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  • ‘O Diário Secreto que Salazar não leu’: prefácio de Nigel West

    ‘O Diário Secreto que Salazar não leu’: prefácio de Nigel West


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, o prefácio de Nigel West a um dos livros de Rui Araújo: ‘O Diário Secreto que Salazar não leu’. Trata-se de uma obra que chegou à 3ª edição e que se encontra esgotada. Nigel West (Rupert Allason) é um historiador e autor de dezenas de obras, sendo um dos maiores especialistas mundiais em Serviços Secretos e espionagem.


    PREFÁCIO

              Os historiadores e os aficionados das operações secretas em tempo de guerra sabem desde há muitos anos que Lisboa foi um dos grandes centros de espionagem da Segunda Grande Guerra. E as razões para esta dúbia reputação da cidade são bem claras. Ao contrário das capitais neutrais de Madrid ou Berna, Lisboa não está cercada por terra, e a sua localização geográfica fez dela uma encruzilhada dos caminhos internacionais. A viagem de Estocolmo para Londres, no auge da guerra, demorava semanas, já que o trajecto mais seguro era via Teerão ou Vladivostok. E embora Istambul pudesse ter rivalizado com Lisboa e tivesse chegado a ser um entreposto importante, a capital portuguesa foi a verdadeira ponte para as Américas a partir da Europa. Assim, entre refugiados e fugitivos, desde famílias reais dos Balcãs a prisioneiros de guerra evadidos, todos se acumulavam em Lisboa à espera de permissão para embarcarem para a Grã-Bretanha, os Estados Unidos, a América do Sul ou as Caraíbas, e os privilegiados que podiam fazer o voo transatlântico a partir de Baltimore eram obrigados a amarar no Tejo e trocar de avião para a última parte da viagem até Bristol. Porém, a não ser que fossem considerados passageiros prioritários, o visto de passagem podia demorar dias ou semanas a ser concedido.

             Ao mesmo tempo que soldados faziam filas no Serviço Britânico de Repatriamento (British Repatriation Office) e príncipes desterrados contavam o seu tempo no Palace Hotel do Estoril, membros das forças do Eixo e dos Aliados cruzavam-se nos cafés e nos restaurantes. A embaixada alemã, enxameada de membros da Abwehr (a) que se moviam sob a capa diplomática da Kriegsorganisation Lissabon, e mantinham estreitas ligações com os seus congéneres italianos, franceses do governo de Vichy, japoneses e húngaros, sempre com o consentimento do aparelho de segurança da omnisciente PVDE, que tinha a sua sede no sinistro quartel-general da organização, na Rua António Maria Cardoso. Comandados por Albrecht von Auenrode (conhecido pelo pseudónimo de Ludovico von Karstorf), os agentes corriam os bares da beira-rio, ansiosos por alguma informação sobre comboios de navios – deixadas escapar por marinheiros imprevidentes – e sempre à procura de novos agentes para serem enviados para Londres. A KO de Von Auenrode controlava os espiões principalmente para os Abstelles de Bremen e Hamburgo, e tinha relações próximas com as organizações de Madrid, Rio de Janeiro e Buenos Aires, mesmo tendo sido fechada pela DOPS, a polícia secreta brasileira, em Junho de 1943, uma grande parte da rede da Abwher local (que trabalhava sob a capa dos serviços comerciais da AEG, comandada por Albrecht Engels). A KO recebia com frequência visitantes do Reich, incluindo o bem conhecido espião-mor Nikolaus Ritter, mais conhecido por «Doutor Rantzau», que vinha para fazer conferências ou para encontros periódicos com os agentes. Normalmente sediado em Hamburgo, Ritter tornou-se uma figura bem conhecida dos seus adversários, e, com a experiência que tinha de ter vivido vários anos nos Estados Unidos antes da guerra, era um inimigo formidável.

             A informação que os britânicos tinham das actividades de von Auenrode partia de muitos agentes duplos coordenados pelo MI5 e MI6, e era obtida através da vigilância directa, intercepção de correio endereçado a moradas fictícias referenciadas, e, acima de tudo, os relatórios ISOS (b), que revelavam com bastante pormenor as actividades da KO, a partir da decifração de mensagens de rádio codificadas, trocadas com Berlim e Madrid. Todos os sinais, interceptados por uma cadeia mundial de “Estações Y”, eram processados por uma grande equipa do MI6 sediada em St. Albans, no condado de Hertfordshire, onde os analistas da Secção V decifravam e traduziam os textos um a um, e, posteriormente, adicionavam fichas individuais a um vasto índice que cobria todas as operações ou nomes de pessoas mencionados nas mensagens, o que permitia o cruzamento de referências com telegramas mais antigos e o esclarecimento de quaisquer ambiguidades nas mensagens. Qualquer informação adicional que fosse necessária era buscada no terreno por agentes da Secção V especialmente documentados, que seguiam para as células do MI6 no continente. À medida que o volume de relatórios foi aumentando, a Secção V ganhou o estatuto de um serviço secreto dentro dos serviços secretos, escrutinando as mensagens mais secretas do inimigo com os seus peritos organizados por áreas geográficas. Assim, a subsecção ibérica da Secção V, designada por V (d), comandada por Kim Philby e mais tarde Tim Milne, era formada por seis agentes dedicados à monitorização das «operações dos serviços de informações das potências inimigas na Península Ibérica, no Marrocos Espanhol, em Tânger e nas Ilhas Baleares e Atlânticas». A subseccção V (d) tornou-se um vasto arquivo, no qual os elementos do campo inimigo, tanto os agentes como outros suspeitos, eram «fichados» para que as suas mensagens pudessem ir sendo postas em contexto, e, sempre que surgisse a ocasião, esses elementos pudessem ser detidos mal estivessem ao alcance, fosse numa inspecção a um navio em Trinidad, Gibraltar ou Cidade do Cabo, ou em qualquer fiscalização de documentos noutros territórios sob a jurisdição dos Aliados, e sob o seu controlo.

    Nigel West numa visita ao National Churchill Libray and Center, em Dezembro de 2018.
    (Foto: Captura de imagem a partir de vídeo da visita)

             O ISOS foi o responsável pela exposição do agente Ricardo, um intérprete que trabalhava ao mesmo tempo para as delegações diplomáticas britânica e americana, e que tinha garantido à KO ter acesso a informações rigorosas a respeito de comboios de navios planeados. Esse tipo de informação antecipada era considerada de grande prioridade, a ser transmitida aos submarinos que cruzavam as águas próximas dos Açores, preparados para afundar navios Aliados que transportavam material de guerra para os teatros de operações do Médio e Extremo Oriente. Embora houvesse suspeitas de que Ricardo por vezes inventava os seus relatórios, acabou por ser considerado uma fonte perigosa, e responsável por uma lenta hemorragia de segredos Aliados, até ao dia em que foi identificado e posto de parte. Ainda assim, a KO conseguiu penetrar os gabinetes Polaco, Checo e Holandês – o Deuxiéme Bureaux. No combate clandestino, os alemães nunca estiveram em desvantagem. Sabiam bem como aplicar pressão sobre as famílias que permaneceram nos seus territórios ocupados, e bem capazes eram de ser absolutamente cruéis em conseguir que as pessoas cooperassem. É certo que a coerção nunca foi um grande motivador, e não faltaram espiões relutantes que à primeira oportunidade se dispuseram a ir revelar aos serviços Aliados a sua situação. Mais tarde na guerra, à medida que os Estados Unidos se tornavam o destino preferido dos refugiados, o delegado do FBI na Secção V para assuntos legais, Ivan W. Newpher, aplicava-se no exame de candidatos a vistos, em busca de suspeitos de espionagem.

             O ISOS também foi fundamental na resolução do imbróglio das cifras de Robert Solberg, que foram copiadas pela KO e aproveitadas com grandes vantagens. Solberg, representante em Lisboa do Departamento de Serviços Estratégicos (Office of Strategic Services, OSS), tinha a reputação de ter comportamentos amadorísticos e indiscrições ocasionais, mas o desaparecimento, do seu escritório, dos seus códigos confidenciais , permitiu à Abwher a leitura de uma quantidade considerável do tráfego de comunicações para o quartel-general do OSS, em Washington, até a fuga ser descoberta e reparada. Felizmente, Solberg não tinha sido admitido no circuito do ISOS e esse foi, ao menos, um segredo que os seus erros não puseram em causa. Todavia, um dos seus esquemas irreflectidos, um plano de roubo de equipamento criptográfico aos alemães, podia ter tido repercussões duradouras se não tivesse sido interrompido a tempo.

              Na frente contra as actividades da Abwehr e o SD (c) havia profissionais de informações britânicos, americanos, holandeses, jugoslavos, polacos e checos, que geriam redes que se estendiam pela França ocupada e por todo o Mediterrâneo, até ao Norte de África controlado pelo governo colaboracionista de Vichy. A intensa rivalidade era o ambiente perfeito para todo o tipo de oportunistas, aventureiros, mistificadores e falsários expandirem os seus negócios, traficando em materiais falsos, denunciando concorrentes, e negociando deserções.

             A atmosfera de intriga começou com a queda da França, quando o Sicherheitsdienst (SD) se convenceu de que o Duque de Windsor, então abrigado em Portugal, podia ser persuadido a praticar actos de deslealdade para com o país que tinha encabeçado por tão pouco tempo, antes de abdicar, em Dezembro de 1936. Walter Schellenburg lançou uma operação com o nome de código Willi para impedir aquele que fora o Rei Eduardo VIII de tomar o seu novo cargo de governador das Bahamas, mas o plano falhou. Esse incidente, todavia, criou o cenário para que Lisboa passasse a ser o foco de numerosas intrigas e maquinações. A partir de então, enquanto a capital portuguesa se ia enchendo de desperdícios da guerra, os profissionais de informações de diversos países conspiravam para se prejudicarem mutuamente, semeando falsas informações, recrutando desertores, buscando fontes e mobilizando agentes duplos. Cada missão diplomática era um alvo, tanto quanto os viajantes com documentos válidos, os homens de negócios que procuravam lucrar com a guerra, e as famílias em fuga das perseguições. A cidade de Lisboa atraía pequenos vigaristas, milionários apátridas e outras pessoas deslocadas, todos unidos pela necessidade de tirarem proveito da sua perigosa situação. O resultado foi uma atmosfera fétida na qual o multimilionário dos petróleos Nubar Gulbenkian (1) tomou residência temporária, antes de partir para a França ocupada em missão secreta, acompanhado pelo seu criado pessoal, e mistificador, Paul Fidrmuc, um jugoslavo que tinha o nome de código Ostro e inventava informação para vender ao primeiro lado que a quisesse comprar. O pai do actor Peter Ustinov, conhecido por Klop, movia-se misteriosamente nas franjas do circuito diplomático, em busca de pares de profissão anti-nazis com vontade de venderem segredos do Reich, do mesmo modo que a Gestapo espalhava os seus agentes para cheirarem potenciais traidores à distância. Estes eram os elementos de um ambiente de guerra invulgar, rico em golpes e contra-golpes capazes de inspirar uma dúzia de romancistas. De facto, John Masterman, presidente do Comité XX do MI5 em tempo de guerra, viria precisamente a aproveitar essa inspiração para localizar em Lisboa o seu romance The Case of the Four Friends (O Caso dos Quatro Amigos)(2).

             O facto de John Masterman ter escolhido Lisboa para cenário do seu romance não surpreende, já que muitos dos agentes que ele próprio tinha ajudado a gerir ou tinham actuado em Lisboa, tais como Costar ou Soso, ou tinham passado pela cidade para receberem as suas instruções. Nesta última categoria incluíram-se Mullet, Celery, Biscuit, Snow, Dragonfly, Tate, Shadow, Lipstick, Peach, Zigzag Hatchet, cada um deles (ou delas, no caso de Gelatine) com a sua própria história extraordinária de espionagem e actos nebulosos. Meteor chegou a actuar como agente triplo, enquanto que Josef chegou a ser recrutado pelos japoneses. Todos, uns mais que outros, dependeram de mensagens secretas ou apoio financeiro de Lisboa para sustentarem as suas operações em Inglaterra, agindo sem hesitações como empenhados espiões nazis, mas cabendo, afinal, no jargão do MI5, na classe dos «agentes do inimigo sob controlo».

             O simples número de agências que actuavam em Lisboa vale como um indicador da importância da cidade para os serviços de informações britânicos. Para além dos Serviços Secretos de Informações (MI6), que trabalhavam a coberto do Serviço de Controlo de Passaportes, na Rua da Emenda, o MI9 e o SOE (Special Operations Executive) mantiveram representações permanentes em Lisboa. Donald Darling, do MI9, dirigia o serviço de fugas e evasões, prestando assistência a antigos prisioneiros dos alemães e pilotos caídos em território ocupado pelos nazis, para regressarem a casa. Muitos tinham atravessado os Pirenéus a pé, enquanto outros tinham servido penas de prisão na tristemente famosa prisão espanhola de Miranda del Ebro mas não tinham perdido a sua determinação de se voltarem a juntar às suas unidades – tal como Darling recordou nas suas memórias, Secret Sunday (3), publicadas em 1975. Alguns, é certo, traziam consigo informações valiosas a respeito de linhas de fuga, informação actualizada sobre a situação na Europa ocupada, ou pormenores cruciais das restrições de deslocação impostas pelo inimigo, e os seus controlos de segurança. O homem de Lisboa do SOE era Jack Beevor, que trabalhou na embaixada da Rua do Sacramento à Lapa e acabou por descrever as suas experiências na autobiografia SOE Reflections (Reflexões sobre o SOE) (4)publicada em 1981. A sua tarefa era assistir o pessoal do SOE nas suas missões clandestinas, e apressar a repatriação dos agentes a caminho de Londres.

    concrete bridge at night time

             Outro componente da importante presença da espionagem britânica em Lisboa foi o adido naval, que estava em permanente contacto com a NID, Divisão de Inteligência Naval do Almirantado (Admiralty’s Naval Intelligence Division). Era responsável pela autorização da Royal Navy, conhecida como «Navicerts», que permitia aos navios não-beligerantes o trânsito marítimo sem interferência dos navios de guerra Aliados. O adido naval constituía por si só uma valiosa fonte de informação, e permitia à NID identificar os falsos navios neutrais que carregassem material de interesse estratégico, incluindo os carregamentos do valiosíssimo volfrâmio espanhol, a caminho dos portos do Eixo.

             A secção de Lisboa do MI6 era uma das mais importantes em Lisboa, e foi comandada, sucessivamente, por  Austen Walsh, Richman Stopford, Cecil Gledhill, e, finalmente, Philip Johns, que mais tarde passou a escrito as suas memórias, em Within Two Cloaks (Duplo Disfarce) (5)Dos quatro, Gledhill era o único não originário da área profissional da recolha de informações, mas, como tinha vivido muitos anos no Brasil, a sua fluência na língua portuguesa compensava a sua faltava de experiência. Ainda assim, a enorme pressão do trabalho reflectiu-se na grande rotação das chefias de Lisboa, nos anos da guerra.

             A secção tinha enorme importância, e não somente por ser a última que restava em todo o continente, após o colapso da França, com um ambiente de neutralidade e de relativa normalidade. Em contraste, a secção de Madrid, que distava muitos quilómetros da fronteira mais próxima, sofria o cerco de um governo-anfitrião hostil, e era limitada por um embaixador igualmente pouco entusiasta, Lorde Sam Hoare, cheio de receios de que o seu estatuto diplomático sofresse com algum embaraço causado pelo MI6. Enquanto antigo agente do MI6, Hoare sabia bem que algum desencobrimento poderia deitar por terra os seus alvos políticos, e, enquanto antigo membro do governo, tinha poderes para fazer com que os seus preconceitos fossem respeitados. A pequena secção de Gibraltar estava igualmente isolada, apenas periodicamente ligada à Grã-Bretanha por rotas de mar e ar perigosas, mas controlada de perto e vigiada pelas secções do inimigo em Algeciras e Tânger, e cuja zona portuária e cidade acolhiam multidões de espiões. As operações da secção de Estocolmo estavam severamente restringidas, graças a uma forte presença alemã e uma polícia secreta sueca bastante suspeita, que no começo da guerra tinha implicado o MI6 numa tentativa falhada de sabotagem da exportação de minério de ferro para o Reich. Quanto a Berna, a secção existia numa clareira do Eixo, sem canais utilizáveis para o mundo exterior, à parte o rádio de ondas curtas, e sem poder contar, certamente, com nenhum apoio por parte da polícia local, a Bundespolizei. E, já que a secção de Istambul estava subordinada ao quartel-general regional, no Cairo, e estava demasiado distante para poder influenciar os acontecimentos na Europa Ocidental, dedicou-se aos assuntos do Médio-Oriente, deixando a Lisboa o fardo de ser a linha da frente no confronto do MI6 com os protagonistas das forças do Eixo.

             O pessoal do MI6 de Lisboa incluía Rita Winsor, evacuada em 1940 da secção de Genebra, que teve de ser abandonada à pressa, e Jack Ivens, um comerciante de frutas com abundantes conhecimentos nos modos de fazer negócios na Península Ibérica. Graham Maingot tinha trabalhado a coberto de actividades comerciais até a secção de Roma ser fechada, na altura em que começaram as hostilidades. E Gene Risso-Gill era originário de uma família de comerciantes anglo-portuguesa. Juntos, reportavam a um controlador regional baseado em Londres, Basil Fenwick, um antigo executivo da companhia petrolífera Shell, depois substituído por Dick Brooman-White, que veio a ser eleito para o parlamento, depois da guerra. Em complemento, a Secção V contava ainda com Charles de Salis e depois Ralph Jarvis, responsáveis por montar operações de contra-informação baseadas em informações obtidas em transmissões do inimigo interceptadas, com o nome de código ISOS. Este grupo permanente era completado, ocasionalmente, por elementos visitantes, ou «bombeiros», como Ian Wilson do MI5, e Frank Foley, o antigo comandante da secção do MI6 de Berlim (6) de antes da guerra, que chegou à Península para gerir a crise criada por Artist.

    shallow-focus photography of white cat

             A supervisão de Artist era especialmente melindrosa, pois o agente era um oficial da Abwher, Johannes Jebsen, descendente de uma prestigiada família de armadores de Hamburgo. Artist tinha estabelecido contacto com o MI6 através de Dusko Popov, nome de código Tricycle (7)que tinha indiscretamente confessado o seu papel de agente duplo ao seu velho amigo, a quem conhecia desde os tempos em que estudavam na Universidade de Heidelberga, antes da guerra. Felizmente, Jebsen provou ser digno de confiança, mas o MI6 calculou que, caso desertasse, a Abwher inevitavelmente concluiria que Popov estava contaminado. Por outro lado, se fosse preso e interrogado pela Gestapo, poderia comprometer Popov, e talvez até outros, já que estava também ligado a outro desertor da Abwehr, o jornalista Hans Ruser. Uma outra razão para a extrema cautela era o receio, por parte do MI6, de que, caso desertasse, Jebsen poderia, inadvertidamente, desmascarar Alaric, provavelmente o mais importante agente infiltrado na Abwehr.

             Inicialmente contratado pela Abwehr de Madrid, Alaric era Juan Pujol (8), um anti-fascista espanhol cuja primeira oferta para ajudar os Aliados tinha sido recusada pela embaixada britânica. Sem desanimar, Pujol tinha ido oferecer-se aos alemães, que o enviaram a Lisboa na convicção, errada, de que ele possuía um visto para viajar para a Grã-Bretanha. Na realidade, Pujol tinha-se estabelecido em Cascais e passou a fabricar falsos relatórios vindos de Londres. Mais tarde, graças à insistência do adido naval americano, Edward Rousseau, o agente do MI6 Gene Risso-Gill acabou por estabelecer contacto com Pujol e tratou da sua passagem para Inglaterra, onde, rebaptizado Garbo pelo MI5, o espanhol montou uma rede Abwehr com o nome de código Arabel. Em 1944, a rede de espiões Arabel tinha-se alargado a 22 fontes secundárias, todas fornecedoras de relatórios de vários pontos do país, desempenhando um papel-chave na campanha de contra-informação Fortitude (9), de preparação para o Dia-D. Qualquer ameaça a Garbo punha em perigo as vidas de 150.000 soldados prontos para a ofensiva de desembarque na Normandia a 6 de Junho de 1944. O risco não podia ser mais elevado.

             De facto, Garbo era apenas um dos agentes duplos controlado pelos britânicos com fortes contactos em Lisboa, e, embora ninguém soubesse dos outros, eram vários, uns instalados permanentemente em Portugal outros em trânsito periódico por Lisboa, em missões. Assim a embaixada alemã tornou-se um ponto de encontro regular, onde os espiões do Eixo recebiam as suas instruções finais antes de partirem para Buenos Aires, Rio de Janeiro, Congo Belga, Lourenço Marques, Guiné portuguesa, na costa Oeste de África, ou América do Norte, ao passo que o MI6 preferia casas neutras onde pudesse tratar dos seus assuntos com os agentes que trabalhavam para os dois lados. Existiam também muitas «caixas de correio», que eram usadas pelos agentes para comunicarem usando moradas manifestamente inocentes, que apenas serviam para enviar o correio que continha escrita secreta, por micropontos, para os destinatários pretendidos. Por alturas do fim da guerra, o MI5 estava a usar 135 falsos endereços, que serviam a espiões tão diferentes como Springbook, da África do Sul e o misterioso Fundus, um espião alemão cuja verdadeira identidade nunca foi devidamente apurada.

             Para além de ser um grande porto europeu aberto à navegação transatlântica, Lisboa era também uma porta clandestina para Gibraltar, frequentemente o caminho mais directo para a Grã-Bretanha, especialmente para desertores e outros impossibilitados de conseguirem um visto de saída português por meios legais. Entre os que foram expedidos secretamente para a colónia britânica esteve o lendário agente duplo Juan Pujol, então com o nome de código do MI6 Bovril, ou o desertor Hans Ruser, que negociou a sua desinfiltração em Março de 1942, ou ainda Otto John, um dos conspiradores do 20 de Julho que sofreram os efeitos da reacção ao atentado contra Hitler.

    white concrete building near mountain

             Enquanto as agências aliadas estavam bem conscientes de que a PVDE tinha especial interesse nas suas actividades, sem sequer ter feito o esforço de ocultar um posto de observação semeado de câmaras fotográficas de frente para o Serviço de Controlo de Passaportes, os concorrentes do Eixo podiam agir com total impunidade. Artist acabou raptado e atirado para a mala de um carro para uma viagem de regresso forçado a Paris, quando a Gestapo suspeitou de que tinha sido burlada. Petra Vermehren, que se apresentava como jornalista, também desapareceu, depois de o próprio filho e a nora, que como ela trabalhavam para a Abwehr, terem desertado, em Istambul, em Dezembro de 1943.

