1997: 168).

    Compreende-se que, no horizonte deste processo, se revela a técnica naturalista, sobretudo se atendermos ao facto de que o biógrafo faz a “saga” (ou crónica, como o autor prefere chamar-lhe – e com razão, quanto a nós, pelo que iremos demonstrando) da própria família. Mas logo se patenteia como fundamento desta escrita a deriva para a fantasia através da qual se verifica quanto o processo do documento e da reconstrução do documento é uma impossibilidade para o narrador e um limite para o criador poético. Não teria de ser assim, forçosamente: não obstante as críticas dos seus detractores, o naturalismo procurava ser uma arte de representação do real e um discurso epistemológico de explicação dos factos documentados, exactamente através da descrição.

    Seja como for, o procedimento de Mário Cláudio, lançando mão dos mesmos materiais a que os naturalistas recorriam, parece querer mostrar quanto, no documento, o pormenor (a perspectiva do olhar do tio-avô, os óculos, as letras vistas através das lentes, a referência ao guarda livros e a própria enumeração do que essa lista continha) apenas serve de húmus ao devaneio, que se vem fixar no pormenor incerto (a “mancha de tristeza”, equivocamente atribuída a uma folha de plátano), não podendo aspirar a demonstrar nada no plano da realidade referencial.

    Quanto a este aspecto, Mário Cláudio, atento herdeiro dos pastiches camilianos, parece aproximar-se mais do espírito do nouveau-roman, fazendo do olhar que encaminha a descrição uma paixão dos sentidos, uma obsessão de onde parte a digressão poética. Curioso é que ela se exerça quase sempre como prospecção do passado, como um devaneio que procura reconstruir a vida como sonho, a partir dos dados que a crónica apresenta como factos na verdade ocorridos. O autor portuense parece estar inteiramente consciente disso, como o demonstram as linhas que em seguida transcrevemos, do romance também pertencente à “crónica familiar do autor”, Tocata para dois clarins, nas quais somos tentados a ver uma revelação, quase, de uma ars poetica:   

    “Inclino-me para estes dois retratos, agora, que constituem a prova visível, diria quase imemorial, daquela viagem de núpcias, num papel recortado, que o tempo, apesar de tudo, não tingiu do proverbial amarelo mitológico. E relembro-me, assestando a desmedida máquina «Kodak», em pleno Terreiro do Paço, a fim de colher, da Maria, a imagem que a retenha, em Lisboa, nos finais desse Novembro, soalheiro e frigidíssimo, de mil novecentos e quarenta” (1992: 77).

    Será difícil não ver, na sequência do que vimos argumentando, quanto a própria problemática que procuramos desenvolver se torna central no troço da narrativa que acabámos de transcrever: um “cronista” evoca, na presença de uma fotografia, o momento em que ela foi obtida; o acto de captação é visto como uma tentativa de “colheita” de um momento (“instantâneo”) imemorial; no entanto, a atenção do observador é avassalada pela memória, a figura agiganta-se, no conjunto da paisagem, e não só o momento se eterniza numa pose – no recordar! – como a composição aumenta, como se o tempo decorrido, um pouco à maneira da imagem que Proust constrói no final da sua Recherche, incluísse na figura o tempo, tornado volume no espaço; e o devaneio histórico cultural desenvolve-se, nas linhas seguintes, até ao final do capítulo onde, num remate que retoma o instantâneo – já tão evidentemente permeado de observações e juízos de valor – se encerra o instante, e tudo o que o amplia, deste modo, onde se constrói o parêntesis pelo jogo do “anacoluto” narrativo corrigido:

    “Ao encerrar este capítulo, porém, de uma espécie de privativa história universal, é como se me implantasse, de novo, defronte da minha noiva, ajustando o diafragma, medindo a distância, prevendo a incidência da luz, dentro em breve crepuscular. À invectiva da Maria, então, «Vamos lá, António, vê lá se te despachas», responderei com um segredo, balbuciando entre lábios, como nesse dia, duas palavras, apenas, «Um beijo», enquanto comprimo a molazinha do obturador” (p.80).

    No entanto, como já o dissemos anteriormente, não é só do documento visual que parte o discurso perscrutador deste procedimento de narração lírica. Ainda em Tocata… podemos ver, no capítulo II, o aproveitamento do discurso político do “Estado Novo”, citado como documento, mas lentamente transformando-se, pelo desenvolvimento de uma voz que se neutraliza pelo que nela ecoa de vozes que a glosam, parodiam, parafraseiam e amplificam, numa espécie de estrépito de ideologias em choque, soando em simultâneo.

    De algum modo, o documento artístico, em Rosa e Amadeu, sobretudo, e a correspondência pessoal (por vezes inventada), com especial ênfase em Guilhermina, sofrem tratamentos semelhantes como matéria de composição poética. O mesmo poderíamos dizer relativamente aos seus textos mais marcadamente históricos, As batalhas do Caia (1995) e Peregrinação de Barnabé das Índias (1998).

    Neles, sobretudo no segundo, não é tanto o documento fotográfico (que, apesar de tudo, está presente na crónica de Eça escrevendo “A Catástrofe” tal como aparece em As batalhas do Caia) que funciona como matéria-prima, mas o discurso da crónica, da História como crónica, seja ela a de um relato inventado (“A Catástrofe, de Eça de Queirós), seja a de um relato de viagem ou diário de bordo (o Roteiro da viagem de Vasco da Gama, ou mesmo Os Lusíadas).

    É neste contexto, evidentemente, que perspectivamos a galeria dos biografados. Eles são, tendo em conta o maior ou menor grau de veracidade histórica, documentos, a partir dos quais os discurso poético se desenvolve para interrogar sentidos da existência, dimensionar a problemática do humano como um sistema de tensões representadas como verosímeis – desde as personagens que indiscutivelmente viveram em épocas transactas (Amadeu Souza-Cardoso, Rosa Ramalho, Guilhermina Suggia, Vasco da Gama, Eça de Queirós) ou ainda estarão vivas (algumas das que coexistiram com as personagens historicamente mais recentes, o estudante que matou a namorada, no Porto, em 1994, designado por Henrique, em Ursamaior – 2000), até às que são “autênticas” na história familiar de Rui Barbot Costa, e que Mário Cláudio, personagem autoral[7] de Rui Barbot Costa, transfigura ao romanceá-las dando-lhes novos nomes e construindo um verdadeiro palimpsesto sobre a árvore genealógica real, constante em registos civis.

    Interessante, em quase todos os casos, é que à história contada se acrescente, por meandros de variados processos criativos de mundos em coexistência com outros mundos, o conto do contar a história. Assim, de certo modo, todos os narradores, incluindo o autor Mário Cláudio, são personagens sob penas várias, sofrimentos e paixões que, ou dizem respeito directamente às histórias biografadas, ou vêm complicar o processo de contar vidas vividas. Uma imagem esclarecedora desse dramatismo surge claramente na caracterização do biógrafo Papi, que acima transcrevemos. De facto, tudo se passa como se “a vida só fosse inteligível, pela vida de outro” e, desse modo, percebe-se claramente que o acto de enunciação seja um dos centros fundamentais da poética romanesca de Mário Cláudio.

    Essa importância dá-se a conhecer em todos os mecanismos já mencionados, a começar pelo processo de construção da espectacularidade estética que foi o que começámos por expor. No entanto, merece uma atenção especial o mecanismo verbal que constrói, em grande parte, essa espectacularidade. O sistema textual dominante para a construção do visual e para o engrandecimento aparatoso do documento é, quanto a nós, o descritivo. Evitando alongarmo-nos muito sobre as características de tal processo em Mário Cláudio, remetemos o leitor interessado para os dois artigos da nossa autoria que apresentamos na bibliografia.

    No entanto, convém que sumariemos os efeitos fundamentais que nos parece que a ordem do descritivo instaura nos romances de Mário Cláudio. Em primeiro lugar, parece-nos que, perdendo as coordenadas mais evidentemente textuais da narrativa, os romances do autor portuense esquecem o “objecto que se faz por si próprio”, no encadear das acções, como que comandado pelos feitos que constroem a fábula – a qual se valida como exemplum, minimizando, por isso, o efeito da verbalização – enfatizando, ao contrário, o dizer, pela valorização do comentário. Em segundo lugar, eles esvaziam o sentido da descrição como auxiliar da narrativa, a servir apenas de “quadro” à crónica, ou seja, de fundo secundarizado, à forma significativa das acções encadeadas.

    Quanto à primeira consequência, devemos constatar que ela arrasta resultados fundamentais de valorização poética da voz narrativa. Perdido o domínio da fábula – anulado o interesse do encadear de acções cujos resultados ora coroam os esforços, ora desafiam a personagem quando falha, fazendo apelo a mais acções – passa a dominar a surpresa do foco central do discurso: a enunciação. Deixa de interessar o que é contado – porque o narrador constantemente faz gorar as expectativas do leitor – para emergir sobretudo a luxuriância da narração.

    Quase se poderia dizer, para usarmos os termos de Lubbock, no seu já clássico The Craft of Fiction, que o telling (o contar) se torna a própria matéria do showing (o mostrar). Isso é evidente, muito especialmente, em A Quinta das Virtudes, o mais romanesco dos romances de Mário Cláudio, não só pelo ambiente oitocentista que, nele, mima o romance na sua época “clássica”, como pelos esboços de intrigas amorosas e de percursos vitais que se representam. Na história de amor de conteúdo mais dramático que o romance contém, de João Manuel e Teresa, verifica-se esse pendor  para minimizar a narrativa, pelo desinteresse que, a partir de um certo momento, o que se punha como horizonte dramático da narrativa, se banaliza numa série de eventos em que não surgem barreiras, não se verificam confrontos, não se desenvolvem conflitos, não se anunciam, como interessantes, nem peripécias nem desenlaces (cf A Quinta das Virtudes, p. 173-189).

    O que se avoluma é o sentenciosismo da voz narrativa, o cerimonial da estrutura retórica que apresenta a fábula, a presença, enfim, controversa, mais ou menos ritual, mais ou menos inesperada, do narrador, e mesmo a pomposidade dos actos de enunciação em que o “autor” se dá a perceber. Quanto a essa vertente, não é descabido aproximar Mário Cláudio de Agustina Bessa-Luís – no entanto, não nos parece que a “colheita” do jeito do autor seja directamente feita na prosa da sua actual conterrânea: antes diríamos que ambos têm uma fonte inesgotável numa das mais marcantes entidades do romance oitocentista portuense – Camilo!

    Finalmente, devemos acrescentar que esse sentenciosismo não é só o da enunciação de proveniência autoral. Há, nas personagens de o autor de Rosa, um pendor para o dizer de salão, de palco, ou de proscénio onde se enunciam dizeres que se tornam importantes, sobretudo pelo acto declamatório, para a posteridade – deixam de ser usos coloquiais para se tornarem sentenças ou dizeres, para ressoarem, em importância, pela sonoridade e solenidade. O pathos de tais palavras não está tanto no seu conteúdo, ou mesmo na sua forma verbal, como na pose declamatória, pelos silêncios ou vazios por onde irrompem, muitas vezes intempestivamente, ou sem grande relação lógica com a situação.

    turned on desk lamp beside pile of books

    Os diálogos entre João Manuel e Teresa, no troço de A Quinta das virtudes já referido, são disso um excelente exemplo. Mas ainda é mais notório o efeito barroco da oratória nos discursos das personagens num romance como Ursamaior, que procura representar, pela captação de uma situação dramática das prisões, a dimensão problemática das vivências humanas nos nossos dias. É disso um exemplo o discurso do passante desconhecido que impede Jorge de se suicidar e lhe diz, ao agarrar-lhe no braço: “Não faça isso, jovem, olhe que a vida não são apenas  maus momentos, ainda tem muitos anos à sua frente, Deus é grande, jovem, Ele olha por nós, nunca se esquece de nós, nem nas alturas em que parece abandonar-nos, não pense nessa loucura, jovem, pronto, pronto, já passou” (p.180).

    A segunda consequência decorrente do uso da descrição, por sua vez, parece-nos apontar para o relacionamento do autor com a sua própria linhagem literária. Vemos nela, assim, um modo de Mário Cláudio citar, com ecos e consequências variadas, que podem ir do pastiche paródico à busca de linhagem literária, os modelos romanescos do século XIX. Poderíamos dizer, arriscando um pouco um juízo que colocará, eventualmente, importantes questões histórico-literárias que não conseguiremos deslindar aqui, que Mário Cláudio se propõe tomar os modelos do naturalismo, sobretudo os mais problemáticos (e, assim, deliberadamente, a descrição à moda do século XIX – em moldes mais ou menos paródicos, seguindo Camilo, mais ou menos empolgados, seguindo Júlio Dinis ou Arnaldo Gama) para instaurar a modernidade do seu lirismo romanesco. Curioso é que o recurso seja ao processo que, na crítica adversa, era considerado o maior prosaísmo do naturalismo.

    O pendor para o pormenor inútil, para o detalhe insignificante, para a minudência algo escatológica torna-se o processo pelo qual a verbalidade se dignifica como objecto estético, criando o espaço onde o acto de enunciação se declara como suprema virtude.

    No entanto, é preciso nunca esquecer que a valorização da palavra, a valorização do acto de proferir ou de escrever, instaura fáceis vaidades. Contudo, no fundo, o lirismo de Mário Cláudio não aspira uma pose ostensiva do eu escritor. E isso começa pelo Mário Cláudio que é e não é a entidade autoral.

    O jogo do homem autor e das suas faces deliberadamente ficcionalizadas e, em certos momentos, parodiadas poderia encaminhar-nos para a sempre estimulante questão do eu da escrita. E, neste caso, não apenas a perspectiva de um narrador, como toda presença poética do autor e das suas tonalidades mais profundamente líricas. O Je est un autre, de Rimbaud, ganha, na ficção de Mário Cláudio um adensamento de sentido que, por si só, mereceria um aprofundado trabalho e, talvez, exaustivos alongamentos, na busca das implicações que a posição da subjectvidade na escrita, tal como ele a pratica, pode arrastar.

    A aparente brincadeira instaurada logo em Amadeu, surgindo, na diegese, através da carta final do amigo do “autor” (qual?) a Mário Cláudio, enviada depois de uma recente ida à Quinta de Santa Eufrásia de Goivos, insere e eterniza a questão da autoria e o limite final da origem do discurso e da sua propriedade ontológica. É claro que, em grande parte, o problema só se pode colocar como paródia: daí que, entre as personagens que rodeiam Papi, “protagonista” parco em presenças na diegese relativa à escrita da “biografia” de Amadeu Souza-Cardoso, se anuncie já a referência a alguém que se prepara para biografar a Guillhermina; que Álvaro apareça como o correspondente do sobrinho de Papi;  que quem conta em primeira mão a história do biógrafo de Amadeu, dirija, em Amadeu, uma carta final a Mário Cláudio com um manuscrito que se adivinha ser o de Amadeu, que esse mesmo Álvaro seja citado  pela voz autoral em Guilhermina, como o autor da “biografia” de Guilhermina Suggia; e que Mário Cláudio lhe dirija uma carta, com a qual encerra Rosa e, mais amplamente, a Trilogia da Mão.

    Faz parte da mesma ficcionalidade que se dissemina pelo exterior dos universos diegéticos, o estado confuso em que fica desenhada a entidade autoral, no meio de uma intriga de “roubos” textuais. Assim, em Rosa conta-se como Álvaro afirma que “escrevera ele [..] a rebuscada história de Gulhermina Suggia, violoncelista, de que suspeitava se houvesse outrem apropriado, entretanto, já que nem ousa confirmar a quem pertence o texto publicado, se a ele próprio, se a um certo vampiro de relatos alheios” (1993: 319).

    No entanto, também parece certo que, a ser Mário Cláudio tal “vampiro”, não fica linearmente posto ponto final sobre a questão, pela admissão de que, como muitos outros autores, ele se ficcionalizou um tanto, incluindo-se, de modo pouco mais que alusivo, no universo que criou como ficção. Porque, nesse caso, temos de admitir que, por exemplo, esse mesmo Mário Cláudio, é uma entidade mistificatória que, do exterior da ficção – numa entrevista de 14 de Abril de 1985, no Jornal de Notícias, por exemplo –, compromete a verosimilhança de Guilhermina como bibliografia, ao dizer que é “um fantasma em termos de cartas, fotografia, recortes, e outras coisas desse tipo”, admitindo mesmo que usou muito pouco os documentos.

    Entre outras coisas, então, Mário Cláudio é uma assinatura pela qual responde a entidade civil de Rui Barbot Costa. Tem o seu copyright sob aquele nome, dá entrevistas sobre os seus livros, escreve crónicas sobre factos aceitavelmente reais, e afirma que a sua segunda trilogia, a de A Quinta das Virtudes, Tocata para dois clarins e O pórtico da glória é da crónica da “família do autor” (cf., por exemplo, Revista Ler Outono de 1990) em peças jornalísticas que apenas referem Mário Cláudio, como autor ou como entrevistado. A entidade Rui Costa apenas assinou um livro, que não é literário nem de crónicas, mas sim um “estudo sobre o analfabetismo”.

    Mário, pelo menos Mário, reaparece no último dos seus romances, aquele que não vive da ilusão “histórica”, ou da crónica historiográfica, mas se aproxima, antes, da crónica do quotidiano, Ursamaior. Aí, o preso transformista refere-se a outro preso a quem “o pessoal chamava «o escritor»”, o qual, segundo a sua observação era “um gajo sem nada de especial, nem alto nem baixo, barba grisalha, sobre o forte, mas com aquela barriguinha que aprecio nos homens maduros”. Face a uma gentileza desse «escritor», o transformista Cristiana baptizou o seu dedo do anel (tal como era seu costume – dar nomes de indivíduos de quem gostava aos seus vários dedos) “Mário” (2000: 91).

    Sem pretendermos resolver ou adiantar grandes passos relativamente à questão do autor na literatura, em especial no romance, pensamos que é em torno dessa entidade que se desenvolve uma das mais lúcidas buscas de Mário Cláudio, na elaboração de uma poética inscrita na própria prática da criação. O autor, assim concebido, não é apenas um suporte mais ou menos histórico apenso a uma série escrita, revelando o homem, enigma existencial. O autor, Mário Cláudio, é uma construção da escrita, em toda a sua dimensão retórica.

    Como tal, o seu ethos não é apenas a entidade civil, o cidadão que suporta, com a sua visibilidade social, política e ideológica o verosímil das suas obras. Ao contrário, a entidade que ganha foros de cidadania é o ente criado do interior da escrita. Não  como poeta visto por outros poetas, como Pessoa foi com os seus heterónimos, mas o ser irreal, fundado como verosímil pela coerência que vai criando ao transitar por toda a sua obra e pelos ecos que dela ressoam noutros actos de escrita e de comunicação.

    E é de dentro do virtual da ficção, das linhas do verosímil, que se constrói, aqui, o fundamento de uma ética e de uma praxis – uma voz que institui, com autoridade mas sem autoritarismo, os campos do possível. É aí que se constroem os quadros da crónica, onde é preciso reinstalar a História em cada momento, para que ela não surja como o cristal da verdade, rigidamente feita para sempre, lugar para não ser visto mas para dar a ver o sentido imposto de uma vez por todas.                          

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

     O corpus romanesco de Mário Cláudio que tivemos em conta para a elaboração deste nosso trabalho é constituído pelas seguintes obras:

    Amadeu (1984)

    Guilhermina (1986)

    Rosa (1988)

    Trilogia da mão (reunião dos três anteriores – 1993) 

    A Quinta das Virtudes (1990)

    Tocata para dois clarins (1992)

    As batalhas do Caia (1995)

    O pórtico da glória (1997)

    Peregrinação de Barnabé das Índias (1998)

    Ursamaior (2000)

    Deleuse, Gilles, 1983, Cinema I – L´image-mouvement, Minuit, Paris

    Genette, Gérard, 1972, Figures III, Seuil, Paris

    Jorge, Carlos J. F., 1991“A ordem do descritivo, na narrativa e a mudança de dominante no registo discursivo”, In Actas do Forum de Literatura e Teoria Literária da UTADT 1991 – “La Description depuis le Naturalisme: un Changement de Dominante dans le Discours du Roman” (A Quinta das Virtudes, de Mário Cláudio – complemento da anterior) In Dedalus n.º 1, (actas do Seminário O Pós-modernismo na Literatura Europeia)


    [1] Temos em conta, aqui, apenas a produção de Mário Cláudio a que se tem chamado romanesca, até pela designação paratextual que acompanha, na capa dos seus livros, ou na bibliografia que antecede a obra. Não ficamos impedidos, no entanto, de citar o resto da sua produção, sobretudo quanto a aspectos que na crónica, no teatro ou na poesia se podem mostrar elucidativos dos traços que consideramos mais marcantes da sua ficção romanesca,  

    [2] cf. Genette, 1972: 72

    [3] Usamos aqui, de modo abreviado, os conceitos de instantâneo e de pose tal como Deleuze os desenvolve a partir de Bergson em Cinéma I  –  Límage-mouvement (cf. Deleuze, 1983: 13-15)

    [4] Apresentamos no final do artigo a lista das obras que assim designamos. Fica desde já esclarecido, no entanto, que tal lista é composta por aquelas produções que Mário Cláudio publicou como “romances”, de Amadeu (inclusive) em diante.

    [5] É de registar, no entanto, que o processo da visualidade como valorização do ponto de vista é extensível à produção de Mário Cláudio, sendo notável desde os primeiros momentos da sua produção – em Um verão assim, por exemplo – e parece-nos um dos mecanismos mais evidentes na sua poesia.

    [6] Citamos no texto as datas da bibliografia efectivamente utilizada. Apresentaremos, no entanto, no final a lista das obras que são objecto central deste trabalho segundo as datas da primeira edição. No presente caso, a data remete para a edição de Amadeu incorporada no volume Trilogia da Mão, publicada em 1993, na qual estão também incluídas Guilhermina e Rosa. Estas obras, embora agrupadas por vontade do autor num título de conjunto, continuam a constituir, para nós, romances independentes, pelo que as citamos sempre em itálico.

    [7] No seguimento deste nosso trabalho, a designação que aqui usamos ficará devidamente esclarecida.