             O facto de os serviços de informações britânicos terem um quadro de pessoal numeroso em Lisboa não implica que todas as suas operações tenham sido bem sucedidas. A tentativa, em 1942, de assaltar o escritório de um funcionário de alta patente da Abwehr, Kuno Weltzein, que operava sob a capa de actividades comerciais é disso um bom exemplo. A oportunidade de arrombamento revelou ser uma armadilha, e o MI6 viu-se abertamente implicado no fiasco, que deixou os ladrões desmascarados nas mãos da PVDE. Numa outra ocasião, o astucioso Weltzein arranjou maneira de algumas das suas fichas de agentes caírem nas mãos dos britânicos, que desperdiçaram semanas de inúteis observações de suspeitos que acabaram por revelar-se completamente inocentes. Weltzein foi apenas um dos membros da comunidade de comerciantes alemães aliciados pela Abwehr e pelo SD a transformarem os seus contactos de negócios em fontes úteis de informação. Outro desses elementos foi Hans Bendixen, uma figura bastante conhecida, bem estabelecida socialmente antes da guerra, e que passou a espiar a favor de Berlim. Através dos seus contactos locais, foi fácil à Abwehr subverter os banqueiros locais, incluindo o Banco Espírito Santo, para que proporcionassem canais de circulação que ajudassem os espiões alemães nas suas missões.

             Hano Grimm foi outro elemento sujeito ao controlo da Abwehr, reponsável pela recolha de informação relativa ao trânsito naval entre as tripulações dos navios britânicos, como parte de uma rede alargada. Cândido Raposo, um português com acesso à estação de rádio Marconi da Madeira estava envolvido na mesma actividade. O mesmo se passava com Gastão de Freitas, operador de rádio do Gil Eanes, que, comprometido por mensagens codificadas, foi preso e acabou por admitir ter tomado notas sobre as defesas marítimas de St. John, na Terra Nova.

             A dimensão da espionagem nazi desenvolvida em Lisboa não tinha comparação com a de qualquer outra capital neutral, e só talvez Madrid se lhe pudesse aproximar. Foram capturados em Londres numerosos espiões com contactos em Lisboa, entre eles Ernesto Simões, que viajou para Inglaterra para trabalhar na fábrica aeronáutica Percival, em Lutton, em Novembro de 1943. Sob vigilância contínua desde que desembarcou em Filton, Simões tinha sido denunciado por mensagens codificadas e foi preso antes de ter podido causar algum dano. Depois de um demorado interrogatório, confessou o seu verdadeiro papel ao serviço da Abwehr, e revelou a sua falsa morada em Lisboa, de onde tinha ordens para enviar mensagens em escrita de código. A Abwehr recrutou também um jornalista, Manoel dos Santos, que foi tirado do navio em que tinha embarcado, em Freetown, no qual procurava regressar a Portugal, vindo de Moçambique. Uma vez mais, mensagens codificadas tinham denunciado tratar-se de um importante espião nazi. A Serra Leoa, tal como Trinidad, era um entreposto da inteligência britânica, onde estes elementos podiam permanecer presos e até serem levados para Londres, para intenso interrogatório no Campo 020. (10)

    man in black suit jacket and blue hat standing in front of store

             Outro caso, mais sério, foi o de um diplomata português, Rogério de Menezes, que acabou condenado à morte. Tendo chegado a Londres em Julho de 1942 para trabalhar na representação diplomática portuguesa, Menezes começou a escrever cartas à irmã, que estava em Lisboa, acrescentando notas suplementares escritas com tinta invisível, dirigidas a um homem chamado Mendes. O seu correio tinha sido incluído na mala diplomática portuguesa, que foi aberta em segredo e examinada por pessoal do MI6, numa operação altamente secreta com o nome de código Triplex. A missão de Menezes tinha sido traída por uma mensagem codificada interceptada ainda antes do seu desembarque. Menezes passou a ser observado, dentro da legação portuguesa, por um agente, e, no exterior, por equipas de vigilância do MI5. De acordo com Jack Bingham, um agente do MI5 que se lhe tornou próximo, Menezes estava particularmente interessado em defesas anti-aéreas. Em Fevereiro de 1943, as provas incriminatórias foram apresentadas ao embaixador Monteiro, a quem foi lembrado que três outros portugueses, Gastão de freitas, Maria dos Santos e Ernesto Simões, tinham sido apanhados a espiar. Depois de Lisboa ter sido consultada, o embaixador retirou a imunidade a Menezes. Quando foi preso, Menezes reclamou que tinha espiado contra a sua vontade, porque tinha parentes na Alemanha que estavam sob ameaça. Na sua confissão, identificou Mendes como sendo um homem chamado Marcello, que trabalhava para um agente italiano chamado Umerte. Declarou ter sido apresentado a esses dois homens por um oficial da Força Aérea Portuguesa, o coronel Miranda, e mencionou também um criptógrafo chamado Ramos, ligado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros português. Independentemente destes factos, Menezes foi condenado à luz da Lei da Traição, em Abril de 1943. Foi sentenciado à pena de morte, entretanto comutada, após um pedido de clemência do embaixador português. Menezes ficou preso em Dartmoor e, de acordo com instruções do Juiz Supremo, não houve qualquer declaração oficial sobre o julgamento ou sobre a comutação da pena.

             Um outro espião, menos afortunado, foi Duncan Scott-Ford, que havia sido expulso da Royal Navy, baseada em Alexandria, antes da guerra, por quebra de lealdade, e foi interrogado na base de Salford, em Agosto de 1942, a respeito de um marinheiro identificado em mensagens codificadas com o nome de código Rutherford. Dois meses antes, Scott-Ford tinha declarado ter sido abordado, em Lisboa, por um alemão interessado em informações, mas insistiu que tinha recusado a oferta. Sob interrogatório, no campo 020 do MI5, Scott-Ford admitiu que tinha passado informação pormenorizada sobre comboios de navios aos alemães, e tinha tirado apontamentos sobre oNavio da Marinha Real Britânica Malaya, para poder passar a informação na primeira oportunidade. Sem ter pedido perdão, Scott-Ford foi a julgamento no Old Bailey em Outubro de 1942, e foi enforcado na prisão de Wandsworth em Novembro.

             Outro exemplo de espionagem alemã emanada de Portugal foi Joseph Laureyssens, um marinheiro belga que, em Abril de 1941, foi desmascarado como correspondente de uma «caixa de correio» de Lisboa. Sob interrogatório, admitiu ter posto outros marinheiros em contacto com uma mulher que habitualmente trocava os seus favores por informações navais dos Aliados. Permaneceu preso até ao fim da guerra, apenas porque as provas que o incriminavam se extraviaram acidentalmente. De outro modo, também ele teria sido executado.

             O lugar que Lisboa ocupava nas preocupações das chefias da inteligência britânica está à vista no diário que foi sendo ditado, ao fim de cada um dos dias da guerra, pelo director de Contra-espionagem do MI5, sem ter como objectivo a publicação. O seu conteúdo era conhecido apenas de alguns agentes do MI5 como auxiliar de treino, para documentar o progresso dos serviços de segurança no combate às operações secretas do Eixo. As notas eram tomadas pela secretária do Director, Margot Higgins, depois do expediente, e depois dactilografadas em pequenas páginas soltas, encadernadas com argolas. O diário, com o título The Guy Lidell Diaries, (11) serviu como diário da guerra de uma agência que mantinha ficheiros pessoais e temáticos a respeito de suspeitos de espionagem, elementos e organizações subversivos. Durante toda a Guerra Fria, o diário foi considerado tão sensível que recebeu um nome de código, Wallflower, e permaneceu guardado no cofre pessoal do Director Geral, para ser partilhado com poucos, entre os quais Peter Wright, que mais tarde se lhe referiria nas suas polémicas memórias, SpyCatcher (Caça-Espiões). (12)

             Até às revelações de Wright, a existência dos diários não passava por ser mais do que um rumor infundado. Parecia certo que Liddell tinha enterrado os esqueletos do MI5 todos na mesma cova, e que o documento era demasiado explosivo para que pudesse ser exumado.

    white book page on brown wooden table

             Se um dos motivos de se ter permitido maior liberdade no estudo das mensagens interceptadas em Bletchey Park foi acalmar a curiosidade pela história secreta da Grã-Bretanha, essa intenção saiu gorada, já que, no princípios da década de 1980, numerosos escritores, biógrafos e historiadores dedicaram a sua atenção a um campo de estudos até aí completamente negligenciado, especialmente devido à escassez  de documentação oficial posta à disposição do público. A chocante declaração do Primeiro-ministro Margaret Thatcher, em Novembro de 1979, de que o Professor Lorde Anthony Blunt tinha sido toda a sua vida uma «toupeira» dos soviéticos e tinha acordado um estatuto de imunidade em Abril de 1964, veio despertar um aumento da investigação numa área até então evitada, e mesmo desencorajada oficialmente. Blunt, como se sabe, tinha servido nos Serviços Secretos desde Junho de 1940 até Setembro de 1945, e confessou ter passado aos russos do NKVD todos os segredos que lhe tinham chegado ao gabinete. Esta notícia foi um rude golpe para todos os seus amigos, a família, colegas sobreviventes do exército, e a todo o meio das informações, que já tinha feito um grande esforço para salvar a sua reputação depois das deserções de Guy Burgess e Donald McLean em Maio de 1951.

             Embora Guy Liddell já não estivesse vivo para sofrer o choque da exposição pública de Blunt, tendo falecido em retiro, em 1958, viria a tornar-se o foco de uma intensa onda de especulação e crítica. Liddell entrou para o MI5 vindo do Metropolitan Police Special Branch (Operações Especiais da Polícia Metropolitana), em 1931, e em 1940 foi nomeado director da Divisão B, o ramo de contra-espionagem. Depois da guerra, foi promovido a Vice-Director Geral, posto que manteve até mudar-se, em 1956, para a direcção do departamento de segurança da Autoridade da Energia Atómica.

             Liddell conheceu pessoalmente Guy Burgess, que tinha trabalhado secretamente para o MI5 em 1940, dirigindo, entre outros agentes da sua coterie homossexual, Eric Kessler, o jornalista e diplomata suíço, com o nome de código Orange.  Naturalmente, o trabalho clandestino de Burgess para os Serviços Secretos tinha sido ocultado na altura do seu desaparecimento, altura em que foi descrito como sendo um diplomata de categoria menor. E o Livro Branco oficial sobre a sua deserção nem sequer tinha aflorado as suas ligações com a secção D do MI6 e com o MI5. A amizade de Liddell com Burgess era embaraço mais que suficiente, mas o facto é que Liddell tinha também tornado Burgess o seu secretário pessoal, e tinha-lhe confiado a condução dos inquéritos mais sensíveis, em sua representação. Por exemplo, quando Blunt se juntou à equipa de Liddell foi-lhe entregue a tarefa de fazer uma auditoria ao desempenho do embrionário e ineficaz Serviço de Vigia (Watcher Service), de Harry Hunter, o que lhe permitiu garantir, com absoluta certeza, aos seus contactos soviéticos, que a sua rezidentura em Londres não tinha nada a temer da vigilância do MI5, que já estava bastante ocupada com a vigilância da lista de suspeitos de traição. Os registos do MI5 mostram que Blunt tinha também levado a cabo um longo estudo de Triplex, (13) uma operação altamente secreta que envolvia acções de rotina de desvio e abertura de malas diplomáticas das embaixadas neutrais. Pior que tudo, Blunt tinha sido autorizado por Liddell a identificar, e relatar, sobre todo o corpo de agentes em funções nas embaixadas de Londres. Naturalmente, as conclusões de Blunt eram avidamente recebidas em Moscovo, quase tão depressa como eram recebidas em St. James Street.

             O desconforto dos muitos amigos e admiradores de Liddell transformou-se em raiva, quando as suas lealdades foram postas em causa. O primeiro a reinterpretar alguns dos maiores êxitos de Liddell como triunfos duvidosos for Richard Deacon, o autor de The Greatest Treason (A Maior Traição), publicado em 1989, (14) livro em se sugere que, apesar do caso do Arsenal de Woolwich ter resultado na prisão de Percy Glading e dois outros membros da sua rede, o peixe graúdo tinha sido largado. Havia alguma verdade nesta alegação, já que os ilegais soviéticos que tinham controlado as operações conseguiram escapar à vigilância do MI5 e fugiram, tanto à prisão como à própria identificação. Deacon sugeriu que isso foi consequência de uma traição ao mais alto nível dentro do MI5, mais do que puro azar, e denunciou sem hesitações Liddell como «o quinto homem».

             Como Anthony Blunt só entrou para o MI5 em Junho de 1940, mais de dois anos e meio depois da prisão de Glading, o candidato de Deacon para traidor passou a ser Liddell. Tal alegação incitou Dick White a protestar a inocência do seu mentor. Porém, o cheiro de traição já havia sido anunciado por David Mure, oito anos antes, em Master of Deception (Mestre de Enganos) (15), livro em que Mure desenha um cenário em que Liddell concebe fiasco atrás de fiasco nas operações secretas, portando-se como um verdadeiro génio da duplicidade, ajudando outras «toupeiras» a infiltrarem-se mais e mais na administração britânica. As acusações não-comprovadas de Mure tornaram-se mais graves porque, ao contrário de Deacon, pseudónimo literário de Donald McCormick, que fora antigo editor de política estrangeira do Sunday Times e oficial naval do tempo da guerra, e que nunca tinha trabalhado nas informações, David Mure pertencera a uma secção do Cairo durante a Segunda Grande Guerra e tivera envolvimento em operações de contra-espionagem por todo o Médio Oriente. Enquanto o livro de Deacon poderia ser classificado como especulação jornalística, Mure sabia do que estava a falar, tendo tido ligações a Cheese, o famoso agente duplo. A teoria de Mure foi reforçada pelo historiador de Cambridge John Costello que, na sua impressionante biografia de Blunt, Mask of Deception (Máscara de Enganos) (16) apontou Liddell como espião soviético, apenas porque nisso viu a única explicação para a prolongada traição de Blunt. Mais uma vez, a alegação causou consternação entre os antigos colegas de Liddell, especialmente quando Peter Wright revelou que várias «caças a toupeiras» foram desencadeadas nos anos 60 com base na convicção de que os Serviços Secretos estavam a sofrer infiltrações ao mais alto nível. Na reacção à declaração da Sra. Thatcher no Parlamento, em Novembro de 1979, que foi esboçada no MI5 e atribuía todos os incidentes de infiltração a Anthony Blunt, Wright revelou ao seu co-autor Chapman Pincher, no livro Their Trade is Treachery (O Ofício de Traidores) (17), que o Vice-Director Geral Graham Mitchell tinha sido dado como suspeito de ser um agente infiltrado, antes da sua reforma, em Setembro de 1963, e, ainda mais sensacionalmente, que o próprio Director Geral, Lorde Richard Hollis, tinha também sido investigado como possível espião. Wright aprofundou a questão em SpyCatcher, escrito em co-autoria com o produtor de televisão Paul Greengrass, livro em que defendeu que quem lesse os Diários não encontraria nada que permitisse suspeitar de que Liddell pudesse ter traído o seu país.

    low angle photo of assorted book on bookshelf

             Podemos hoje dizer, com base na documentação dos arquivos soviéticos que já foi trazida a público, e declarações de desertores do KGB como Oleg Gordievsky (18) e Vasili Mitrotkin (19), que não há nada que apoie alguma tese de que Guy Liddell tenha feito alguma coisa que não fosse servir a Coroa fielmente, e os seus Diários mostram uma humanidade e um empenho nos ideais democráticos capazes de repugnar à maior parte dos polícias secretos.

             Partindo-se, então, do princípio de que Liddell foi sempre fiel ao seu país, qual é o verdadeiro contexto em que os Diários deverão ser lidos? O importante tratado de Lorde Harry Hinsley (20) foi seguido por um extraordinário desenvolvimento, resultado do colapso do bloco soviético. O arquivo do KGB, entretanto aberto a um conjunto de historiadores ocidentais, continha uma vasta colecção de documentos secretos subtraídos por Anthony Blunt ao registo do MI5 durante a guerra. Entre os papéis, estava um primeiro rascunho da história interna do MI5 da autoria de Jack Curry, escrito em 1945 (21), cobrindo o período a partir de 1909. Quando este documento foi desclassificado, em Moscovo, o Director geral de então, o Dr. Stephen Lander, também ele um historiador formado em Cambridge, aprovou o acesso público da versão final do texto, entregue ao Arquivo Público de Kew. A história de Curry acabou por ser publicada, mas o texto tinha sido alvo de revisão, e dava uma visão muito parcial do desempenho do MI5, atenuando as dificuldades vividas por Liddell, escassamente referido. Igualmente editada foi a crónica do pós-guerra Camp 020, da autoria do Coronel Robin Stephens, conhecido por «Tin-Eye», dedicada ao centro de interrogatórios do MI5 em Ham Common. Stephens tinha sido o controverso comandante, e, como seria de esperar, os seus pontos de vista foram expressos de forma animada e bem vincados. Todavia, apesar de ter feito retratos vivos de alguns dos presos, Stephens não tinha a percepção do grande cenário da contra-informação, e a história da sua secção é uma descrição incompleta, que, por exemplo, omitiu qualquer referência a Liddell.

             Sendo assim, o que torna os Diários de Liddell tão importantes? Primeiro, há toda a informação que não se pode encontrar em nenhum outro lugar. Quando se refere ao «material especial», Liddell revela inadvertidamente quais os países cujas comunicações confidenciais eram objecto de intercepção rotineira e descodificação, entre eles a França, a República da Irlanda, a Pérsia, a Finlândia, a Suécia e a União Soviética. Hinsley trata com a máxima (e compreensível) discrição os alvos diplomáticos, e estava sem dúvida a cumprir o dever de não identificar os países alvo da monitorização regular (e bem sucedida). Pelo contrário, os comentários de Liddell fizeram prova de que as comunicações de certas embaixadas eram lidas com regularidade e circulavam entre as altas hierarquias das informações.

             Para além de descrever investigações conduzidas pelo MI5 que não são referidas em mais nenhuma fonte, Liddell também fornece informação em primeira-mão sobre as tensões que existiram entre o Governo, os ministérios e as outras Agências. O director de Liddell, Jasper Harker, trabalhava muito bem com o Sub-Secretário Permanente do Home Office (Ministério da Administração Interna), Lorde Alexander Maxwell, mas tomou como um factor de grave irritação a criação do Gabinete de Segurança de Defesa (Home Defense Security Executive), em Junho de 1940. O Gabinete de Segurança foi instalado por causa da impressão que Churchill tinha de que o caos dominava na direcção do MI5, pela altura em que despediu o Director Geral, Lorde Vernon Kell, também em Junho de 1940. O exacto papel constitucional do gabinete de Segurança nunca foi claramente determinado, e Liddell sentia óbvio desagrado pelas intromissões de Lorde William Charles Crocker, um advogado influente da City que tinha pouca noção do trabalho do MI5 e decidiu, desastrosamente, transferir um grupo de detectives da Scotland Yard para a Divisão B, o que causou grande irritação nas Operações Especiais. Crocker tinha sido imposto ao MI5 com o objectivo de animar a organização, mas as suas actividades, em conjunto com as interferências de outro forasteiro, Malcom Frost, da BBC, iriam causar um ambiente negativo duradouro, dentro dos Serviços Secretos.

             Liddell não fez nenhum esforço para esconder as rivalidades internas e as fricções que por vezes ameaçavam paralisar toda a organização. O dominante Arquivo (Registry), dirigido por Miss Paton-Smith, estava semeado de descontentamento, e a imposição de um Serviço de Comunicações Sem-Fios (Wireless Branch), para supervisionar as comunicações ilegais com o inimigo, revelou-se uma experiência inútil de curta duração e um obstáculo burocrático. A chegada de Reg Horrocks, um perito em gestão, e o seu secretário, Mr. Potter, para aconselharem melhoramentos, fez pouco para aliviar a tensão.

             Os Diários de Liddell têm enorme significado por duas razões. Primeiro, muito poucas pessoas estiveram em posição de terem um posto de observação tão privilegiado sobre a condução da guerra, com um ponto de vista que incluía o acesso à informação mais secreta. Churchill, é claro, viu bastantes relatórios de desencriptação Ultra e gostava de passar os olhos sobre as transcrições das mensagens Enigma interceptadas que o chefe do MI6, Stewart Menzies, seleccionava para a inspecção do Primeiro Ministro, todas as manhãs. Mas poucos foram os elementos do Gabinete de Guerra de Churchill que partilharam daquela fonte da sua enigmática capacidade de adivinhar as intenções do inimigo… Nenhuma das restantes memórias da guerra fazem referência à galinha dos ovos de ouro de Bletchley, incluindo mesmo a do Chefe da Casa Imperial, o general Lorde Alan Brooke (22). Portanto, de um ponto de vista global, os Diários de Liddell são importantes documentos históricos. A segunda razão, já mencionada, é a escassez de material disponível originado do interior dos Serviços Secretos. Se três dos agentes duplos do tempo da guerra escreveram as suas aventuras, a saber, Lilly Sergueiev (23) (nome de código Treasure), John Moe (24) (Mutt), Dusko Popov (25) (Tricycle) e Eddie Chapman (26) (Zigzag), nenhum dos seus oficiais de ligação quebrou o seu silêncio. Esta lacuna é tanto mais notável se tivermos em conta o número de membros dos Serviços Secretos que se tornaram autores. Max Knight (27), John Bingham (28), William Younger (29), Gerald Glover (30), Kenneth Younger (31), e Derek Tangye (32), todos acabaram por escrever livros, e, embora alguns tenham optado pelos romances de espionagem, nenhum deles fez relatos não-ficcionais dos casos em que se tivesse envolvido, ou sequer revelou a verdadeira natureza das suas funções. A única excepção foi Joan Miller, uma das secretárias de Max Knight, que foi usada para penetrar um grupo de suspeitos traidores, em 1940, e mais tarde fez um breve relato das suas experiências em One Girl’s War (Uma Rapariga e a Sua Guerra), um livro de memórias inócuo que acabou por ser publicado na Irlanda depois de uma interdição legal ter impedido a edição inglesa.