  • António José Forte

    António José Forte


    António José Forte (1931-1988) é uma aparição poética de rara qualidade nos horizontes ideológicos e culturais do Portugal do pós-guerra. Não se notabilizou pela extensão da obra escrita – e muito menos vasta foi a sua produção publicada. Entre outras coisas, até lhe aconteceu ter a sua escrita cercada por um “mimo estilístico” que esteve muito em moda no tempo de Salazar: a censura – actividade de tão zelosos prosélitos que conseguiu manter-se intocada na famosa primavera marcelista e anunciava-se incólume no “programa democrático” do Spínola pós 25 de Abril.

    Há hoje, em 2022, quem tente revovar a actividade em nome da “ordem” democrática a que poderíamos chamar demucratura.

    De facto, um dos textos que melhor marca o grito ascensional de Forte, delimitando os cordões extensíveis do seu ringue de combate permanente, intitulado “Um Palito para Alfred Jarry”, embora fosse extremamente curto, levou um corte de quase 50%. Ficou, assim, silenciada uma das mais breves, incisivas e lúcidas apresentações que jamais foi feita, na nossa terra, desse pai de toda a produção literária que encabeçou o modernismo, num grito de maldição à “literatura” e à cultura, do teatro do absurdo au surrealismo, passando pelo dadaísmo.

    Apenas aí se tocava na arquipersonagem Ubu, comentando-lhe as mandíbulas insaciáveis e a mentalidade escroque, tal como ela aparece na trilogia de Jarry, mas foi o suficiente para os inquietos marcelistas, de tal forma as entidades burlescas das peças tinham semelhanças com as que dominavam (e dominam, diga-se de passagem) a cena política e financeira portuguesa contemporânea. De facto, um dos excertos cortados, no texto que acabou por não ser publicado, dizia o seguinte:

    ó cabecinhas, barrigas-de-petróleo, patriotas encuecados de ideal borrado, crocoloditas de pança encortiçada, mandibulantes de carniça operária, grandes escritores de tinta da china maricas – esse Pão que todos os dias nos rebenta na boca logo de manhã, e depois à mesa, e na cama à noite, e sempre, enquanto este tempo de Ubus não for empurrado para o alçapão – «nobres para o alçapão, magistrados para o alçapão, financeiros para o alçapão» – Alfred Jarry de seu nome de letras crepitando no organismo da fêmea do super-macho e escrito no espelho de cada um, esse Pão com vidro moído por dentro para dar aos generais, com fumo para entrar nos olhos dos cães de guarda da paisagem…” (Forte, 2003: 125).

    Uma das dificuldades de escrever, hoje em dia, acerca de Forte e da sua poesia, advém, em grade parte, de pouco se ter escrito sobre ele, desde os primeiros momentos em que a sua poesia saiu a lume, ao longo de, praticamente, trinta anos. De algum modo, a excelência e a altura da sua poesia consumia-se, em surpresas e espantos, no próprio momento, não deixando rasto de comentário, nem lastro para debate posterior. Não era deliberadamente, para obter essa ausência de contradiscurso ou análise crítica, mas resultava assim. Tudo se passava como se o acto poético, muito em modelo dadaístico, se consumisse no próprio momento da sua encenação poética única.

    De pequenas dimensões, os seus opúsculos líricos, esparsos, outros poemas seus publicados em revistas, raramente se apresentava a sua escrita à atenção de uma crítica mais morosa, que procurasse aquilatar da originalidade do poeta, ou correlatar as intervenções de Forte com os antepassados com que mais evidentemente mantinha laços, sobretudo por essas ligações se apagarem, quase, face ao emergir do seu dizer, como uma urgência de grito e de diferença, por sobre as ameaças de abismos e de espantos siderais.

    Não obstante a justeza de uma opinião como a de Herberto Helder, que o pronuncia como uma “voz não plural, nem derivada, nem devedora” e possuidora da “sua própria tradição”, por essa mesma urgência irreprimível que caracteriza os seus escritos e o modo circunstancial de emergirem – como discursos que não podem ser adiados nem silenciados –, a “inteligência fundamental do mundo” que, nele, se abre “imemorial e dinâmica”, segundo o mesmo Herberto Helder, tem relacionamentos óbvios com escritores, escolas e grupos que o antecederam, ou que foram seus coetâneos, com os quais a sua obra pode ler-se em estado de diálogo.

    Há alguns nomes e pontos de referência que podem ser enumerados, porque ele próprio se lhes refere. E essas referências são as do absurdo tal como Jarry o via e desenvolvia em patafísica (ciência que se dedica a estudar “as leis que regem as excepções” e a explicar “o universo suplementar ao que conhecemos”), o dadaísmo e o surrealismo. Outros contactos são menos explícitos, mas podem ser conjecturados. Em concomitância com a própria tradição que o surrealismo instaura, A. J. Forte deixa-se seduzir, de modo notório, na sua produção, pela ficção fantástica e maravilhosa, pela visão anarquista do mundo, e pela alquimia. São notórios, nos seus escritos, traços desses grandes territórios do imaginário e das formações discursivas.

    Quanto ao fantástico, não é difícil notar, nos seus textos, a relação com alguns pontos de referência, quer sejam de origem folclórica, quer se desenvolvam como produção culta, nas vertentes do gótico, do macabro ou do absurdo, quer emparceirem com outras produções que têm como destinatários os mais jovens. Hans Cristian Andersen, Isidore Ducasse, Baudelaire e Franz Kafka parecem emergir como sombra tutelares e, em seguida, dissolverem-se, para surgirem em novas virtualidades, em muitos dos seus textos, em que não falta, também, a presença da simbologia alquímica, como nos aparece, por exemplo, em “Sereníssimo”:  “A passo de leão até à primeira rosa/ de cor em cor até ao fim da terra// antes de mil anos e de mil olhos cegos//num silêncio de neve a arder/de cidade em cidade/até um nome em carne viva//…

    Uma referência especial a não esquecer, é a da inspiração beat, como reacção à poesia “culta”. As ressonâncias beatniks, sobretudo a de Ginsberg, manifestam-se pelo lirismo de protesto, cheio de apelos à acção enérgica (ainda que sem causa, pelos menos de moldes tradicionais…pelo que a causa parece ser o próprio acto poético), propondo “a sinceridade acima da arte, a intensidade imediata acima da forma” (Brown, 1973: 300). 

    Relembremos aqui, de acordo com o que dissemos anteriormente, que, não obstante o entusiasmo que o seu nome sempre gerou entre os companheiros de geração, sobretudo entre todos aqueles que fizeram parte do grupo do café Gelo, não são muitas as abordagens críticas ou analíticas à sua obra. É verdade que havia todo um impulso de reconhecimento, aprovação e sintonia entre os seus leitores.

    No entanto, talvez pelo facto de as suas publicações serem breves e esporádicas, as considerações aprofundadas para compreender a sua prática poética ou estética quase não existiram, o que é lamentável, dado que teria sido interessante que os intelectuais, poetas e críticos do seu tempo tivessem reflectido sobre a matéria publicada, e sobre os factos culturais que levaram à sua escassez.

    Mais recentemente, algumas tentativas têm sido feitas, como nos revela, por exemplo, o texto de Maria José Vitorino Gonçalves, realizado no âmbito de um mestrado em ciências da educação, ao rastrear algumas das abordagens mais abrangentes à sua obra:

    Ligado ao movimento surrealista, e ao segundo grupo do Café Gelo desde logo se identificou com o abjeccionismo, “um ponto do espírito onde, simultaneamente à resolução das antinomias, se tome consciência das forças em germe que irão criar novos antagonismos” (Pedro Oom). Neste grupo se integraram Hélder Macedo, Mário Cesariny, Ernesto Sampaio, Herberto Hélder, Manuel de Castro,Virgílio Martinho, Benjamin Marques, Pepe Blanco, Henrique Varik Tavares, João Rodrigues, António Gancho, José Escada, Gonçalo Duarte, António Areal, Manuel d’Assumpção, João Vieira. Ao Café Gelo desse tempo se refere, em 1986, em artigo publicado no JL: “Dada tratado por tu, o surrealismo olhado nos olhos, e sempre o trapézio voador do humor negro Todos os dias alguém na véspera de partir para Paris”. Na Lisboa da Ditadura, na palavra véspera moravam ao mesmo tempo o desejo de liberdade e a demora no efectivo acesso a outros mundos. Como aponta Maria de Fátima Marinho (2002[1] : p. 288-289): “segundo Cesariny, o grupo que se reunia, por volta de 1956-59, no Café Royal e no Café Gelo, estava votado a um “abjeccionismo conjuntural”. O termo abjeccionismo fora criado por Pedro Oom. Com a sua introdução, o autor de Actuação Escrita pretendia determinar a existência de uma dialéctica constante que transformaria o ponto supremo dos surrealistas numa tese, sujeita a uma antítese e a uma síntese futura, síntese esta que daria lugar a uma nova tese, numa dialéctica infindável. António José Forte coloca-se voluntaria e conscientemente sob a tutela da teoria abjeccionista de Pedro Oom. Incapaz de responder á pergunta carismática do abjeccionismo “O que pode um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos?”, o autor de 40 Noites de Insónias refugia-se no absurdo e no non-sense. ”A aventura, para António Maria Lisboa , é o conhecimento poético. Para Forte, é antes acção poética, identificada com a Liberdade, a Revolta, o Desespero que a justificam e instauram como fundamento maior da posição abjeccionista. Para ambos, fundamental, pois “seria irrelevante qualquer actividade intelectual quenão fosse antes de mais uma aventura [no modo] de viver” (Fernando B. Martinho: 1985, p.90[2]). Em 1970, é significativa a presença de António Barahona da Fonseca, António José Forte, Eduardo Valente da Fonseca, Ernesto Sampaio, João Rodrigues, Manuel de Castro, Maria Helena Barreiro, Pedro Oom, Ricarte-Dácio, Virgílio Martinho na antologia Grifo).

    No fundo, ele acaba por constituir-se como exemplar pleno de uma tradição, quase sem ruptura, na grande espiral do grito abjeccionista, com o qual a arte procurou apresentar a sua própria versão de intervenção no mundo: na política, na economia, nos salões e, em geral, em todos os convívios para os quais era convocada a mais radical presença perturbadora. Em ruptura com tudo o que era o passado canonizado, a literatura, a poesia, mesmo a modernista de tradição simbolista, Forte encarna, como poeta, a prática da maldição e da rejeição da cultura. 

    Porém, não devemos esquecer que o acto de ruptura praticado tem os seus pontos supremos no esticão abjeccionista, ou no inconformismo beatnik, através do angustiado “uivo”,   

    (“I saw the best minds of my generation destroyed by madness, starving hysterical naked, dragging themselves through the negro streets at dawn looking for an angry fix, Angel-headed hipsters burning for the ancient heavenly connection to the starry dynamo in the machinery of night”),

    como canta o célebre trecho do poema “Howl”, tão frequentemente recordado, aparecendo quase como prosopopeia de uma geração focalizando, pelos olhos de Ginsberg , em longa enumeração, o caos e a desarmonia, patente no lista interminável  dos vencidos pelo sistema, dos abandonados pela civilização e proscritos pela cultura. Esse grito é complexo e pregnante, e não deve ser lido como uma atitude de apagamento pela ignorância…

    Ao contrário, como a própria prática poética e cultural de Forte o demostra, a ruptura dá-se em relação ao que muito bem se conhece. A cultura a sacudir tem de estar bem presente no bardo abjeccionista. Porque, conhecer, respeitar e admirar, eventualmente, o clássico, a tradição, não é sinal de submissão, ou veneração. Em contrapartida, o mais profundo respeito que o acto abjeccionista cria é o de se bater por uma diferença, por todos os meios, que vão da paródia e achincalhamento até ao grito de protesto contra a hipocrisia que se esconde sob a capa de uma cultura literária e bem educada, que recusa ver e/ou valorizar os procedimentos de ruptura que estão no interior de toda a criação poética, incluindo a canónica.

    É assim que o próprio Forte a vaticina, lapidarmente, no poema que escreveu, desafiadoramente, em prosa, intitulado “Uma Faca nos Dentes”: “A acção poética implica: para com o amor uma atitude apaixonada, para com a amizade uma atitude intransigente, para com a Revolução uma atitude pessimista, para com a sociedade uma atitude ameaçadora. As visões poéticas são autónomas, a sua comunicação esotérica”.

    Este sentido do desafio radical, da colocação, da postura poética em estado de riste, face a um mundo de desconjunções permanentes, desenvolve-se, em Forte através de paradigmas ideológicos muito precisos: uma exigência de cidadania sem vontade de concessões a qualquer espécie de mediocridade ou de raciocínio conformista; uma exaltação da amizade em limites muito para lá do cumprimento das boas regras; e um reconhecimento da função do poeta dificilmente circunscrita nas cartilhas de qualquer escola ou grupo.

    Diga-se, desde já, quanto a este último caso, que as suas referências explícitas – a António Maria Lisboa e, através dele, à mais próxima e absoluta emergência do surrealismo; a Jarry e, com ele, através de Ubu, à intromissão da poesia na vida e à tomada de posição poética face a todas as investidas dos agentes históricos; e a Dada, em afirmação da disposição inquebrantável para todas as desobediências – revelavam admirações, mas nunca submissões.

    Porque, para Forte, mesmo na pessoa integral e serena com quem qualquer conversa pessoal era sempre o prazer de um convívio franco e aberto, uma busca como a poética não podia, em nenhuma circunstância, ser assumida como banalidade. Sob os seus desígnios é que a amizade, a intervenção cívica, a relação com os outros e a escala dos valores se estruturam pela emergência do amor. Porque essa poesia, como ele o vê muito bem através da evocação de Dada, é a que faz acontecer a vida como integral surpresa, a que é sempre um acontecer e não admite cristalizações: “Houve uma revolução Dada que está ainda a haver, mas não haverá nunca uma exposição Dada” (“Exposição Dada”, Folheto de 1982 – in Forte, 200: 121).

    Sobre a amizade, ele é bem explícito, quando se refere aos grandes convívios fundadores de todo um movimento poético em torno do surrealismo, no Café Gelo, no texto “Um exemplo (há vinte anos) – O Café Gelo e o chamado Grupo do Café Gelo”, que se manteve inédito até à edição, póstuma da recolha (possivelmente muito incompleta) feita sob o título de Uma Faca nos Dentes (2003).

    Jovens, alguns adolescentes, todos rebeldes, a crítica à cultura vigente era a actividade quase constante. E a exaltação de «Orpheu», do surrealismo, uma prática quase Dada, os valores por que orientavam os ataques à literatura, às artes, à política, incluída nesta a oposição progressista. São  estes valores o núcleo de atracção e repulsão que definirá personalidades, que as ligará por laços de camaradagem e amizade, que unirá personalidades em projectos literários falhados a maior parte deles, em projectos revolucionários também falhados quase todos, mas que afinal, desaparecidos do Café Gelo, continuam ao longo dos anos a manter uma idêntica atitude inconformista” (2003: 142).

    A intervenção cívica do poeta, que se exprime, por exemplo, em “Poema”, por “esta cabeça em fúria do poeta” (2003: 97)  transforma-se em “Desobediência civil” em nome da qual o a voz cantante pode afirmar:

    eu passo de bicicleta à velocidade do amor

    atravesso a terra de ninguém com um dia de chuva na cabeça

    para oferecer aos revoltados” (p. 96).

    Mas a sua expansão plena talvez deva ser evocada através do poema que dedica a Cohn-Bendit, como ilustração da incontornável fatalidade de termos o encontro marcado com a História, como se da morte se tratasse – não podemos querê-la nem evitá-la:

    António José Forte trabalhou na Fundação Calouste Gulbenkian, chegando a ser encarregado das famosas bibliotecas itinerantes.

    Deves ter razão

    e certamente a História não tardará a pôr-te os cornos

    um corno vermelho e outro corno negro

    grande e delirante cornudo

    minotauro bufando

    e investindo à altura do sexo

    Sou pela razão ardente dos teus cornos!

    Pisaste bem o rabo de deus

    mordeste bem o pescoço do diálogo

    enfiaste admiravelmente bem

    primeiro um corno depois o outro

    no Cu Pró Ar da política

    que era o que ela estava a pedir

    Como detonador e mais nada já sabes

    «porque ninguém representa ninguém»

    e «a Poesia deve ser feita por todos»… (2003: 61).

    Contudo, do Forte que eu conheci, como poeta, muitos anos antes de ter conhecido a afável pessoa com quem mantinha intermináveis conversas, nos dois ou três cafés em que nos encontrávamos, na zona da Trindade, junto com outros amigos, todos já menos jovens, mas ainda intolerantemente presentes, desse Forte mítico que, para mim, antecedeu a pessoa serenamente fascinante que ele era, ficou-me para sempre a imagem de um mundo catastroficamente atravessado pela sua visão poética:

    Herberto Helder prefaciou Uma faca nos dentes, em 1983, a antologia de António José Forte, publicada originalmente em 1983.

     “Descerão por paredes sangrentas

    e subirão do asfalto (….)

    com um estandarte negro seguro nos dentes

    e descerão sempre cada vez mais e cada vez de mais alto

    até chegar à orla do inferno e chorarem as últimas lágrimas

    e partirem de vez” (2003: 46).

    É que, para a dor visionária de estar sempre nesse “tempo em que os generais falavam” (2003: 31), houve apenas, em Forte, exclusiva e rigorosamente, como compensação, o amor, mesmo que ele fosse sempre perdido e só depois do sonho encontrado:

    alguma coisa onde tu corresses

    numa rua com portas para o mar

    e eu morresse

    para ouvir-te sonhar” (2003: 41)

    Quando, em finais de 1988, soube da morte de António José Forte, só uma frase me veio aos lábios, com o arrepio da tristeza: “Ainda tínhamos tanto que falar, ele ainda tinha tanto para dizer…

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Brown, John, 1973, Panorama da Literatura Americana do Século XX, Dom Quixote, Lisboa

    Forte, António José, Uma Faca nos Dentes, 2003 (nova edição), Parceria A.M. Pereira, Lisboa


    [1] MARINHO, Maria de Fátima, – «Surrealismo» In: História da literatura portuguesa / dir. Óscar Lopes, Maria de Fátima Marinho. – Lisboa : Alfa, 2002. – Vol. 7, p. 269-302

    [2] MARTINHO, Fernando J. B., «António José Forte: uma faca nos dentes», Colóquio Letras Nº 86 (Julho 1985). – p. 89-90.

  • Raúl Brandão

    Raúl Brandão


    THE SORROW OF LOVE (versão de 1892)

    by: W.B. Yeats

    (Tradução de André Carlos Salzano Masini)

    Sobre os telhados a algazarra dos pardais,

    Redonda e cheia a lua – e céu de mil estrelas,

    E as folhas sempre a murmurar seus recitais,

    Haviam afastado o mundo e suas mazelas.

    Então chegaram teus soturnos lábios rosas,

    E junto a eles todas lágrimas da terra,

    E o drama dos navios em águas tempestuosas

    E o drama dos milhares de anos que ela encerra.

    E agora, no telhado a guerra dos pardais,

    A lua pálida, e no céu brancas estrelas,

    De inquietas folhas, cantilenas sempre iguais,

    Estão tremendo – sob o mundo e suas mazelas.


    Este poema de Yates, que citamos quase com valor de epígrafe, balizando a amplitude conceptual e os valores temáticos dos objectivos a que nos propomos, sempre teve, para nós, a qualidade exemplar de um modelo de construção do imaginário e dos procedimentos poéticos mais marcantes de uma primeira fase dos modernismos[1] europeus, quando ainda se deixavam afectar profundamente pelos valores românticos. Esses procedimentos processam-se em dois campos, pelo menos, cujas características esclarecemos no mesmo número de parágrafos, numerados 1 e 2.

    1 — Por um lado, procuravam a hiperbolização do esforço objectivista, apostado na entrega do elemento referencial emblemático dos conteúdos emotivos e estéticos, de modo a evitar ou pôr completamente de parte o tom declamatório da expressividade construída numa espiritualidade imaterial, emulando, muitas vezes, de modo banalizador, o vocabulário filosófico ou os conceitos científicos.

    Davam, assim, a ver os valores, os sentimentos e as próprias ideias, pelo recurso aos elementos perceptivos, por um vocabulário fortemente remissivo para objectos do mundo, singularizados, intensamente imagísticos, sobretudo visuais ou, remetendo o ideado, por um jogo de sentido contextualizado, para o imaginário construído a partir das referências exteriores tomadas como ícones.

    Um pouco à maneira dos cineastas, que emergem no momento histórico em que os modernismos se afirmam, o esforço poético vai no sentido de usar as imagens como constituintes elementares das mensagens, quase como se fossem significantes de uma língua pictográfica, uma vez que, pelo processo de captação fílmica “o mundo exterior, em toda a sua massa, perde o seu peso, é libertado do espaço, do tempo e da causalidade, e reveste as formas da nossa própria consciência […] e as imagens sucedem-se com a fluidez de sons musicais” (Mustemberg [1916] 2010: 163).

    No seu esforço aparentemente objectivante, assumem uma procura de referencialidade em que a “realidade se propõe de modo sempre diferente, cada vez que se apresenta à consciência dos sujeitos”, desde o autor a cada um dos seus leitores, surgindo “o referente do poema” como “um «universo imaginário», uma versão singular do mundo”, no fundo, uma “«visão do mundo»” pela qual o “referente poético” se afirma como “a coisa com todos os seus horizontes possíveis, todas as perspectivas que possamos ter acerca dela, e, a partir dela, sobre o mundo” (cf. Collot, 1989: 175-176).   

    Um dos efeitos que se produzem, pelo uso poético deliberado da referência “fiel ao movimento pelo qual o mundo, a todo o momento, se pode revelar outro para espanto dos nossos olhos” (Collot, 1989: 174) é o da epifania, que significa aparição ou manifestação de algo, normalmente relacionado com o contexto do mistério ou do desconhecido e imenso ou, eventualmente, da plena transcendência.

    Por isso pode ser, igualmente, uma sensação profunda de realização, no sentido de compreender a essência das coisas[2]. Recusando a transmissão dos estados afectivos pelo recurso à terminologia descritiva dos sentimentos (“coração”, “alma”, “dor”…), procuravam valorizar o procedimento epifânico, elaborando a ostentação súbita e intempestiva de um objecto ou facto, reveladores do que transcende a percepção imediata dessa objectualidade, ou evoca traços emotivos e afectivos a ela ligados. Por esse procedimento, qualquer dessas aparições era sentida como ocorrência que abre, em modos de “evidência”, um processo de inteligibilidade, a “experiência vivida” da verdade, (cf. Lyotard, 1967: 39) na sua dimensão de aletheia. Tudo se passa como que numa revelação do que está por detrás dos elementos perceptíveis, presentes como factos concretos, ou seja, no horizonte visionário que lhes diz respeito.

    2 — Por outro lado, o recurso revalorizado do procedimento expressivo/ emotivo da apóstrofe, já tão caro aos românticos (cf. Culler, 2001: 150-153), é construído como uma comunicabilidade privilegiada do sujeito da enunciação do discurso poético com os elementos perceptíveis, tornando-o mesmo capaz, num jogo de tentativas, de reconhecimento e alienação (o reconhecido torna-se outro) de atingir a sua essência ou um para lá deles que se revela, que surge como uma aparição.

    Este jogo de apropriação e perda do objecto pelo sujeito é expresso pela fenomenologia, contemporânea dos modernismos artísticos, do seguinte modo: “A coisa, tal como me é dada pela percepção, está sempre aberta sobre horizontes de indeterminação, «ela indica por antecipação, um diferir de percepções, cujas fases, passando constantemente de uma para outra, se fundam na unidade de uma percepção» (Husserl, Ideen II)” (Lyotard, 1967: 23).

    A pequena encenação feita por Yates de uma micro-paisagem, que pode ser entendida como um texto em dois dípticos, articulados por uma emergência que surge como aparição, ou mesmo revelação, é do tipo da que é usada profusamente, por Raúl Brandão, em quase todos os seus textos, mas que ressalta, como mais evidência, nos seus escritos documentais ou de características, quase, de reportagens jornalísticas. É a estes, sobretudo aos que publicou em volume, sob os títulos, Os Pescadores e As Ilhas Desconhecidas, que daremos especial atenção, embora tenhamos como objectos textuais, em plano secundário, outras suas obras, incluindo as de ficção.

    O modelo básico de encenação da paisagem em ponto pequeno que usa Yates permite-nos evidenciar o esquema representativo elementar, bem como os procedimentos poéticos que o possibilitam e valorizam, tendo em conta a posição do sujeito de enunciação, o universo representado e o discurso que o representa.

    Assim, como elemento de abertura, temos o primeiro díptico, constituído pelo texto da quadra inicial, que nos revela um universo objectual imediato, desde os pardais em algazarra, até ao pano de fundo das estrelas e das copas das árvores, servindo de barreira, pelo arredamento, às ameaças e agruras do mundo; em charneira, como segundo elemento e ponto de articulação dos dípticos, temos o primeiro verso da segunda quadra em que se apresenta a intromissão de um destinatário privilegiado, um tu, objecto eventualmente de desejo (os lábios, no original inglês, são “red” e não “rosas”[3]), portador, já, dos sinais de ameaça, pela sua soturnidade, a qual se revela plenamente, no horizonte criado pela emergência da interlocutora, na continuidade dos seus lábios, em todas as desgraças antes ocultadas.

    Como diz Michel Collot, no seu estudo acerca da estrutura de horizonte, recorrente na poesia moderna, “na paisagem dos escritores modernos, o horizonte figura, frequentemente, pelo seu vazio ou pelo seu recuo, esse inalcançável objecto do desejo” ­­– a que Buñuel chama, também, “obscuro” –, uma vez que “o mundo se organiza na base da exclusão de um objecto interdito que, tal como a paisagem, não se dá a ver senão recalcando um invisível no horizonte” (1989: 126-127).  

    Além do funcionamento da epifania, enfatizada, ou mesmo ostentada, pelo acto de apostrofar[4] a recém-chegada, percebe-se que, na organização do mundo representado, se processa um jogo na estrutura do horizonte, ao dar mais importância, ou menos, aos objecto da percepção imediata, e aos que, ora se anunciam em plano de fundo, como uma virtualidade, ora se revelam, pela aproximação, como parte e efeito da epifania. Este mecanismo é arvorado de forma hiperbólica num imenso número de enunciados da obra de Raúl Brandão.

    A variante textual mais característica neste tipo de ocorrências é a da descrição, assumindo nós que, na esmagadora maioria dos casos em que os textos de Raúl Brandão são não-ficcionais, a descrição surge francamente assumida pela focalização do narrador autoral.

    É de uma das obras que escolhemos como objectos principais da nossa abordagem, como acima esclarecemos, Os Pescadores, que extraímos o excerto que deterá, primordialmente, a nossa atenção, por nos parecer que nele encontramos o mecanismo fundamental em que assenta o discurso de Brandão a que chamamos documental, emergente, persistentemente, nos livros em que a dominante do conjunto é a função referencial/ informativa, tendo, como objecto central, o contexto (cf. Jakobson, 1965: 214)[5]:

    “Esta tarde o sol põe-se sobre uma barra e aparece deformado, entre grandes manchas de nuvens acobreadas, some-se e ressurge por fim como um grande balão de fogo num oceano revolto, até que entra uma nuvem espessa com interstícios de fogo e explode iluminando o espaço e a água cor de chumbo. / Este faz sobressaltar e sonhar. Três horas da tarde. Céu limpo, mar manso, e sobre o mar uma chapada de prata, sobre o verde, mil escamas a cintilar, que brilham, luzem e tornam a reluzir. O sol desce pouco a pouco, majestoso e sereno, no céu todo doirado e a luz forma uma estrada que liga o areal ao infinito, uma estrada larga, de oiro vivo, que começa nos meus pés, na espuma ensanguentada e chega ao sol. Ó meu amor, não acredites na vida mesquinha, não duvides: dá-me a tua mão e vamos partir por essa estrada fora, direitos ao céu (Brandão, 2014: 64)”.

    Este texto apresenta-se, num dos capítulos iniciais da composição heteróclita de Os Pescadores, intitulado “Pequenas Notas”, na secção que ele designa por “Pores do Sol”, que é constituída por um conjunto de parágrafos, espaçados entre si quase em moldes de versículos, dos quais reproduzimos dois, integralmente. Pela sua orgânica e composição, a secção que contém este parágrafo demarca-se da maioria das outras que compõem o livro.

    Não tem um fio sintagmático ou narrativo condutor e a sua unidade temática ou referencial é das mais diáfanas ou imponderáveis, semelhante apenas, quanto a esse último aspecto, à secção seguinte, intitulada “Nevoeiros”. Caracteriza-se por ostentar o seu desprendimento dos factores que constituem o contexto sócio-económico referenciável que está em quase todos os outros capítulos do livro: cidades piscatórias, variedades animais, aspectos geográficos ou tipos humanos.

    No entanto, nele vamos encontrar o modelo da construção de horizontes que vigora em quase todos os seus livros, mas, muito em particular, nos que aqui referimos especialmente, As ilhas Desconhecidas e Os pescadores. A preocupação, nestes textos, é delinear os enquadramentos cósmicos, as cercanias e os limites terrestres, oceânicos e celestes em que as figuras se perdem no invisível.

    Não é muito difícil apontar aqui a estrutura do horizonte encenado. Num plano muito afastado, uma imagem compósita de elementos referenciáveis de modo empírico, com réplica probatória no discurso científico, como “o sol” e “as nuvens”, um fenómeno empiricamente identificável pelas comunidades humanas, “o pôr-do-sol” e as aparências mais ou menos fantasiosas, esquematizadoras e esteticamente transfiguradoras: “a barra onde poisa o sol” “as manchas acobreadas que figuram as nuvens” e, subitamente, o “desaparecimento, ressurgimento e explosão do sol” – ruptura intempestiva que constitui o primeiro momento epifânico, como que uma prestidigitação das forças cósmicas que manipulam todo o horizonte: sol, águas do oceano e nuvens.

    Um deíctico anafórico, remetendo para todo conjunto de acontecimentos, mais ou menos reais, mais ou menos transfigurados pelo fantástico, do parágrafo anterior, que acabámos de apresentar, introduz o processo de enquadramento do momento final da aparição que conduz à metamorfose plena, à apoteose epifânica. O sujeito da enunciação, focalizador de todo o quadro em processo de encenação, reconhece o estado de sonho em que mergulhou, fazendo-o imaginar, num momento pontual, em enquadramento banal (três horas da tarde, mar manso e sol a brilhar), o jogo de transformações profundas introduzidas pela luz a reflectir-se na água, formando uma estrada que liga o (banal) areal ao infinito, criando, assim, uma via doirada que vai deste mundo (a “meus pés”) doloroso (a “espuma ensanguentada”) até ao sol.

    O terceiro membro epifânico assenta num vocativo, deíctico apostrofante que introduz um interlocutor até então ausente e insuspeitado: “Ó meu amor”. E, completando a apóstrofe, vem a veemência de um apelo à crença na aparição revelada de um caminho que conduzirá o sujeito e a sua amada ao céu.  

    Toda a dimensão cósmica que se evoca pela voz autoral é propiciada, por assim dizer, pela apóstrofe. No dizer dos teóricos e estudiosos da retórica e dos mecanismos da poética, a apóstrofe é uma espécie de provedora do lugar da mise en scène do arrebatamento, da entrada em contacto com as esferas apenas acessíveis à inteligibilidade, da comunhão com a ordem superior e misteriosa das coisas. No entendimento de Fontanier, que já referimos acima, em nota, a apóstrofe “não é nem a reflexão, nem o pensamento despojado, nem uma simples ideia: é, sim, o sentimento, o sentimento excitado no coração, até explodir e expandir-se para o exterior, como que de si próprio” (1968, p. 372).

    Em termos retórico-estilísticos, a apóstrofe, por modalidade vocativa, quase sempre sob a aspectualidade de exclamação, diz respeito à entidade que, explicitamente, actua como enunciador. Assim, a voz do poeta, face ao seu ouvinte/ leitor, apostrofa quando, sem mudar de encenação enunciativa, ou seja, no contexto em que se dirige ao seu receptor postulado (ouvinte/ leitor), inflecte o seu discurso na direcção de um destinatário ausente do espaço da anunciação, que, antes, faz parte do mundo ficcional diegeticamente construído. Como se fosse uma licença poética resultante de um estado emocional, o universo real é arrastado do exterior, referencial, para o interior, representado textualmente.

    Curioso é que esse espaço encenado surja segundo uma modalidade textual fundada em controvérsia e alimentando uma dinâmica da beligerância ao longo de todas as poéticas, pelo menos desde Horácio na sua Epistula ad Pisonis ou Ars Poetica: o sistema descritivo. “Uma descrição é” segundo Hamon, “o lugar de encenação duma confusão que é o saber das palavras e o saber das coisas, o lugar em que o leitor é interpelado pelo duplo saber que é o do léxico e o enciclopédico” pelo que “o limite de uma descrição não depende da natureza do objecto a descrever, mas da extensão do stock do léxico do descritor, que entra em competição de competência com o do leitor” (1993: 43).

    No interior de uma narrativa, ou como é o caso presente, na situação encenada de uma voz autoral procedendo a um relato em que revela experiências pessoais e situações em que se lhe patenteia um panorama paisagístico de que é espectador, relativamente imóvel, mas emocionalmente envolto, a apóstrofe pode vir desse narrador enquanto sujeito de enunciação autoral, que por esse gesto se torna auto-diegético. É o que acontece em quase todos os enunciados descritivos das narrativas de viagens de Brandão.

    Retrato de Raul Brandão e Maria Angelina, por Columbano Bordalo.

    Quando presentificam uma situação em que se insere, como personagem/ actor, vivendo os feitos que narra, mostrando a situação que se lhe apresenta aos sentidos a um destinatário (narratário) a quem subitamente se dirige com um comentário ou com uma apreciação, tudo se passa como se não fosse para ser “ouvida” pelas personagens do contexto em que se encontra, das quais, muitas vezes, não sabemos nada, nem sequer se foram “criadas” para aquela situação, ou se se dirige a um leitor imaginário, tão ficcional como aqueles, ainda que num plano discursivo superior, ou seja, o nível da enunciação.

    Com dirão Mazaleyrat e Molinié, “a apóstrofe só aparece como figura quando o contexto indica que se dirige a um alocutário puramente imaginário, mesmo em relação a seres ficcionais” (1989, p. 28). O que acontece, nestas circunstâncias, é que a relação de “autor/leitor” é ficcionalizada. De tal modo assim é que, quando a voz autoral surge em discurso directo, ficamos sempre na dúvida: falará ele com as suas personagens ou usa-as apenas para exibir as suas apóstrofes (quer de elogios quer de imprecações) a um destinatário de plano enunciativo superior, ficcionalizando a sua própria posição, ou procurando arrastar o leitor para dentro da ficção.

    É claro que, no texto lírico, a mais comum ocorrência é a de se tomar como contexto básico o que é composto por um enunciador/ poeta e um enunciatário/ leitor, sendo a inflexão, por norma, a da interpelação de um ser presente no universo referido como enunciado e não naquele em que processa a enunciação. Contudo, a espessura do jogo poético assenta na ilusão de se puxar para a dimensão da enunciação os elementos fantásticos do imaginário. É claro que a “relação” e o “lugar” onde o autor e o leitor se encontram só miticamente é que se pode considerar “real”, porque, como sabemos, eles existem diferidamente. Só por iluminura glorificante é que o bardo aparece a “dizer” a sua obra, instalado numa aura declamatória.

    close view of fishing net

    Das notas tomadas sobre a ilha do Pico, n´As Ilhas Desconhecidas, encontramos um bom exemplo disso realizado por R. B.:

    “Agora completo o quadro: com os montes hirtos e negros por trás, neste fundo extraordinário, neste panorama dilacerado, parto duma imaginação estranha, parado e cinzento, é que fica bem aquela vida dum dia e duma noite, o cortejo grotesco de fantasmas vociferando de porta em porta, com as bocas escancaradas de riso. Esta ilha negra e disforme apoderou-se dos meus sentidos. Tudo o que a princípio me repelia, o negrume, o fogo que a devora, o mistério, tudo me seduz agora. O Pico é a mais bela, a mais extraordinária ilha dos Açores, duma beleza que só a ela lhe pertence, duma cor admirável e com um estranho poder de atracção. É mais do que uma ilha – é uma estátua erguida até ao céu e moldada pelo fogo – é outro Adamastor como o das Tormentas. / Apago todas as tintas do quadro: só quero o Pico diante de mim negro e dramático, roído da cinza que há-de acabar por devorar seres e coisas, deixando-o a prumo no céu, com a carcaça da catedral ao abandono na praia” (s/d: 77).

    Não falta aqui, na construção literária deste horizonte, a evocação da competência lírica do narrador autoral, a qual cabe bem dentro da caracterização que Fontanier faz do quadro (tableau), como variante da HYPOTYPOSE no seu tratado, Les figures du discours. Este surge como variante modal daquela figura, resultando do desenvolvimento extremo da descrição, “quando a exposição do objecto é tão viva, tão enérgica”, que resulta desse estilo “uma imagem, um quadro” (Fontanier, 1968: 390).

    Repare-se que, se recorrermos à terminologia adoptada por Adam e Petitjean (1989: 48-59), este narrador simultaneamente autoral a actoral, move-se no interior da sua pintura, arrastando, no seu acto ilocutório, o próprio processo de modalização, assumindo-se como autor do acto pinturesco que completa e revelando-se, ao mesmo tempo, nele, muito mais como o sujeito perplexo, que tacteia e percepciona, com hesitação (cf. Adam e Pettitjean: 52) a paisagem que, em postura autoral, seria esperado apresentar sem tibiezas.

    turned on desk lamp beside pile of books

    Lá estão todos os índices da dúvida e da perplexidade, nas rupturas sintácticas, onde um Fontanier encontraria, talvez, o zeugma, o anacoluto, ou a inserção, mas que bem poderiam descritas como anacolutos, ou mesmo sínquises. Todo o primeiro período do primeiro parágrafo está construído com rupturas da sequência sintagmática que se tornam, elas próprias, figurações do discurso buscando a lógica da representação face à erupção do panorama surpreendente. Também não faltam, lá, os cortejos grotescos de fantasmas e os mistérios. Ao verbalizar a sua decisão de “terminar o quadro”, ele está, de modo implícito, mas dramatizado, a buscar a expressão ostensiva, chocante, para alguém (muito provavelmente o leitor) a quem dá a ver” o descrito, através da descrição e a “ouvir” a perplexidade da percepção, através do discurso. O ambiente criado é o da emergência do surpreendente, na descrição realista, resultando que “a fronteira entre animado e não animado (é) posta em causa e não é gratuito o saturar a descrição de pormenores que antropomorfizam a natureza e criam um clima de angústia” (Adam e Petitjean, 1989: 55).

    O próprio autor, aliás, é peremptório no teorizar a sua própria preceptiva. Logo no incipit do capítulo “Pequenas Notas” de Os Pescadores, no primeiro parágrafo que se segue ao título da secção “Pores-do-Sol” escreve: “Se eu fosse pintor passava a minha vida a pintar o pôr-do-sol à beira-mar. Fazia cem telas todas variadas, com tintas novas e imprevistas.

    É um espectáculo extraordinário” (2014: 63). E, logo adiante, a entidade autoral enunciadora especifica o seu modelo de trabalho, ao apresentar a ocorrência de duas variantes, talvez em dois momentos distintos, talvez numa variação de perspectiva que solicita a copresença do destinatário, pela dupla demarcação deíctico-demonstrativa, (“este”, “outro”): “Agora este, teatral, com longas gambiarradas, franjadas a oiro, acabado de pintar pelo cenógrafo para uma apoteose, e outro [este e outro são itálicos nossos] que não sei descrever, feito com muito pouco: quase desmaiado, um nada de luz no mar efémero, um nada de luz no céu efémero — e a montanha roxa, ao fundo, prestes a desvanecer-se” (2014: 64).

    Sobre esta matéria, pronuncia-se Vítor Viçoso, num registo hermenêutico muito próximo do nosso, ainda que com maior brevidade, quando, na Edição de Os pescadores por nós utilizada, escreve:

    “Percorrer a costa com os «olhos da alma» implicava para o autor do Húmus revelar a paisagem e os seus povoadores, servindo-se recorrentemente do registo dos gestos pictóricos («Se eu fosse pintor», diria enfaticamente), como representação da sucessão de instantes eternizáveis, numa fusão entre o sujeito do olhar e o objecto. A paisagem, mais do que um mero deleite «turístico», é aqui uma inscrição que mobiliza em cada fragmento todos os sentidos do seu corpo na captação do instante encantatório e emerge também como uma peculiar produtora de sentido no âmbito de uma autognose” (Brandão, 2014: 17).

    O modelo utilizado, para o exercício de demonstração de R.B., acto cicerónico de apontar, é o do teatro. Em ambos os casos, na visita guiada e no teatro, há um público a quem o enunciador, autor ou actor, se dirige. Mas transformar o exercício de mostrar literariamente uma paisagem inscrita no horizonte, num discurso aparentemente cicerónico, num acto encenado em que o escritor se revela no papel de pintor é levar a autoridade autoral a um patamar de refinado exercício hiperbolicamente ostensivo. E é, também, carregar os mecanismos de demonstração e revelação de todas as potencialidades poéticas da remissão do discurso para os patamares referenciais, quer os da realidade empiricamente aceitáveis e realistas, quer os do plano do fantástico e do onírico, misturando os dois planos da referencialidade, ao ponto de os confundir.

    O mecanismo básico do mostrar, da monstração ou mostração, como poderíamos dizer, por neologismo conceptual, é o da dêixis, que, numa narrativa ou discurso alongado, também pode ter a função de anáfora. Os vocábulos normalmente utilizados são os pronomes pessoais, os demonstrativos, os advérbios de ligar e tempo. A sua função fundamental é referir e, por isso, como todo o discurso de Raúl Brandão demonstra bem, tem como sentido fundamental o apontar, são como palavras-dedos que podem apontar para outra parte do discurso, mas também para o que está fora do discurso e até apontar para acontecimentos anteriormente ocorridos. Mas, o mais importante é que podem apontar para mundos possíveis, do mesmo modo que apontam para o nosso universo existencial.

    Como diz Collot, os dêicticos fazem uma referência a um aqui e agora ilusório, porque a referência verbal (ou mesmo a icónica, como, por exemplo, o desenho de um dedo a apontar, ou uma seta desenhada, sem qualquer outro contexto gráfico-pictórico) “não é situável num sistema de verificações (“repères”) espácio-temporais fixas e universais. Ela depende do ponto de vista do locutor: reenvia para um mundo, e não para o universo – para horizonte que é a unidade renovadamente singular de um Eu-aqui-agora” (1989: 190).

    Repare-se que este esforço de dirigir o discurso, explicitamente, para este aqui e agora em que estou eu, completa a estrutura actancial da apóstrofe, desafia-me enquanto leitor, imaginariamente, para o momento registado e para o do registo, do escrito, sendo eu, aqui e agora, leitor, aquele que só pode aceder a essa encruzilhada espácio-temporal num momento duplamente diferido: em relação ao momento da escrita e, reforçadamente, porque o da escrita também difere do representado, ao momento da vivência.

    Mas, fazer esta convocação, é elaborar o sistema mais amplamente dialógico que a criação literária pode ter. A proposta de Bakhtine para construir a compreensão dessa intercomunicabilidade é a seguinte:

    “Imaginemos uma conversação entre duas pessoas, na qual as réplicas da segunda não sejam ouvidas, mas de tal modo que o sentido geral da conversação não seja alterado. O segundo locutor está invisível, as suas palavras faltam, mas o seu traço profundo determina todas as palavras pronunciadas pelo primeiro. Sentimos que se trata, aí, de um diálogo, embora apenas haja um único locutor, e que esse diálogo é extremamente tenso, porque cada palavra expressa responde e reage ao locutor invisível, indica a existência, fora de si, da palavra do outro não formulado” (1998: 272).

    rock formations

    No fundo, a entidade convocada, parece ser um lugar vazio, o espaço enigmático, do eu indagante, perplexo que remete para a potencial presença e cumplicidade do leitor, que estará para a descrição como o autor estava para a descriptação da paisagem experienciada (não estando em causa que ela seja obrigatoriamente do universo empiricamente experienciado, podendo ser, também, imaginada, de um mundo possível ficional).

    Raúl Brandão, no excerto acima apresentado, propõe-nos uma metodologia, o esboço de uma poética da descrição, segundo a qual os “quadros” literários deveriam ser “pintados”, recorrendo a uma espécie de didascália de encenação em que o apelo ao leitor se processa quase despudoradamente.