             Em suma, nunca houve nenhum relato fidedigno, a partir de dentro, de como se operou durante a guerra nos Serviços Secretos, nem tão-pouco alguma descrição factual do duelo de contra-espionagem travado pelo MI5 contra o Eixo e depois contra os soviéticos. Nesse caso, o que nos contam os Diários, tão secretos durante 60 anos? Para resumirmos melhor o impacto dos Diários, podemos dividir o seu conteúdo em Personalidades e Operações. Em termos das actividades do MI5, os Diários revelam-nos os papéis clandestinos desempenhados pelo pessoal do MI5, pelos seus agentes em Inglaterra, e trazem à luz as actividades de dezenas de indivíduos antes desconhecidos. Liddell era um profissional de contra-informações com uma vida social intensa, e confiava na sua família e nos seus contactos sociais. Empregou os dois irmãos, David e Cecil, e confiou repetidamente nos primos e outros contactos, incluindo o banqueiro Lorde Edward Reid, que aconselhava o MI5 em questões de espionagem financeira. E também em Tommy Lascelles, secretário particular do Rei George. Muito bem relacionado socialmente, Liddell usou os seus contactos para construir uma impressionante rede privada que atravessava divisões de classe e ia do Palácio de Buckingham aos bordéis do Soho. Se juntarmos a esta estrutura as relações com os advogados do Home Office, as rivalidades entre as agências de informações, as sensibilidades diplomáticas e as vidas dos agentes postas em risco em território inimigo, podemos começar a ter um vislumbre do fardo sob o qual Liddell vivia- Mas, ainda assim, encontrava tempo para escrever as suas rimas humorísticas sobre os colegas, e passar os serões a gastar conversa com os amigos no Travellers Club, em Pall Mall.

             Em termos das operações, os Diários dão-nos uma visão dos assuntos que preocupavam Liddell e os seus colegas. Havia uma cooperação estreita com o Canadá, os Estados Unidos, a África do Sul e a República da Irlanda, mas as relações com o gabinete de Coordenação de Segurança Britânica em Nova Iorque (British Security Coordination) estiveram sempre à beira da catástrofe, principalmente porque Liddell confiava muito mais no FBI do que em William Stephenson. Apesar de o director do BSC ter prometido a J. Edgar Hoover terminar as operações clandestinas britânicas em solo dos Estados Unidos, e ter prometido, em especial, não dedicar agentes a missões contra representações diplomáticas estrangeiras acreditadas em Washington, continuou a fazê-lo, com todo o apoio de Bill Donovan, o rival de Hoover. Quando soube da estratégia de alto-risco de Stephenson, Liddell previu a raiva de Hoover, crise que acabou mesmo por acontecer, quando o FBI descobriu aquela colaboração secreta.

             O império de Liddell estendia-se desde o Gabinete de Informações de Deli, na Índia, até ao Comando do Sudoeste Asiático, no Ceilão, passando pelo Gabinete de Informações de Segurança do Cairo e, do outro lado do Atlântico, aos Agentes de Defesa e Segurança que nomeou para as Bermudas, Trinidad, Jamaica e Honduras. Todos os dias vemos Liddell a confrontar-se com pequenas questões a respeito de encontros marcados, a execução de espiões condenados, queixas a respeito do mau uso de um carro oficial por Duff Cooper, a colocação de escutas na suite do Claridges do Secretário de Estado Norte-Americano, ou sobre o tratamento a dar a desertores do inimigo, tais como Hans Jager.

    landscape photography of high-rise building during nighttime

             Os Diários despejam uma verdadeira cornucópia de preciosidades secretas, desde as preocupações de Liddell a respeito do regresso a Inglaterra da filha do Lorde Redesdale, Unity Mitford, depois de esta se ter tentado suicidar por causa de uma paixão não correspondida por Hitler, até à suspeita de que um criptógrafo, Harold Fletcher, tivesse passado os segredos de Bletchey ao serviço de informações nazi dirigido pelo temível Kurt Janhke. Dever-se-ia negar a Randolph Churchill a permissão de fazer a sua lua-de-mel em Paris, em Outubro de 1939? Qual era a gravidade das infiltrações no Gabinete de Operações Especiais? Podiam confiar-se ao FBI as mensagens interceptadas à Abwher que revelavam a existência de uma rede de espionagem em Nova Iorque? Iria um júri condenar um fabricante de aviões corrupto?

             Os Diários estão cheios destas preciosidades, e entre elas estão alguns incidentes bastante curiosos. Em Setembro de 1939, Wolfgang zu Putlitz, o principal agente duplo do MI5 dentro da Embaixada alemã em Haia, que tinha desertado para Londres, foi apontado num cinema por um cidadão, tomado por um nazi e preso pela polícia. Um mês mais tarde, o instituto Government Code & Cypher School recusou a entrada na Grã-Bretanha de um grupo de nove criptógrafos polacos que reclamavam ter descoberto o código Enigma. Os polacos foram obrigados a permanecer em França e o Enigma continuou inviolável por mais um ano, até ser finalmente quebrado com a ajuda dos mesmos homens. Um general do Exército Britânico propôs que se destruísse a economia alemã inundando-a com moeda falsa. A princesa Stephanie von Hohenlöhe, uma amiga chegada de Hitler, e conselheira contratada pelo proprietário do Daily Mail, Lorde Rothermere, foi impedida de deixar a Grã-Bretanha para se ir juntar ao seu amante nazi que tinha ido para os Estados Unidos.

             Em Janeiro de 1940, o MI5 negociou directamente com Lorde Oswald Mosley e a União Fascista Britânica. Em Março, o Lorde Rothshild, um proeminente aristocrata judeu que em breve se juntaria ao MI5 como especialista em sabotagem, advogou o extermínio da raça alemã. Entre outros quadros interessantes, está o conselho que Churchill deu aos franceses em maio de 1940, sobre como travar os tanques inimigos: «Atirem sobre os condutores quando saírem dos carros para se irem aliviar». As observações de Liddell sobre Churchill são admiráveis. Em maio de 1940, num encontro controverso com o líder da oposição trabalhista Clement Atlee, Liddell revelou que o governo de Churchill tinha ignorado as recomendações de rigidez que o MI5 tinha feito a respeito da política de acolhimento de estrangeiros. Quatro meses mais tarde Churchill pôs em causa as relações do MI5 com os agentes duplos alemães exigindo que todos os espiões alemães fossem fuzilados.

             As entradas dos Diários de Liddell estão também cheias de grosseiras inconfidências, tais como a descrição de uma conversa, em Agosto de 1940, entre o ministro da produção aeronáutica, Lorde Beaverbrook e Lorde Rothschild, que se zangaram por causa da entrega a firmas de judeus para contratos de produção de aviões. No fim da conversa, exasperado pela intransigência do seu parceiro de governo, Beaverbrook acusou o judeu Rothschild de anti-semitismo.

             Em Setembro de 1940, no auge da preocupação com a possibilidade de uma invasão alemã, o presidente irlandês, Eamon de Valera, considerou abandonar a neutralidade da República para se juntar aos Aliados. Um jornalista foi enviado em missão de confiança a Dublin, para avaliar das suas intenções. Mais tarde, em Janeiro de 1941, o MI5 propôs a operação Blue Boot, um plano para convencer os alemães de que os soldados britânicos iam pintar as botas do pé esquerdo de azul para se identificarem melhor uns aos outros. Esperava-se que os alemães engolissem a história e que quaisquer tropas invasoras que se disfarçassem com fardas britânicas se denunciassem pelas botas azuis que trouxessem!

             Entre os episódios mais extravagantes conta-se o pânico que houve quando um oficial da Força Expedicionária Britânica, o Coronel Gribble, que tinha servido em França em 1940, publicou o seu The Diary of a Staff Officer (Diário de um Oficial de Carreira) (34). O livro, que fazia uma análise do colapso francês, revelou imprudentemente a intercepção secreta de comunicações da Luftwaffe pelos britânicos. O MI5 teve de aplicar-se para encontrar e destruir todas as cópias que foram distribuídas. Noutro incidente, no verão de 1941, um batalhão de soldados polacos, na Escócia, persuadiu um oficial do exército britânico, Alfgar Hesketh-Pritchard, a ajudá-los a assassinarem Rudolf Hess antes que ele pudesse completar a sua missão de negociar uma paz separada com os Aliados. Os polacos acreditavam que estavam prestes a ser traídos, por isso planearam matar o representante do Fuhrer. O atentado foi frustrado no último momento pelo MI5, justamente quando Hesketh-Pritchard conduzia os seus soldados para um comboio, a caminho da prisão secreta de Hess em Aldershot.

    binoculars, see, watch

             Porque os Diários variam entre o mais trivial e as descrições de momentos determinantes, a humanidade genuína do autor emerge claramente. Num momento está a transcrever um extracto de um relatório do Comité Conjunto de Informações sobre a evolução da frente russa, e no momento seguinte está a contar uma história divertida de uma conversa interceptada entre o embaixador turco em Londres e a sua amante inglesa.

             Em termos de novas informações trazidas pelos Diários, ficamos a saber de novos nomes de desertores, tais como Colombine Harlequin. E quem iria imaginar que a embaixada britânica em Ankara tinha não só sido penetrada por um famoso espião do SD, com o nome de código Cicero, como os alemães tinham também o motorista do embaixador na sua folha de pagamentos? Estas são as histórias que foram abafadas durante décadas. Para aqueles que buscam lições para o presente, vale a pena notar que em Setembro de 1944 os planos para a ocupação aliada do III Reich estavam bastante avançados, e que a Comissão de Controlo para a Alemanha já tinha escolhido os lugares e o pessoal para a sua tarefa, nove meses antes da rendição final dos nazis.

             Do ponto de vista da contra-informação, os Diários de Liddell representam o olhar mais completo sobre as operações dos Aliados desde a publicação de Double Cross System (O Sistema das Traições), por Masterman, em 1972. Embora aquela publicação tenha revelado a extensão das operações do MI5 com agentes duplos, e tenha sido em parte complementada pela publicação quase simultânea de Game of the Foxes (Jogo das Raposas) de Ladislas Farago (35), era difícil ver essas histórias no seu contexto, porque Masterman se restringiu ao trabalho da B1(a), a secção de contra-espionagem alemã, e excluiu as redes paralelas mantidas no continente pelo MI6. Masterman também foi obrigado, por insistência governamental, a omitir as referências ao programa Ultra. No caso de Farago, o autor não dependeu de fontes dos Aliados, mas de registos capturados à Abwher, os quais tinham sido compilados numa altura em que a manipulação por parte dos Aliados dos chamados canais de «meios especiais» estava no seu auge. A este respeito, o relato de Liddell abrange o impacto das actividades do rival MI6 nos países neutrais, o papel crucial da recolha de inteligência para verificar a reputação de certos agentes aos olhos do inimigo, e a importância dos interrogadores do Campo 020. O que é exclusivo do seu texto, graças ao seu ponto de vista privilegiado, é que Liddell liga todos estas diferentes áreas para construir uma perspectiva inteira dos vários ramos da contra-espionagem no seu combate contra o Eixo. Muitas dessas dimensões estão disponíveis noutros lugares separadamente, mas só os Diários as reúnem, de tal modo que os laços entre a revista a um mercador da Trinidad pelo Controlo de Contrabando, ou um caso de Censura Imperial em Bermuda, uma mensagem de código inimiga interceptada, ou uma indiscrição num bar de Lisboa podem todos ser tomados como linhas da mesma investigação.

             Inevitavelmente, como na maior parte das histórias de espionagem, há-de haver muitas pontas soltas, e os Diários de Guy Liddell são capazes de ter mais do que uma boa conta, já que o documento nunca foi pensado para publicação, ou sequer para ser lido por estranhos. Portanto, quem melhor do que o autor deste livro sobre o papel de Lisboa na Grande Guerra para resolver os mistérios que ainda sobram? Como um persistente e tenaz investigador, a sua reputação estende-se para lá das fronteiras de Portugal, e ao longo dos anos os nossos caminhos têm-se cruzado, quando perseguíamos controvérsias e enigmas de mútuo interesse. Agora, a nossa colaboração estende-se a uma das áreas mais fascinantes, e ao mesmo tempo lodosas de toda a Segunda Guerra Mundial.

    Nigel West

    Historiador


    (a)

    Abwehr era o nome corrente da organização de informações militares alemãs, de nome completo Amt Ausland/Abwehr im Oberkommando der Wehrmacht”. (Nota do Tradutor.)

    (b)

    Estes relatórios, conhecidos só pela sua sigla, devem o nome à secção de criptólogos  que trabalhou em Bletchley Park sob o comando de Oliver Strachey, conhecida como Serviços Ilícitos (ou de Inteligência) Oliver Strachey (Illicit (IntelligenceServices Strachey). (Nota do Tradutor.)

    (c)

    O SD, ou Sicherheitsdienst, nasceu do primeiro serviço de informações nazi, coordenado directamente por Himmler, que o converteu em serviço de informações das SS e designou para comandante Reinhard Heydrich. No policiamento secreto alemão, o SD era a agência de informações, sendo a Gestapo o braço policial e executivo. (Nota do Tradutor.)


    NOTAS

    1       Nubar Gulbenkian, Pantelaria (London: Hutchinson, 1965)

    2       J,C, Masterman, The Double Cross System of the War of 1939-45 (New Haven, CT: Yale University Press, 1974); The Case of the Four Friends (Oxford University Press, 1954)

    3       Donald Darling, Secret Sunday (London: William Kimber, 1975)

    4       Jack Beevor, SOE Reflections (London: Bodley Head, 1982)

    5       Philip Johns, Within Two Cloaks (London: William Kimber, 1979)

    6       Michael Smith, Foley (London: Hodder & Stoughton, 1999)

    7       Dusko Popov, SpyCounterSpy (London: Weidenfeld & Nicolson, 1975)

    8       Juan Pujol, GARBO: The Greatest Double Agent of World War II (London: Weidenfeld & Nicolson, 1985)

    9       Roger Hesketh, Operation FORTITUDE (London: St Ermin’s Press, 1998)

    10     Camp 020: MI5 and the Nazi Spies, Robin Stephens (London: Public Record Office, 2000)

    11     The Guy Liddell Diaries Vol. I, 1939 –42; Vol. II, 1942-45 (London: Routledge, 2005)

    12      Spycatcher, Peter Wright (New York: Viking 1986).

    13     TRIPLEX (London: Yale University Press, 2008)

    14     The Greatest Treason, Richard Deacon (London: Century Hutchinson, 1989)

    15     Master of Deception, David Mure (London: William Kimber, 1980)

    16     Mask of Deception, John Costello (London: Collins, 1989)

    17     Their Trade is Treachery, Chapman Pincher (London: Sidgwick & Jackson, 1981)

    18     Inside the KGB, Oleg Gordievsky and Christopher Andrew (London: Hodder & Stoughton, 1990)

    19     The Mitrokhin Archive, Vasili Mitrokhin and Christopher Andrew (New York: Basic Books, 1999)

    20     British Intelligence in World War II, Harry Hinsley (London: HMSO, 1979)

    21     The British Security Service 1908-45: The Official History, Jack Curry (Public Record Office, 1999)

    22     War Diaries 1939-45, Sir Alan Brooke (London: Weidenfeld & Nicolson, 2001)

    23     Secret Service Rendered, Lily Sergueiev (London: William Kimber, 1966)

    24     John Moe: Double Agent, Jan Moe (Edinburgh: Mainstream, 1986)

    25     SpyCounterspy by Dusko Popov (London: Weidenfeld & Nicolson, 1974)

    26     The Real Eddie Chapman Story, Eddie Chapman (London: Library 33, 1966)

    27     Crime Cargo, Max Knight (London: Phillip Allan, 1934)

    28     The Double Agent, John Bingham (London: Victor Gollancz, 1966)

    29     The Skin Trap, William Younger (London: Eyre & Spottiswood, 1957)

    30     115 Park Street, Gerald Glover (London: Privately, 1982)

    31     Changing Perspectives in British Foreign Policy, Kenneth Younger (Oxford University Press, 1984)

    32     The Way to Minack, Derek Tangye (London: Michael Joseph, 1978)

    33     One Girl’s War by Joan Miller (Eire: Brandon Books, 1986)

    34     A Staff Officer’s Diary, Philip Gribble (London: Hutchinson, 1940)

    35     The Game of the Foxes, Ladislas Farago (New York: McKay, 1972)


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  • Ruanda: uma viagem ao inferno dos campos da morte

    Ruanda: uma viagem ao inferno dos campos da morte


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo no Ruanda, ao serviço da RTP, publicada originalmente no DIÁRIO DE NOTÍCIAS em 28 de Maio de 1994.


    Mais uma emboscada…
    (Foto: Imagem RTP)

    «Está doido? Nós estamos todos a fugir deste inferno. Porque é que você quer entrar nele?» 

    Meditei na pergunta e depois disse ao homem para seguir em frente.

    Voltava a haver confrontos políticos e étnicos no Ruanda. Tudo indicava que a antiga Suíça de África se tinha tornado noutro «campo de morte», depois de o avião do Presidente Juvenal Habyarimana ser atingido, em 6 de Abril, por dois rockets e se ter despenhado, no jardim da sua residência, à vista dos familiares que o esperavam, a poucos metros da pista do Aeroporto Grégoire Kayibanda, em Kigali. A Guarda Presidencial negou a autoria do atentado.

    Nós acabávamos de chegar ao aeroporto de Kigali num voo especial C-130, a partir de Nairobi, com os boinas-vermelhas e verdes belgas. Era tarde. Estávamos todos cansados.

    Depois, da parte de trás do edifício, veio o barulho do fogo de metralhadora.

    Mais de 50 crianças negras chegaram em camiões, carrinhas e jipes. Todos eles eram órfãos abandonados. Muitos deles estavam feridos, incapacitados, perdidos noutra guerra esquecida que não compreendiam. E eu?

    Os militares não tinham aviões que chegassem para levar todos os miúdos negros e os civis europeus deixados em Kigali.

    Quando o C-130 descolou, uma figura notável fez a sua aparição no solo: um homem lendo um livro, encostado à parede. A luz vinha de um cubo para acender latas de ração de combate.

    «Porque é que não dormimos todos uma boa noite?», propôs-me o comandante. Eu não consegui.

    «Qual é exactamente a situação, comandante?», perguntei. Demos uma volta por ali. As tropas do FAR, o exército do Ruanda, estavam no interior do aeroporto e em Kigali. Os guerrilheiros da Frente Patriótica do Ruanda (FPR) não estavam longe. Podíamos ouvi-los falar. Estavam ali, na estrada. E também na cidade. Os guerrilheiros estavam a ganhar a guerra.

    O fogo continuou, interrompido apenas pelos gritos ocasionais das crianças feridas.

    No hall do aeroporto, nessa noite, a conversa não era sobre o que os dois lados e as tropas da ONU podiam ou deviam fazer mas se haveria uma operação para cobrir.

    «Receio que vá haver outra guerra no Burundi…», disse o meu amigo Alfonso Armada, do El País. Não tenho a certeza que ele estivesse errado. O Burundi é quase como o Ruanda. Os mesmos grupos étnicos, as mesmas tensões, as mesmas chacinas. «Mais uma semana, mais 300 chacinados no Burundi (…) Até agora mais de 100.000 pessoas perderam vida, principalmente em confrontos étnicos, desde que o exército assassinou o Presidente Melchior Ndadaye, em Outubro», escrevia o The Economist, uma semana antes de o novo presidente do Burundi, Cyprien Ntaryamira, morrer em Kigali. Ele vinha no avião do Presidente do Ruanda. Ntaryamira tinha sido impotente para travar «os confrontos étnicos com origem nas antigas hostilidades entre os Hutus, um povo de agricultores que constitui 85% da população, e os Tutsis, inicialmente virados para a pastorícia, ao Norte, que dominaram os Hutus num sistema quase feudal.»

    O coronel belga falou à Imprensa sobre a operação da manhã seguinte para salvar alguns padres e freiras perdidos no país. Era uma missão arriscada. O outro problema era que apenas 12 jornalistas podiam ir. Nós éramos 23 e todos queríamos estar presentes.

    Gerou-se entre nós uma batalha psicológica. Alguns lançaram mão da sua experiência. Não resultou. Não conseguimos chegar a acordo entre nós. O coronel decidiu, finalmente:

    «Isto é uma operação belga. É para os media belgas. A Imprensa estrangeira não tem nada a dizer», acrescentou o coronel depois de eu lhe lembrar que a televisão precisava de mais pessoal.

    Jornalistas da imprensa escrita decidiram tirar de um chapéu o nome afortunado dos quatro que podiam ir. Um, dois, três… Alfonso Armada foi o número 3. Um jornalista belga disse: «Nada de estrangeiros!» Alfonso já não pôde ir. Simone Reumon (canal RTBF, Bélgica) disse-me que ia. Eu não ia, mas ela deixava-me utilizar as suas imagens. O Ruanda era uma história da Bélgica… só para a imprensa belga. Nunca esquecerei o o seu estranho sentido de justiça e a sua peculiar definição de jornalismo com bandeira.

    Passei a noite a vaguear pelo aeroporto depois de ajudar Alfonso a enviar um texto para Madrid. Estava triste. Trabalho para a televisão (RTP). Tinha uma história (os órfãos), mas não tinha satélite para a transmitir, nem telefone para a contar, ninguém no Quénia para me ajudar, nada de nada. Nem mesmo uma cerveja…

    O Aeroporto de Kigali está cercado. A cidade está a ferro e fogo. E eu estou… apeado.
    (Foto: Imagem RTP)

    O grupo deixou o aeroporto de Kigali às 06:00 da manhã. Eu, fiquei. Christian Maton, o meu cameraman belga, desejou-lhes «boa viagem».

    O resto da manhã passou sem que nada acontecesse. Os soldados estavam lá. Eu estava lá.

    É conhecida a capacidade dos militares para distorcer a realidade (e, por vezes, a nossa maleabilidade para a aceitar), mas no Ruanda não foi preciso. Há poucas excepções…

    Os aviões C-5 norte-americanos transportavam soldados estrangeiros (e alguns jornalistas, incluindo eu) e equipamento militar de Bruxelas para Nairobi. Era uma «missão de treino», disse-me um sargento da Força Aérea, natural da Califórnia. Em voz baixa retorqui com um «obrigado» mastigado. Começava a sentir-me apreensivo com os americanos a participarem nessa guerra. Os estrategistas de guerra belgas franceses destacados para o Gabinete de Imprensa, em Kigali, não manipularam todos os jornalistas todo o tempo. Não era necessário. Pregaram um susto de morte a dois jornalistas flamengos. Eles abandonaram Kigali na mesma noite no primeiro voo para Nairobi ou Bujumbura. Esta guerra não era interessante nem sexy para os europeus. De facto, não era a guerra deles. Eles não estavam aqui para lutar (mesmo se o uso de mísseis não foi posto de parte), mas para evacuar os civis europeus juntamente com algumas autoridades locais influentes — e os órfãos. Humanité oblige…

    «Negros contra negros… a selvajaria continua, eles não mudaram, é só isso…», disseram-me em privado, que o mesmo funcionário europeu dos «serviços de informações» classificaria os «negros bons para o lado da França e os maus rapazes para o da Bélgica». Ambos os países estão activos na região.