    Encadeia, assim, um segundo modelo de ars poetica, ou, melhor, uma ars dicendi a conjugar com a literária: a teatral/espectacular. Poderíamos dizer que por esta exposição chega mesmo a provocar o seu destinatário que no presente caso deveríamos, talvez, chamar narratário, para especificar melhor o destinatário do discurso — embora nos pareça que, além disso, caberia bem um reforço expressivo neológico, que poderia ser descri(p)tário, atendendo à necessidade de definir como o que recebe a descrição e, com ela, a descriptação do Mistério.

    Em acréscimo a essa vontade de esclarecimento metodológico, ele procura pela mistificação, como a que aparece na descrição da ilha do Pico, onde usa a informação do cicerone turístico (As Ilhas Desconhecidas começaram por ser um diário de viagem com foros de roteiro turístico – como o são, de certo modo, Os Pescadores, ainda que contendo mais matéria ficcional) criar os efeitos poéticos de profunda expressão lírica engendrando um objecto visualizado de modo quase patético como se pretendesse, por esse procedimento, criar uma homologia entre o paradoxal vivenciado pelo escritor e discursivo lido/ visionado pelo leitor da descrição.

    É o que ele faz relativamente aos mistérios da ilha do Pico. Começa por apresentar os mistérios do modo prosaico que, ainda hoje, usam os guias/ roteiros turísticos, quando falam dessa designação tão enigmática, embora rodeie a sua apresentação de um halo de enigma: “Esta ilha [… ] é negra até à entranhas [… ] A fuligem caiu sobre a vasta terra e só de quando em quando um grande plaino cinzento, os mistérios, sucede ao negrume como a lepra ao incêndio” (p. 67)[6]. Depois de alongar a sua descrição por outros aspectos da ilha, regista, ao aproximar-se da região que costuma ser designada por “mistérios” do Pico, o regresso do motivo, incluindo de modo subtil, mas dramático, o seu putativo interlocutor, o leitor, através da segunda pessoa do plural:

    “Rasgam-nos, dilaceram-nos de alto a baixo, as grotas, cavadas pelas torrentes. Severidade e negrume, a que de vez em quando sucede o grande plaino cinzento dos mistérios. Depois do mistério da baía aparece o mistério de S. João e o grande mistério da Silveira, que nos acompanha e dura quilómetros pela estrada fora, dando à paisagem um aspecto fantástico. É o Pico na sua verdadeira expressão. Cinzento e negro, sempre cinzento e negro, o negro da terra, o negro dos montes cada vez maiores, e o cinzento estranho dos mistérios, vastas necrópoles onde a terra e a pedra estão sepultadas sobre* o mesmo lençol cinzento. / É esta paisagem Mineral que dá carácter à ilha magnética. Sumiram-se os retalhos dum verde tenro entre o negro calcinado e vulcânico — mais verde — mais tenro —só resta a desolação imensa. Lembro-me daquela baía do Mistério, isolada e cinzenta, morta que espera todos os dias os mortos, as cinzas dos naufrágios dispersos no oceano. Só me restam na memória as vastas extensões cadavéricas devoradas pela lepra e com montes em osso ao fundo” (p. 74-75).

    [* Resta-me a dúvida: será gralha ou “efeito” de estilo, a confundir o que está em cima com o que está em baixo? C.J.]

    Não é demais acentuar o profundo manipular dos sentidos referenciais e semânticos operados, em nome de uma visão que o destinatário (um dos nós, da segunda pessoa do plural que se mistura com o singulativo do sujeito que mais parece apontar e referir com os seus elementos deícticos ou demonstrativos “Esta… aparece… é…”) deverá partilhar inclusivamente nas suas dimensões fantásticas ou enigmáticas (de que baía de Mistérios se trata, e que ocorrências tremendas estão na memória do narrador?)

    Só depois da torrente de mistérios é que surge a explicação quase decepcionante dos “mistérios”. Diz R.B.: O mistério é o resultado de erupções da base do Pico (mistério de São Jorge, por exemplo) cobertas como um pequeno líquen, a urzela, que se propaga em vastas extensões cinzentas, dando a impressão de uma lepra que corrói a terra, dum mundo morto e amortalhado” (s/d: 75). A quem é dirigida esta prestidigitação. À alteridade autoral indagadora do Cosmos, ao presumível leitor, cúmplice de um devaneio?

    Por essa razão, assume-se que um dos objectivos da apóstrofe é fazer comunicar os dois universos, ultrapassando a barreira que os torna absolutamente incomunicáveis, pelo menos segundo a exigência de um empirismo cauteloso e crítico, sob a vigilância da racionalidade positivista, que se processam com alheamento da hipótese metafísica da inteligibilidade, ou da possibilidade aberta pela verosimilhança poética, quando activa o processo da “suspensão da descrença” (Coleridge).

    open book on brown wooden table

    Assim, percebe-se bem porque é que, no dizer de Jonathan Culler, as “apóstrofes” poéticas “podem complicar ou romper o circuito da comunicação, colocando questões sobre quem é o destinatário” pelo que se tornam “embaraçantes” (2001, p. 150). A proposta que Culler faz é a de que se pode, até certo ponto, “identificar a apóstrofe com a própria lírica” (2001, p. 151) partindo do princípio de que a apóstrofe parece encenar o sistema de enunciação do lirismo propriamente dito, chegando alguns críticos a apresentá-la como dominante, por vezes omnipresente, em quase todos os sistemas de lírica historicamente determinados.

    Essa posição parece ser assumida, por exemplo, num enunciado como o de Northrop Frye, no seu Anatomia da Crítica:

    “O poeta lírico normalmente finge estar conversando consigo mesmo ou com outrem: um espírito da natureza, uma das Musas (note-se a diferença com o épos onde a musa fala por intermédio do poeta), um amigo pessoal, um amor, um deus, uma abstracção personificada ou um objecto natural. […] O poeta, por assim dizer, volta as costas para seus ouvintes, embora possa falar por eles, e embora eles possam repetir algumas de suas palavras atrás dele” (Frye, 1973, p. 245).   

    É claro que o termo apóstrofe não é empregue. Contudo, parece evidente que a descrição que é feita, aqui, do acto de enunciação do poeta lírico corresponde, nos traços essenciais, à que é feita do acto enunciativo da apóstrofe, nos estudos e manuais de poética e de retórica.[7] Também é de considerar, persistentemente, que nem sempre a apóstrofe surge num embrião de diálogo explícito, como numa interpelação clara. Pode ser cultivada, como é o caso mais frequente em R.B., pelos procedimentos dos dêicticos, incluindo a anáfora que, muitas vezes, não aponta o cotexto, mas sim o contexto referencial inscrito no acto enunciativo, criando uma presença ilocutória, tão desmarcadamente aqui e agora do descritor/ enunciador, que se torna quase tão fantasmagórica como os fantasmas que ele assinala no espaço referido. Um outro exemplo de Os Pescadores:

    “Oito horas. Mais uns minutos e descerra-se a cortina vaporosa: dissolvem-se os últimos fantasmas e o panorama surge como uma aparição do fundo do mar. / Ei-lo diante de mim. Primeiro a costa, ao longe violeta e vermelha, mais longe roxa e diáfana, mais longe ainda perdida na bruma. […] …tudo isto feito de pó, e sempre duas tintas predominantes, a do mar azul e a do céu azul” (p. 73).

    Parece que sempre o mesmo modelo norteia a visão constantemente, nas descrições, e a comparação com o processo fílmico, do ponto de vista fenomenológico pode ajudar-nos a compreendê-lo melhor se atendermos ao que nos diz Colin McGinn, no seu The Power of The Movies — How Screen and Mind Interact, lembrando-nos que no cinema “vemos a imagem e vemos a referência, mas os dois objectos perceptuais são entidades contrastantes: um é bidimensional, o outro é tridimensional; um é desmaterializado, o outro não; um está parado no tempo, o outro não; e assim por aí fora” (p.86); sugerindo que há mais contrastes, acrescenta, um pouco adiante, que “em muitas tomadas de vistas (shots)[8] o primeiro plano [ou próximo, ou aproximado] está nítido e o plano de fundo [ou o pano de fundo, ou o cenário, ou….a paisagem] está desfocado […]” (p.88).

    Esta transformação, esta captação da imagem a partir do seu referente no mundo parece constituir um dos mecanismos básicos que Brandão refere de modo quase sempre explícito no seu sistema descritivo, patenteando-nos o autor/ descritor no acto de apresentação, o seu aqui e agora, e a passagem do mundo tridimensional e ponderoso para a forma da imagem apresentada: “a cortina vaporosa”, os “fantasmas”, achatamentos dos objecto do mundo cruzam-se com o descarnamento dos elementos que emergem como uma “aparição” vinda dos abismos: a costa são cores porque tudo isto “é feito de pó” e “tintas”. Parecem quase os “materiais” de que fala o Próspero shakespeariano, na Tempestade, ao referir-se ao mundo encenado: “We are such stuff / As dreams are made on[9]”.

    library shelf near black wooden ladder

    E, falar do sonho é constante em Raúl Brandão, como o faz, por exemplo a propósito do Pico: “Não consigo tirar os olhos do panorama tremendo, do panorama que é um pesadelo donde extraio não sei que prazer indefinido” (s/d: 75). Sonho que é, no fundo preparado por um estado quase permanente de devaneio, como no-lo revela um pouco adiante, algures, imprecisamente, talvez entre o Corvo, e as Flores:

    “Meu deus, como eu vejo tudo! Ficam-me os olhos nos carreirinhos que não sei aonde vão ter e por onde passa um homem com o burro de carga; ficam-me os olhos presos a certos sítios e a certas casas […]. E fica-me a alma nestes barcos de todos os feitios que chegam e partem…Para onde? Para onde? Sei lá para onde! Para sítios que nunca vi — para a cor e para a luz” (s/d: 97).

    Se recorrêssemos às categorizações de Bakhtine, para conceptualizar os procedimentos dos autores para construírem os seus mundos possíveis marcados por um tempo e por um espaço, seríamos tentados a falar dum especial cronótopo da encruzilhada – do cruzar do sonho e do mundo, lugar e tempo em que um patético narrador autoral, entontece o seu destinatário leitor com um interminável e fascinante rodopiar de horizontes encenados. Como diria Bakhtine,

    “o autor, vamos encontrá-lo fora da obra, enquanto homem que vive a sua existência biográfica; mas nós reencontramo-lo na própria obra, fora dos cronótopos representados, como que na sua tangente. […] Dá uma imagem do seu mundo ora do ponto de vista, de uma personagem participando no acontecimento evocado, ora do narrador, ora do autor postulado (substitut na trad. franc. alteridade de autor-criador); enfim mesmo que não recorra a nenhum intermediário, e conduza a sua narração directamente, como tendo origem em si próprio, o autor como tal, (num discurso directo [tipo notas de viagem, diarísticas, memorialísticas, como faz Brandão]), e possa também, neste caso, construir um mundo espácio-temporal, com os seus acontecimentos,  como se ele o visse, o observasse, como se ele fosse uma testemunha omnisciente; e até mesmo no caso em que compusesse uma autobiografia ou das mais autênticas confissões, ficaria sempre fora desse mundo representado porque seria o seu criador. […] Toda a obra literária está virada para o seu exterior, não para si própria, mas para o seu auditor-leitor, e ela antecipa, até certo ponto, as suas reacções eventuais” (Bakhtine, 1978: 94-96-97).

    Ora, Brandão é exactamente um dos autores que, por virtuosismo do seu desempenho, no voltear com os seus palhaços e títeres, insiste persistentemente em representar-se, no seu próprio enunciado, como o criador perplexo com os mundos fantásticos que criou, procurando sempre baralhar os contornos da “tangente” de que fala Bakhtine, onde o autor se colocaria, próximo dos seus destinatários por vontade poética, mas sempre agrilhoado a uma distância que o diferimento inevitável da criação poética implica. Entre dois mundos, o da obra e seu, entre dois momentos, entre o momento da escrita e o da leitura, ele é o ente perplexo, permanentemente agitado pelo espanto e extasiado pelo momento epifânico, extasiado perante as apóstrofes que só ele ouve vindas das sombras, dos abismos, do horizonte. 

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

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    BAKHTINE, Mikhaïl, 1978, Esthétique et théoie du roman, Gallimard, Paris

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    PREMINGER, Alex e T.V.F. Brogan, 1993, The New Princton Encyclopedia of Poetry and Poetics, Princton Paperbacks, Nova


    [1] Empregamos aqui, “modernismos”, de modo muito lato, englobando os movimentos que, do simbolismo em diante, dominaram, na literatura ocidental, contrariando os cânones dos mais estritos códigos românticos e realistas. Cabem nesse universo estético ideológico por nós congeminado, porém, muitos dos cumes epigonais do naturalismo e do parnasianismo, por exemplo.

    [2] No fundo trata-se da revelação das coisas despidas dos aparentes equívocos, como defendia Joyce no seu romance esboçado, Stephen Hero, como é explicado por Bernard Richards no texto que se segue: “Stephen explains in Stephen Hero that the apprehension of beauty involves the recognition of integrity, wholeness, symmetry and radiance. Here he comes close to the aesthetics of Gerard Manley Hopkins and his philosophy of haeccitas (‘thisness’). Joyce demonstrates the way in which the contemplated object is revealed: Its soul, its whatness, leaps to us from the vestment of its appearance. The soul of the commonest object, the structure of which is so adjusted, seems to us radiant. The object achieves its epiphany. (Stephen Hero, Chapter XXV). Joyce is here extending definitions of beauty to cover areas that most people would not recognise as such. When we think of epiphanies we think, principally, of Joyce. However, although Joyce may have coined this specific term he is not alone in having epiphanic experiences, nor was he the first to have them. Indeed, Joyce’s word was even anticipated by the American writer Emerson, who employed it in a lecture of 19 December 1838: ‘a fact is an Epiphany of God and on every fact of his life man should rear a temple of wonder and joy.’ For centuries writers and mystics have experienced sudden insights that seem detached from the flow of everyday perception. In many ways these experiences are the high points of human experience and the focus of artistic production. Often they have been on a borderline between the secular and the religious: what has been revealed in the mystical moment has been a sense of God, of the whole shape of the universe, of the unity of all created things. Wordsworth describes it as ‘A presence that disturbs me with the joy/ Of elevated thoughts; a sense sublime/ Of something far more deeply interfused’ (Tintern Abbey lines 93-6)”.

    Bernard Richards, from ‘The English Review’.

    cf.: Dubliners

    [3][Texto original da poesia]: THE quarrel of the sparrows in the eaves,/ The full round moon and the star-laden sky,/ And the loud song of the ever-singing leaves,/ Had hid away earth’s old and weary cry.// And then you came with those red mournful lips,/ And with you came the whole of the world’s tears,/ And all the sorrows of her labouring ships,/ And all the burden of her myriad years.// And now the sparrows warring in the eaves,/ The curd-pale moon, the white stars in the sky,/ And the loud chaunting of the unquiet leaves/ Are shaken with earth’s old and weary cry.

    ‘The Sorrow of Love’ is reprinted from An Anthology of Modern Verse. Ed. A. Methuen. London: Methuen & Co., 1921.

    Existe uma versão posterior, de 1925, que foi a que ficou na recolha final das obras do autor. Como se pode ver, na transcrição que em seguida fazemos, a marca do sujeito de enunciação apaga-se, deixando de haver o apostrofar da provável interlocutora, pelo que se atenua o efeito da epifania, ficando esta reduzida a um tom de quase simples ocorrência.

    The Sorrow of Love (versão de 1925) BY WILLIAM BUTLER YEATS

    The brawling of a sparrow in the eaves,/ The brilliant moon and all the milky sky,/ And all that famous harmony of leaves,/ Had blotted out man’s image and his cry./ A girl arose that had red mournful lips// And seemed the greatness of the world in tears,/ Doomed like Odysseus and the labouring ships/ And proud as Priam murdered with his peers;// Arose, and on the instant clamorous eaves,/ A climbing moon upon an empty sky,/ And all that lamentation of the leaves,/ Could but compose man’s image and his cry.

    [Tradução de Ivan Justen Santana ]: O bulir dum pardal pelas beiradas,/ O brilho da lua e o lácteo céu infinito,/ E toda a famosa harmonia das floradas,/ Mancharam a imagem humana e seu grito.// Uma garota ergueu-se rubros lábios enlutados/ E parecia a grandeza do mundo em lágrimas,/ Condenada como Ulisses e os navios danados/ E audaz qual Príamo caindo com seus pares;// Ergueu-se, e presto as clamorosas beiradas,/ Uma lua escaladora sobre um céu infinito,/ E toda aquela lamentação das floradas,/ Não compunham a imagem humana e seu grito.

    Cf. aqui.   

    [4] Fontanier caracteriza a apóstrofe do seguinte modo: “diversão súbita do discurso pela qual nos desviamos de um destinatário (objet), para nos dirigirmos a um outro, natural ou sobrenatural, ausente ou presente, vivo ou morto, animado ou inanimado, real ou abstracto, ou para se nos dirigirmos a nós próprios”  (1968, p. 371”). No caso do texto poético-literário, a apóstrofe consiste, muito frequentemente, ou quase sempre, na inflexão súbita ou mesmo intempestiva de um discurso que é pressuposto dirigir-se a um destinatário-leitor, em direcção a um destinatário surgido inesperadamente, perturbando a demarcação entre enunciado e enunciação, entre o mundo ficcional ou textual e o mundo postuladamente real de “leitor” e “autor”.

    [5] Devemos lembrar-nos, no entanto, que, como diz o próprio Jakobson “[…]Mesmo que o objectivo da mensagem seja o referente, a orientação para o contexto – em suma a função dita «denotativa», «cognitiva», referencial – como é, quase sempre, a preocupação dominante de numerosas mensagens, a participação secundária das outras funções nesse tipo de mensagens deve ser tomado em consideração por um linguista atento” (Jakobson, 1965: 214).

    [6] Note-se que o termo já tinha sido usado relativamente à Horta, onde o viajante/ relator valorizava o ressaltar  das muitas cores no fundo dos… mistérios, termo misterioso, para quem não conheça razoavelmente os Açores e as suas nomenclaturas, mas que Raúl Brandão não esclarece então.

    [7] Lembrando-nos, quase ao acaso, de alguns dos mais belos e recordados poemas portugueses de todos os tempos, desde as cantigas de amigo, em que se interpelam as “flores do verde pino”, até aos poetas modernos, nomeadamente Pessoa, quando incita a rapariga distante, que não o ouve, a comer chocolates, em “A Tabacaria”, passando pelo modelo absoluto e arrebatado do soneto “Alma minha e gentil…”, de Camões. Todos eles poderiam emparceirar com as descrições paisagísticas de Brandão Se acrescentarmos a este nosso elenco, colhido em rápida auscultação da nossa memória de leitores, a constatação, mais sustentada, de Laurence Preminger, A. W. Halsall e T. V. F. Brogan (in New Princeton Enciclopedia[7], entrada APOSTROPHE), de acordo com a qual “134 dos 154 sonetos de Shakespeare contêm uma a. e que 100 são directamente endereçados a uma senhora ou a um amigo”, vemos que a apóstrofe é muito recorrente e, como nos dizem os exemplos que apresentámos, fortemente ligada à elegia. Assim, a pergunta que se torna fundamental fazer, segundo Culler, sobre a apóstrofe é: “Que papel têm as apóstrofes no poema”. Cremos que, procurar responder, com ele, a esta pergunta, é formularmos a caracterização de um dos aspectos fundamentais como o que encontramos na poesia de Florbela Espanca e fundamento da sua grandeza poética.  (cf. Jorge, 2012)    

    Não só é recorrente como surge nos maiores poetas, em poemas de elevada importância: “o hipócrita leitor” de Baudelaire, no poema que serve de frontispício a Les fleurs du mal, o destinatário/ leitor de Walt Whitman, nas “Inscriptions” com que abre o seu Leaves of Grass, “O my songs”… do poema “Coda” de Pound. Esta enumeração não pretende ser exaustiva: é apenas uma breve amostra de como se apresenta a possibilidade de a apóstrofe ser uma figura, ou melhor, um dispositivo discursivo, que se pode circunscrever como figura da enunciação, ou mecanismo estruturante, do modo lírico, o qual enquadra e enforma a estrutura do modo de apresentação de certas modalidades da lírica.   

    [8] Tomada de vistas (take), é o ponto de vista da captação. O resultado pode ser mais bem expresso pelo termo plano (que pode ser expresso em inglês por shot), constituindo quase um par opositivo da conceptualização da prática cinematográfica

    [9]Act 4, Scene 1 PROSPERO (12ªintervenção na cena)

    …….

    You do look, my son, in a moved sort,/ As if you were dismay’d: be cheerful, sir./ Our revels now are ended. These our actors,/ As I foretold you, were all spirits and/ Are melted into air, into thin air:/ And, like the baseless fabric of this vision,/ The cloud-capp’d towers, the gorgeous palaces,/ The solemn temples, the great globe itself,/ Ye all which it inherit, shall dissolve/ And, like this insubstantial pageant faded,/ Leave not a rack behind. We are such stuff/ As dreams are made on, and our little life/ Is rounded with a sleep. Sir, I am vex’d;/ Bear with my weakness; my, brain is troubled:/ Be not disturb’d with my infirmity:/ If you be pleased, retire into my cell/ And there repose: a turn or two I’ll walk,/ To still my beating mind.

  • Eça de Queirós

    Eça de Queirós


    A ideia fundamental que, à partida, nos norteia aqui é a de que a produção de Eça, enquanto escritor de romances, não pode ser desligada da outra actividade, por ele também exercida, que normalmente se designa, com algum simplismo, por jornalística.

    Mais amplamente, pensamos que toda a sua prática de escrita não romanesca, por vezes entendida como ancilar relativamente àquela que se reconhece tradicionalmente como a que é verdadeiramente literária, é um ponto importante, não apenas por ser preparatória, ou mesmo propiciatória, da que o afirmou como grande autor, mas também por constituir uma prática com a sua dimensão própria, por si só válida como trabalho criativo.

    Contudo, é o referido aspecto preparatório que nos vai interessar essencialmente aqui. Assim, assumimos que é na aprendizagem feita nos jornais que se desenvolvem muitas das suas capacidades de representação, alguns dos mais importantes mecanismos formais de escrita criativa que lhe darão capacidade para, nos seus romances, gerar, desenvolver e manter a densidade expressiva, a capacidade de estruturar os mecanismos de domínio do texto que o tornam num dos autores mais importantes do seu tempo. É a partir dessa formação que a sua obra de maior duração, mais desligada da efemeridade do escrito consumível diariamente, se constitui como um filão inesgotável de registos dos discursos, os quais recolhem toda uma tradição da sabedoria retórica e poética para originarem uma novidade revolucionária enquanto obra artística.

    O aspecto central que aqui pretendemos apresentar, como mecanismo de criação de excepcional expressividade na produção do discurso em Eça, é o da segunda voz. Essa voz, a rigor, deveria ser chamada voz dupla, bivocalidade, já que ela irrompe, num plano do discurso aparentemente coeso, não como interlocutora, mas como enunciado simultâneo, emergência perturbante de um outro discurso que, por assim dizer, abre alas no enunciado que consideraríamos emitido pela vontade racional do locutor, no seu discorrer normal.

    Assim, por dentro do próprio discurso autoral, escapando-se ao controlo do sujeito que identificamos com a identidade – a entidade Eça, neste caso, o cidadão que intervém como jornalista nos debates do seu tempo –, essa voz imiscui-se, intromete-se, surge como que clandestinamente ou, para identificarmos melhor o fenómeno, promiscui-se. Entidade quase ilegítima, ela tem, se assim podemos dizer, um estatuto muito próximo do daquele “diabinho” irreverente e malicioso que, nalgumas circunstâncias, se revela como perturbador dos mais banais discursos, fazendo-nos dizer ou escrever o que não queríamos, assemelhando-se, nisso, à voz demoníaca – ou daimon – que também assaltava Sócrates.

    Tal voz, por cortar uma autenticidade monológica ao discurso do autor, actua, enquanto discurso, de um modo muito semelhante ao mecanismo que Anabela Rita apresenta como processo de visualização nas crónicas de Eça, no Distrito de Évora. Esse mecanismo, segundo a autora referida, funciona do seguinte modo: “Quando a distância entre observador e observado aumenta, torna-se espectacular (…) e pode favorecer o desenvolvimento de uma atitude que o cronista insinua como caracterizada por um certo «diabolismo» (1998: 79)”.

    Ora, embora nos mantenhamos inteiramente de acordo com a autora citada quanto à distância e ao espectáculo gerado por essa distância, o que aqui nos importa principalmente não é a visualidade, mas a própria discursividade verbal. Tudo se passa como se a voz dupla, ao surgir, criasse um mecanismo retórico em que ambas as vozes, a que esforçadamente o autor mantém como sua (a admitirmos que cada um é senhor e regulador do seu discurso) e a outra, que o invade como uma inevitável facécia, surgissem a uma distância em que tanto uma como outra (a empenhadamente “autêntica” e a sentida como “invasora”) se dão como espectáculo verbal. Passa-se, nesse caso, qualquer coisa como uma desapropriação do autor relativamente à sua palavra, um desajuste, uma deslocação em que não só percebe a outra palavra como outra, mas também percebe a sua como alheia.

    Para observarmos melhor esse mecanismo de distanciação (a que os formalistas russos chamariam de estranhamento – de que não andaria longe, também, o alheamento de Pessoa) é bom vermos como o próprio Eça o constrói, numa crónica. Revela ele, aí, em simultâneo, como está consciente desse mecanismo, uma vez que é capaz de fazer da descrição do processo mais um elemento constituinte do espectáculo verbal.

    O texto em questão é uma das suas Cartas de Inglaterra, que ele intitula “Uma partida feita ao «Times»”. Nessa peça jornalística (datada de finais dos anos setenta ou princípios dos oitenta do séc. XIX), Eça, depois de revelar a seriedade e o profissionalismo com que o «Times» praticava a recolha dos discursos dos grandes políticos e oradores ingleses da época, levando o seu escrúpulo a tal ponto que os autores preferiam recolher nele o material para a publicação das obras em livro do que recorrer às suas próprias notas ou redacções originais, apresenta, como acontecimento extraordinário e singular, um caso de falha à norma do sistema.

    A singularidade, porém, não nasce apenas da perturbação, do acontecimento imprevisto, como Eça explica claramente; resulta, também, como cautelosamente regista, do facto de, em certo dia, o «Times» ter publicado o discurso do mais previsível dos oradores: o mais “austero”, “doutrinário” e “rígido espírito” (s/d: 185) do ministério britânico de então. Sendo o “contrapeso conservador desse ministério”, representante da “tradição” e da “fórmula whig”, esperava-se, da sua crónica, a “majestade oficial” que se “honra em guardar as coisas supremas – a Coroa, a Igreja, a aristocracia territorial, os privilégios, a integridade do império” – coadunando-se com o modo “grave, ríspido” com que sempre fala, “vestido de negro” (p.185).

    Ora, o que torna o caso ainda mais perturbante é que as expectativas são quase completamente satisfeitas, excepto a tal partida que, segundo Eça, comentando previamente o relato, se torna, no interior de tanta previsibilidade, uma “atroz e deliciosa facécia” (p. 185). Note-se a contradição do oximoro, porque ela vai suster toda a apreciação de Eça. Não dizemos argumentação, mas apreciação, porque, aqui, o jornalista tira lições quase fantásticas da paródia que se deleita a anotar no impulso de um encantamento, ou sob o efeito de uma fascinação. De acordo com Eça, que, de agora em diante, tentaremos seguir num resumo feito de palavras suas, “alguém, um monstro, um celerado, subtilmente, pé ante pé, foi ao discurso, arrancou-lhe dez ou doze linhas, e substituiu-as por outras (…) E que linhas!”.

    De acordo com o cronista, o texto intruso era de bradar aos céus, sendo-lhe quase impossível a ele, comentador, “conservar-(se) casto” e “explicar essas linhas aos leitores da «Gazeta de Notícias»” (p.186).

    Tais “linhas, intercaladas no severo discurso do severo ministro, eram (…) linhas eróticas!

    Era o grito convulsivo de desordenada lubricidade; era o ruído de uma besta agitada por todas as fúrias de Vénus; era como esse rouco e seco bramar dos veados, nos bosques, sob a calma do Estio; era a balbuciação ébria dos faunos da fábula, do deus Príapo, dos sátiros caprinos que vagueavam pelos pendores sagrados do monte Olimpo, ululando, trincando a brancura dos lírios, violando o coração das rosas, arremessando-se com pulos ferozes de bodes ao entreverem, entre as ramagens dos olmos, as claras ninfas das águas… Era tudo isto e era ainda mais” (p. 186).

    Para lá desta sugestão eufemística, extremamente precisa atendendo a que os termos usados pelo “intruso” são de evitar, por pudor, o que é impressionante notar no relato de Eça é o apelo fabulatório que as irreverências dessa voz intrometida, desse discurso invasor, lhe provocam.

    Assim, não são os termos, os nomes nimbados de obscenidades impronunciáveis, tanto mais apelativas quanto ficam obscurecidas pela luz perversa da sugestão, que nos parecem o mais interessante da crónica. É, sim, a panóplia de hipóteses fabulatórias que desencadeia em Eça a tropelia. É isso que nos parece mais significativo para a compreensão de quanto a actividade jornalística foi importante para o fortalecimento de um certo tipo de criação poética que marcou a sua obra e que, habitualmente, designamos pelo termo demasiado generalizador de ironia.

    De facto, os seus comentários à crónica revelam algo desse mecanismo. Até pelo recurso à forma do imperativo do verbo “imaginar”, percebe-se quanto o facto, a ocorrência, ao desencadear, pela sua singularidade, a fantasia do observador, lhe espicaça os processos de fabulação, quando escreve: “Imaginem o efeito ao outro dia, quando milhares de números do «Times», contendo essa abominação, penetram nesses recatados interiores ingleses, onde (segundo aqui dizem) habita o tipo superior da família cristã” (p.187).

    Tudo se passa como se o efeito de intromissão do discurso invasor, a emergência da terceira pessoa, o ele, monstruoso quase pela sua radical clandestinidade, se propagasse como mecanismo, e fizesse apelo a outros monstrinhos, outros clandestinos discursos invasores que assomassem o da razão sob a tutela do “imaginem”. O episódio é infeliz, a atitude do misterioso usurpador da palavra é atroz, condenável, mancha o irrepreensível profissionalismo dos repórteres, taquígrafos e redactores do grande jornal britânico, mas a imaginação fica estimulada. E, imaginar, no universo da facécia cronística, é uma expansão desenfreada do discurso narrativo. Como um rizoma, o facto sugere outros factos que se encadeiam e desenvolvem pelo simples apelo que é o parodiar da ordem previsível, do sistema organizado das normas e das leis.

    O cronista, de facto, não se contém, já não imagina o genérico, imagina as cenas, como sequências emparelhadas de grotescas convulsões no interior dos lares exemplarmente cristãos. E é ele quem as apresente em fieira:

    “Imaginem-se então as cenas! Aqui é uma velha e devota duquesa cheia de entusiasmo pelas questões sociais, que se aconchega na sua rica poltrona de tapeçaria, para melhor saborear a nobre oratória de Sir William – e que de repente estaca, encara o «Times», limpa as lunetas, imaginando ter lido mal, torna a percorrer o período, passa a mão trémula pela face, procura ansiosamente o seu frasco de sais, volta ainda a verificar se a não enleia uma alucinação, e, arremessando enfim, para longe, a gazeta imunda, sai da sala a passos ofendidos […].  Além é um casal de noivos, que, anichados no mesmo sofá ao pé do fogão, com os braços entrelaçados, percorrem o «Times» […] para ler o compte-rendu de outros casamentos elegantes […] quando de repente lhes salta de entre as linhas o jorro imundo das apóstrofes eróticas! Noutra casa é uma fresca e loura criaturinha de dezoito primaveras, puro lírio doméstico, que faz a leitura do «Times» a um velho tio general, tolhido de gota, relíquia venerando das guerras peninsulares; o velho escuta, pouco atento à política do dia, que detesta, mas muito ao encanto daquela voz de ouro ao seu lado; de repente, porém, o pobre anjo gagueja, pára, faz-se cor de uma rosa, treme, a sua vergonha é tal que lhe saltam as lágrimas dos olhos, e foge, deixando o imundo «Times» do general assombrado: – ou então, caso pior, a doce rapariga, na sua candura de flor de estufa, não compreende, imagina que aquilo é política, continua a ler com a sua voz de ouro – e o venerável tio ouve de repente sair dos lábios de botão de rosa, feitos só para murmurar o que há de mais casto na música de Weber, um enxurro torpe de babuges lúbricas” (p. 188-189).

         Já não é só o encadear dos casos, notável fenómeno de imaginação fabulatória desencadeada, que nos interessa mais aqui. O que nos parece de destacar, de agora em diante, no texto desta crónica, é que, depois de desenrolada a fieira destes casos hipotéticos – ilustrações de um imaginário espanto desencadeado pela emergência do intruso erótico, terceira pessoa obscena, diabolicamente brincalhona –, o autor comente o caso como se no seu próprio arrazoado interviesse, também, a segunda voz intrometida. De facto, escreve Eça:

    “O autor da facécia ainda não se descobriu. É sem dúvida um monstro, e seriamente merece a tremenda sentença com que decerto os tribunais ingleses o demoliriam. Mas, por outro lado, considerando […] que esta gazeta austera leva o seu pedantismo e a sua empolada pruderie a sustar, como obscena, a menção sequer dos livros de Zola e de outros artistas – eu não posso deixar de pensar, com laivos de regozijo, que a Providência tem armas oblíquas e terríveis[…]. É, digam o que disserem, divertido. E, terminando, peço às almas caritativas e justas uma boa risada à custa do «Times» (p.189-190).

    Consideramos de toda a justiça encarar este texto como um exemplo privilegiado do modo de trabalho segundo o qual o processo de criação depende de uma perspectiva que, fazendo funcionar o acontecimento bruto como uma motivação, encadeia os dados do relato construído com as réplicas e as sugestões hipotéticas que entram num diálogo de absorção e transformação desse mesmo relato. O horizonte de uma tal transformação é, parece-nos, a afirmação dos direitos plenos do riso e da facécia face ao discurso monológico e, sobretudo, o enunciado autoritário.

    Não é por acaso que a grotesca transformação relatada nesta crónica recai sobre o texto do mais austero de todos os conservadores de um governo em que eles abundam. Do nosso ponto de vista, é neste modelo de fabulação parcial do “imaginemos”, presente de modo insistente nas crónicas de Eça, que se afina o processo de polémica oculta, o qual, na nossa opinião, é um dos fundamentos mais fortes da ironia de Eça. O percurso discursivo poderia ser estabelecido, num primeiro momento, segundo as palavras de Bakhtine:

    “O objecto sobre o qual se orienta a polémica aberta é o discurso do outro – ao passo que, na polémica oculta, o discurso é dirigido a um objecto habitual, denotando-o, representando-o, exprimindo-o, e atingindo o discurso do outro de modo indirecto, mas atingindo-o, ainda assim, no próprio objecto. Por essa razão, o discurso do outro começa a exercer do interior uma influência sobre o discurso do autor. Assim, na polémica oculta a palavra é bivocal, embora as relações entre as duas vozes sejam algo especiais” (Bakhtine, 1970: 255).

    Contudo, para examinarmos os processos queirosianos, devemos ter em conta um quadro mais matizado da questão. Em primeiro lugar, na crónica, o que se afina é a relação entre a voz de grupo restrito, eco da ideologia dominante, omnipresente nos discursos escritos, escolarizados, bem-educados, e a voz, também ela colectiva, do todo social mais amplo, que se relaciona, enquanto grupo dominado, com os discursos previsíveis, monológicos e autoritários, do poder.

    A voz assumidamente autoral faz eco, aparentemente em harmonia, do senso comum que decorre de uma submissão às premissas da autoridade. Essa voz é, assim, a de um amplo colectivo que não se questiona, que não desmonta o discurso autoritário. No entanto, por intervenção de uma entidade anónima, a malícia, o riso, a emergência do vocabulário e da fraseologia “indecente” manifestam-se como imprecação, insulto, liberdade brincalhona e desrespeito carnavalesco. O que a generaliza e a torna consentida é o riso, a alegria espontânea, o espírito insurrecto da paródia.

    Nesse sentido, o demónio socrático, que poderia ser entendido como o emergir de uma má consciência inconformista perante o triunfo arregimentador do discurso do poder, torna-se, face à ideologia conservadora e eclesiástica, o símbolo do próprio malefício satânico. E o riso, porque lhe é associado, é condenado ou só é periódica e controladamente consentido.

    Ora, Eça, enquanto jornalista, porque tem de assumir autoralmente a voz do bom senso instituído, multiplica os pontos de emergência da outra voz. Não assume a da insurreição porque é um instruído, faz parte do grupo para o qual a obscenidade ou a facécia é de mau gosto ou loucura. É por essa razão que ele cria, a partir de uma brincadeira real, uma entidade de dimensão carnavalesca: o monstro que perversamente transformou o discurso da autoridade austera num chorrilho indecente. É essa voz que ele fixa como entidade fictícia (dado que clandestina e anónima – que nunca veio a ser descoberta) para poder fazer emergir, através dela, a sentença crítica sobre o discurso conformista, conservador – e mesmo reaccionário, como entenderíamos hoje o que se lê nas entrelinhas.

    Tal mecanismo de bivocalidade, contendo polémica oculta, emerge em muitas das suas outras crónicas ou escritos para periódicos. Um caso exemplar é o da encenação que ele pratica, segundo os tiques de Pinheiro Chagas, numa polémica que mantém com este, datada de 1880, que foi recolhida no volume Notas contemporâneas (s/d). Aí, resumindo, para rebater, o discurso do adversário que, insinuada e denegativamente, o acusava de se vender para dizer mal da pátria, Eça argumenta e, para consolidar o seu ponto de vista, fabula segundo os processos do outro:

    “Quando você fala de somas recebidas da «Gazeta de Notícias», do alto preço por que me vendi para injuriar o país, etc., [não me parece prudente]. Eu bem sei que você usou notáveis precauções oratórias: mencionou o boato, e demoliu logo o boato; depois tornou a pôr de pé o boato, para volver a derrubá-lo com furor. Isto é amável; mas enfim, você traiu a confidência que eu lhe fiz. Lembra-se, Chagas? Foi naquela noite de tormenta, na encruzilhada, a poucos passos da capela solitária onde estava dobrando a finados. Eu cheguei rebuçado num manto cor de treva, e punhal à ilharga, deixando pela sombra um tinir de esporas. Um relâmpago fuzilou, e houve um tremolo na orquestra. Até eu lhe disse, lembro-me bem:/- meu Chagas, esta situação patética parece mesmo inventada por você, amigo!/ Você respondeu com engenho:/- Parece. Eu teria colocado alguma luz eléctrica, batendo as roupagens de uma virgem, cuja alma o mundo não compreende…/ Então eu arrastei-o para o pé do cruzeiro, onde bruxuleava uma lâmpada; e, sentados sobre os degraus de pedra fria, eu comecei a contar-lhe o meu segredo: que a «Gazeta de Notícias» me dava um milhão (um milhão em ouro) para eu injuriar semanalmente Portugal, deitar peçonha nas nascentes do Alviela e fazer saltar pela dinamite a estátua de Camões!/ Você tremeu, amigo! E murmurou-me ao ouvido estas palavras: – Prudência, prudência./ Eu repliquei com furor:/ Hei-de beber o sangue de Portugal. Hei-de beber-lho!/ Um trovão retumbou. Sobre um dos braços da cruz piou um mocho. E separámo-nos, na estrada negra, quando dava meia-noite na torre da catedral./ Você tinha-me jurado segredo. E vem agora publicar tudo no «Atlântico»! Hei-de assassiná-lo no quinto acto” (pp. 59-60)

    Não é possível deslindar aqui todas as consequências pragmático-discursivas deste processo. Dado que o nosso objectivo central é o de tentarmos reconhecer o valor do mecanismo retorico-poético e não analisarmos as questões que estão por detrás dos termos da polémica, limitemo-nos a observar aqueles resultados que nos ajudam a compreender a oficina discursiva e fabulatória de Eça. Para fazer valer os seus argumentos, Chagas recorre ao boato. O mecanismo que utiliza é da preterição, através da qual, ostentando a rejeição da calúnia que afirma correr como boato, enuncia as acusações. A voz que as sustenta, no entanto, não é a sua. O autor do discurso, assim, cria uma voz tornada anónima pela generalização do “diz-se que” do boato e, afirmando a sua rejeição do dito, não deixa de o dizer.

    O efeito não é só o de enunciar a acusação que, embora rejeitada pelo eu da enunciação, fica a pairar como dúvida – o mais importante do efeito é que o boato, sendo colectivo e anónimo, partilha dos valores do saber comum, da vox populi, fonte, como se sabe, de um saber quase divino. Tal afirmação negada institui uma entidade enunciativa extremamente poderosa porque não só é difusa e de insidiosa autoridade, como é irrebatível, dado não ter personificação que possa ser questionada: no fundo é o dizer dessa monstruosa terceira pessoa que é todo o mundo e ninguém.

    É pelo facto de perceber e analisar com exactidão o processo do outro, acusando-o de espalhar e rebater retoricamente o boato, que Eça se revela o poderoso mestre no uso dos mecanismos da ironia e da paródia. De facto, a sua réplica não se limita a ser uma construção intuitiva, atenta aos processos já elaborados do debate retórico, que os retoma segundo as práticas dos mestres. Revelando o reconhecimento dos mecanismos da insídia construídos pela preterição, Eça sublinha o irreal e inverosímil do boato, reconstruindo-o como plena fantasia do “dramalhão” à maneira dos que o seu antagonista costumava fazer.

    Assim, parodiando o conteúdo da acusação pela encenação burlesca de uma cena teatral em que todos os mecanismos poéticos se revelam, Eça desmonta o dito através da espectacularidade melodramática evidente do dizer. O ente anónimo da acusação transforma-se na carnavalização do dizer, em que a origem do dito é atribuída ao próprio vilão – mascarado como tal — confessando o seu crime, em segredo, àquele que ostenta o saber da pérfida traição à Pátria.

    Neste caso, o efeito da réplica não se limita ao rebate. A resposta procura atingir criticamente o próprio interesse político e ideológico de um tal debate. De facto, se Chagas recorre ao artifício retórico da preterição, Eça lança o descrédito sobre tal artifício transformando-o num melodrama. Assim, irrealiza-o poeticamente. Mas não se limita a essa operação. Sublinhando os tiques sentimentalões do melodrama romântico em que insere a fonte verbal do dito, Eça gera o efeito de paródia, lançando a dúvida sobre o valor e a autenticidade do drama, e o interesse do investimento afectivo que o dramatismo convoca.

    Sede da Fundação Eça de Queirós

    O quadro cénico resultante, o drama montado pela simultaneidade das vozes que ora se rebatem ora se repetem até à caricatura, resulta no apagamento ou, pelo menos, na minimização da importância da fonte de fidedignidade. Sendo todos os dizeres passíveis de suspeita, nenhum está, indiscutivelmente, acima de qualquer suspeita. Se todos são submetidos ao efeito de caricatura, o riso atinge-os a todos, pondo em causa a existência de um lugar ou de uma posição de onde a verdade jorre fora de qualquer suspeita.

    Ora, esse mecanismo, que, na literatura, se fará um verdadeiro sistema de indagação epistemológico, dando ao verosímil literário a força de um questionar implacável de problemáticas e pontos de vista, emerge, no jornalismo, como processo de indagação dos valores éticos e ideológicos que se debatiam na época. Antes de o ter desenvolvido como procedimento poético, nas cenas de satirização e de paródia que tão bem constrói na sua ficção ao questionar a condição humana e a hipocrisia que toda a formação social constitui, Eça aprende a domar o desdobrar das vozes, o formular da equidistância dos pontos de vista e a matizar os confrontos ideológicos desde as primeiras crónicas.

    Curioso é que esse processo da intromissão de um ponto de vista insurrecto tenha aparecido, por uma associação do trabalho do redactor à atmosfera de Carnaval, nas crónicas do Distrito de Évora. Sirva-nos de exemplo dessa associação, a própria relação que Eça estabelece numa das suas primeiras crónicas de 1867, na qual ele teoriza a própria crónica. Escreve o então jovem jornalista:

    “Esta época do entrudo é realmente feliz para a crónica. A crónica encontra sempre contra si as ocupações políticas, os incómodos individuais, a preocupação das negociações financeiras, a instabilidade dos partidos: ela é sempre jovial, mas não pode respirar, viver, porque encontra em volta de si uma época séria. Senão veriam./ Mas, quando chega o carnaval, há harmonia entre a crónica e a época, se a crónica diz folguemos, a época diz desvairemos. E aí está porque, assim que chegam estas épocas, ela se veste de cores alegres, vem palreira e folgazã dar as boas-festas aos que têm a honra de a ler, de a ouvir, de lhe escutar as anedotas” (in, Anabela Rita, 1998: 39-40).