    Motivos de ordem política e económica são uma das explicações…

    As tropas da ONU ficariam no Ruanda para «manter uma presença das Nações Unidas». A ausência de qualquer tentativa da ONU para travar a guerra (para defender princípios e salvaguardar a sua credibilidade) era mais do que evidente. Kigali é muito menos importante que Sarajevo, Gorazde e outras.

    Devido ao tiroteio em grande escala, às chacinas e à atenção que a Imprensa lhes estava a dar (tentando pôr o Ruanda no mapa das notícias internacionais), o apoio entusiástico dos militares começava a diminuir.

    Antes do meio-dia, vi uma caravana de jipes e camiões. Era a última. Havia outras três pessoas para retirar da Baixa de Kigali. Eu não tinha nada a perder…

    «Se tiver carro, eu aceito-o na coluna!», disse o oficial. Pensei que ele estava a brincar. Kigali era então o pior lugar do Ruanda. Não éramos compatriotas, é verdade…

    Mas o boina-vermelha belga falava muito a sério. Todos os soldados estavam equipados com espingardas automáticas FNC e coletes à prova de bala. Alguns jipes e camiões eram blindados. E eu nem sequer tinha um carro…

    Devo ter parecido completamente estarrecido.

    «Vem? Tem medo da morte?», indagou.

    Eu respondi: «Tenho, mas dê-me cinco minutos… para descobrir um carro.»

    Vi uma velha carrinha abandonada no parque de estacionamento. Abri a porta.

    Uns minutos mais tarde, liguei a ignição — como um ladrão da cidade. A bateria estava descarregada. Alguns dos 10 jornalistas excluídos incitavam-me ao crime.

    Tentei outro carro — um jipe Mitsubishi novinho em folha. O sistema é o mesmo: dois fios mais um — e resultou. A estranha procissão pôs-se a caminho. Dei boleia a outros seis jornalistas.

    Juan Mirales (La Dernière Heure, Bélgica) sorriu. A caravana arrancou lentamente até a estrada chegar à fronteira entre os dois lados do conflito.

    A caminho da capital…
    (Foto: Imagem RTP)

    Os fotógrafos freelance tiraram fotografias dos corpos rígidos na estrada. Uma jovem ficou com a cabeça feita em bocados por uma catana. As pernas de um homem foram comidas pelos cães depois de ele ser abatido. É culpado de ter nascido no grupo étnico errado e de ter recusado o extremismo.

    Nos arredores de Kigali e em todo o país havia uma atmosfera de pânico e desespero. Dezenas de milhares de ruandeses e seis ou sete civis europeus foram assassinados. Dez boinas-azuis belgas da ONU morreram porque receberam ordens dos seus superiores para se renderem. Os seus inimigos arrancaram-lhe os olhos, cortaram-lhes os pénis, cortaram-lhes os tendões, abateram-nos — com 10 balas cada. Eles…

    As tropas leais ao Governo (sic) estavam a ser denunciadas como carniceiros ou assassinos. Não estou certo que fossem os únicos…

    «Não desperdiçámos este dia!», disse Vincent Dudant, freelance, agora um bom amigo.

    Alguém disse: «Não é o máximo?» Eu ia a guiar o jipe. Daí a pouco, sem aviso, parecia que estávamos no inferno. Encontrávamo-nos no meio de um combate. Era uma emboscada. As tropas belgas não são bem-vindas no Ruanda. Agachei-me atrás do volante. Ouvia-se os disparos das AK-47 muito próximos. A caravana parou. Ouvia o pau-pau-pau das metralhadoras, o zumbido das balas atrás das árvores. Preferia isso aos morteiros…

    Durante um momento longo e de estupefacção fiquei imóvel. Os boinas-vermelhas responderam. Eu disse a Christian para filmar: «Usa toda a fita  que queiras, mon petit

    Um guerrilheiro da FPR.
    (Foto: Imagem RTP)

    Ao que parece, o que estava a acontecer era que as tropas leais ao Hutus estavam a apresentar o cartão-de-visita a um comando europeu, à FPR ou aos civis que estavam na zona. Foram 15 minutos ruidosos…

    Deixámos o lugar com alguns buracos nos carros e uma história para contar. A capital do Ruanda estava dividida… Foi-nos dito por um guerrilheiro da FPR furioso. Eles levaram com fogo «amigo» dos boinas-vermelhas. Um jipe abandonou a coluna, mas nós encontrámos na capital o embaixador do Egipto.

    A caminho do sítio onde os dois civis belgas deviam estar, vimos mais corpos, um jovem ferido a pedir ajuda. Eu não disse palavra. Ia a conduzir… O seu único conforto antes de morrer: duas fotos. A preto-e-branco. Pensei no que Bill Kovach ou Bob Phelps fariam na minha situação.

    A segunda viagem a Kigali correu bem — depois de uma rápida paragem junto ao Hotel Méridien, ocupado pela Missão da Paz das Nações Unidas. Houve outra explosão de um morteiro frente ao edifício. Os outros civis não vieram connosco.

    O campo era verdejante e luxuriante. A África é tão bela. A chuva tinha parado há muito, mas ainda se sentia o cheiro da terra — as cores ocre magníficas. O que faltava eram as pessoas — pessoas a caminhar como se faz por toda a parte nesse continente —, pessoas a dançar, a rir ou simplesmente a trabalhar ou a dormir.

    À frente da coluna encontrámos o oficial que mandava. O seu carro tinha sido atingido por fogo emboscado a cerca de dois quilómetros. Havia outro problema. Tínhamos de regressar à base aérea da capital por outro caminho.

    800.000 mortos e 3.000.000 de refugiados em 100 dias…
    (Foto: Documento Diário de Notícias – ilustração do artigo)

    Uma vez no aeroporto, encontrei Alfonso. «Foi fascinante, mas muito triste», disse-me em português. Nessa manhã, ele encontrara alguns amigos italianos da ONU e foi com eles até Musha.

    Conclusão: ele conseguiu um furo jornalístico. Uma aldeia inteira — 1.180 homens, mulheres e crianças — foi dizimada porque era Tutsi.

    O episódio deu manchetes. Eu também fiz uma entrevista com o padre de Musha. Num camião.

    «Eram 06:30. Eles começaram a matar toda a gente com granadas de mão, armas automáticas e catanas, dentro e fora da igreja. No dia seguinte, fui à minha igreja. Havia um grupo de 50 crianças com as mães. Viraram-se para mim e disseram: — Padre, Padre, Padre. Que podia eu fazer?», explicou-me o padre Litric Danko antes de defender que a única coisa que eles precisam no Ruanda é de uma ditadura.

    Perguntei-lhe de onde vinha. «Serbia. Serbia.», replicou.

    Deixei Kigali umas horas mais tarde. Fiz duas histórias sobre o Ruanda. Eu não tinha muito e o Ruanda já não era uma prioridade. Pelo menos até ser história na CNN.

    O problema, agora, é a minha próxima missão em África. Aposto que vai ser algo sobre a região dos grandes lagos como o Burundi. B-U-R-…

    Esta crónica não é inocente. Como Olivier Todd disse, «não se podem reduzir os factos a palavras.»

    Um genocídio com pré-aviso…
    (Foto: Imagem RTP)

    COMPLEMENTO DE INFORMAÇÃO – 2024

    O Ruanda foi o pior teatro de operações onde estive até hoje. Foi muito pior do que Timor, Zaire, Bósnia, Líbia, Síria, República Centro-Africana, etc.

    Em menos de 100 dias, a guerra no Ruanda provocou a morte de 800.000 pessoas e 3.000.000 de feridos e refugiados.

    Estive no Ruanda logo nos primeiros dias do genocídio. Éramos 23 repórteres. Era o único português. Não havia CNN, BBC, ABC, TF1, etc.

    Em Kigali, pedi uma arma para matar. Eu cá me entendo: com granadas defensivas atiradas para dentro de igrejas pejadas de mulheres, velhos e crianças e com bebés esventrados à catanada (sem falar das violações e dos roubos) optei por ser homem antes de ser pianista de lupanar (não digam pf aos meus pais que eu sou jornalista para eles não ficarem decepcionados, segundo a fórmula consagrada e assaz pouco original)…

    Não cheguei a matar, mas era mais do que tempo de abalar dali. Confesso que tive pesadelos durante 18 longos anos por causa daquele maldito inferno. Ninguém passa impunemente pelas guerras. Nem os soldados, nem os civis, nem sequer os jornaleiros. Um dia, os meus pesadelos desapareceram. Definitivamente.

    No Ruanda, arranjei aquele que é, passados 30 anos, um dos meus melhores amigos de sempre. O grande repórter (El PaísABC, fundador e actual director do FronteraD, etc.), poeta e escritor galego Alfonso Armada.

    Fui para o Ruanda porque o embaixador do Burundi na Bélgica era meu vizinho e amigo. Ele alertou-me para o genocídio que estava em preparação com (mais uma vez) a passividade cúmplice da ONU.

    Na ausência de notícias das agências internacionais (instituições obviamente mais credíveis do que os correspondentes da casa!), a RTP só me deixou avançar para Kigali na condição de eu não gastar dinheiro.

    Eu confiava na minha fonte. E sou poupado…

    Primeiro, arranjei em Bruxelas boleia para África: um voo militar dos EUA para Nairobi.

    Já tinha um pé no continente.

    Depois, na placa do aeroporto da capital do Quénia, tive a sorte de um C-130 militar belga me levar (juntamente com uns poucos jornalistas como o Alfonso Armada) para Kigali. Éramos só 23. 

    Em Kigali, pernoitámos no aeroporto cercado. Dormimos no chão. Devorámos as melhores rações de combate que… não são, decididamente, as portuguesas.

    Parte da história do Ruanda continua por contar.

    Para saber mais, proponho três documentos:

    – J’ai serré la main du diable – La faillite humaine au Rwanda.

    General Roméo Dallaire, 2004

    – La France, le Rwanda et le génocide des Tutsi  – Commission de Recherche sur les archives françaises relatives au Rwanda et au génocide des Tutsi.

    (Rapport remis au Président de la République le 26 mars 2021)

    Editor : Armand Colin (NOTA: Também está disponível na internet em pdf e é grátis.)

     – Rwanda 1994  et l’échec des Nations Unies – Toute la vérité.

    Amadou Deme, 2011

    Lisboa – Julho 2024


    Reportagem do jornalista Rui Araújo ao serviço da RTP, originalmente publicada no DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Lisboa – 28 de Maio de 1994


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  • Portugal: um dia com a brigada de homicídios

    Portugal: um dia com a brigada de homicídios


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem publicada originalmente na revista GRANDE REPORTAGEM, em Abril de 2000. Um relato de Rui Araújo, que acompanhou a brigada de homicídios da Polícia Judiciária durante um dia.


    Um dia com a Brigada de Homicídios

    Os homens maus fazem aquilo que os homens bons gostavam de fazer…

    09:15

    É um rapaz inquieto e impaciente que entra na sala 1:14 da Secção de Homicídios da Polícia Judiciária, em Lisboa.

    Jorge tem 26 anos, um físico de atleta e o respectivo fato de treino. 

    — Nem sei quantos tiros lhe dei. Só sei que disparei uma série de vezes… – refere de imediato. 

    — Mas também não tenho remorsos nenhuns. Se fosse preciso voltava a fazer o mesmo.

    Em causa estão os cento e tal contos que pagou a um vigarista por uma carta de condução (francesa) falsa e a honra ferida.

    Foi detido mal o comboio em que viajava parou em Santa Apolónia. É acusado de homicídio consumado.

    Mas os problemas do jovem emigrante (praticante de boxe) só começaram quando relatou alto e bom som num restaurante da capital aquilo que tinha feito. Um informador mais atento contactou a PJ. A escuta dos dois telemóveis da mãe do rapaz fez o resto.

    Jorge, agora aguarda. Já confessou tudo. Os seus próximos combates serão contra o tempo.

    O agente Paulo Riscado explica-lhe que antes de irem ao Tribunal de Sintra é preciso tratar da papelada.

    — Aquilo que está a acontecer, aqui, é exemplar. Chegamos a ter simpatia pelos arguidos porque quem mata é quase sempre o mais frágil. Jorge é uma dessas pessoas. Está aqui por causa de um desabafo, porque foi um desabafo. Desta vez, tivemos sorte. O problema na PJ é que continuamos a trabalhar com modelos arcaicos… — conta o sub-inspector António Teixeira.

    10:05

    O investigador Carlos Fonseca pára de ‘bater’ metodicamente (com dois dedos) mais um auto de inquirição e pega no telefone. É uma chamada da PSP de Santarém. 

    A máquina de escrever de estimação da Secção de Homicídios.
    (Foto: Rui Araújo)

    A comunicação dos “monos” refere uma mulher assassinada pelos homens que estavam a assaltar o seu apartamento. Parto com a equipa que está de prevenção. Como o lofoscopista (técnico das impressões digitais) e o fotógrafo já vão a caminho, só nos resta mesmo o velho Golf de serviço. 

    — Parece que desta vez é mesmo a sério… — comenta o agente Paulo Riscado.

    — Espero que tenhas razão, porque da última vez que nos chamaram era uma grande tanga. — adianta Carlos Fonseca antes de suspirar profundamente.

    — Era a história do feto, não era? — pergunto.

    — Sim, era a história do feto… — confirma o agente Carlos Fonseca.

    — Os “geninhos” descobriram o crime do século. E, como não tinham mais nada para fazer, venderam-vos uma história de feto por lebre… — ironizo.

    Carlos Fonseca, sem sorrir, acena que sim e o colega que conduz suspira, comovido ou indignado com tanto alheamento.

    A pedido da Guarda Nacional Republicana foram uma tarde a Vila Franca de Xira desvendar o caso do feto humano atirado para um poço, mas apenas acabaram por descobrir o esqueleto de uma pobre lebre que tinha tido a infelicidade de lá cair dentro.

    O local fica num prédio recente, perto da esquadra. Três pessoas aguardam no patamar da escada. Dois homens e uma mulher. Eles estão calados, a olhar para o chão de mármore branco. A mulher, que deve ser a filha da vítima, está a chorar. É um pranto surdo. O guarda da PSP saúda-nos antes de meter a chave na fechadura.

    A mulher morta que está deitada na alcatifa verde da sala-de-estar tem um corpo interessante. O pior é o resto. Os pés já estão ser devorados pelas larvas (ainda) brancas. E a testa está esfacelada. Tem algumas escoriações provocadas, aparentemente, por um objecto contundente. A posição do corpo também parece curiosa, mas, como a a PSP e os médicos do INEM estiveram aqui antes de nós para prestar algum socorro à vítima, tudo é possível.

    (Foto: D.R.)

    No resto do apartamento, predomina a ordem da banalidade. Só o magma de sangue que escorreu dos lábios da mulher contrasta um pouco com as paredes esverdeadas.

    O “Dedinhos” (lofoscopista) tenta encontrar impressões digitais úteis para a investigação.

    — Bate só uma foto daqui do corredor, o resto é chapa três, pá. — indica Paulo Riscado ao fotógrafo.

    O técnico prepara o enquadramento e começa a disparar.

    Os dois agentes iniciam então a inspecção judiciária ou, por outras palavras, começam a procurar toda a espécie de vestígios no local do crime, mas a primeira etapa, neste como em qualquer outro crime, é sempre o exame ao cadáver. Cada morto tem “respostas” que é importante reter desde logo. Só que, aqui, alguém mudou a mulher de sítio. É o que indicam os livores — as feridas post mortem que nunca sangram. Os agentes colocam a senhora na posição inicial. Depois, acabam por chegar à conclusão de que as lesões encontradas não podem ser a causa da morte. Aquilo que aconteceu não foi mais do que um simples acidente. A mulher teve um ataque cardíaco e quando caiu bateu com a cabeça no armário. A ferida na frontal direita vem daí.

    O processo do acidente, agora, vai para o tribunal da comarca. Mais um. E é tempo de comer qualquer coisa. A prevenção ainda não acabou.

    12.15

    Entramos no primeiro restaurante que encontramos. Bem dispostos — porque ri-se muito nos homicídios. Deve ser por causa do confronto permanente com a morte mesmo se esta secção investiga tudo e mais alguma coisa: propagação (in)voluntária de doenças, maus tratos, rixas, corrupção de substâncias alimentares ou medicinais, agressões, suicídios, acidentes de trabalho, negligência médica, abortos e até homicídios. Porque também os há e aumentaram mesmo de ano para ano apesar de o sangue ainda continuar a correr mais em Portugal por conta da estrada.

    Cada vez é menor a relação entre o autor e a vítima de um homicídio. 

    Conclusão: a investigação é tanto mais difícil quanto hoje, pelo menos nas grandes cidades, se mata sobretudo “por dá cá aquela palha”… à excepção dos ajustes de contas e são alguns — essencialmente relacionados com o tráfico de estupefacientes e as dívidas.

    A vingança, a honra e acessoriamente a paixão continuam a ser as principais causas de homicídios nas zonas rurais. Os problemas associados à água têm, agora, uma dimensão cada vez mais reduzida no interior do país.

    — A sociedade evoluiu e a criminalidades acompanhou essa evolução. Os criminosos mudaram. Tipos como o Zé da Tarada, o Muleta Negra, o Dédé, o Delfim pertencem irremediavelmente ao passado. — diz Paulo Riscado.

    No fundo, é tudo uma questão de valores e de assinatura. O leque é, agora, mais vasto.  A investigação é mais complicada. A prova está também mais fragilizada. A confissão deixou de contar, felizmente, aquilo que conta é a prova em tribunal.

    (Foto: D.R.)

    Há um excesso de “garantismo” para alguns arguidos, pelo menos para os que têm maior poder económico porque para os outros a Justiça à portuguesa resume-se a uma corda esticada no meio da rua. Os grandes saltam por cima. Os pequenos passam por baixo. E alguns — poucos — tropeçam…

    O provérbio faz sorrir os homens da Gomes Freire, mas o autor é russo. A tendência por cá ainda é, hoje, haver mais homicídios por causa da droga, das “banhadas”, do tráfico de mulheres e do controlo da segurança nocturna. O resto são dramas anónimos. E alguns crimes sem solução…

    Estripador (das prostitutas) de Lisboa e o Estrangulador de Cascais são apenas dois exemplos públicos e notórios. O primeiro assassino não foi apanhado porque a recolha de vestígios foi deficiente. O segundo…

    Factos: Maria Antónia foi estrangulada, violada e assassinada numa noite de temporal entre um muro e um canavial, a 50 metros de uma estrada sem nome. Tinha 21 anos. Foi a primeira vítima do Estrangulador de Cascais. Ia ter com uma irmã à estação. Nunca lá chegou. O corpo da jovem foi descoberto na manhã seguinte por um miúdo das barracas que ia comprar vinho para o pai… Ninguém deu por nada. E, se deu, optou pelo silêncio.

    Carmel Josephine, irlandesa, foi a segunda. Mesmo local e circunstâncias e modus operandi idêntico.

    O inspector João de Sousa e os homens da Secção de Homicídios da Polícia Judiciária não excluíram, então, a hipótese de se tratar do mesmo assassino só que testemunhas e pistas concretas, não as havia, mais uma vez.

    Para os investigadores a única certeza é que a ausência de suspeitos resultava, curiosamente, do facto de não ter sido definido (através dos espermatozoides) o grupo sanguíneo e sobretudo o ADN do agressor da portuguesa.

    A divulgação dos retratos robot de agressores sexuais — e eram alguns — a actuar em Cascais também não deu qualquer resultado.

    Meses depois, foi assassinada outra mulher. Victoria Owen, cidadã inglesa, foi encontrada morta dentro de um automóvel perto da praia do Guincho. Na cena do crime a Polícia Judiciária pouco ou nada descobriu. Mas o terceiro homicídio, pelo menos, permitiu traçar um perfil psicológico do assassino. Era um serial killer ou, por outras palavras, uma forma de delimitar a investigação.

    — Os serial killers representam uma ameaça tanto mais séria quanto são pessoas difíceis de apreender: na maioria dos casos, não têm qualquer relação com as vítimas. Têm um perfil muito diferente dos outros criminosos. São sádicos sexuais que só têm a sensação de existir através da morte e da dominação. Matam por prazer. — conta o agente António Cruz.

    Os escassos indícios existentes levaram a Judiciária a deter um pedreiro, Carlos Alberto, que foi rapidamente libertado por falta de provas. A imprensa “especializada” (e não só), entretanto, acabou por divulgar o caso — e do mesmo modo propagandear a paranoia do serial killer.

    A solução dos crimes acabou por depender do resultado de uma informação solicitada pelos investigadores ao Instituto de Medicina Legal (NOTA: denominado, hoje, Instituto Nacional de Medicina Legal). 

    Cadáver do sexo feminino, com marcas de mordedura no membro inferior esquerdo, na face anterior, e avançado estado de putrefacção.

    1. As duas mordeduras são humanas e realizadas pelo mesmo indivíduo.

    2. As equimoses nas áreas mordidas revelam que houve sucção (mordidas eróticas).

    3. A profundidade de algumas das lesões revelam-se compatíveis com sadismo.

    4. As lesões foram em vida da vítima.

    5. A comparação dos modelos do suspeito Carlos Alberto com as lesões de mordedura da vítima são concordantes, havendo uma relação estreita entre a área mordida e a forma da arcada e as dimensões dos bordos incisais dos dentes anteriores do suspeito. Há um intervalo entre a mordedura de 25 e 23 que coincide com o espaço de ausência de 24 no suspeito.

    O homem das obras foi novamente detido, mas não chegou a haver mandado de soltura. Foi julgado e condenado. Se um segundo Estrangulador continua a andar por aí, é outra história…

    15:28

    — Eu quero é ser preso! O senhor, prenda-me!

    A cara estanhada, os dentes amarelados e a fala arrastada do homem que acabou de entrar não estão decididamente a condizer com as calças de fantasia. 

    O agente Carlos Fonseca que tem mais que fazer (obviamente) propõe uma cadeira ao homem.

    — Eu quero ser preso! Eu quero ser preso! — repete o recém-chegado como uma contrição.