    Quase poderíamos utilizar este texto do escritor debutante como prefácio à sua metodologia poética futura. Apercebemo-nos, nela, das motivações que o arrastam para essa posição de implicação demoníaca. A crónica, na sua capacidade inventiva, gera-se como acto de diabrura, de incompatibilidade ou pelo menos de adversidade, relativamente ao espírito sério. É quando a conceptualiza que Eça vislumbra os mecanismos da sátira em sentido generalizado. Não o confronto ou a polémica entre razões que se querem apagar mutuamente, mas o voltear brejeiro, atitude palradora e alegre de encarar as contradições do mundo, irmã, enfim, do Carnaval.

    Parafraseando Bakhtine, estudioso que, fundamentalmente orienta o ponto de vista que aqui estabelecemos, poderíamos dizer que “a realidade da época, tão ampla e plenamente reflectida na obra de” Eça “fica iluminada pelas imagens da festa popular” e, assim, “à luz particularmente lúcida (luminosa e luciferina, simultaneamente, diríamos nós) das imagens da festa popular, todos os acontecimentos e coisas da realidade adquirem um relevo, uma plenitude, uma materialidade e uma individualidade muito particulares. Libertaram-se de todos os liames dos sentidos estreitos e dogmáticos. Mostraram-se numa atmosfera de perfeita liberdade” (Bakhtine, 1970a: 450).

    Não nos afastaríamos muito do estudioso russo citado se afirmássemos que, dessa posição retórica de profundas implicações poéticas na sua obra futura, Eça soube extrair os dados fundamentais segundo os quais, nos seus romances, representa e suscita a diversidade excepcional dos factos e episódios nela englobados. O momento do riso, da festa livre da rua, é o momento do olhar liberto, da palavra solta, que a todos nomeia (autor incluído – pois que, também ele, é objecto da paródia, ao fornecer facécias e enunciados menos vinculados à verdade) e a tudo indicia para soltar o palreio folgazão.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia :

    Bakhtine, Mikhail, 1970, La poétique de Dostoievski, Seuil, Paris

    Bakhtine, Mikhail, 1970a , L´oeuvre de François Rabelais, Gallimard/TEL, Paris

    Queirós, Eça de, s/d, Notas Contemporâneas, Livros do Brasil, Lisboa

    Queirós, Eça de, s/d, Cartas de Inglaterra e Crónicas de Londres, Livros do Brasil, Lisboa

    Rita, Anabela, 1998, Eça de Queirós cronista, Cosmos, Lisboa

  • Fernanda Botelho

    Fernanda Botelho


    A penúltima obra de Fernanda Botelho (1926-2007), As contadoras de histórias, pela qual autora foi galardoada com o Grande Prémio de Novela e do Romance, da APE em 1998, convida-nos, logo a partir do título, a pensá-la como súmula e explícita “arte poética” da autora.

    De facto, As contadoras de histórias remete-nos, pelo menos, para a produção romanesca da autora, e para os processos narrativos que caracterizaram a sua arte de fabular, desde os primeiros momentos – se não pretendermos ter no horizonte toda a tradição da narrativa para o qual um enunciado tão genérico como um título, com tais tópicos enunciados, poderia apontar, o que se tornaria matéria para muito mais do que um simples artigo. É claro que, inevitavelmente, a obra, ao estabelecer a sua linhagem poética, como conjunto, explicita alguns vínculos que mantém com certos aspectos característicos de determinados filões literários que tem alimentado a narrativa, sobretudo aqueles em que se faz sentir, de modo preponderante ou pelo menos evidente, o processo de enunciação como arte que a si próprio se oferece como espectáculo.

    Fernanda Botelho

    Se, ao enunciado de dimensões macro-estruturais que é o “nome do livro”, não se viessem juntar os traços da própria construção ficcional que se desenvolve na obra, a revelarem essa vontade de reflexão poética da autora, bastaria pensar enquanto, neste título, ecoam referências aos processos de enunciação presentes em títulos anteriores: A gata e a fábula, Xerazade e os outros, Lourenço é nome de jogral e mesmo Dramaticamente vestida de Negro[1] .

    De facto, é como se o acto de enunciar, emergir a um proscénio para emitir uma fábula, se tornasse uma espécie de forma arquétipa da própria ficção de Fernanda Botelho, presente na autora desde os seus primeiros romances, de modo menos notório até A gata e a fábula, mas tornando-se recorrente, pela própria figuração mítica de Xerazade, a partir da ficção que transporta o nome da ilustre personagem das Mil e uma noites

    Desse modo, Fernanda Botelho parece não ter encontrado melhor expressão para sondar o universo onde as suas personagens se movem, senão através da revelação dos seus actos, contando a história dos seus movimentos, colocando as explicações psicológicas, as sondagens das categorias abstractas dos afectos entre parêntesis, ou fazendo-as surgir como paradoxais face aos actos, aos comportamentos, ou às histórias com as quais cada contador ou contadora consegue figurar o mundo.

    Penúltima obra de Fernanda Botelho, o romance As contadoras de histórias foi publicado em 1988 pela Editorial Presença.

    Estamos a pensar, evidentemente, no enunciado de Todorov, sobre o legendário livro das narrativas árabes, quando analisa o comportamento de Ali Baba face à sua cunhada viúva: “em vez de interferir na causalidade dos eventos, a causalidade psicológica é tão só um duplo da causalidade dos acontecimentos” (Todorov, 1971: 81).

    Se atendermos à tradição narrativa de que fala Todorov, segundo a qual cada “personagem é uma história virtual que é a história da sua vida” e aceitarmos como ponto de partida, ainda segundo a sua perspectiva, que “toda a nova personagem significa uma nova intriga” decorrendo desse facto que, nesse modelo narrativo, “nos encontramos no reino dos homens-narrativas” (1971: 82) tocamos, ao que nos parece, no mecanismo central que, pelo menos desde Xerazade e os outros, alimenta o processo narrativo de Fernanda Botelho.

    Não dizemos que é único e exclusivo em todas as histórias, evidentemente, mas dizemos que é o modelo a emergir, dominante, no conjunto da sua obra. Do confessionalismo, dos mecanismos de sondagem da interioridade na esteira da “descrição de caracteres”, tão caro a Henry James e à geração da Presença, em relação à qual Fernanda Botelho se vai demarcando, por sucessivas evoluções dos processos de encenação da narrativa, passamos ao mecanismo dos modelos de carácter deduzidos a partir da acção na intriga ou mesmo da revelação dos mecanismos psíquicos através da própria acção de narrar.

    Até o monólogo interior, que ela utiliza tão bem nos seus primeiros romances, a pouco e pouco dá lugar a histórias, como que pertencentes a “outros”, fazendo as personagens apresentar-se a si próprias, através de representações que por vezes são verdadeiras evocações de mitos clássicos, tal como foram já tratados, pelo menos, na tradição literária. Palla e Carmo regista, por exemplo, que a própria situação da grande narradora de As mil e uma noites está presente na sequência final de Xerazade e os outros, quando aquela a quem chamavam Xerazade (Luísa), perde o marido porque “deixa de contar a história” nega a história que sobre ela contavam para a desculpar, e “não conta a versão verdadeira” a que “seria a sua irrespondível justificação para com o marido” (Palla e Carmo, 1971: 123). A verdade que a personagem transporta, a revelação do seu íntimo, que demonstra que ela já não deseja viver com o marido surge, assim, através de uma história que se conta – ou não se conta.

    Outro mito que poderia representar a mesma personagem, ainda segundo o mesmo crítico, é o da estátua de Pigmalião: “Fernanda Botelho incorpora o tema de Pigmalião (…) como Bernard Shaw o consagrou; mas creio que glosa também o mito original. Gil fez de Masia Luísa uma criatura «perfeita»: beleza perfeita, atitudes certas – mas como uma estátua(…) «morta»” (Palla e Carmo, 1971: 123). Este procedimento estende-se a outros romances seus, sob variantes curiosas. Por exemplo, em Lourenço é nome de jogral, aquilo que se desenvolve nos monólogos interiores das personagens não são verdadeiramente referências do vivido, manifestações directas de desejos ou mesmo de sentimentos inconfessáveis, ou melhor, tais elementos aparecem, mas sob a capa de personagens literárias, intrigas de escritores canónicos, mitos e situações literariamente tratados.

    Se a política aparece, é sob a citação de Soljénitzyne, se a guerra e os seus conflitos ideológicos se colocam no horizonte das personagens (a 2ª Grande Guerra, a Guerra Colonial…) evoca-se Gunther Grass. Relativamente à perda dos valores humanísticos no mundo de então (entre finais da 2ª Grande Guerra finais da década de 60), a referência é Robbe-Grillet, assim como a questão da luta da mulher pelos seus direitos, em perspectiva mais ou menos estereotipada, surge sob a referência a Le deuxième sexe, em torno do qual vem a propósito falar do que então era quase tabu, mas que se torna, com Fernanda Botelho, uma formulação temática central (como a luta de classes para o neo-realismo – cf Sadlier, 1989: 25 e Óscar Lopes in Saraiva e Lopes: 1996: 1102): o feminismo.   

    Coordenadas líricas, obra publicada em 1951, foi a estreia literária (e em poesia) de Fernanda Botelho.

    Poderíamos dizer que, neste seu último e muito amadurecido romance, produzido em fase adiantada de vida, de saber e de percursos criativo, se leva ao rigor o sistema da história e do seu valor epistemológico, construindo a narrativa e o encaixe da narrativa como grande código donde todo o saber acerca das personagens e do mundo pode emanar no sistema do funcionamento verbal e da permuta da comunicação.

    O modo de se iniciar este romance parece desenvolver, como exercício poético, a hipótese que Todorov tinha colocado quando procurava entender o mecanismo da tradição que se inicia com As mil e uma noites: “Qual é o interesse do encaixe, porque se encontram reunidos tantos meios para lhe conceder importância?” (1971: 85). Porque, mais do que pelo que pensam, sentem ou vivem, as personagens são aquilo que contam. E o processo parece decorrer aqui, ainda que de forma original, do princípio que o teórico búlgaro tinha enunciado, embora alargando-o.

    Assim, se “a narrativa que encaixa outra é a narrativa de uma narrativa, atingindo o seu tema fundamental ao mesmo tempo que produz uma imagem de si própria”, é verdade que contar as histórias das contadoras de histórias é situar-se no lugar dessa “grande narrativa abstracta da qual todas as outras não são mais do que ínfimas partes” (Todorov, 1971: 85). Em última análise, no cerne deste filão hipotético reside uma verdade oculta, que a narrativa deixa apenas vislumbrar.

    Fernanda Botelho parece sugerir-nos a imagem alegórica desse enigma num dos seus motivos recorrentes a que voltaremos adiante: o gato, ou a gata. “Aqui há gato”, parece evidenciar-se quando uma história começa. E, à entidade abstracta que vive pela história, enquanto há história, compete deixar-lhe o rabo de fora…

    O ângulo raso, primeiro romance (1957) de Fernanda Botelho.

    Assim, quando, neste seu último romance, se enuncia a primeira história que inclui a história (autodiegética) da sua narradora preparando-se para encontrar a situação em que as histórias se enunciam, no lazer, no retiro, percebemos que, no limite da insignificância, as moscas – incómodas companheiras que assolam a casa de campo da professora de Filosofia que se retira para deixar a sua vida quotidiana – figuram a própria dramaticidade do amor na morte. É a partir da morte do casal de moscas que se evoca Mayerling, Romeu e Julieta, as grandes narrativas fundadoras da Bíblia e se esboça um rápido panorama, na fieira das lendas, das origens e das grandes linhagens muçulmanas, como as Mil e Uma Noites.

    Não há outro assunto que anime as três amigas que, logo após a leitura desse começo de história, discutem os dados que a compõem, e os fundamentos em que assente. Essas três amigas discutem o embrião narrativo que a mais velha, Ana, esboçou. E propõem-se ajudá-la a completá-lo e aperfeiçoá-lo.    

    Assim, fica claro que a intriga vivida pelas figuras fundadoras do romanesco neste romance só avança, à maneira das personagens da tradição de que vimos falando, quando as suas histórias avançam. E as personagens vão-se definindo conforme o seu saber se vai tecendo em volta das histórias. Os grandes temas surgem: o pecado original; as referências culturais emergem: Sem olhos em gaza. E, algo artificialmente, os caracteres das contadoras são rotulados: uma é nefelibata, outra é apotegmática e uma terceira ninfomaníaca, embora nunca se decida muito claramente qual é o quê.

    Feito o desafio da primeira história, só existe uma alternativa para as compulsivas amigas continuarem a conviver, o que, no modelo colectivo em que se colocam, só pode ter uma tradução: continuar em cena romanesca. Continuarem a conviver é o lema desta sobrevivência fabulosa. “O acto de contar nunca é, em As mil e uma noites, um acto transparente; ao contrário, é ele que faz avançar a acção” afirma ainda Todorov (1971: 85): assim, se continuarmos a acompanhar a sua compreensão do grande modelo dessa tradição, percebemos como o corolário dessa verificação se aplica a este romance, que parece apurar-se no acolhimento de tais matrizes milenárias, segundo as quais “contar é igual a viver, tal como acontecia com Xerazade que vive unicamente na medida em que pode continuar a contar” (Todorov, 1971: 85).

    Mas Fernanda Botelho acrescenta um elemento fundamental a essa formulação, acolhendo, junto com a primeira, uma segunda tradição: a história de amor romanesca vista pelo olhar feminino. Continuarem a viver, para as três heroínas fundadoras do acto de contar, é contar histórias de amor, fazendo variar, por vezes em continuações alternativas, as intrigas em que dominam heroínas envolvidas em relações amorosas.

    Várias tradições se conjugam, dentro desse filão: o amor que se anuncia em todas as dimensões da natureza, como na primeira história, a provinciana que vem para a cidade (o Porto, na segunda história, a que é contada por Eva) onde faz o liceu, a mulher que nunca é amada e não encontra o amor (terceira história), a menina feia com quem a bela mãe compete (quarta história) e a mulher que é “esquecida” pelo marido (quinta história).

    A gata e a fábula venceu o Prémio Camilo Castelo Branco, da Sociedade Portuguesa de Escritores em 1961.

    Na segunda história, que é a que observaremos agora, a heroína, quanto termina o secundário e vai para Coimbra, conhece o assédio de um jovem com jeitos de poeta a perturbar-lhe a vocação de reclusão mística. Oscilando entre uma coqueteria fascinada pelo discurso amoroso e um desinteresse (não menos coquete) pelo contacto erótico, a jovem provinciana foge de Coimbra e regressa à vila natal, pronta a entrar para um convento.

    Deste desfecho abrupto queixam-se as outras contadoras. Por isso decidem outros finais. Esses encerramentos alternativos remetem para novas perspectivas da condição feminina, ou para delineamentos do feminino que, na perspectiva aqui desenvolvida até ao traço extremo, se aproximam do caricatural – e da quase narrativa em tons de paródia.

    Quando discutem o segundo final, que pressupõe a condição matrimonial acomodada da heroína, emerge o modelo matricial de que as histórias são a decorrência. Se, por detrás de tais figuras, aparecem os arquétipos já mitológicos do romanesco romântico, e muito em especial o de Camilo, a verdade que, nesta pequena súmula estão também presentes as reformulações bem do século XX que Fernanda Botelho lhes deu em romances anteriores, num ciclo que, de algum modo, se fecha em A gata e a fábula.

    Ao propor a terceira versão, Isa, a contadora que ainda não tinha contado pronuncia-se:

    Preparem-se meninas. Mas o meu final não começa com o beijo lambido, começa com o casamento. É perder tempo, mas enfim… Vocês acham mesmo que vamos convencer um editor para estas histórias contadas? Sou preguiçosa por natureza, não quero perder tempo com… com coisas que não servem para nada. – Volta-se para Eva: – Já falaste com o teu marido? Achas que ele…? / – Olha, se queres que te diga, há já algum tempo que não lhe ponho os olhos em cima. Horas desencontradas e quartos individuais. Da última vez que o vi, ele estava cheio de ternuras platónicas e requintadas cortesias em relação à minha modesta pessoa. Deve haver gado novo” (p. 39)    

    De facto, à encenação enunciativa do acto de contar história, a intriga amorosa acrescenta um modelo renovado da relação homem mulher e dos vectores de poder: por detrás da necessidade de sobrevivência não está a ameaça do Califa, mas está a do editor – e, ao que tudo indica, o marido de uma delas será o que detém esse poder. De algum modo, é um novo sistema de determinação, regendo o acto de circulação da narrativa, que transparece nos meandros míticos da fábula actualizada.

    Como sugere Darlene Sadlier, na análise que faz de Xerazade e os outros (de um ponto de vista que nos parece, em grande parte, de acordo com aquele que se pode aplicar, quase sempre, a este romance) “o contar histórias, como a atracção feminina, é vista como qualquer coisa de maldito – uma condição imposta às mulheres que têm de fabricar ficções, destinadas às audiências masculinas, para poderem sobreviver” (Sadlier, 1989: 26). No entanto, devemos aqui acrescentar à justa observação que acabámos de citar o seguinte: os termos em que é feita essa equação desenvolvem-se, neste romance, num modelo muito mais paródico do que aquele que subjazia ao romance anterior citado. Já não é a tragédia que se entretece na trama do romance a reconfigurar, como encenação, o mal-estar dos laços de poder e de dependência, para “revelar a infeliz condição da mulher” (Sadlier, 1989: 27). Aliás, o terceiro final da segunda história, o de Isa, é bem sugestivo quanto à possibilidade de, pela sapiência (filosófica) e pela sabedoria (vivencial), a mulher se libertar e viver, mesmo na hipocrisia do inconfessável adultério, a felicidade erótica.

    Xerazade e os outros, publicado em 1964, é um dos mais conhecidos romances de Fernanda Botelho.

    Poderíamos estar aqui perante uma hipótese leibeniziana de três futuros possíveis envolvendo, cada um, um modelo de verdade, o que tiraria todo o tom trágico, ou mesmo dramático, à condição feminina. No fundo, cada personagem habita, nos possíveis que lhe são anunciados, a alternativa que cabe à sua construção de verdade. A dúvida está sempre em saber se a escolha cabe à personagem ou à contadora de histórias. Porque, na lógica que decorre da leibeniziana (cf Deleuze, 1985:170-171), se o futuro alberga possíveis, o passado só existe pelas histórias que se contam. E talvez o sistema de verdade que Fernanda Botelho enuncia se envolva, no limite, no labirinto dessa construção, bifurcando o universo em duas vertentes: uma, eminentemente feminina, de tecer histórias; outra, masculina, de as apreciar e valorizar. O que são, muito mais, possíveis de vivência, determinações de uma Teodiceia construída pelo poder e pela cultura, do que traços sexuais marcando duas ontologias – a do homem e a da mulher.

    A terceira história, aliás, desenvolve de modo algo surpreendente essa hipótese, colocando-nos em presença de uma heroína contadora de histórias – a história é de Ana e, mais uma vez, autodiegética – que se depara com uma situação faustiana a que se submete.

    A intriga não tem continuidade, termina abruptamente, pelo vazio criado pelo encontro com o diabo, mas é muito ilustrativa do processo de distorção dos mitos que Fernanda Botelho usa com alguma assiduidade: o “ser chifrudo” (modo curioso de designar o ser masculino com poder, no contexto) promete a conservação de estado físico e a morte sem dor da narradora. Em troca pede-lhe dois favores: cinco anos da vida dela, a serem usufruídos por ele, e a inclusão da sua pessoa numa história. É claro que o último pedido é inevitável para a história existir – pois já lá está. Mas, na verdade, também tempo de posteridade dado à personagem já está entregue, antecipadamente, como o alento de que toda a história é feita: quando a história acaba, a narradora “morre”, mas a personagem continua viva. O curioso é que também a narradora se mantém viva enquanto dura a história, para lá do negociado, e cada vez que se retoma o acto de contar/ ler, como se descobre aqui, na aritmética da fantasia. E, também, facto de nota, nela se revela a heroína narradora senhora da sua própria morte, porque só sai quando termina a história e não quando “conta” que morreu.

    Em consequência, tal narrativa, tal conversa: o diálogo em que se comenta e aprecia a história arrasta as contadoras para uma conversa interventiva e crítica sobre o mundo de hoje, atenta sobretudo aos poderes do discurso – muito especialmente a comunicação de massas e, nesta, em especial a televisão, com particular incidência no discurso publicitário. No fundo, o que emerge já não é o masculino, como centro do poder, mas o sistema, o “grande irmão que tudo vê e tudo diz”.

    Se encontramos aqui o “papel do escritor encarado com ironia”, já não nos parece tanto que isso decorra de uma “mascarada dramática governada pela lei patriarcal” como sustenta Darlene Sadlier (1989: 35) acerca de Xerazade e os outros. Parece-nos, antes, que Fernanda Botelho se retira, em continuidade do que já acontecia desde Esta noite sonhei com Breugel, para a distância irónica “da escrita hipotética de um livro que se inscreve no texto lado a lado com o acto de escrita da narrativa, numa espécie de jogo entre a fantasia e a realidade” (Isabel Allegro de Magalhães, 1995: 40-41). Talvez, com a entrada em cena do “editor”, distante e quase inacessível figura do “marido” de uma das contadoras-escritoras, se tenha aberto um novo nível da relação (ou do diálogo) entre as personagens que se arrumam como títeres no drama dos poderes, e aqueles que os fazem mover-se.

    Não mudam os argumentos e, em parte, os cenários, como se verá na quarta história, de uma menina feia (não muito, mas assim-assim) que compete pelo seu amor com a sua mãe. O que se estabelece é uma nova perspectiva da profundidade no campo onde as relações se processam. Aparentemente, atrás de cada cena há bastidores onde se localizam os que fazem mover as personagens do plano que o precede: assim, uns regem as personagens do drama “vivencial” do primeiro plano – são os contadores; nos bastidores dos contadores ou narradores cénicos estão os que escrevem; e nos bastidores destes estão os que publicam.