    — Porquê? — indaga o sub-inspector António Teixeira.

    — Porque matei ou devo ter matado seis pessoas. Eu quero é ser preso! — responde o outro, descomandado.

    — Quem é que matou?

    — Eu não consigo trabalhar. Eu ando desorientado. Matei, é um facto. O que eu posso dizer é que não sei quem é que matei, mas eu não suporto mais isto…

    — Mas matou quem?

    — Eu já não sei o que ando a fazer e preso estou melhor do que na rua. Eu ainda mato alguém no meu táxi. A minha cabeça não anda nada bem. Eu não ando nada bom, tá a ver?

    — Mas o que é que aconteceu?

    — Eles seguem-me. Eu não sei e capaz de serem os russos ou a CIA, não há provas. Isto tem a ver com o satélite, conforme  também escutam a casa dos vizinhos. Só queria que me deixassem em paz… — desabafa o motorista antes de começar a chorar de despeito.

    — Podia consultar um médico… — sugere o polícia, sentado ao meu lado.

    — Eu sei que estou apanhado e uma das coisas que lhes interessava era eu ir ao psiquiatra e passar por maluco. Já estou a ver o filme. Vocês estão mas é feitos com eles… — diz o homem, desesperado, ao constatar que as suas queixas tinham sido vãs. 

    Depois, enxuga lentamente as lágrimas, mete o lenço no bolso e desanda sem se despedir.

    Quando o Piquete está com muito serviço ou pouca paciência é assim: a Secção parece mais um anexo do Júlio de Matos. É que vem cá tudo parar.

    — Temos uma série de malucos a denunciar crimes imaginários. Há quem pense ter em casa esparguetes voadores, raios invisíveis, ficheiros secretos, só visto… E há ainda o tipo que tem a mania que é o Ramalho Eanes e que liga para cá com alguma frequência para confirmar que sabemos que ele é o verdadeiro e que o verdadeiro é falso. Muitas vezes somos mais assistentes sociais do que investigadores. É preciso é ter paciência e gostar muito disto porque senão… — comenta o sub-inspector Mário Bordaleiro, que já tem alguns anos de Homicídios.

    Senão, passavam-se. Entretanto, vão apaziguando a solidão de uns e a loucura dos outros.

    white painted wall
    (Foto: D.R.)

    16:03

    A sala das autópsias está decorada com quatro corpos e um tronco humano. É mais um dia movimentado para o Serviço de Tanatologia forense do Instituto de Medicina Legal. É ainda um dia como os outros porque os três médicos disponíveis só muito dificilmente conseguem dar conta do recado. E entende-se. Só no ano passado, tiveram de realizar mais de duas mil e tal autópsias — que eram tanto mais desnecessárias quanto a maioria era referente a doentes e a suicidas. Os da comarca de Lisboa são sistematicamente autopsiados. Para quê? Ninguém tem resposta porque, se calhar, já não há nenhuma justificação plausível para que isso suceda.

    Os corpos estão prontos para a autópsia: caixa torácica esventrada, pela descolada (por causa dos órgãos vitais) e cabeça encostada a uma placa metálica.

    — E o meu tronco? — pergunta o agente que está comigo.

    — O teu tronco… — responde o outro.

    O tronco humano foi encontrado na área da Fonte Luminosa dentro de uma mala de viagem em chamas. É preciso identificar o proprietário. E, em seguida, o assassino. É para isso que o agente dos Homicídios está aqui.

    Com o calor que está, o fedor é ainda mais insuportável. A sala tresanda a hidrogénio sulfurado ou coisa que valha.

    — Uma autópsia é a única operação feita sem anestesia, pá, mas ninguém se queixa… — comenta o médico em forma de introdução.

    O cortador pega num facalhão, efectua uma incisão torácico-abdominal e… desvio os olhos da mulher. O único refúgio que encontro, neste momento, são os néons esverdeados do tecto.

    — Eu trato do teu cliente daqui a um instante, mas primeiro tenho que dar assistência aqui aos meus bichinhos de estimação…

    — Ó F…, ataque aí com a serra vibratória! — ordena, entretanto, o médico.

    O cortador pega na ferramenta. A incisão mento-púbica é efectuada num ápice.

    Os “bichinhos de estimação” dele são as larvas. É o único médico legista que conheço que adora as larvas e tem uma explicação racional para tão curiosa paixão.

    — É fácil e tem dado excelentes resultados, pá: as moscas depositam nos olhos, nas narinas na boca e nas feridas dos cadáveres os ovos que se transformam em larvas logo ao fim de 24 horas… Depois, é tudo uma questão de tamanho e de côr para se poder determinar o momento — e eventualmente o local do óbito. É uma ajuda preciosa. — explica o doutor.

    A mala de viagem em pergamóide preto em que foi encontrado o corpo contém ainda alguns restos carbonizados de um pano de feltro negro e de uma manta que já foi porventura castanha. O cheiro a gasolina é insuportável. Há ainda no interior da mala papel de embrulho com um fio e uma medalha de prata com a imagem do Sagrado Coração de Jesus.

    grayscale photography of gray tombstone
    (Foto: D.R.)

    As probabilidades de o tronco pertencer a um indivíduo branco que teria uns 50 ou 60 anos, uma forte compleição física e uma altura provável de 1,70m são elevadas.

    A morte terá ocorrido na madrugada de ontem. Os esfregaços anais recolhidos no tronco permitem determinar, pelo menos, que o grupo sanguíneo é A negativo.

    É muito pouco para tirar quaisquer outras conclusões.

    — E queres saber o que é que é mais importante? — pergunta o médico.

    — Dispara!

    — As larvas só comem os tecidos necrosados e comem-nos, devoram-nos a uma velocidade incrível, pudera, é que têm poucos dias para multiplicar o seu peso por 1.000. Primeiro, são brancas. Depois, castanhas e por fim ficam pretas. E é sempre a mesma história: ao de fim de 21 dias, acaba-se. O ciclo termina: saem da crisálida e metem-se a voar.

    — E o meu tronco? Podes adiantar mais alguma coisa? — questiona o investigador.

    — Posso. Primeiro, foi esfaqueado. Cheira-me a crime de maricagem, porque as mulheres e os homens matam de outra forma. Certo?

    É plausível. Só alguém relacionado com o morto teria, de facto, interesse em desfazer-se do corpo.

    É preciso então apurar em que circunstâncias o homicídio teve lugar. Há uma participação de desaparecimento que descreve a medalha. A partir daí, a PJ descobre o assassino.

    Perguntado se queria responder sobre os factos que lhe são imputados, respondeu: que deseja, de sua livre vontade, esclarecer os factos em causa nestes autos.

    O arguido mantinha, a troco de 2.000$00 ou 2.500$00 relações anais com o M.

    Este relacionamento veio a estreitar-se uns meses depois, passando o arguido a viver em casa da vítima. Deixou de cobrar, mas passou a ter casa e comida à borla, mantendo com a vítima a mesma relação homossexual.

    Existiram episódios nos últimos tempos que o arguido levou a peito, ficando furioso com o facto de M. ter sido incorrecto com a sua mãe quando esta ligou a perguntar por ele para casa do M.

    Começou também o M. a telefonar para a sua terra natal dizendo aos seus familiares que o arguido não gostava de trabalhar, etc., a fazer queixas aos familiares, situação esta que o preocupava de sobremaneira. Na verdade, temia que a vítima denunciasse a relação  homossexual que ele mantinha aos seus familiares.

    Irritado, mesmo furioso, resolveu, nesta passada sexta-feira de manhã, marcar um encontro com o M. em sua casa para esse mesmo dia, às 19h00.

    Depois, foi buscar uma catana antiga que tinha arrumada no armário do quarto. Quando eram umas sete da tarde, foi para a varanda para assistir à chegada do M.

    Esperou que ele chegasse, o que só aconteceu por volta das 19h25. Depois de lhe abrir a porta, muniu-se da referida catana e, quando este entrava, desferiu-lhe de imediato uma forte pancada no pescoço, provocando-lhe um golpe bastante profundo.

    M. estava nesse momento de costas para o arguido. M. caiu e ainda tentou gritar, mas o arguido continuou a golpear-lhe o pescoço até a vítima não dar mais qualquer sinal de vida.

    Depois, embrulhou o corpo num cobertor usado e meteu-o dentro da banheira. Foi então buscar a bolsa de cabedal que o M. transportava e vasculhou a  encontrando uma nota de 5.000$00 e quatro notas de 2.000$00, num total de 13.000$00 (treze mil escudos).

    Em seguida, foi para os copos com dois amigos e só regressou a casa no domingo à tarde. Nessa altura, lavou as paredes, despiu o cadáver, deixando-o apenas com as peúgas.

    Cortou a cabeça de M.

    Neste momento, por serem já 23h24, o Exmo.º Inspector ordenou a interrupção deste auto e a sua continuação no dia…

    Para a maioria dos investigadores, qualquer assassino mete dó depois da confissão. Os mais frágeis é que matam. Só o facto de tentarem permanecer lúcidos impede os homens da Secção de sentirem simpatia por quem quer que seja. Na realidade, são caçadores. Que fazem suas as palavras de André Malraux: «Para julgar é preciso compreender e quando se compreende já não se pode julgar.»

    woman holding sword statue during daytime
    (Foto: D.R,)

    17:50

    O sub-inspector deixa o telefone tocar quatro vezes antes de atender. Os dois agentes que optaram pela comunicação via Tango (NOTA: inicial da letra T como Telefone) são peremptórios. É mais um processo para ser arquivado. O caso do velhote que se atirou para debaixo de um autocarro da carreira 43 na Rua da Junqueira está, irremediavelmente, solucionado. Quando o pessoal da Secção foi avisar a viúva, encontraram a mulher morta. E uma nota ao lado do corpo: “Matei-te sem querer. Amo-te. A única coisa que posso fazer é matar-me! Francisco.

    A autópsia acabaria por revelar que foi um ataque do coração e não o par de estalos que provocou a morte da senhora.

    01:27

    Concentração na zona das Docas por causa de um rapaz que foi esfaqueado por um segurança de uma discoteca. 

    — Há muita rapaziada dos ginásios a fazer cobranças difíceis, extorsões e a trabalhar como seguranças. O problema é quando tomam anabolizantes em excesso e se metem na ‘coca’… É aí que as conversas degeneram. — diz um dos agentes antes de sair do carro.

    Ninguém sabe de nada. Nem sequer o nome do segurança — que não consta dos registos do estabelecimento. A noite promete ser longa e pobre em resultados, mas ninguém se queixa porque o homicídio é, no fim de contas, o crime mais interessante, apesar de inspirar mais repugnância, mais temor e mais fascínio. E de nem sempre haver respostas.


    Reportagem originalmente publicada na Revista GRANDE REPORTAGEM n.º 109 – Abril 2000, Lisboa.


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  • As seitas à descoberta de Portugal

    As seitas à descoberta de Portugal


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, do grande repórter Rui Araújo, uma reportagem publicada originalmente em Abril de 1985, na revista GRANDE REPORTAGEM, sobre a Igreja de Cientologia em Portugal.


    Igreja de Cientologia: «chantagem económica», lavagem ao cérebro e ruptura com os laços afectivos. (Foto: D.R.)

    Uma seita exige ao Estado português três milhões de dólares de indemnização pelos prejuízos causados ao iate Apollo, assaltado por populares. 

    Foi no Funchal, durante o Processo Revolucionário em Curso (PREC).

    O cônsul da Bélgica no Funchal acabou o último rolo de Super 8 e foi para casa jantar, descansado. Tinha cumprido a sua missão. As actividades da tripulação do iate «Apollo» estavam metodicamente anotadas e filmadas. Visitas, carregamentos de papel, etc. O barco interessava-o. Atrás dos seus proprietários oficiais — a Cindusta – Consultores Industriais e a Operation & Transport Corporation Ltd (registada no Panamá no dia 1 de Janeiro de 1968)— escondia-se uma seita religiosa das mais esquisitas: a «Igreja de Cientologia».

    3 de Outubro de 1974.

    O «Apollo» é assaltado durante a noite por um bando de populares exaltados que acusam a tripulação de trabalhar para a CIA. Os prejuízos elevam-se — segundo os jornais da época — a 115 mil contos. Com a subida progressiva do dólar e a morosidade do processo, a bagatela inicial subiu já para cerca de meio milhão de contos.

    Dez anos depois do incidente, a Auditoria Administrativa de Lisboa abriu o processo e deverá decidir em meados de Maio se houve de facto incúria por parte das autoridades portuguesas e tão elevados danos materiais.

    A história da Cientologia começou muitos anos antes. Em 1950, o «profeta», Ron Hubbard, abre uma clínica de «Dianética»  em New Jersey, nos Estados Unidos, para «libertar as pessoas de sentimentos, sensações e emoções indesejadas.»

    O negócio dá bons lucros, mas também levanta algumas dúvidas às autoridades do Estado de New Jersey e à Associação Médica Americana.

    É nessa altura que Hubbard começa a andar com uma caixa de sapatos cheia de notas, para o caso de se ver obrigado a partir para horizontes mais tranquilos.

    O «profeta» Hubbard cria em 1954 a «Igreja de Cientologia». A sua filosofia — considerada uma amálgama de ficção científica e de psicanálise de meia tigela — resume-se a um lacónico «saber como saber».

    Também eu quis saber, mas afinal aquilo é uma ciganada! Querem-nos é vender pechisbeque por ouro… — conta Rui S., 37 anos, criativo plástico numa multinacional, em Lisboa.

    Foi abordado, no Largo do Chiado, por uma rapariga que lhe pediu para «responder a duas ou três perguntas» de um inquérito sobre personalidade humana.

     — A princípio, não sabia que era uma seita religiosa; pensava tratar-se de mais uma daquelas sondagens chatas…

    Tratava-se, afinal, de um contacto da «Igreja de Cientologia», desta vez sob o nome de «Instituto de Dianética de Lisboa», uma das muitas denominações que a organização de Hubbard tem vindo a adoptar para esconder a sua verdadeira identidade nos 25 países onde está a actuar. Rui S. teve que comprar livros da seita no valor de algumas dezenas de contos para poder ver-se livre dela.

    Um outro processo bastante utilizado pela Cientologia é o anúncio discreto na imprensa. Aí se propõe «grande futuro» e melhoria de conhecimentos.

    Foi através de um desses anúncios (publicado no Diário de Notícias) que cheguei à fala com os cientologistas, na Travessa da Trindade, em Lisboa, a sede da organização.

    Uma sala nua, paredes decrépitas e muita sujidade. Luxuosos cartazes (em inglês) propõem a felicidade a toda a gente, amanhã. E um teste gratuito, para já.

    São 200 perguntas sobre a vida pessoal, os gostos, os temores, as ambições e as opiniões políticas de cada um de nós. Uma maneira hábil de a seita se informar sobre os eventuais adeptos  e assim poder preparar o melhor ângulo de ataque.

    Os métodos de marketing são subtilmente aplicados: «Custa-lhe aceitar um fracasso?; Acha que está a ser gasto muito dinheiro na Segurança Social?; Acha fácil ser imparcial?; Se invadisse um país, simpatizaria com os objectores de consciência desse país?; A sua voz é bastante variável em vez de calma?»

    São 10:30 da manhã quando  acabo de responder a 192 perguntas do questionário. Uma jovem, visivelmente ainda mal desperta, tira-me as folhas das mãos e manda analisá-las. Minutos depois, chama-me ao seu gabinete e comunica-me os resultados.

    Sou um tipo «porreiro, estável, calmo, certo, activo, agressivo, responsável causativo, crítico, discordante e retraído.» Em suma, «um elemento aceitável sob condições perfeitas, mas…»

    — Como é que cá vieste parar?

    — Li o anúncio do Diário de Notícias e, como ando à procura de emprego, dei uma saltada até cá…

    — O teu teste até nem está mau… Vejo que não precisas de tratamento. Tens disponibilidade?

    — Não tenho nada para fazer o dia inteiro…

    — Então, ofereço-te um emprego! Podes ser o nosso ‘PPO’, é uma espécie de Director do Pessoal. És pago à semana…

    — E quanto é que vou ganhar?

    — Isso, não sei. Mas o dinheiro também não é importante. O ambiente aqui é muito bom. Aqui, trabalha-se sete dias por semana. De segunda a sábado, trabalhas 11 horas por dia, mais duas horas e meia de estudos. Ao domingo só trabalhas nove horas.

    — Mas quanto é que vou ganhar?

    — Isso depende da tua produtividade… que é calculada segundo uns métodos complicados. O contrato é verbal.

    — …

    Em função dos resultados do teste a Cientologia  propõe um emprego ou mais frequentemente uma «cura». O tratamento é um sistema terapêutico (com implicações de natureza cósmica e uma justificação mística) intitulado «Dianética». Um método especulativo que pretende diagnosticar doenças mentais e outras, atribuídas a causas mais psicológicas do que bacteriológicas ou biológicas. Hubbard é o primeiro a tentar justificar a qualidade da terapêutica: «Estava cego devido a lesões no nervo óptico, coxo por causa de ferimentos na anca e nas costas e a minha caderneta militar indicava que sofria de incapacidade física permanente.» — conta o «profeta». Apesar de abandonado por toda a gente, conseguiu «recuperar em menos de dois anos».

    O homem terá sido, deste modo, o primeiro miraculado de uma técnica que ele próprio descobriu.

    Pseudo-teste de personalidade: a Cientologia propõe um emprego ou mais frequentemente uma «cura».

    A Cientologia define-se como um «guia espiritual e religioso destinado a tornar as pessoas mais conscientes de si mesmas enquanto seres espirituais.» «Não pretende tratar nem estabelecer diagnósticos para todas as doenças do corpo e da mente, nem se dedica ao ensino ou à prática das artes ou das ciências da Medicina.» Assim, o credo da «Igreja» afirma: «Nós acreditamos que o estudo da mente e a cura de doenças de origem mental não deveriam estar separadas da religião, nem ser toleradas em organizações não-religiosas.»

    Os cursos (cujos preços variam entre 1.000 e 132.000$00) têm como finalidade fazer os «doentes» ultrapassar escalões de uma «clarificação» crescente, desembaraçando-os progressivamente dos seus «engrams» (imagens mentais relativas a experiências de dor física; gravação na mente reactiva — o inconsciente — de um acontecimento do passado e até mesmo sensações pré-natais sentidas pelo feto…). Durante as sessões de «clarificação» — também chamadas audições — o auditor ajuda o paciente a descobrir e a suprimir os limites espirituais por ele fixados através de perguntas, de exercícios e de um aparelho que é apresentado como um protótipo denominado «E-METRO», uma maquineta do tempo da avozinha que serve apenas para medir reacções fisiológicas  (Wheatstone machine). As agulhas da máquina movem-se estupidamente da esquerda para a direita pela módica quantia de 31.000$00, a pagar antecipadamente à «Dianética», a tal associação sem fins lucrativos… A qualidade do tratamento é tão boa ou tão má que o ministro britânico da Saúde qualificou, em 1968, os métodos utilizados durante essas audições como «contrários à Sociedade, constituindo um sério risco para todos aqueles que a eles se submetem.»

    Os cientologistas só estão oficialmente em Portugal desde 1980 mas já nos frequentam há 16 anos. O «Diário de Notícias» (de 16 de Maio de 1969) alertava para o «mistério» de um barco de nome «Apollo» que navegava nas nossas águas em busca de «milhares de espíritos perturbados à procura de um significado para a Existência.»

    Dois anos mais tarde, o mesmo matutino volta a anunciar a presença do iate em Portugal, dessa vez com uma quantidade de gente a bordo: 380 pessoas. E como não há duas sem três, o «mistério» repete-se em Março de 1974, data em que o «Apollo» leva a vários pontos do país «um concerto de jazz para esconder um Ovo de Colombo.» É precisamente nessa altura que que se dá o ataque do Funchal, a pretexto de a tripulação pertencer à CIA. Ora, tal acusação não deixa de ser curiosa. Até aí, Hubbard e «companhia» sempre tinham sido associados ao KGB, como o comprovam relatórios de alguns serviços secretos ocidentais. O próprio filho do «profeta» garante que Hubbard «traiu os Estados Unidos por dinheiro.» Segundo Hubbard Junior «o KGB conseguiu, com a sua ajuda (a do pai) arranjar em plena Guerra Fria os planos de um míssil termo-orientado ocidental. Os soviéticos obtiveram a informação através da audição de um engenheiro membro da Igreja de Cientologia.»

    O KGB treinou ainda agentes da HVA (Administração Central das Informações), a espionagem leste-alemã, supostamente membros da seita, para se infiltrarem, via Dinamarca, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos.

    Iate Apollo: as águas turvas da seita.
    (Foto: Jorge Santos)

    O iate «Apollo» (proibido de entrar, por exemplo, nas águas gregas) é apenas a parte visível do «iceberg» Cientologia. As águas turvas são, de resto, as preferidas da seita.

    «A Sétima Vaga já cá está!» — assegura-me Victor Estrela, Director Executivo da seita, muito aborrecido porque me identifica como jornalista, depois de me ter lá visto como simples candidato a um emprego. Jura que «pertencemos todos a uma Geração que pela sétima vez consecutiva ocupa a Terra» antes de insinuar algumas ameaças e de voltar aos seus afazeres. Agradeço a preocupação, sorrio a um jovem apático de negro vestido, que se encontra por lá e saio.

    Resta saber como se articulam todos estes conceitos místico-filosóficos com a natureza, o objectivo e o funcionamento real da seita. Uma coisa é certa: a Cientologia foi e continua a ser associada à burla, à lavagem do cérebro e à ruptura com todos os laços afectivos.

    O Departamento sueco da Saúde acusou em 1975 a seita de ter exercido «pressões intoleráveis» e «chantagem económica» sobre os seus membros. Os cientologistas fizeram alguns adeptos assinar reconhecimentos de dívidas (fictícias) para com a «Igreja». Mais recentemente, em Fevereiro de 1978, a Justiça francesa julgou quatro dirigentes da organização por burla. Ron Hubbard, cujo paradeiro é, hoje, desconhecido, foi um dos condenados. O tribunal francês considerou a «Igreja de Cientologia» como uma associação «dissimulada em empresa comercial bem gerida e em pleno desenvolvimento (…) que pratica pseudo-testes de personalidade efectuados por pessoal sem qualificação e realiza por este meio uma pressão intelectual e moral sobre as pessoas esperançadas num melhor equilíbrio pessoal, num maior sucesso profissional (…) e que obteve de numerosas pessoas a entrega de importantes quantias de dinheiro, extorquindo assim toda ou parte da fortuna alheia.»