    A este esquema, com níveis que tendem a entender-se como isolados, Fernanda Botelho estende uma armadilha enunciativa: a mistura e a entrada em diálogo dos agentes de todas as cenas e de todos os bastidores. As histórias contadas têm os temas que as contadoras usam para discutir os problemas do mundo; as contadoras são, ao mesmo tempo, a(s) escritora(s); e o marido todo poderoso de uma das contadoras não é um Califa que se limita a escutar (ou ler), pois tem a magia de ser  ele próprio o editor –  eventualmente, de livros e de um jornal…o que nos deixa em aberto um espaço que o romance não explora: o da difusão da opinião, mesmo sobre os livros.

    Esta noite sonhei com Brueghel, publicado em 1987, interrompe um longo período (17 anos) de Fernanda Botelho sem qualquer obra.

    Com a quarta história, é a ganga do romance familiar, tal como ele foi desenvolvido por um certo realismo de pós-guerra, inclusivamente pela própria Fernanda Botelho, que é posto em causa, pela paródia que resulta do esquematismo dos seus termos. Passa-se daquilo que para os críticos da época encontravam na autora, como “denúncia da frustração e da solidão humanas” ou mesmo uma “ética desmistificadamente burguesa, que é o complemento inintencional do neo-realismo” (Saraiva e Lopes, 1996: 1102), para a situação burlesca da Menina Feia, enveredando a história pela pintura do quadro existencial de heroína, que incluía

    “desproporções (..), ausências de harmonia, como a que se verificava, e era bem visível a olhares mesmo desprevenidos, entre o pai e a mãe nada feitos um para o outro: Eram pessoas reais, a mãe e o pai, mas mais pareciam potenciais personagens de um melodrama oitocentista ou de um romanesco de cordel, configurando uma situação assaz explorada pelos comerciais de cliché” (F. Botelho: 1998: 63)

    O cenário do passado, configurador do destino da Menina Feia, desenvolve-se segundo quatro ou cinco “poses” da vida dos pais: o Pai, ex-marialva, decide-se a casar com uma jovem ingénua (Primorzinho) passando à pacatice recolhida da meia-idade. A mãe, pequeno-burguesa ascendida a senhora de solar, pactua com a governanta que, entretanto, contratam, gerando um triângulo de poder, em que as mulheres se aliam contra o senhor da casa: a prefiguração explicitada pela narradora é a do modelo romanesco da Rebecca (referência evidente à personagem que dá nome ao romance de Du Maurier e ao filme de Hitchcock).

    É no desprezo que a mãe castradora (e esposa infiel, aliás) – que lhe inibe, inclusive, a vocação para a escrita – que a personagem cresce. Entra no meio estudantil, vai a Paris, conhece, na festa de anos de uma das suas colegas, modelo de sedução feminina que ela vai imitando, um belo jovem sedutor, namora com ele, algo às escondidas da mãe, e prepara-se para casar com ele.

    É a partir desse momento que a situação se complica dramaticamente, pois a Menina Feia descobre que, entretanto, a mão lhe seduzira o noivo e andava numa cálida relação de cama com ele. Primeiro reage emocionalmente, zanga-se com a mãe, tem mesmo um confronto com o marido, já depois de casados, mas, no final, tudo volta à paz consentida, resolvendo-se o convívio do casal num entendimento de domínio patriarcal moderno, com uma aparente liberdade social da “mulher”, que se traduz pelo bom comportamento resignado da “esposa”, sem histórias nem desejos.

    As considerações que tecem sobre o modelo moderno dessa vivência em casal, apresentada na quarta história, leva as três contadoras a proporem mais uma história que é contada, em quatro partes, por duas delas, Isa e Ana. Desta vez, a complexidade do fio narrativo aponta para um conjunto de situações que mistura o conto fantástico, a história de cordel do romance familiar e o romance realista de costumes: o enjeitamento, a vida economicamente débil, o convívio com as crenças populares mais obscurantistas e a própria magia cruzam-se numa narrativa que, em tudo, parece ser oriunda do universo de vivência da principal contadora desta história, Isa, ou de uma personagem “real” do conhecimento dessa contadora. O que nos leva a pensar isso é o facto de, nas referências que a narradora faz, se evidenciem vários elementos que coincidem com a contadora que seria a “autora” dessa história (facto que, com menos persistência, já era notório na primeira história): o interesse pela filosofia, a situação universitária, a opinião sobre o casamento.

    Uma nota curiosa é o facto de o processo das Mil e uma noites se tornar mais evidente aqui: cada uma das personagens da história conta a sua própria história, ao ponto de se confundir, muitas vezes, a personagem a que pertence a voz autodiegética do primeiro nível com as personagens que ela própria põe em cena a contar. Mas o efeito mais impressionante é o que resulta de a vida e o “mistério” que rodeia cada uma das vidas, como uma aura, emergir como história contada, rodeada dos seus enigmas provocados por silêncios, omissões ou elipses – que geram novas sugestões que apontam para novos mistérios.

    Dramaticamente vestida de negro foi o penúltimo romance de Fernanda Botelho, com o qual venceu o Prémio PEN Clube Português de Narrativa em 1995.

    De algum modo, esta história, pelo tom labiríntico dos percursos femininos que apresenta, pode considerar-se central para a introdução do sistema cénico que acaba por se revelar: o de que, em cada uma das histórias contadas está, como alibi ou como adivinha, uma parte das vidas de uma das contadoras, ficando sugerido, nas entrelinhas das próprias histórias, estar representada, também, a situação vivencial do seu convívio como autoras. Por exemplo, no remate da sequência de eventos contados pela Jovial Mamãzinha, a narradora que narra o que a outra narra, ao dar-lhe, por vezes, a palavra, simula situar-se numa relação com uma Amiga com a qual se abre, contando como essa amiga a convida, e a uma outra, para irem jantar a casa dela.

    Nesse serão, projecta a anfitriã apresentar o marido a ambas e sugere que a narradora da quinta história se deixe seduzir e vá para a cama com ele. Ora, tal ideia empolga a narradora. Na conversa que se segue à história contada, as contadoras de histórias reagem de modo comprometido:

    “Ana diz:/ – Um tanto prolixo mas realista/ (Eva, pelo que se deduz) Confesso que gostei muito do empolgamento final com que a narradora aceita o desafio. (…)/Isa (que contou esta primeira parte da quinta história) interrompe: – É conveniente ver tudo isto a uma luz despersonalizada. Estamos a contar histórias, não autobiografias./(…)./ – Bem, meninas (diz Eva), o nosso jantar é, se estiverem de acordo, na próxima terça-feira. Vão conhecer o meu marido, portem-se bem. É ele quem vai editar as nossas histórias, embora ainda não saiba “ (F. Botelho, 1998: 121).

    Estamos longe, como se vê, das “personagens autênticas, humanas, que a autora, com corajosa sinceridade, põe a falar para nós”, na esteira da geração da Presença, como afirmou, acerca de Ângulo raso, Manuel Poppe (1982: 113). Estamos no universo da insinceridade, da ambiguidade, das propostas equívocas, das coincidências fabulosas, das histórias contadas que enleiam as contadoras, como gestos de magia. A fidelidade não parece ser uma virtude, a constância é um tédio e a sinceridade impossível.

    Para apanhar o fio das vidas, possíveis e impossíveis, os mundos alternativos tecidos dos passados hipotéticos para os futuros duvidosos, é preciso tecer as histórias, deixar-se envolver por elas. E, para poder publicar as histórias, como se percebe do seguimento da conversa de que citámos apenas um bocado, é preciso seduzir um homem, acariciando-lhe a gata chamada Anilina – a qual, segundo a esposa, muito se assemelha à que deveria possuir uma certa senhora com quem ela tinha visto o marido, pouco tempo antes, em efusiva despedida. Nesta associação, do anil à mulher, através do nome da gata, vemos como a efabulação se constrói e rumina (ou germina!) no romanesco de Fernanda Botelho.

    E, já que a questão é mais uma vez a enigmática gata, que atravessa o universo romanesco da autora, detenhamo-nos um pouco nela.  O primeiro momento em que a vemos surgir, em configuração forte, é num romance já bem antigo da autora, A gata e a fábula. Já nessa altura, talvez para desespero de quem encarava a ficção da autora nos labirintos angulares da sinceridade, a fábula toma a gata como enigma sinuoso, longe das directas representações expressivas, ou mesmo das determinações articuladas do simbólico.

    A imagem surge com toda a força ambígua da parábola de sentido indeterminado, nos jogos de sombra. Toda a memória acerca da mulher, como enigma, surge por detrás da gata, sombra na noite com que a personagem Duarte Henrique de A Gata e a fábula se debate: “Os olhos enormes e tão vivos pareciam ter absorvido todo o negrume do inferno prometido; ao fixá-lo – despojo inerte e miserável – eriçava-se o pelo do Inimigo e, do rasgão que lhe servia de boca, saíam uns uivos roucos (…)” (1960: 64). Logo de seguida é a imagem da mulher, como susto, que o atormente, indistintamente, intermitentemente humana e felina, numa vacilação de imagens intercambiantes: “Henriqueta evolou-se. Henriqueta fugiu. A gata voltou a fixá-lo, ávida. Depois, rosnando, afastou-se. Mas Henriqueta já desaparecera e era agora a Gata que o fixava, ávida e provocante.

    Em Janeiro a gata procurara o menino bom” (p. 67). Mas é no sistema das relações em que interfere que a gata parece assumir a mais densa e enigmática significação, surgindo como ocorrência de todas as mulheres, no seu versátil movimento terrestre, como se a carne fosse, nelas, força envolvente, simultaneamente corpórea e etérea: “Enrosca-se ainda mais, aliciante; o menino bom reduz-se, medroso; e, enquanto a gata se enrosca cada vez mais, cada vez mais ele se vai reduzindo” (p. 68). E a fábula surge como narrativa onde a fantasia se torna fantasma: Paulinha ri em surdina, sem contenção. A gata é já ratoeira e o ratinho repudia-a” (p. 68).

    Gritos da minha dança, última obra de Fernanda Botelho, publicada originalmente em 2003, e reeditada em 2020 pela Abysmo.

    Poderíamos, tal como o perspectivaram alguns críticos do seu tempo, encarar um tal devaneio (que até ocorre num momento de embriaguez da personagem), simplesmente como um modo de operar a “radiografia psicológica” da sua geração, como, lapidarmente, propõe Poppe: “As personagens de Fernanda Botelho traduzem hesitações, dúvidas, angústias, dificuldades em crescer(…).” (1982:113). Mas o certo é que a recorrência de tal motivo, retomado em muitas das suas histórias, com curiosas ambivalências (em Xerazade…, por exemplo, o gato da “Velha que tinha um gato”, é macho e chama-se Saturno) levanta-nos dúvidas quanto ao estatuto que tem tal motivo, o qual, provisoriamente, adjectivaríamos como errático. É com tal atributo que o motivo percorre a obra e surge, mais uma vez (aliás, duas: no nível diegético das narradoras e como metáfora da relação amorosa na segunda história), em As contadoras de histórias.

    Não é fácil dizer porque é que a gata surge no meio das cenas finais das contadoras, qual é exactamente o seu estatuto – mas o certo é que o animal se vai tornar o propiciador do favor editorial. Mais uma vez, a sua ambivalência é curiosa: por um lado representa a mulher, a “anilada” (traduzindo o – vulgo: “platinada”) mas é a metonímia do homem: animal heráldico, quase, no modo como o escolta – ou escuda, uma vez que o “marido” o traz ao colo.

    Devemos notar que quando colocamos o marido entre comas estamos a tentar especificar uma operação de duplicação diegética: se o marido que a contadora dizia que devia ser seduzido através da gata era o seu (primeira instância diegética), o marido que surge textualmente primeiro, com uma gata ao colo, é da Amiga anfitriã do Primeiro Prolongamento da Quinta História, contado por Isa: “Ele traz um felino ao colo e um sorriso nos lábios” (p.132). O sexo do bicho não é logo definido, o que introduz uma cadeia de equívocos. Mas é a felinidade que importa:

     “Demorado nos gestos e no caminhar, no acariciar o lombo do felino e no estender a mão para o cumprimento, quando a Amiga no-lo apresenta (…). E ali começo a afagar o bichinho, que era aliás uma bichinha, uma coisa felpuda e arisca, olhar inamistoso. O olhar do dono esse não, é aveludado como lombo da gata quando lhe passo a mão por cima (do lombo, claro)” – p.133       

    As qualidades felinas, se nos aparecem quase como essências do feminino, permutam-se com as do dono. Não parece poder estabelecer-se uma simbologia com modelos remissivos estabilizados. Antes se podem perceber as vacilações dos atributos oscilantes, uma espécie de valores proteiformes que emanariam de uma felinidade cósmica, associáveis, na maioria dos casos, a modos de estar muito gerais, constituintes de uma esfera em que o etéreo se confunde com a mais profunda materialidade, em que a espiritualidade se faz sentir sobretudo pelos movimentos voluptuosos da carne. A felinidade, em Fernanda Botelho, parece partilhar das qualidades  que Baudelaire evoca no seu célebre soneto « Les Chats»: “Amis de la science et de la volupté,/ ils cherchent le silence et l´horreur des ténèbres;/(…)Ils prennent en songeant les nobles attitudes/des grands sphinx allongés au fond des solitudes,/ qui semblent s´endormir dans un rêve sans fin ».

    Em grande parte, parece-nos passar por aí a formulação da enigmática felinidade. De acordo com Jakobson e Lévi Strauss, “nesse soneto, todas as personagens são do género masculino, mas os gatos e os seus alter ego, as grandes esfinges, participam de uma natureza andrógina” (Jakobson, 1973: 418). Consideram os mesmos autores que no texto de Baudelaire que citámos acima, “os gatos permitem, através da sua mediação, eliminar a mulher, deixando, face a face – ou até mesmo confundidos – «o poeta dos Chats», liberto do amor «muito restrito», e o universo, libertado da austeridade do sábio” (1973: 419). Se invertêssemos, simetricamente, o lugar do homem e o da mulher – ou seja, no lugar do poeta colocássemos a(s) contadora(s) – poderíamos dizer que o enunciado se aplicaria quase integralmente ao motivo obsessivo e itinerante ou errático de Fernanda Botelho.

    Mas também poderíamos alegar, observando a fecundidade do imaginário que envolve os felinos fabulosos da romancista portuguesa, que a herança baudelairiana foi absorvida e enriquecida por ela. Numa dimensão de presságio trágico, de múltiplas e complexas radicações simbólicas, em torno duma fixação de pesadelo do “protagonista” em Lourenço é nome de jogral, os gatos negros aparecem “de todas as idades, de todos os tamanhos, mortos na sua maioria, alguns moribundos, (…) estripados alguns” (1971: 75). Um tal massacre leva um amigo de Lourenço a perguntar-lhe que interpretação dá ele a isso, adiantando um sumário das possíveis virtualidades simbólicas:

    Casa onde viveu Fernanda Botelho na localidade de Vermelha, no concelho do Cadaval, foi transformada em casa-museu, por iniciativa da Associação Gritos da Minha Dança e de Joana Botelho, neta da escritora.

    “«O gato, que é felino e negro, representa um enviado de Satanás. A manha, a bajulação, o olhar fulgurante e perverso, a traição… Digamos que o gato – negro e felino – surge como a força do mal, disfarçado em veludo, para que melhor sucumbamos ao seu fascínio. Mas o gato – negro, felino e força do mal – é um animal doméstico; quer dizer, ao coabitar com o homem adapta-se à civilização e torna-se aparentemente respeitável. E será a crueldade exercida sobre essa aparência que nos parecerá chocante. Podemos agora considerar o gato como simples vítima…»” (p. 76)        

    É claro que Lourenço interrompe a definição, para dizer “«Não creio que seja nada disso»” – no entanto alguns itens estão lançados como possíveis redutos semânticos que sempre emergem em torno da imagem dos felinos: a felinidade, “a manha, a bajulação, o olhar fulgurante e perverso, a traição, o disfarce de veludo para que melhor sucumbamos ao seu fascínio”. O que resta saber é se o chocante no massacre é, de facto, ele exercer-se sobre a “aparência respeitável”. Ou, ao contrário, se a emergência do gato não arrasta toda a região do indizível, do culturalmente impronunciável:  o que se diz, para esconjuro, ser o mal,e que se revela, por sob os enleios da volúpia, a omnipresença da carne – e que o chocante seja exactamente reprimir uma tal dimensão do humano.

    Por outro lado, o ritual da felinidade, parece afirmar-nos com maior convicção e dimensão paródica As contadoras de histórias, não é mais, afinal, do que a entrada em cena do Eros e dos enleios da sedução, para estender ao universo dos poderes (os negócios) os benefícios dos prazeres (dos ócios). Como as gatas das fábulas sempre vaticinam, para lá dos deleites do corpo e do espírito estão as infernais sinuosidades do desejo irrefreável.

    Ora, é dessa marginalidade, relativamente à dimensão cultural domesticada, que os felinos – e a felinidade – adquirem o poder de ultrapassar barreiras, mesmo as mais complexas e irredutíveis: se surgem no “real”, sugerem o fantástico; quando aí se formulam, tornam-se fabulosos; dentro de uma fábula passam para outra – e, dentro da fábula que contem todas as fábulas, como acontece em As contadoras de histórias, permitem que a ficção escrita passe ao estado de publicada.

    Interior da casa onde viveu Fernda Botelho, agora casa-museu com o seu nome.

    Em última análise, os felinos são os propiciadores do contacto entre o acto poético e o real que o inscreve e, ao que parece, transitam de um plano para outro, com toda a ligeireza. Se eles não representam os factos do acto poético e criativo tal como se passam na realidade e na ficção que se quer fiel à representação do real – representam, pelo menos, com extrema feli-cidade, todo o complexo anelo do acto poético: gerar o imaginário e o fantástico e transmiti-lo.

    Por outro lado, e para terminar, não podemos deixar de pensar nesta felinidade errática presente em tantos pontos da obra da autora, sem que nos venham ao espírito dois ditos. Um é: “gato escondido com o rabo de fora”. O outro conhecemo-lo enunciado em italiano: “questa coda non è de questo gatto”. O curioso é que se um fala da suspeita de uma presença, anunciada por um atributo difícil de esconder, o outro fala de um desajuste entre o que é atribuído como complemento presumível e o que se tem como certo que seria seu atributo – mas não é. A nossa tentação é ver neste assinalar-se esconder-se do gato, o terrível evidenciar-se e esconder-se da autora…ou o seu esvanecer-se como o gato de Cheshire, inventado pelo reverendo Dodgeson, e que tanta perplexidade causava a Alice.

    Mas deixamos a continuação de tais conjecturas ao leitor, uma vez que já o alertámos para tais meandros. Insistir seria, talvez, contraproducente, pois como diz outro ditado – gato escaldado de água fria tem medo.Porque é verdade, também, que, quando há gato, começam os provérbios. Quase diríamos que, realmente, eles surgem como erva daninha, por vezes do nada e até sem querer. E o crítico arrisca-se a ficar sentencioso.   

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia passiva:

    Carmo, José Palla, 1971, Do livro à leitura, Europa-América, Lisboa

    Deleuze, 1985, La logique du sens, UGE/col 10/18, Paris

    Jakobson, Roman, 1973, Questions de poétique, Seuil, Paris

    Magalhães, Isabel Alegro de, 1995, O sexo dos textos, Caminho, Lisboa

    Popp, Manuel, 1982, Temas de literatura viva, IN/CM, Lisboa

    Sadlier, Darlene J., 1989, The Question of How – women writers and new portuguese literature, Greenwood, New York/London

    Saraiva, A. J. e Óscar Lopes, 1996 (17ª edição) História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, Porto

    Todorov, Tzvetan, 1971, Poétique de la prose, Seuil, Paris

    Bibliografia activa:  ver nota 1


    [1] Embora não seja nosso propósito tratar aqui toda a obra da autora e, além do seu último romance, apenas refiramos brevemente um ou outro aspecto pontual de outras obras, de acordo com a conveniência da nossa exposição, aqui deixamos, como referência, pretendendo apenas actualizar dados para o leitor menos prevenido, a lista das obras da autora que nos foi possível apurar: As coordenadas líricas (poesia), Távola Redonda,  Lisboa, 1951; O enigma das sete alíneas (novela), Graal nº 1, Lisboa, 1956; O ângulo raso (romance), Bertrand, Lisboa, 1957; Calendário privado (romance), Bertrand, Lisboa, 1958; A gata e a fábula (romance), Bertrand, Lisboa, 1960; Xerazade e os outros (romance), Bertrand, Lisboa, 1964; Terra sem música (romance), Bertrand, Lisboa, 1969; Lourenço é nome de jogral (romance), Bertrand, 1971; Esta noite sonhei com Brueghel,  (romance),  Contexto, Lisboa,  1987;  Festa em casa de Flores (romance), Contexto,  Lisboa, 1990;  Dramaticamente vestida de negro (romance), Contexto,  Lisboa 1994; e As contadoras de histórias (romance), Presença, Lisboa, 1998      

  • Almeida Faria

    Almeida Faria


    Quando, em 1962, Almeida Faria, nascido em 1943, publicou o seu primeiro romance, Rumor Branco, a opinião da crítica em geral foi a de um entusiasmo sem reservas. Não existe uma só nota de reserva, entre os vários comentários que, por essa altura, eram dignos de respeito. Entre os leitores mais atentos de então o romance foi considerado uma obra profundamente inovadora nas nossas letras.

    A maior parte dos estudiosos e críticos que, na década de 60, deixaram a sua opinião registada sobre o primeiro texto que Almeida Faria publicou, contam-se leitores exigentes como Vergílio Ferreira, Alexandre Pinheiro Torres e Leodegário de Azevedo Filho. Não obstante a frontalidade com que os dois primeiros discordavam, por razões históricas e culturais várias e complexas, ambos colocaram, desde logo, o romance Rumor Branco entre as grandes obras que aquela década vira nascer.

    Almeida Faria nasceu em 1943.

    A Sociedade Portuguesa de Escritores atribuiu-lhe, nesse mesmo ano, o Prémio Revelação. Na sua apreciação do mesmo texto de Almeida Faria, publicado alguns anos mais tarde, Leodegário de Azevedo Filho afirma: “Rumor Branco é, antes de tudo, uma experiência de linguagem, colocada em plano estético e capaz de trazer novas energias ao género”.