    A Cientologia muda logo a seguir o nome para «Igreja da Nova Compreensão» e continua a actuar em França. O Relatório Vivien, elaborado pelos serviços secretos franceses e divulgado há poucos dias, considera a Cientologia como uma das nove mais perigosas seitas presentes em França (num total de 120).

    Uma grande parte das organizações filosófico-religiosas internacionais (desde «Moon» aos «Meninos de Deus», passando pelos neonazis da «Nova Acrópole») estão em Portugal, mas ainda não há qualquer controlo das suas actividades. E mais: «Ainda não temos nenhuma lista das associações filosófico-religiosas existentes em Portugal porque o fenómeno ainda não é preocupante» — disse à GR um alto funcionário do MAI, aparentemente surpreendido com a formulação de tal pergunta…


    Reportagem originalmente publicada na revista GRANDE REPORTAGEM, 26 de Abril a 2 de Maio de 1985 – Lisboa.


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  • Portugal: a ameaça da fome

    Portugal: a ameaça da fome


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem publicada originalmente em Fevereiro de 1985 na mítica Revista GRANDE REPORTAGEM, onde é feito um retrato da fome em Portugal. Com texto de Rui Araújo e fotos de José Paulo Boavida e João Bafo.


    O desemprego, o atraso no pagamento de salários e a inflação arrastam para a pobreza famílias operárias e alguns estratos da classe média baixa.

    Reaparecem os livros de fiados nas lojas da província.

    A GRANDE REPORTAGEM percorreu a geografia da fome portuguesa. Por enquanto ainda se enche a barriga com qualquer coisa, tirada da horta, pescada no rio, cedida pela família ou pelos vizinhos, oferecida pelas instituições de solidariedade social. Mas a fome chegará ao nosso país se a situação não se alterar. Rapidamente.

    DE TOMAR À MARINHA GRANDE

    CAMINHOS DA MISÉRIA

    Ela trinca um palito e conta que à medida que os meses correm se sente cada vez mais esquecida da vida. Atira de longe em longe um olhar vagaroso para a gente que passa sem se arredar das suas cogitações e sorri.

    — Aconteceu num sábado. Sábado, 29 de Julho. Era ainda noite ou a manhã estava a romper, já não me lembro. Envenenei-me porque não tinha nada para dar de comer aos meus quatro filhos. Tomei 60 comprimidos para me matar. Achei que era a única solução. Já tinha vendido os dois anéis do meu falecido marido por quatro contos e quinhentos cada um. Naquele momento queria desaparecer. E agora sou capaz de andar de manhã à noite a chorar. Tenho pessoas que me auxiliam. Eu choro-me às pessoas e os meus filhos já não passam fome, mas também não passam fartura… — Guilhermina, 35 anos, ex-operária da Fiação de Tomar, é uma das muitas sem salário da região de Tomar. Para sobreviver sem passar fome prostitui-se num centro comercial da cidade. Como ela há mais algumas.

    Dos 900 trabalhadores da Fiação de Tomar, uma empresa com nove meses de salários em atraso, apenas 120 continuam a trabalhar nos três turnos por falta de meios e matéria-prima. A firma está praticamente paralisada. A dívida à Banca ronda os 400 mil contos. Muito recentemente, a Secretaria de Estado da População e Emprego concedeu à empresa um empréstimo de 42 mil contos — a pagar em duas fracções de 21 mil contos — que ainda não foi levantado com receio de que seja imediatamente cativado. Se o cheque não vier a ser transformado em moeda, a administração declarará a falência da sociedade.

    — Há casos de fome e até roubos… Dia 11 foi julgada uma rapariga casada que tem uma filha paralisada e outra no ventre, porque roubou 20 contos a um tio que mais tarde veio a denunciá-la —, conta José Maria Serra, dirigente sindical, um homem que não dá sinal de fraqueza.

    A mulher «apanhou três anos com pena suspensa» por ela e o marido estarem na situação em que estão na fábrica.

    Enquanto Guilhermina e uma amiga se somem sorrateiramente do centro comercial, o sindicalista fala de sonhos desfeitos, de miséria e de fome.

    O Regimento de Infantaria de Tomar está a dar de comer aos «sem salário» e hoje em dia há gente que vai todas as tardes ao hospital pedir ao técnico radiologista Fininho os restos da comida dos doentes.

    — Isto não tem tendência para melhorar e olhe que não é só pessoal da Fiação: há também toda aquela gente das empresas João Salvador, Adelino Duarte, Fábrica de Papel da Matrena, mais as pequenas indústrias de que ninguém fala. — acrescenta José Serra antes de gritar com rancor que ao contactar partidos e Igreja «toda a gente disse que sim, mas sem passar daí».

    Pago o lanche e partimos. José Serra tenta ainda convencer outra rapariga a responder às perguntas da GR, sem sucesso.

    — Fome, há fome! — diz-me antes de apressar o passo.

    Pelo passeio fora as palavras soam-lhe como indecentes. Não se contém e pergunta-me se então não vou falar com os responsáveis da Fiação. Pois vou. Um dos directores, o dr. Machado, recebe-me mas considera  «inoportuno focar a questão», não dá entrevistas ou faz quaisquer declarações. Contente com estas fracas informações, põe-me praticamente na rua.

    Tomo um copo na tasca em frente da fábrica — agora com muitas dificuldades porque lhe faltam os clientes — e arranco com destino ao Tramagal, uma das raras zonas onde o Governo  detectou situações de «carência alimentar» e onde está a actuar o Centro Regional de Segurança Social de Santarém.

    A população do Tramagal (5.300 habitantes) depende inexoravelmente  da Metalúrgica Duarte Ferreira (MDF), uma empresa com 10 meses de salários em atraso e que acaba de suspender 475 dos seus 1.500 trabalhadores.

    — A MDF é uma empresa do sector da indústria metalomecânica pesada, fundada  em 1880, no Tramagal, região que, em tempo não muito longínquos, fazia parte, com os outros vértices em Tomar e Torres Novas, de um triângulo considerado estrategicamente  como um forte pólo de desenvolvimento industrial do país — indica um relatório elaborado pela Assembleia da República em finais do ano passado.

    Para a Comissão Parlamentar de Trabalho, a MDF «tem uma importância simultaneamente nacional e regional, quer pela sua actividade quer pela localização das suas instalações» (Tramagal, Porto e Lisboa). A empresa esteve intervencionada  durante cinco anos (1974 – 1979) até ser entregue aos seus antigos proprietários, que não souberam ou não puderam superar as dificuldades resultantes da crise e da total indefinição governamental.

    O relatório parlamentar põe algumas questões pertinentes. «Por que razão o Governo não deu a ajuda solicitada, perfeitamente possível, no caso do DOSSIER MALANGE», a construção de uma fábrica de máquinas e alfaias agrícolas em Angola, no valor de 75 milhões de dólares, com fornecimentos durante seis anos e que acabou por ser realizada pela Jugoslávia, «apenas porque o Governo português não propiciou o único requisito exigido pelo Governo angolano para preferir a MDF e que tinha que ver com a necessidade de convencer a administração daquele país de que não se previa o fecho da empresa durante o tempo considerado para a execução do contrato».

    Fico-me por esta e outras respostas e dirijo-me à porta da MDF, onde está um grupo de operários suspensos.

    — O problema agravou-se a partir de 8 de Janeiro, quando a administração da empresa, numa demonstração de força e contra a legislação em vigor, resolveu suspender 475 trabalhadores. — diz João Constantino, da direcção do Sindicato dos Metalúrgicos do Distrito de Santarém.

    Oiço alguém gritar «raios os partam», mas Constantino acalma imediatamente os ânimos e prossegue: «Depois do Mário Soares nos dizer que temos de fazer sacrifícios, que tem de haver despedimentos e que os trabalhadores despedidos não morrem à fome, destacaram para aqui forças de intervenção da GNR, uns 120 homens com cães, policias e gases.»

    E o quotidiano? A resposta é que a vida está a degradar-se dia após dia. Já há mais empresas com salários em atraso. A SOMAPRE e as outras…

    Mais uma entrevista de gravador em punho: todas as palavras têm significado…
    (Foto: José Paulo Boavida)

    As pessoas vão-se amontoando à minha volta. Rostos sem uma aberta de esperança envolvem-me em mil dramas.

    — É triste a gente ter uma situação destas depois de estar a sobreviver há 63 anos. — conta Joaquim de Jesus, convulsionado.

    — Passo fome! Com quase 10 meses de salário em atraso e a vida cada vez mais cara, com certeza que as pessoas têm que começar a passar fome. Em vez de comer duas sardinhas, comem só uma. Ou nenhuma, em muitos casos. Ou comem uma sopa para enganar o estômago. Se tiver três sardinhas lá em casa, se calhar, cada filho come uma e eu nada. — lamenta-se outro.

    — Infelizmente, no Tramagal, não há estações de Metro para eu dormir mais a minha mulher e a minha filha. Agora, é só sopita… Parece que não há salvação para este país! Eu não queria de maneira nenhuma ir roubar, mas a minha filha não há-de passar fome. — chora Esteves Chaves.

    — Ao fim de 19 anos para a rua como um cão. Ao fim de tantos anos, não sei o que vai ser. Isto é uma infelicidade… — diz Manuel Marques, coberto de suor, trémulo, a concluir o rol das tragédias.

    Interpelo o porteiro da fábrica e peço para ser recebido pelos directores. O homem vem a passos lentos dizer-me que «os senhores directores mandam informar que não estão autorizados a falar com os jornalistas». 

    A caminho do consultório do centro médico paro na venda da dona Manuela Feliciana, que deixou de vender bifes para passar a vender «muita fruta tocada». Um homem de rosto seco, comido pelo cieiro, aproxima-se e pede para ser ouvido. Anda a palmilhar o Tramagal à espera que o tempo passe. Tem 34 anos — 12 de empresa — e vive com a mulher e dois filhos.

    — Eu tenho que desabafar! Estou farto. Não faço a mínima ideia do que é que isto vai dar. É muito natural que as pessoas venham a perder a ‘tramontana’ porque não têm dinheiro. E, digo-lhe, já que o Governo deste país não quer fazer justiça é muito natural que os trabalhadores deste país a façam pelas suas mãos. Há já aqui casos de pessoas que se querem matar e de pessoas que se desorientam…

    E largou. Não tinha mais nada para dizer.

    Vou falar com o médico do Centro de Saúde. O consultório está a rebentar pelas costuras. Chego-me a um enfermeiro e pergunto pelo doutor Vítor Goucha Jorge. Duas velhotas sentadas ao lado da janela «rosnam» que não é a minha vez. Entro no gabinete do médico.

    — Viva!

    — Boa tarde.

    O médico olha para a janela do gabinete onde se adivinha a trovoada já próxima e depois de um silêncio, para ganhar segurança — nunca deu entrevistas — faz o seu balanço.

    — Há uma insegurança nas pessoas, o que lhes dá uma instabilidade psíquica maior. Por isso, recorrem mais vezes ao médico para obterem tranquilizantes, uns hipnóticos ou qualquer outra coisa que as ajude a passar melhor. Vejo pessoas bastante caídas, depressões, síndromas depressivos… Quando isto começou notou-se um menor rendimento das crianças nas escolas devido à má alimentação.

    — Mas não há apoios?

    — Alguns. Para minimizar a situação, criámos um grupo — o Centro de Apoio e Desenvolvimento para o Tramagal — para ajudar as pessoas. Ocupamos as mulheres a fazer tapetes de Arraiolos. Temos um curso de ferros forjados e outro de tractoristas. Damos também um lanche, um suplemento alimentar a todas as crianças em idade escolar, que consta de uma refeição a meio da manhã. É leite que a Cáritas nos tem dado, com um suplemento vitamínico, marmelada, queijo e pão. O pão é oferecido pelo Campo Militar de Santa Margarida. São cerca de 800 pães diários para estas crianças… A situação é difícil. É possível que haja fome e que nós estejamos só a tentar minimizar as insuficiências, mas isso não resolve o problema porque depois faltam a carne e o peixe e os outros alimentos essenciais.

    A outra faceta da miséria…
    (Foto: João Bafo)

    Os «novos pobres» do Bairro Social do Tramagal vão enfrentando o tempo sem garantias. Mulheres — algumas muito novas — vestidas de negro e muita miudagem. Uma delas, com uma pequenita ao colo, diz que passa fome, muita fome. Chama-se Manuela Lopes e tem quatro filhos. Reparo que alisa continuamente a penugem do filho, sôfrego de colo.

    — Como uma refeição por dia e, muitas vezes, para dar aos meus filhos, não como. Tenho a loja a fiar-me, mas, coitada da pessoa, muitas vezes também não pode…

    — O que é que os seus filhos dizem?

    — Os mais pequeninos não percebem. Eles pedem-me pão. Os mais velhos é que vêem que já não podem comer tanto e que é preciso dividir.

    — O que foi o vosso almoço?

    — Grelos com batatas e um ovo para cada um.

    Cala-se. Uma vizinha aproxima-se. Maria F. Almeida, 55 anos, viúva há 24, tem um filho que é pintor na fábrica. Às tantas, ele já nem se admira de não comer e, se calhar, ela também não.

    — Não tenho de onde venha um pratinho de sopa. Não tenho casa nem eira. Estou junta com a minha filha. E ainda tenho mais dois filhos ao meu encargo. Um trabalha ali e o outro está desempregado. Sim, senhor! Tenho passado muita fominha. As almas boas é que nos têm valido., mas chegou-se ao mês de Janeiro e deixaram de dar fiado à gente…

    Fontela. Km 213,63 da CP. À frente dos portões selados da fábrica, um mar de vidro partido, uma tasca às moscas e o rio. Os 650 trabalhadores da Vidreira que se encontram no desemprego desde 23 de Dezembro de 1982 ainda continuam a aparecer aqui para matar saudades, mas qualquer dia já não vem ninguém. Agora, muitos já vão ficando pelo café de Vila Verde a conversar e a beber uns copitos.

    Fontela está a tornar-se definitivamente uma vila fantasma. Até nem padre há na igreja… Fontela é um calafrio.

    José Aranha Grilo é um dos despedidos da Vidreira, onde trabalhou dos 14 aos 24 anos. O rapaz recebe, hoje, um subsídio de desemprego  de 12 contos. O preço de uma existência. Trabalho, não há. Toda a gente «vivia da Vidreira». Fala telegraficamente dos casos dos outros. Dos cortes de linha, da história do rali e dos suicídios. José Aranha Grilo traz a amargura consigo. Diz adeus e desaparece.

    — As pessoas passam um mau momento. Passam muito mal. Há pessoas aí a lutar com grandes dificuldades. A Junta de Freguesia de Vila Verde não tem hipóteses de ajudá-las. Tem ajudado naquilo que pode — burocraticamente, mas é tudo. — conta o presidente da Junta PS, enquanto João Gomes, dirigente sindical PC, se ri por dentro. Aqui, como lá fora, socialistas e comunistas continuam a ter relações mancas. Para o sindicalista há que denunciar a miséria — a fome envergonhada. Logo que entra no carro berra um «ora bolas» e depois de acenar para o presidente da junta, afirma que «há fome e a prova disso é a campanha de solidariedade encetada pela organização holandesa Tulipa Vermelha com vista ao abastecimento de Fontela/Vila Verde em géneros alimentícios».

    Bairro dos Pobres, em Vila Verde, é uma aldeia onde vive uma grande parte dos operários da Vidreira. Roupa estendida, garotada a brincar e mulheres a trabalhar — atentas à chegada de estrangeiros. É aí que reside Cecília Oliveira. Acolhe-me de braços abertos e, logo a seguir, começa a queixar-se.

    — Quando o meu marido trabalhava, eu tinha dinheiro e governava-me bem, mas agora já não sei o que há-de ser da gente. Ou temos de morrer de forme ou não sei o que há-de ser isto. Se não nos dessem de comer, já tínhamos morrido…

    Atentas, as crianças dão por finda a sua intrusão e voltam para o beiral da porta. Dona Cecília aconselha-me a falar com o marido que está no café e mergulha na faina caseira.

    A caminho do café, por entre ruelas gastas, encontro um rebanho de ovelhas e, um pouco mais adiante, um grupo de pessoas. Vejo luto carregados e caras mortificadas. Paro. Depois da saudação, indago a vida que por ali corre.

    — O meu marido trabalhava na fábrica e o meu cunhado também. Depois, o meu cunhado  ficou sem emprego e agora está cá a comer e a beber, mais os seus cinco filhos. Se não fosse a gente, morriam à fome!

    Uma velhota, sentada na soleira da porta, aponta-me a casa 6 e espeta os olhos na negrura, sem dizer patavina.

    — Vossemecê vem dar alguma coisa?

    — Vim só falar com eles…

    Uma luz trémula escapa-se das fendas do barracão (3 quartos) onde vivem os Dias. Noémia, o marido, os seis filhos do casal, mais uma cunhada e a neta.

    Casa 6, rua 7, Ordem, Marinha Grande.

    Uma cachopa abre a porta e uma voz cansada manda-me entrar. No ar paira um cheiro de lenha. A mulher mastiga um pedaço de couve ­— saudação monossilábica — e bebe um trago. A miudagem, dispersa à volta da lareira, sorri. Uma lamparina a petróleo aparece na mesa onde acabo de deixar cair o meu bloco. A matrona começa a falar enquanto come a sopa. A sopa, aqui, é entrada, conduto e sobremesa.

    — Quando há feijão é todos os dias sopa de feijão. Hoje é uma espécie de cozido, porque deram um naco de carne à minha filha. Outras vezes, bebe-se café de cevada com um papo-seco. A minha comadre também me dá a sopa que não come lá em casa…

    Noémia Dias, 4 anos, 10 filhos, ex-operária do vidro, leva a mão gordurosa à cabeça do petiz mais novo e faz-lhe uma festa.

    — A minha menina, ao sábado vai pedir esmola. O dinheiro ainda não dá para viver. Eu, ao fim do mês, dou logo metade a cada merceeiro, senão não me fiam. O Governo deu-me alguma coisa para a escola dos miúdos o ano passado, mas este ano não deu nada. Ainda não lhes comprei os livros porque quando tenho algum dinheirito é para o leite do bebé, que anda a beber café.

    O bebé, o 10.º filho!

    — Porquê tantos?

    — O meu homem não tem cuidado! O médico dizia-lhe para ter cuidado que a vida não está para ter tantos filhos…

    O filho mais velho, Vítor Manuel, 23 anos, junto com a Lurdes, olha para a mãe.

    A lenha seca estala. O bafo da nossa respiração ergue-se, lentamente, na humidade.

    — E o futuro?

    Se isto não se resolver vai para pior… Mas temos esperança!

    Há meses atrás, a palavra ‘esperança’ já não fazia parte do vocabulário dos operários da indústria vidreira da Marinha Grande. A região, que durante anos tinha absorvido mão-de-obra de todo o país, viu-se subitamente confrontada com a realidade da crise. Cinco das maiores empresas do vidro — Dâmaso, Cive, J. Ferreira Custódio, Manuel Pereira Roldão e Ivima — cessaram de pagar salários em finais de 1983, princípios de 1984, colocando cerca de 2.650 trabalhadores em situação dramática. Cinco outras empresas de menor dimensão encerraram as portas, empurrando 410 operários para o desemprego. Mais de 70% do comércio fechou, segundo dados sindicais. O número de pedintes não parou de aumentar desde então. Houve pais que chegaram a mandar os filhos para a província e que ainda hoje continuam separados deles.

    A Vidreira da Portela deixou de ser um porto de abrigo…
    (Foto: José Paulo Boavida)

    O Pacto Social — acordo de viabilização — de 4 de Janeiro de 1985 foi apenas um balão de ar fresco para uma indústria em crise. E se hoje algumas destas empresas já actualizaram os ordenados, não é menos verdade que há centenas de trabalhadores a receber no «dia 50», de 50 em 50 dias. Em Março, a situação deveria estar regularizada, apesar de não haver certezas.

    — O Governo prontificou-se a tomar algumas medidas de apoio para minimizar a situação, mas há empresas que têm oito, nove meses de salários em atraso. Temos de nos apetrechar tecnologicamente. Não podemos ficar pelas meias tintas. Eu ainda não sei como vai ser o mês que vem… — diz-me um dos directores da Ivima.

    Entretanto, resta a caridade. A organização internacional Tulipa Vermelha fez, em fins de Dezembro, um donativo de 2.987 contos para ajudar os trabalhadores com salários em atraso. A verba foi distribuída pelo Sindicato dos Vidreiros e esgotou-se num mês.

    — Demos 1.650$00 [escudos] por criança até aos 13 anos — uma caderneta com senhas para os pais irem à Cooperativa do Povo da Marinha Grande comprar géneros alimentícios. — diz o presidente do sindicato, Raúl Ferreira, também ele com salários em atraso.

    — A fome não é tão visível porque houve recurso a outros lados, desde a venda de fios, pulseiras e alianças à concessão de facilidades por parte dos comerciantes. — conta o sindicalista. Na realidade, instaurou-se um clima de solidariedade. O próprio gerente da Sapataria Bom Preço, José Mendes da Silva, chegou a oferecer no Natal aos sem salário 50 pares de sapatos e, no Dia da Mãe, deu uma saltada à escola para entregar um cheque de 100$00 aos garotos mais pobres. Para o homem do Bom Preço «até houve muita humildade na escolha e se fosse necessário fazer o mesmo, voltava a fazê-lo, mas já não deve ser.»

    A situação parece estar a melhorar. Na Escola Preparatória da Marinha Grande já nenhuma criança vai buscar, às escondidas, restos de pão aos caixotes do lixo. Também já não há mais garotos que desmaiam na aula por causa da fome. E se no dia 2 de cada mês não era raro ver crianças espancadas — pagavam o desespero dos pais que não recebiam ordenado — hoje isso já acontece com menos frequência. Até princípios de 85, as bolachas, os chocolates  e os bolos não se vendiam na escola. As crianças comiam unicamente pão com manteiga. Alunos que não gostavam de peixe pediam sempre repetição, enquanto que agora já recuam quando aparece «peixinho» ao almoço.