    O carácter profundamente inovador das narrativas de Almeida Faria, que publicou o romance já referido com 19 anos de idade, foi sobejamente enfatizado por Vergílio Ferreira, e confirmado por Óscar Lopes no prefacio ao segundo romance do jovem autor, A Paixão,publicado três anos depois. Uma assimilação profunda, inteligente e criativa dos mais ousados códigos regeneradores criados pela narrativa modernista que então se colocava na vanguarda, era reconhecida por todos os críticos e historiadores literários de então.

    De facto, embora se situasse abertamente num campo temático e de referências através do qual os seus romances se mantinham próximos do neo-realismo, Almeida Faria desenvolvia francamente a sintaxe narrativa e a perspectiva lírica da enunciação romanesca segundo novas influências onde se destacavam sobretudo os processos de criação poéticos típicos de Proust, de Joyce, de Faulkner e de alguns mestres do nouveau roman.

    Embora a vertente lírica da narração tivesse sido o aspecto que mais marcou a sua escrita nos primeiros textos que publicou, aspecto que, provavelmente, terá levado Vergílio Ferreira prefaciar-lhe a primeira versão de Rumor Branco, a criação poética de Almeida Faria não se manteve numa fórmula fixa de procedimento romanesco.

    A revisão profunda que faz ao seu primeiro romance e a escrita de Cortes, romance onde parece desenvolver uma deliberada secura verbal por oposição à discursividade através da qual a dimensão passional e irracionalizante se tornava dominante na sua primeira produção romanesca, revelam uma preocupação do escritor em renovar a sua poética.

    Essa nova fase de escrita, que ele assume como “libertina”, expressa como programa mais evidente a vontade de retomada de valores filosóficos e estéticos que se reportam à grande produção romanesca do século XVIII.

    Rumor Branco foi publicado originalmente em 1962.

    Está em causa, evidentemente, um programa de criação poética que, sem se ligar excessivamente à tradição mais banalizada do realismo, na continuidade do romance realista oitocentista, retome alguns dos processos esquecidos das fontes do racionalismo europeu, funda a modernidade, com duas linhagens que o modernismo esqueceu: a do romance de aprendizagem e a da narrativa libertina.

    Nesta última dimensão, podemos dizer que a sua obra se desenvolve unitariamente num ciclo ou trilogia, a que chamou Lusitana e que se compõe de três romances: Cortes (1978, prémio Aquilino Ribeiro da Academia das Ciências de Libo – prefaciado por Manuel Gusmão em 1986), Lusitânia (1980, prémio D. Dinis, da Casa de Mateus, prefaciado por Luís de Sousa Rebelo) e Cavaleiro Andante, (prémio Originais de Ficção da APE).

    Considerando, no entanto, a produção da obra de Almeida Faria como um conjunto unitário, não nos devemos deixar arrastas por um simplismo que deixe supor dois ciclos claramente distintos: um, inicial, em que o corpus seria a própria linguagem, tomada como objecto, e outra em que a história contada se revelaria a matéria mais importante.

    De facto, a evolução de Almeida Faria, problematizando as relações entre as histórias contadas, a linguagem em processo, a voz narrativa e a historicidade em que a produção se afirma, é fundamentalmente a de um discurso literário em permanente interrogação dos valores que mobiliza a vários níveis. Estão sempre em causa, nas suas obras, as relações que a produção literária estabelece com o universo social em que emerge, convocando, frontalmente, quer os valores ideológicos que se apresentam como tradição, quer os que emergem como questionamentos desses mesmos valores.

    É desse modo que, por exemplo, Óscar Lopes o vê, em 1963, logo na data de publicação do seu primeiro romance. Ultrapassando a novidade espectacular que a nova escrita propõe, com as suas rupturas, quer em relação à gramática da narrativa quer à da sintaxe ou mesmo à da ortografia, o crítico português reconhece que o romance “exprime (…) um movimento geral de assimilação e crescimento integral humano”. Reconhece ele, no processo fabulatório, a base expressiva dos “termos religiosos da tradição cristã” em fusão com a “divinização da ansiada unidade amorosa”.

    A ligação desta problemática com a da dimensão social, ou mesmo sócio-política, torna-se mais evidente no romance seguinte: a Paixão. Romance em que a multiplicidade das vozes se cruza num modelo que, resumidamente, poderíamos dizer remeter para o As I Lay Dying, de Faulkner, nele se expressa “o sonho prometeico, ou luciferino, da omnipotência humana” o qual, nas palavras do mesmo Óscar Lopes, que vimos citando livremente, “é comum a todas as mitologias”. Por isso, Almeida Faria o lê na ressurreição que evoca como sequência da “Paixão”, que ele vê, no plano da História, como síntese de todos os sofrimentos, partilhas e compaixões fraternas.

    A Paixão, segundo romance de Almeida Faria publicado em 1965.

    O romance seguinte, Cortes, pode ser entendido, a partir do seu título, em três dimensões distintas: uma que tenha como objecto central a obra do autor; outra que o encare como um  índice a acirrar do modelo das múltiplas vozes e perspectivas que, ao contrário de A Paixão, não se encontram em comunhão, mas sim em confronto; e uma terceira que assuma o título a partir do próprio nível elementar da escrita – ou seja, propondo uma passagem de um discurso emotivo, marcado pela passionalidade e até por um fluir verbal ao sabor do dizer como prazer da dicção, para uma escrita vigiada, avara, racionalmente vigiada.

    Digamos que a segunda perspectiva é a que poeticamente se revela mais interessante. Porque conceptualiza o sentido de “corte” como “discurso de ferida ou de violência que a ruptura provoca” e, segundo Maria Alzira Seixo, dado que, por esse mecanismo, “cada capítulo funciona, não como um degrau narrativo (…) mas fundamentalmente como espaço da contra-di(c)ção que em si desenha (…) oposições significantes” (Seixo, 1986: 194), tal perspectiva é a que mais amplamente revela o processo criativo.

    É segundo esta reformulação da multiplicidade de perspectivas e vozes que a obra de Almeida Faria acaba por se desenvolver, em direcção ao projecto “libertino”, segundo o qual as racionalidades emergem como “re-corte”.

    Decorre desta vontade poética, pensamos, a terceira perspectiva por nós proposta, de encarar uma mudança, ou inflexão, na obra do autor, em direcção a modelos sintáctico-discursivos mais regulados pela racionalidade, abandonando registos que, por simplificação, poderíamos designar como imitadores dos processos da “corrente de consciência” ou mesmo do fluir de uma verbalidade pré-consciente ou mesmo, por sugestão figurativa, inconsciente.

    Contudo, parece-nos digno de nota que, por recurso analógico, ou seja, de lançar mão à metáfora, se possa entender o “corte” como o processo segundo o qual o autor procura “arrumar” a sua obra em “logias”.

    Primeiro, projectando uma trilogia da Paixão de que Cortes seria o segundo volume (e A Paixão o primeiro, obviamente); depois, enveredando por uma decisão editorial de fazer a Trilogia Lusitana, acaba por arredar A Paixão, como elemento central, dando nome ao conjunto, acabando por encerrando a série, já tetralogia, com O Cavaleiro Andante, depois do romance Lusitânia, com o qual pensara, primeiro, encerrar a série.

    Poderíamos um dia, num outro espaço e lugar, interrogar o jogo de paixão e de corte que tal ajustamento representa na obra do autor. Ou então o que representa uma hesitação entre uma Tetralogia Lusitana, incluindo A Paixão, e a Trilogia Lusitana, que, como tal, foi publicada.

    De qualquer modo, todo um processo de transformação do conjunto se continua a desenvolver com a produção e publicação dos volumes seguintes. Cada um deles gera novos projectos e amplia a matéria romanesca começada em A Paixão: desenvolvimento de uma história familiar que se prolonga e transformação dos processos poéticos que a dá a ver.

    Publicado em 1980, Lusitânia recebeu o Prémio Dom Dinis da Fundação da Casa de Mateus.

    Efectivamente, em relação à matéria ficcional criada, o que se dá é o processo já não apenas do corte mas, mais acentuado, o do afastamento. Lusitânia, segundo volume da trilogia (terceiro da tetralogia, se esta existir no projecto autoral), aponta-nos, pelo próprio processo de representação textual escolhido – a troca de cartas entre as várias personagens, confronto de discursos à maneira setecentista de um Laclos, por exemplo – a distância que separa as personagens de uma “Lusitânia” em diáspora.

    Os discursos cruzam-se entre Portugal, Itália e Angola. Em Portugal a correspondência tenta superar a distância entre Lisboa e Montemínimo.

    A partir de Lusitânia, mas ainda dentro da unidade “tri” ou tetralógica, a temática deixa de ser estruturada no sistema dominante do discurso cruzado. A errância passa ser o modelo formal do processo romanesco. A distância, a ruptura, a perda ou o estado de exílio fazem-se representar por um processo que poderia ser designado pelo título do último volume – até à data, claro, nada impede que um outro surja, um dia – do conjunto: O Cavaleiro Andante.

    Curiosamente, este último texto pode ser assimilável, por alguns dos processos formais que desenvolve, à última obra romanesca publicada pelo autor até à data: O Conquistador. Dado que este texto, quanto à matéria, já não se integra no ciclo “lusitano” dos anteriores, poderemos pensar num próximo ciclo romanesco, como que em secância, recortando-se a partir do anterior? Talvez. E é, julgamos, a capacidade de produzir uma obra em permanente estado de formação estrutural e abertura inovadora que tem caracterizado a imensa qualidade da produção de Almeida Faria.

    Um dos aspectos que mais insistentemente tem atraído a atenção dos críticos que se debruçam sobre a obra de Almeida Faria decorre, como consideração generalizadora, dessa qualidade. Para quase todos, este autor que, desde o primeiro momento, Vergílio Ferreira reconheceu como imensamente prometedor, tem apresentado o encanto do grande desafio que é a criação de um universo através do qual o destino do homem se interroga, originando, ao mesmo tempo, um modelo representativo, uma linguagem poética que questiona e reactiva os processos de a literatura se fazer.

    Podemos assinalar ainda, como trabalhos seus de importante projecção cultural, o conto Os passeios do sonhador solitário (1982), devaneios, à moda iluminista de Rousseau, como ela próprio reconhece, a partir da pintura de Mário Botas, uma quase que ekfrasis com subtítulo Conto e Libreto; o ensaio de apresentação de Spleen de Mário Botas, “Do poeta-pintor ao pintor poeta”; duas peças de teatro, A Reviravolta, 1999 e Vozes da Paixão, 1998, versão teatral do seu romance, Paixão; e vários textos de intervenção sobre a literatura e a cultura portuguesa publicados em volumes colectivos e jornais.

    Autor com uma carreira plena, tendo interrompido a escrita de ficção numa idade em que muitos outros estão quase no começo, Almeida Faria pode ter ainda algo a acrescentar à sua obra. Seja o que for, pelo que já é patente, será sempre um elemento importante na literatura portuguesa – por alargamento, uma peça considerável da nossa cultura.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Seixo, Maria Alzira, 1986, A palavra do romance, Horizonte, Lisboa

  • Herberto Helder

    Herberto Helder


    Sem pretendermos fazer qualquer aproximação específica, que seria abusiva para lá de toda a semelhança que existe entre todas as manifestações singulares, na difusa categorização genológica de arte, ocorre-nos, na leitura deste longo poema de Herberto Helder, a lapidar conclusão que Blanchot apresenta de uma leitura de um fragmento de Kafka:

    Não se pode escrever senão quando estamos senhores de nós próprios diante da morte e apenas quando estabelecermos com ela relações de soberania. Se, diante dela, perdemos a continência, não a podemos conter, então ela tira-nos as palavras da caneta, corta-nos a palavra; o escritor não escreve mais, grita, um grito confuso que ninguém percebe e que não emociona ninguém. Kafka sente aqui profundamente que a arte é relação com a morte. Porquê a morte? Porque ela é o extremo. Quem dispõe dela dispõe de si, está ligado a tudo o que pode, é integralmente poder. A arte é o domínio do momento supremo, supremo domínio” (L’éspace Littéraire. Idées. Gallimar, p. 107).

    Não nos parece nada descabido aproximar o conceito de ciência última do  de supremo domínio, propondo uma visão global, de um poeta dificilmente cernível no conjunto da sua obra. E isto  a propósito do livro que aponta, exactamente, para um entendimento encerrado, Última  ciência, embora, ironicamente, negando qualquer desfecho.  Não cremos sequer que seja necessário determinar a autoridade nietzschiana para encontrar, na busca do saber, o poder, o qual seria o campo de valências onde a indeterminação, eventualmente, nasceria, já que sobre a aproximação de última e extremo ou supremo parece não haver dúvidas.

    É o próprio texto, porém, que liminarmente e lapidarmente no-lo diz, se os símbolos e a topografia do corpo não mentem, ou não são vazios incipit.  “Com uma rosa no fundo da cabeça, que maneira obscura de morte”. Não nos parece que estejamos aqui muito longe de  uma sabedoria de ocultas dimensões, antecâmara de um encontro nupcial com a sageza dos ocultos domínios. Duas personagens enchem permanentemente a cena da visão do saber que o livro patenteia: o eu da enunciação e a criança de múltiplos poderes que parece constituir a figura actancial privilegiada de relação com o cosmo e muito primordialmente com a origem matricial: a mãe, a placenta, a madeira, os minerais e os próprios astros e as suas propriedades.

    Não é possível aludir a esta poesia carregada de simbologias altamente codificadas e de
    metáforas profundamente inaugurais, ordenadas em sistemas de uma sumptuosidade que já
    foi notada, por exemplo, por Gastão Cruz, numa pequena nota publicada em Phala n.” 11, sem fazer referência ao discurso alquímico, subjacente que parece ser o manancial imaginário forte, a carne e o plasma do texto de Helder.

    Última ciência foi publicado em 1988.

    Contudo, embora a profusão de rosas, e outras corolas matriciais, de pedras rutilantes, de metais preciosos, de leões de pedra, leopardos, formações cristalográficas e estátuas, de calcinações em dinâmicas figuras, e de outros elementos significativos, seja bastante grande para poder ser ignorada, ou minimizada, como lista ocasional ou frágeis ressonâncias semânticas e se apresente, antes, como paradigma amplamente declinado em ressonâncias poderosa no corpo do poema, é preciso fazer um reparo fundamental no caso presente: nunca o corpus simbólico pré-existente condiciona o processo do poema, nunca a produção verbal de Herberto Helder fica condicionada pelos elementos de sacralidade com que se confronta.         

    Diríamos quase (e, para isso, relendo algumas das versões de As magias,arte poética última insistentemente republicada com acrescentos) que a ciência da máquina-lírica,  oráculo que, electrónico ou flogístico, parece ter sempre iluminado, com a sua sombra, a poéticado autor, se apurou no horizonte com a alquimia onde o verbo encontrou a negação de um discurso dialógico. O Iniji emerge (ciência primeira) com um romper de “um lento nevoeiro roçando a face da matéria. Era possível que nos confundíssemos com os torrões e calhaus.

    Não havia nenhuma ciência, nenhuma lembrança” (As Magias, p. 11). No horizonte do sujeito poético emerge essa imensidão de uma sabedoria imemorial, uma língua que “não era de sedução para subornar, ou para dominar. Dela provinham as palavras (…) Existiam ao mesmo tempo que a vida não desligadas dela. Eram uma dança, uma natação, um voo, um movimento” (As Magias, pp 11-12). Sem afirmar aqui a metafísica implícita do autor, mas procurando antes vislumbrar o sistema de trabalho do seu “forno”, da sua “retorta”, dos seus “fluidos”, parece-nos de considerar que para Herberto Helder a gramática do saber original se postula como horizonte, como matriz no cosmo, origem do discurso poético, ainda que o forjar deste, preso embora à sacralidade e ao deslumbramento, nunca seja seu servo ou submisso repetidor.

    Atrever-nos-íamos mesmo a afirmar que (perdoe-se-nos o sacrilégio), tal como os grandes poetas místicos de outrora, cátaros ou cristãos de outras doxas mais ou menos tuteladas, Herberto Helder se serve, notoriamente em Última ciência, do discurso sagrado dos símbolos de acesso à obra de transfiguração para com eles dar inicio à sua obra própria.

    Toda a ordem litúrgica, toda a simbologia verbal de frase feita de fórmula lapidar é aqui submetida a uma segunda ordem de transformação perturbadora, reformuladora dos elementos essenciais de forma a atingir-se um novo plano de reelaboração do cosmo. E pensamos mesmo que, se em relação a ele tem todo o sentido falar do orfismo, isso deve-se, em grande parte a essa sua capacidade de transformar todo o canto, em canto próprio: verbo ritmo, ressonância cósmica.

    Se Iniji é o saber antigo, original, matricial de onde emanam os sentidos da palavra assumida no puro evanescimento do seu valor próprio, a arte poética, dimensão rutilante da poesia, é esse diálogo com as sombras e com a luz a partir dos dados interiores da sua fundação, do seu mistério, aí, onde ela é magia. E magia não é um antes da palavra, um vazio, um branco, uma ausência, um nada. Ela só é possível quando se sabe e se assume que a transfiguração é a das palavras e que no ofício divino, na mestria do universo, quer o diálogo seja com as sombras quer com a luz ou com os deuses “cada imagem é a cicatriz de outra imagem” e que “a mão experimental se transforma ao serviço escrito das vozes”.

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    Numa obra que nunca se recusou a qualquer das experiências dos limites (e sempre, da abjecção à alquimia, o grande limite é o de “uma vida selada”), este texto de Herberto Helder aparece-nos como mais um curioso culminar. Para um poeta que já se silenciou tantas vezes, não sabemos nunca como olhar através dos seus escritos que se querem últimos. É ainda em Ultima ciência que lemos o oráculo do discurso da morte que, aí, cicatriz de uma imagem de fim, nos afirma “inocente … Arte de redacção: ver isto, ver a morte – dar-lhe um nome de diamante com o nervo dentro” (p. 43). Voltará depois da morte conhecida e dominada?

    Segundo Eco, na “sociedade de massas, na época da civilização industrial, observamos um processo de mitificação afim ao das sociedades primitivas e que, todavia, no início, procede muitas vezes segundo a mecânica mitopoética posta em prática pelo poeta moderno” (1991: 250), parece-nos interessante observar como nesta actualidade se apresentam alguns procedimentos ou figuras variantes  das metamorfoses (a transfiguração, a camuflagem, o disfarce, a máscara ou a ocultação), quando elas se reformulam nos espaços modernos das cidades, numa partilha entre os mistérios nocturnos, da esfera órfica e infernal, e o bulício urbano, em que ao confronto tradicional do cidadão e do seu vizinho, desde a Antiguidade (o «ateniense», o «romano») até à Revolução Francesa (o «burguês») se opõe o face a face,  entre o anonimato do próximo como ente emergente da multidão (a sempre ameaçadora hipótese de uma alteridade estranha e inquietante), e o sujeito que  percorre esse turbilhão de estranhos, como transeunte indiferenciado: o indivíduo das massas.

    A ideia de procurar compreender alguns fenómenos culturais, transpostos para textos literários magnifica-se, ao que parece, na poética de Herberto Helder, onde todo o sistema poético assenta na assunção de que a continuidade está sujeita a rupturas que, se não forem tratadas como transformações – ou transfigurações, ou devorações, ou desapossamentos – redundam no desaparecimento, no esquecimento ou na morte.

    yellow and brown leaves on white ceramic tiles

    A constante reaparição da sua obra depois dos finais anunciados da escrita, apontam, de algum modo, para uma estética do estertor, em que a obra é uma efémera evanescência e a vida um continuo entrecortado de cortes, de amputações e de outras formas incisivas das variantes da ruptura na busca de uma metamorfose final.

    Vemos, na preocupação constante que o poeta ostenta de encerrar a obra e de a eternizar como Livro, sempre seguida da exaltação do livro reeditado sob transformação (Ofício Cantante….Poesia Toda) – numa espécie de frenesim onomástico ou veneração do batismo como ritual propiciador do renascimento transfigurador, arrastando esse movimento, os actos mutação, reformulação, jogo de variantes, tendentes a assegurar a continuidade sob a forma mutações – uma atitude de regulação vital da poesia, ou da poesia como vitalidade.

    Toda essa actividade de escrever para ser ou de existir como escrita força certos posicionamentos fundamentais ao poeta. Julgo que podemos destacar dois: a apropriação dos acervos e modelos poéticos como matrizes a serem transformadas (com a variante forte da publicação da “antologia”, ou das “traduções”, dos mananciais da poesia exótica ou enigmática, normalmente de origem popular e anónima); e a preparação da obra própria enquanto espólio labiríntico, eivado de “artes poéticas” de tons órficos e elaboradas conceptualizações heraclitianas.

     É claro que, para a percepção de um leitor ou poeta, ou qualquer entidade colocada na convergência dessas duas funções, o assumir desses dispositivos de produção poética se encaminha para um jogo de dimensões demonológicas. O tocar numa obra por qualquer entidade introduzindo-lhe transformações por constituir uma adaptação, uma outra obra inspirada na primeira, dá origem àquilo a que Herberto Helder chama “obra maléfica” (Photomaton e Vox, p. 21) – qualquer coisa como uma “opus nigrum”[1]. O que nos deixa perante uma revelação que nem sempre se patenteia a quem se deixa envolver pelo poderoso discurso poético de Herberto Helder.

    person sitting on blue wooden bench on beach during daytime

    Esta percepção é transmitida pela seguinte afirmação de Frias Martins: “a poesia é levada pela assunção do amor pelo caminho de tudo aquilo que diante dos olhos (da luz) se encontra e cuja mensagem se destina derradeiramente ao coração” (1983: 33). Não obstante a correcção desta observação, temos de reconhecer que ela se manterá sempre incompleta, quando atendemos ao conjunto da obra de H.H. em todas as suas dimensões. E isto porque uma boa parte da sua obra parece obedecer mais aos apelos do demoníaco, e de um erotismo ordenado por Thanatos. Não será essa uma das figurações de Orfeu? O que resta de amor, depois da ida às regiões da morte.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Martins, Manuel Frias, 1983, Herberto Helder, Um Silêncio de Bronze, Horizonte, Lisboa

    Eco, Umberto, 1991, Apocalípticos e Integrados, Difel, Lisboa


    [1] “Opus Nigrum”, é uma velha fórmula alquímica que significava a fase de separação e dissolução da matéria, mas para pior.