    — A única vantagem foi começarem a gostar de salada porque, como tinham fome, comiam de tudo… — diz Abel Monteiro, o vice-presidente da escola, antes de levar a mão a um espesso «dossier» e garantir que «houve mães que chegaram a dar filhos a feirantes». A secretária, Maria Melo, enternecida, não deixa de acrescentar que testemunhou um dos casos em que uma mulher se dirigiu à professora para lhe oferecer o filho. Uma dessas crianças nunca mais voltou…

    Com ou sem melhoria, ainda houve 30 alunos que não se matricularam em 1985, apesar de a escolaridade ser obrigatória. A razão invocada é sempre a mesma: falta de meios. Senão vejamos: «Eu, João C., responsável pela educação do meu (neto) educando Marcos S., não compareci à matrícula, por motivo de me encontrar impossibilitado de trabalhar, já há um ano, tendo a necessidade de que o meu educando , logo que complete os 14 anos vá ganhar para sobreviver. Por este motivo peço a V. Ex.ª a máxima desculpa. 31/Outubro/84.»

    Dou mais uma saltada até à Ordem, zona  onde vive uma grande parte dos «sem salário» da indústria vidreira para saber até que ponto é que a esperança no futuro pode ser contabilizada.

    Chove. Ao lusco-fusco, personagens indistintas esgueiram-se paredes meias com a dormência que parece ter invadido a vila. Entro no primeiro comércio que vislumbro, a loja do senhor Madeira. O homem vende de tudo. O local é simultaneamente supermercado, tasca e salão de jogo. Meia dúzia de pessoas disputam uma partida de bilhar, na sala do fundo, enquanto uma cliente vai barafustando ao ajeitar as compras dentro de um saco de lona.

    — Eu dantes não vendia Kentucky e depois passei a vender. Por 12 mil réis mata o vício à malta. Agora é que começo a vender outras marcas… — diz-me o dono da loja, enquanto ampara uma lata aqui e acomoda uma embalagem acolá.

    Insiste:

    — Dantes até vendia roupas e tive de deixar de vender. O rol tem vindo a aumentar… mas é provável que a partir do mês que vem isto se recomponha. Já começaram a receber…


    Reportagem originalmente publicada na Revista GRANDE REPORTAGEM,  22 a 28 de Fevereiro de 1985 – Lisboa

    Nota do autor: Agradeço o empenho e o excelente trabalho dos repórteres fotográficos João Paulo Boavida e João Bafo. 

    N.D.: O PÁGINA UM agradece a João Paulo Boavida pela sua generosidade e contributo para a publicação desta reportagem e aproveita para deixar uma singela homenagem póstuma a João Bafo.


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    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, é publicada a reportagem que fez a capa do número 1 da mítica Revista “Grande Reportagem”. Com texto de Rui Araújo e fotos de Luiz Carvalho.


    «Há vinte e tal anos que estou aqui e nunca vi ninguém falar com tanta gente na prisão…»

    A surpresa do Chefe dos guardas da Penitenciária é exemplar. Universo carceral significa mistério. E se as autoridades levantam hoje a cortina é porque a instituição está muito doente…

    Prisões a abarrotar, insatisfação generalizada, medo quotidiano: o cocktail tornou-se explosivo…

    «Se o número de presos continuar a aumentar, vai ser o que Deus quiser…» Um responsável da Administração prisional é categórico: «As cadeias portuguesas estão a rebentar pelas costuras. O clima de tensão é preocupante!»

    Só por si, os números são assustadores. Em menos de um ano a colónia penal aumentou 27%, ainda mais do que a inflação. Há hoje em Portugal 8.400 presos quando a capacidade das prisões é de 6.800.

    Como tudo está apinhado de gente, dorme-se onde se pode: nas casas-de-banho, em Monsanto; nos corredores, em Faro; no chão, em Viana do Castelo.

    Vão ser reabertas as antigas prisões comarcãs de Braga, Covilhã, Monção, Odemira, Portimão e até um pavilhão especial para presos preventivos na cadeia de mulheres, em Tires. O próprio ministro da Justiça, Rui Machete, não hesita em pedir aos militares alguns quartéis emprestados.

    Vão-se tapando os buracos. Adia-se a resolução do problema. O mesmo responsável descreve-nos assim a realidade: «Os tribunais estão desorganizados, os juízes são irresponsáveis, a lei prisional não é exequível e o novo Código estende demasiado a noção de criminalidade.»

    Grades: Depois da revolta, a resignação.
    (Foto: Luiz Carvalho)

    As prisões «3 estrelas» de ontem — se as houve — tornaram-se definitivamente as pensões da amargura de hoje. E se não há  boas prisões, como tendem a demonstrar os estudos sobre a reclusão prisional, também não pode haver bons guardas.

    «Vigiados por uma Administração hierarquizada, executores dóceis de decisões que muitas vezes lhes escapam, correias de transmissão de interesses dominantes, os guardas prisionais só dispõem de uma ínfima margem de manobra para dar à sua tarefa um toque pessoal», dizem os sociólogos.

    Os guardas são a prisão. Bem entendido, os presos fazem a distinção entre os guardas «beras» e os «porreiros». Guardas que também são reprimidos por uma Administração, obrigados a participar no «esquema», no uniforme e no quotidiano do refugo da sociedade. Tornou-se trivial sublinhar, com um pouco de miserabilismo condescendente, que o guarda passa, em regra geral, mais tempo na cadeia que o preso médio. É muito provável. Contudo o que faz também do guarda um recluso não são os ferrolhos, as grades ou os muros. É o desdém, é a rotina e é, sobretudo, o medo: o facto de haver um guarda para cada 20 presos é uma explicação plausível… , mas não será de forma alguma a única.

    Face às enormes carências de efectivos — um guarda chega a trabalhar mais de 62 horas por semana — a Administração pública improvisa soluções. Recentemente foi criado pelo Governo um quadro especial de «vigilantes tarefeiros», medida que o próprio ministro Rui Machete reconhece ser ilegal. «Até agora era preciso morrer um guarda para entrarem mais alguns…», desabafava um quadro dos Serviços Prisionais ao ministro da Justiça, na cadeia de Paços de Ferreira.

    Augusto José Mendes Rodrigues Ramos, 32 anos, 4.º ano da escola industrial, já foi sucessivamente empregado de escritório, fiel de armazém, comerciante por conta própria e desempregado. Depois de um estágio de três semanas, ele é hoje um dos 17 tarefeiros que trabalham no Estabelecimento Prisional de Lisboa, a Penitenciária.

    O seu sonho era ser polícia de choque, mas quando quis matricular-se já não tinha idade. Virou-se para a prisão porque assim estaria ao «serviço do Estado» e poderia aplicar os princípios do «Antigamente».

    Ramos tem consciência de que há duas partes distintas nesta «selva»: «de um lado, estão os guardas; do outro, estão eles…» E conclui: «o vigilante prisional, mesmo tarefeiro, tem de ser um indivíduo humano, 100% humano. Temos uma profissão como qualquer outra!»

    Prisões em Portugal.
    (Foto: Luiz Carvalho)

    Vergonha e culpabilidade. Dois sentimentos. Um drama para muitos guardas. Entre a missão de protecção da sociedade por 31.000$00 [escudos] mensais e o estatuto de «homens do lixo» mais ou menos contaminados pelo Mal que frequentam — é assim que os vê o imaginário popular — há uma grande diferença. «O guarda tem vergonha de si próprio. Sabe que o seu trabalho é guardar a ‘escória’ em vez de educar.» Esta opinião dos sociólogos é também partilhada pelo subchefe Carlos, guarda da Penitenciária há 21 anos: «As prisões portuguesas não são solução. Não há condições aqui para que um homem saia recuperado. Às vezes, vêm para cá e ainda aprendem mais do que trouxeram lá de fora. Não há dúvida que isto, para quem gosta de lidar com as pessoas e tenta tirá-las já recuperadas lá para fora, não é o sítio indicado. Além disso um guarda prisional é um escravo!»

    As tarefas «nobres» foram atribuídas a outros. Aos psicólogos, que não há. Aos 13 padres (em jargão oficial, Assistentes Religiosos), aos 10 técnicos de educação e aos 62 técnicos de orientação escolar. A lógica da repartição destas tarefas teve como resultado, até há pouco tempo, que o recrutamento dos guardas e a sua formação fossem insuficientes. Se as coisas se processam de forma diferente, hoje, é essencialmente porque há mais desempregados. E crise, neste caso, representa um nível escolar mais elevado. Contudo, ser guarda prisional ainda não é uma vocação.

    Evoluímos. Os carcereiros já não «espremem» o preso, vendendo-lhe caro as «graças da prisão» como acontecia frequentemente no século passado. Antigamente, os guardas «agravavam a mísera condição dos infelizes, lançando as mulheres arrebatadas às famílias para o seio das enxovias atulhadas de meretrizes e ladras (…), os homens eram amontoados, empurrados a pau para a sociedade dos assassinos, nessas salas imundas, habitação de misérias infernais», como escrevia Oliveira Martins. Agora, as coisas são diferentes mas violência e corrupção ainda andam de mãos dadas. A instituição prisional continua a ser o organismo de Estado com maior número de inquéritos por ano. Mas como de costume, grande parte dos resultados das investigações acaba por ir parar à gaveta dos ‘Arquivados’, a aguardar produção de melhor prova. Os raros processos conclusivos poucas repercussões têm de concreto.

    Rosa Maria, 18 anos: «Uma guarda chamada Dona Prazeres bateu-me dentro da cadeia e depois tive 10 dias de castigo!»

    Elizabete: «Eu sou uma boneca nas mãos das guardas, uma vítima. Rir pode ser considerado um delito. Criticar o leite em pó pode significar uma punição.»

    Guardas e reclusos partilham alguns vícios. Uns, bebem. A taxa de alcoolismo é bastante elevada entre os guardas. Outros, drogam-se ou mergulham nos «amores proibidos». A homossexualidade entre reclusos é vulgar. Um recluso em cada três pratica a homossexualidade.

    Ana Paula, 23 anos, conta que as colegas «fazem» mesmo à frente das guardas. «Da primeira vez que cá estive limpava as celas e aconteceu-me encontrar uma carta de uma colega para uma outra que eu, como mulher, não escrevia ao meu marido. Uma carta escandalosa…»

    A cadeia tem as suas imposições. A opção não existe. E a partir daí tudo é possível. A miséria moral ou física. Ou talvez as duas juntas. Com ou sem puritanismo.

    Universo carceral: um mundo com outras regras…
    (Foto: Luiz Carvalho)

    Prisão de Tires.

    Às seis e meia da manhã, logo a seguir ao despertar cadenciado da sineta, nasce um burburinho que se repercute de andar em andar, se aproxima da cela e acaba por rebentar mesmo atrás da porta. Um, dois ferrolhos giram. A porta abre-se lentamente. A primeira coisa a fazer é respirar. A intimidade paga-se aqui com solidão. Então, fala-se. Fala-se de tudo e de nada. É falar por falar. É falar para esquecer. É tão somente falar para «ser-se gente». Aproveita-se cada segundo porque depois é outra vez tempo de esperar. É o inevitável reencontro com a solidão.

    — O momento mais difícil de todos é a noite! A gente sente falta dos nossos. Eu olho para as fotografias das minhas filhas, lembro-me do meu marido e dá-me vontade de chorar. À noite, a solidão dói mais…

    Ana Paula puxa do cigarrro e segue com o olhar a nuvem de fumo.

    Os dias vão passando, estéreis. Ela já passou várias vezes pelos «deslizes» cíclicos dos reclusos: a revolta, a melancolia, a resignação e… como não espera libertações precárias nem condicionais a curto prazo, apesar de ter pago «grande parte da dívida à sociedade», voltou ao princípio.

    Uma pessoa sai daqui ainda mais revoltada. É o regime da cadeia! Eu não penso voltar, mas isto não favorece ninguém.

    Ana Paula, 23 anos menos dois ou três de prisão, aconchega o uniforme, leva lentamente a mão à face para repelir uma lágrima e conclui a sorrir que agora vai ter a ajuda dos pais.

    — Eles ainda têm 10 filhos para criar mas estão a pensar comprar um táxi para eu andar durante o dia e o pai durante a noite…

    Ao lado do leito, a mesinha de cabeceira improvisada que ela conseguiu arranjar e a fotografia da família. Numa das paredes, mesmo por cima do penico, meia dúzia de recortes amarelecidos pelo tempo. A decoração possível. Publicidade para soutiens. Abraços principescos de Carlos e Diana. Travolta de jeans apertadas. Imagens. Fracos estimulantes de sonho. Míseros sucedâneos de Amor e Sucesso, como manda a lei. É a nivelação da personalidade pela despersonalização total.

    As actividades culturais são escassas. As acções de formação escolar ou profissional estão em fase embrionária. Dados oficiais garantem que 70% dos condenados trabalham. Os ordenados são baixos, entre 15 e 160$00 por dia. Trabalhar na prisão é mais uma forma de ganhar uns tostões e de ocupar o tempo do que um meio de obter uma formação profissional válida para a vida livre.

    Caminho nos terrenos da prisão de Tires. Os produtos são vendidos.
    (Foto: Luiz Carvalho)

    Segundo um técnico do recém-criado Instituto de Reinserção Social, a prisão isola momentaneamente o indivíduo  «sem lhe propor qualquer projecto social ou educativo ; depois liberta-o tal como chegou à cadeia, ou ainda em pior estado. Não se tem minimamente consciência do potencial de ódio e violência acumulados pelo preso, que só vai reforçar a sua rejeição pela sociedade.»

    Mas como não há estatísticas sobre a reincidência nem estruturas de acolhimento post-prisionais, não se sabe quantos voltam…

    Apesar da autorização concedida pelo Director-Geral dos Serviços Prisionais, o chefe dos guardas da Penitenciária proíbe-nos de falar com os presos. Entrego o meu gravador a um deles e peço-lhes que ditem os seus depoimentos. A Verdade fica, provavelmente, entre o silêncio a que o chefe os queria condenar e os excessos do anonimato.

    — Isto é a pior repressão que pode existir! É o regime nazista. As pessoas não aguentam isto.

    Oiço um ruído metálico. Passos distantes e uma voz que balbucia palavras ininteligíveis: «… comida, médicos.» Pela gravação imagino o aparelho mudar de mãos. O homem tem uma voz grave. Diz chamar-se Carlos Oliveira e estar de passagem. «Sou de Vale de Judeus e aquela cadeia é um buraco. Nós ali não temos direito a nada. Há agressões. Houve reclusos em greve de fome. Temos necessidades a nível da alimentação, da educação e sobretudo de comunicar com lá fora.»

    Penitenciária de Lisboa. Aproveitar todas as oportunidades para falar.
    (Foto: Luiz Carvalho)

    Comunicar com o exterior. A grande maioria, sem dinheiro, relações e a noção exacta dos seus direitos, pouco contacta com quem está lá fora. Os advogados vêm quando é preciso, os familiares quando podem e os amigos quando calha. A correspondência é toda aberta.

    O pai de Célia, 22 anos, morreu num desastre. A mãe da rapariga ficou cega. A Direcção da cadeia não a deixou ir ao funeral.

    Elizabete, 19 anos: «A minha mãe morreu. Deram-me conhecimento, mas não me deixaram ir ao funeral.»

    Isabel Madalena, 26 anos, talvez o caso mais dramático: «Tenho um filho com sete meses internado no Hospital de São José. Só me deixam ir ver o menino quando faço «barulho». Sujeito-me a ir de «castigo». A Directora responde que não dispõe de automóveis suficientes.

    Quando um recluso não acata as ordens restam a repreensão verbal e a «tarimba», a cela de castigo. Um cubículo de três metros por dois, escuro como breu, um balde para o que der e vier e uma cama de tábuas. O tempo de castigo varia muito: entre uma hora e um mês.

    O preso pode sempre recorrer ao juiz do Tribunal de Execução das Penas, mas muitas vezes prefere apelar para «instâncias superiores». Manda uma cartinha ao senhor Ministro da Justiça ou dá um telefonema à Dona Manuela Eanes. «A Dona Manuela Eanes é que me vai ajudar! Só acredito nela e em mais ninguém…», palavras de Dolores Sequeira, 30 anos, que diz não ver os filhos há dois anos.

    “A solidão à noite, dói mais…” – Penitenciária de Lisboa.
    (Foto: Luiz Carvalho)

    Em Outubro, 50% dos julgamentos dos presos preventivos  «residentes» na cadeia de Monsanto foram adiados. A percentagem foi ainda maior em relação à Penitenciária. É por esta e muitas outras razões que a população prisional bate cada mês novos recordes. É a crise económica, é o aumento da delinquência, é o novo Código que abrange mais crimes e é ainda a desorganização dos tribunais e o conservadorismo de alguns juízes que hesitam em aplicar penas alternativas.

    Com efeito, a aplicação de algumas penas de substituição previstas na Lei poderia reduzir substancialmente o número de presos: o trabalho a favor da comunidade, a prisão por dias livres (ou de fim-de-semana) e a multa.

    Entretanto, aplicam-se sentenças inéditas de legalidade duvidosa: um juiz do Porto condenou há semanas dois jovens assaltantes de uma mercearia a trabalhar gratuitamente para o comerciante lesado durante 10 dias — ou irem parar à prisão.

    A ruptura é iminente. Monsanto já está fechada aos jornalistas por razões de segurança interna. Paços de Ferreira está à beira da revolta — na opinião de uma educadora do Instituto de Reinserção Social. Faro, Custóias, Coimbra e as demais cadeias não escapam à regra.

    Por toda a parte o aumento do número de presos só veio acentuar a degradação da instituição prisional. A degradação da sociedade. Para solucionar os problemas do imediato o Governo vai precisar mais do que de boa vontade. Vontade e mais nada.

    CONTAR OS DIAS

    06H30 Toca a sineta – Alvorada.

    06H45 Abertura das celas e saída para o banho.

    07H15 «Conto» (contagem, em calão carceral) das reclusas.

    07H30 Sineta.

    07H45 «Conto» das reclusas.

    08H00 Regresso para as celas ou saída para o trabalho

    11H45 Sineta.

    12H00 «Conto das reclusas e sineta.

    12H15 Almoço.

    12H45 Recreio.

    14H20 Sineta.

    14H30 Regresso para as celas ou saída para o trabalho.

    17H00 Regresso do trabalho.

    17H30 Abertura das celas.

    18H30 Sineta e «conto» das reclusas.

    18H45 Jantar.

    19H15 Convívio.

    20H30 Sineta e regresso para as celas.

    20H45 Sineta – Recolher.

    TAXA DE HOMICÍDIOS POR CEM MIL HABITANTES

    Toda a gente parece preocupar-se com o «aumento da criminalidade. À Direita, os adeptos da doutrina da segurança denunciam o aumento da delinquência e aproveitam para justificar a posteriori os seus apelos para uma justiça mais rija. À Esquerda, argumenta-se com o agravamento das desigualdades. «Cada qual tortura os factos até chamar os seus carrascos ao poder», afirma o jornalista francês François de Closets. «E o público, fascinado pela grande criminalidade, não parece comover-se com uma nova forma  de violência aterradora: a violência automóvel. Cada um de nós tem 100 vezes mais probabilidades de morrer atropelado por um motorista domingueiro do que ser assassinado por um criminoso.» O que acontece, de facto, é que temos outra percepção da violência. Antigamente, tinha-se apenas conhecimento da violência mais próxima. Agora, predomina a violência do Mundo via televisor. Vive-se em contacto permanente com a delinquência económica e o receio de se ficar sem o carro transforma-se na angústia de se perder a vida.

    UM NÓ NA GARGANTA

    Ate meados do século passado havia poucas prisões. O castigo era essencialmente físico — a morte ou, mais brandamente, a mutilação, o desmembramento, o desterro…

    Miserere! Miserere!

    O coro da cidade atulhada nas janelas metia dó. A tropa, indiferente à algazarra, abria o préstito . Os padres, os frades, seguiam atrás, salmodeando latim fúnebre num cantochão rouco. O crucifixo erguido ia sempre voltado para os réus que se arrastavam de capuz caído sobre os ombros e de corda atada à cintura, questão de hábito.

    Adeus, Márcia, eu vou morrer!

    «De um lado», descreve Oliveira Martins em 1894 no seu Portugal Contemporâneo, «ficavam os meirinhos e escrivães, de capas e batinas negras, calção, meia e sapato afivelado, para pôr sua fé no peito» como diz a Ordenação. De outro, os clérigos, em coro, num tom de rufar de trovões distantes, salmeavam: De profundis clamavi ad te… De profundis… Os carrascos, nos degraus das escadas, esperavam; e em quadrado as tropas, enfileiradas, de armas ao ombro, formavam um cordão unido, monstro dentado de baionetas, de cujas escamas de aço o Sol, indiferente à loucura humana, tirava faíscas. Dizia-se um nome, e o carrasco apoderava-se de um homem, seguido por um frade rezando-lhe ao ouvido…

    Este corpo que abraçaste

    Que já foi o teu prazer,

    Vai tornar-se em pó, em terra,

    Adeus, Márcia, eu vou morrer!

    Subiam as escadas; a meia altura, o carrasco tapava a cabeça ao desgraçado vestindo-lhe o capuz branco, pendente nas costas, atava-lhe os dois pés… Rápido! Breve! Passava-lhe o nó na garganta» e o condenado era em seguida queimado ou enterrado, conforme a decisão dos juízes.

    Até 1867 — data da abolição da pena de morte em Portugal — o castigo era essencialmente físico. Muitas vezes a sentença era a morte. Mas também a mutilação, os desmembramentos e, acessoriamente, o desterro, o confisco ou a multa.

    Como a prisão era quase sempre «por poucos dias» não se construíam estabelecimentos. Arrumavam-se os presos em qualquer sítio. Mas as penas corporais foram caindo em desuso, em grande parte por influência do Direito Canónico, e a pena principal passou a ser o encarceramento. Edificaram-se prisões e adaptaram-se castelos, palácios e conventos.

    Associa-se a noção de pena à regeneração na prisão que «tão eficazmente tem contribuído em outro países para a extirpação de vícios, para a emenda de costumes, para o aumento da moral pública e para o progresso da civilização.» (Decreto de 16/1/1843)

    Entre os  decretos e a realidade há um fosso enorme. As cadeias são o tumor «purulento» do Governo. «Os carcereiros espremiam o preso, vendendo-lhe caro as graças da prisão. Para aumentar o valor do serviço, agravavam a mísera condição dos infelizes, lançando as mulheres arrebatadas às famílias para o seio das enxovias atulhadas de meretrizes e ladras: um monturo de impudicícia torpe, obscena. Os homens eram amontoados, empurrados a pau para a sociedade dos assassinos, nessas salas imundas, habitação de misérias infernais. Davam-lhes  sovas de cacete (…) e por dia ¼ de pão e caldo, onde flutuava, raro, alguma erva. Sócios na cadeia, o assassino, o pedreiro-livre, sofriam a fome em comum. Viam-se de rastos, esfarrapados e nus, com a cinta apenas coberta por um farrapo sujo, com a pele áspera, escamosa, da imundície, da fome e da lepra, com a face esquálida, os cabelos pegados de suor e terra habitados de bichos; viam-se roendo ossos como cães, ou devorando as cascas podres das frutas. De noite dormiam em pilhas.» (1)

    Em 1936, o país só dispõe ainda de duas cadeias (inauguradas em 1885), duas pequenas colónias penais para «vadios» e umas quantas velhas prisões «sem o mínimo de condições.» (2)

    Partindo da ideia de «corrigibilidade» de todos os condenados efectua-se em 1979 uma nova Reforma que vai anteceder de três anos o actual Código Penal… e a crise da instituição prisional.

    (1)            In «Portugal Contemporâneo», Oliveira Martins, 1894.

    (2)            In «Aspectos Fundamentais do Sistema Penal e Prisional e da Organização Judiciária em Portugal«, Ministério da Justiça, 1965.


    Reportagem originalmente publicada na Revista GRANDE REPORTAGEM, 7 a 13 de Dezembro de 1984 – Lisboa

    N.D.: O PÁGINA UM agradece a amável generosidade do fotógrafo Luiz Carvalho, cujo contributo tornou possível a publicação desta reportagem.


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  • Pescueza: Esta terra é para velhos

    Pescueza: Esta terra é para velhos


    Nesta reportagem, Rui Araújo dá a conhecer os habitantes e as memórias de Pescueza, uma vila espanhola sem lares de idosos.

    A vila tem 152 habitantes. E praticamente metade tem mais de 65 anos de idade.


    Península Ibérica: o perigo é o despovoamento.
    (Foto: Rui Araújo)

    “VERSIÓN EN ESPAÑOL:

    “Pescueza, esta tierra es para viejos. Soledades en la frontera lusoespañola”

    A meio da manhã orvalhada, dou com dois velhos janotas sentados num banco do pátio do Centro de Dia de Pescueza. Meto conversa com o do panamá alvo. Dá ares de ser um homem bonachão. O outro parece ser de poucas falas.

    —  Seja bem aparecido, cavalheiro!

    Ángel Martín Sánchez, por alcunha Tío Ángel, é poeta. Sorri-me. Tem 96 anos cumpridos. Diz-me de ímpeto que sabe de cor e salteado dezenas de poemas do seu conterrâneo José María Gabriel y Galán (1870 – 1905).

    O poema dele de que eu mais gosto é “El Embargo”. Quer ouvir? — indaga, com boa disposição.

    O ancião mede-me de alto a baixo e, sem esperar pela resposta, põe-se a declamar o poema em castúo, um dialecto da Estremadura espanhola.

    — Señol jues, pasi usté más alanti… (Senhor juiz, passe mais adiante)

    Saboreio a recitação com deleite, que remédio. Dou comigo a pensar nos meus amigos poetas: o moçambicano Virgílio de Lemos (1929 – 2013) e o galego Alfonso Armada (Vigo, 1958).

    — Tenho uma memória fantástica. Sei uma data de poesias. Não tenho é aqui a carteira comigo. Dava-lhe os títulos todos…

    — É tudo de José María Gabriel y Galán?

    — É quase tudo dele. É pois…

    — Antonio Machado, Federico García Lorca, Rafael Alberti, Rosalía de Castro…

    — Não. Não…

    Encontro com Tío Ángel, o poeta (à esquerda na foto), e Tío Isidoro, o irmão ex-Guardia Civil.
    (Foto: Rui Araújo)

    Por descargo de consciência, opto por cumprir o papel de jornalista. E inicio a singular entrevista. O meu parceiro, Rui Pereira, profere um lacónico “Estou a gravar”, os olhos postos no viewfinder da SXS. Ele sabe, bem entendido, que não podemos perder tempo.

    — Nascido e criado em Pescueza. Éramos agricultores humildes. Lavradores. O amanho da terra. As árvores, a apanha das bolotas e essas coisas todas quando deixámos de ir à escola. Também gostávamos do gado. Tínhamos porcos para as matanças, para essas coisas, e ainda uma junta de vacas e isso.

    Em Pescueza, “todos encarreiravam para a lavoura e a pastorícia” (diria Aquilino Ribeiro depois de “El hombre que mató al diablo” na Novela Semanal, em Madrid. O romance “O homem que matou o diabo” só foi publicado em português alguns anos depois.).

    Uns anos depois, Aquilino Ribeiro publica em Portugal “O homem que matou o Diabo”
    (Foto: Captura de ecrã)

    Tío Ángel era um aldeão mais igual aos outros. O seu mundo era lavoura e o gado. E a leitura. A poesia, sobretudo. Ele devorava poesia.

    A sua casa não era das mais ricas do lugar. Era apenas uma família remediada e honrada que não aspirava a mais nada do que a ser isso mesmo…

    — Era feliz aqui?

    — Pois era. E continuo a ser feliz na minha casita… — diz a sorrir.

    Um velho feliz… — exclamo ou pergunto, pouco importa.

    — Sim…

    A reposta, decididamente, não me convence. Experimento de novo.

    —  Um velho feliz…

    Ele não se ofusca com a minha insistência.

    — A verdade é que a solidão me mata! Morreu-me a mulher há quatro anos. Estávamos casados há 65…

    Escuto, calado. Não tenho outra saída. O ancião segura uma bengala, que mais parece um cajado.

    Casados, eh! E fomos muito felizes! Foi a única rapariga de quem gostei. Éramos os dois daqui. E já está… — conclui.

    Palavras do jornalista Raul Brandão (1867 – 1930) a propósito de outro amor da mesma casta: “Um dia destes temos de nos separar, e é natural que seja eu, que sou mais velho, o primeiro a partir… Antes, porém, quero dizer-te que te devo o melhor da vida.”

    Daniela Goméz Martín, a mulher de Tío Ángel, partiu primeiro. Faleceu em 2017.

     — O que é a morte para o senhor?

     — O que é a morte para mim? Eu não devia dizer isto, mas há aqui pessoas… Prefiro a morte. Sim. Porque aquilo não é viver. Viver assim não é viver. Terem de dar-te a comida, terem de lavar-te, terem de…

    Ángel é homem de carácter. Respondo-lhe com um silêncio amargo. A velhice deforma-nos. Pior: a dependência. Tal como a solidão imposta ou, por outras palavras, a morte social.

    Isidoro, o seu irmão mais novo, nem sequer pestaneja. Há separações dolorosas. E há a morte, que dá plenamente sentido à vida e não devia deixar ninguém indiferente.

    — Vidas assim, não lhes dou nenhum valor. Isso não é viver. Quando chegar a esse estado, não vou suicidar-me, mas…

    — E qual é a maior alegria, hoje, para si?

    Tento cumprir o papel de jornalista, mas é caso para dizer “Aqui-d’el rei”. A pergunta é incómoda. Ignoro qual será a reacção. Feitas as contas, o velho engoia-se como pode no banco, pensativo.

    — A maior alegria para mim seria uma companheira, pelo menos, durante a noite…

    Em quartos separados… — pergunto ou insinuo com um sorriso sardónico nos lábios.

    Isso já não faz falta… — profere.

    — Nunca se sabe… — retruco em tom de provocação.

    O idoso espraia o olhar pelo pátio vazio e desata a rir à gargalhada. De facto, é poeta mas não tem cara de pinga-amor.

    — Mas o que é que queres dizer com isso?

    Há sempre coisas dignas de serem saudadas, creio.

    — Ouve lá, vou dizer-te uma coisa…

    — Diga lá.

    Eu digo. Para o que é que eu quero uma mulher? É para companhia. É para falar. No que diz respeito ao sexo, nada.

    E o amor?

    Homem, o amor é o melhor que há se é um amor verdadeiro. É o melhor. Um amor bom. Fui muito feliz com a mulher. Muito feliz porque fizemos uma boa combinação. Eu é que mandava lá em casa. Ela fazia o que queria em matéria de gado. Havia momentos em que me zangava, mas… A solidão mata-me. Há quatro anos morreu-me a mulher. Estávamos casados há 65 anos. Casados! Pois é… — conta Ángel Martín Sánchez.

    Ele arqueia os ombros e mete-se a rir. Deixo-o dar largas à alegria.

    — Este português é danado para a brincadeira…

    Os poetas têm sempre razão. Topo a frase anónima pintada em letra amarela no banco roxo do meu querido artista. “O prazer é a flor que floresce, a recordação o perfume que perdura”. Seja… Mas, nada é eterno e como escreveu Raul Brandão “o que aqui conserva um carácter eterno são as árvores, os montes e o trabalho no campo e nas eiras, que à força de ser transmitido — sempre os mesmos gestos — adquiriu uma beleza extraordinária, entranhada até ao âmago nos vivos e nos mortos.”

    É assim. Tío Ángel, o poeta de Pescueza, partiu umas semanas depois de eu o entrevistar. Partiu porque as pessoas só morrem mesmo quando já ninguém se recorda delas.

    ESTA TERRA É PARA VELHOS

    Pescueza, uma vila espanhola sem lares de idosos.
    (Foto: Rui Araújo)

     Pescueza, Província de Cáceres, Estremadura.

    À primeira vista este povoado rústico do século XV parece igual a tantos outros da planura envelhecida e olvidada, mas não é: aqui, não há lares de idosos. Os velhos vivem nas casas onde ergueram telhado…

    Mais uma vila que parecia estar condenada a desaparecer como tantas outras dos dois lados da raia…

    Hoje, Pescueza já só tem 152 habitantes. E praticamente metade tem mais de 65 anos de idade.

    Louvado seja o programa “Quédate con nosotros” (Fica Connosco) que foi criado para impedir a morte (absurda da vila) e, do mesmo modo, dar uma vida melhor  porventura mais digna  e mais autónoma  aos seus velhos.

     “Quédate con Nosotros” é um projecto que, ao fim de 10 anos de trabalho, evidenciou simplesmente o interesse que tem aquilo a que chamamos agora a Espanha esvaziada as zonas despovoadas, o mundo rural… de… de se criar uma nova organização dos serviços de proximidade. — explica Constancio Rodríguez Martín, Presidente da Associação Amigos de Pescueza.

    A ideia (inovadora!) é não mandar os velhos para os lares. Não os há, aliás, aqui. E não são precisos!

    Por aqui dizem com orgulho que o Festivalino é o festival mais pequeno do mundo. Foi criado em 2008. Desde então, passaram por Pescueza grandes artistas de Espanha como La Oreja de Van Gogh, Amaral, Manuel Carrasco ou Revolver.

    A prioridade era dar vida à povoação e, por outro lado, fomentar a  interacção com os idosos.

    Há três anos apareceram no Festivalino mais de 10 mil pessoas.

    A Associação dos Amigos de Pescueza começou, entretanto, em 2011 a implementar com o apoio da Junta da Extremadura, a União Democrática de Pensionistas (UDP) e o município, o modelo de uma terra sem lares. Nem mais!

    — A gente… A gente da nossa vila precisa de continuar a viver onde viveu toda a vida. Criarem à sua volta o lugar mais decente para continuar a desfrutar não só da casa, não só da localidade, da loja, dos vizinhos, dos amigos e da horta. — acrescenta Constancio Rodríguez Martín.

    Pescueza permitiu a muitos idosos permanecerem nas suas casas, o lugar onde sempre viveram.

    Facilita-lhes a vida. E de que maneira…

    Aqui, um corrimão nas paredes das casas.

    Ali, um passeio azul para os andarilhos com anti-derrapante.

    Tudo isto nos itinerários mais frequentados: igreja, consultório e centro de dia.

    Pescueza – mais uma povoação confrontada com o despovoamento…
    (Foto: Rui Araújo)

    Pescueza é  segundo o Banco de Espanha  um dos 158 municípios da região que podem desaparecer a longo prazo se não for invertida a dinâmica populacional.

    Há 3 mil e quatrocentas localidades espanholas confrontadas, hoje, com o mesmo problema.

     Dizem que o primeiro sintoma da morte de uma localidade é o encerramento da escola. Quando se fecha a escola começa a haver falta de quê? De crianças! Não há crianças. O sintoma seguinte é quando os comércios desaparecem. O lugar tem cada vez menos gente que recorre aos comércios, que, por sua vez, deixam de dar lucro. E depois, definitivamente, o derradeiro sintoma, o mais grave, aqui, na nossa região, é o encerramento dos cafés porque são o centro social e o ponto de encontro das pessoas. São uma necessidade nas povoações. Quando já não há pessoas deixa de haver serviços públicos como a escola, os centros de saúde, o banco e os Correios. Os sintomas da morte definitiva, quando deixa de haver serviços públicos ou município, serão esses. — afirma José Vicente Granado Granado, Director do SEPAD (Servicio Extremeño de Promoción de la Autonomía y Atención a la Dependencia).

    Centro de Dia de Pescueza.

    Meia manhã de mais um dia como os outros.

    Só aparece, aqui, quem quer ou quem precisa de algo.

    O local está aberto das 8:30 da manhã até às 9:00 ou 9:30 da noite. E adapta-se às necessidades de cada pessoa…

    Montaña Llanos Llanos prepara o almoço do pessoal e o petisco de hoje promete: “patatas marineras” (batatas com gambas, mexilhões, ameijoas e peixe) e “de segundo”, como se diz em Espanha, bifinhos de porco.

    — O maior desafio que temos, aqui, neste centro é que as pessoas permaneçam o maior tempo possível na sua casa. Para isso, prestamos-lhes uma série de serviços como, por exemplo, as refeições, os duches, podem vir cá tomar duche, o serviço de lavandaria, também os acompanhamos ao médico e às consultas, não só na vila como nas cidades que estão perto, e, para tal, dispomos de este projecto “Fica Connosco”, que consiste em que eles permaneçam, enquanto for possível, nas suas casas, porque aquilo que as pessoas de idade desejam é permanecer o maior tempo possível na suas próprias casas. Há muitas mulheres que perderam o companheiro e é ainda o sentimento de solidão. Nós, aqui, também as acompanhamos nesse processo de solidão que passa, por vezes, pelo luto, um pouco para… não ficarem, se calhar, sem ninguém, sem qualquer apoio… É gente que  não tem filhos e, para isso,  temos também uma psicóloga que vai ainda a casa das pessoas e as vai apoiando. — Sandra Díaz García, Directora do Centro de Dia.

    Todos os dias há actividades : aulas de ginástica (como a de esta manhã), ateliers de nutrição ou de fabrico de sabão, sem falar nas sessões de emoção, que é como quem diz da memória.

    A Associação Amigos de Pescueza presta agora auxílio a 30 e tal idosos.

    O sol está a pino.

    Daqui a bocado é a hora do almoço no Centro de Dia.

    No entrementes Herminia Sansón Martín meteu de arrancada para o olival à saída da vila. A sós com os seus botões, claro… Tem 82 anos. Vive em casa sozinha. Perdeu o marido há 21.

    Hoje é dia de cortar o “moito”, o pé-de-burro, os rebentos das oliveiras mais ramalhudas.

    Tem o pé leve mas labutou uma vida inteira de sol a sol — ela… mais o marido, que era operário na Seat, em Barcelona.

    Com o andar dos tempos Tía Herminia começou a dar mais valor a estes parcos instantes de paz. E às oliveiras. No ano passado produziu 79 litros de azeite. 

    Madre, yo tengo un novio aceitunero,

    que vareando tiene mucho salero.

    Cuando me ve, me dice:

    – Voy a morir por ti.

    Madre, yo tengo un novio aceitunero.

    ¡Aceitunero me gusta a mí!

    Dale a la vara,

    dale bien, que las verdes

    son las más caras

    y las negras “pa” mí.

    Tiri tiri tiriri.

    (NOTA: Amália Rodrigues chegou a cantar “Los aceituneros” em espanhol. A música pode ser escutada aqui).

    Pescueza é um povo que sempre viveu da lavra e da pastorícia.

    E Portugal ali tão perto…
    (Foto: Rui Araújo)

    No Centro aberto – que acaba por ser uma autêntica plataforma de serviços – há mais uma actividade: a preparação da azeitona, que tem muito que se lhe diga.

    O almoço só é servido à uma da tarde.

    Ficamos a observá-los como quem não quer a coisa.

    Tía Antonia, de olhos a luzir, tira da memória uma cantiga de amor com um azeitoneiro.

    A melopeia sentimental prossegue.

    ¡ Ay! Me estoy muriendo por ti.

    ¡ Ay ! Desde que te conocí.

    Estando en la aceitunera él me decía

    con palabritas dulces que me quería,

    se acabó la aceitunera y no lo he vuelto a ver.

    Madre, yo tengo novio aceitunero.

    ¡Ay, que se muere por mi querer!

    O segundo serviço é daqui a uma hora, às 14.

    A sala de jantar está silenciosa. A euforia do viver não é para aqui chamada…

    O Centro conta com 12 auxiliares, uma enfermeira, uma psicóloga, uma cozinheira, um administrativo, um monitor de desporto  e uma directora (que é terapeuta ocupacional) para cuidar dos seus anciãos.

     A atenção é essencial para os idosos porque para além dos cuidados de enfermagem eles precisam de cuidados humanos. Necessitam de ser bem tratados. Com carinho. Com humanidade…

     E a solidão dos anciãos?

    — A solidão dos anciãos é uma questão muito delicada que requer muito carinho da nossa parte, muita atenção, muito apoio, para que eles se sintam queridos e saibam que estamos sempre aí para os atender. Nós, aqui, tratamo-los como se fossem da nossa família. Cuidamos das suas necessidades tanto dentro como fora do centro e ainda nas suas casas. Tentamos assumir um papel mais de família e não só de mera assistência. — declara Raquel García Borrero, Enfermeira.

    Daqui a bocado é o momento da ocupação útil e, sabe-se lá, espiritual: “la siesta”. Os camponeses madrugam e há hábitos que nunca se perdem…

    Tío Isidoro.

    Está quase na casa dos 90. Foi militar da Guardia Civil. Meto conversa com o ancião.

    O senhor não tem cara de Guardia Civil…

    —  Não tenho cara? Mas corpo, sim. (RI-SE) Eu entrei para a Guardia Civil com dificuldade porque não tinha estatura suficiente… De maneira que tive problemas, mas só por ser pequeno. E, por fim, deram-me… Deram-me como apto. Já somos história porque em relação à alegria tenho muito menos porque… a idade não perdoa. Os anos não perdoam. É o que te… Não se escapa ao tempo… E é cada vez, pior. Cada vez, pior. Bem…

    —   O senhor pensa na morte?

    —   O quê? Sim, penso na morte, mas o que é que eu posso fazer? Ela chegará quando chegar. Não tenho pressa. (RI-SE) Eu procuro viver a vida aqui e mais nada. E é assim!

    O tempo é implacável. E de nada serve atamancar o passado.

    A vida tem de ser encarada como aquilo que é (no presente!), independentemente do temperamento e das quimeras de cada um.

    Muitas vezes o pior até nem é a regressão.

    É a gente acabar no ermo.

    Tío Pío – a solidariedade da raia é feita de gente assim…
    (Foto: Rui Araújo)

    Tío Pío.

    78 anos. Solteiro. Nascido e criado em Pescueza.

    Ajudou muitos portugueses há para aí 60 e muitos anos, quando era guardador de rebanhos.

     Quando tinha 15 anos… 15 anos, 14, 15… costumavam aparecer portugueses de noite por aí, pelo campo, levavam 20 ou 25 quilos de café às costas. A tremer de frio. Passavam frio. A água chegava-lhes até aqui acima. Molhavam-se bem molhados… Eu dormia com o gado no campo e os que passavam, “vem cá”, levantava-me, fazia uma fogueira, já tinha a lenha preparada para fazer uma boa fogueira, aqueciam-se…  recorda o velho pastor, Tío Pío Ramos Peréz. 

    Nos anos da fome, “los años del hambre” (como ainda se diz cá), os contrabandistas portugueses corriam estas terras malfadadas e governavam-se. Traziam café e levavam açúcar, fazenda e bolachas para as suas aldeias.

    Sem gente no interior, não somos nada…
    (Foto: Rui Araújo)

    Verdade verdadeira, da fraternidade de antigamente já só resta a memória dos velhos, que sabem o que custava a vida. Mas o pior para esta gente ainda é capaz de ser a solidão…

     A solidão é o pior que há. Metes-te em casa à noite, sozinho… Penso muito de noite… Pois, penso em tudo. Que pode acontecer-me qualquer coisa. Que pode acontecer qualquer coisa e coisas assim, mas isso depois passa…

    — E tem um sonho? Uma quimera?

    — Pois, não. É um dia de cada vez e mais nada. É um dia de cada vez e mais nada.

    Tío Pío é um homem só.

    A solidão imposta  ou a morte social  é sentida como um castigo.

     A solidão é um dos grandes flagelos do século XXI. É agradável se a pessoa a escolhe, é uma opção. Mas pode ser tremendamente dura quando é uma obrigação. E, hoje em dia, há cada vez mais idosos… Há povoações com pouca população e a solidão é, muitas vezes, uma obrigação. Creio que recebo mais deles do que lhes posso dar, mas o mais difícil, quiçá, seria ter consciência dessa solidão, quando a pessoa não a quer… É bonito. É gratificante, mas o mais difícil seria talvez isto: sabermos que essa pessoa não quer essa solidão e tem de lidar com ela dia após dia…

    — A parte humana é a prioridade?

    — Sim, claro. Sim, sim, sim… É o motor do projecto, sem dúvida. — conclui Noelia Galán, Psicóloga.

    Duas e meia.

    É trigo limpo.

    Tío Isidoro, que estava à espera de boleia para ir dormir uma soneca a casa, sai do Centro de Dia.

    Trini, a auxiliar, faz de motorista do carro eléctrico da Associação Amigos de Pescueza. E de amiga ou confidente do velhote…

    Centro de Dia. 

    Mais uma história que é ao mesmo tempo a da Península Ibérica.

     Eu tinha uma loja e o meu marido era sapateiro. Ele trabalhava no piso de cima e eu tinha a loja em baixo. Os portugueses apareciam com o café de mochila às costas e nós comprávamos-lhes três ou quatro quilos porque não podíamos comprar muito… Eu é que o vendia. Moía o café e depois vendia-o  às pessoas por cinco ou 10 pesetas. E açúcar também 10 pesetas ou cinco porque havia falta de açúcar. E os portugueses vinham de noite. É isso que quero dizer-lhe. Avisavam logo em que semana vinham e… vamos lá a ver… tínhamos a porta fechada e a luz apagada… para a Guardia Civil… se aparecesse… não se dar conta que estávamos ali.  Iam para cima e fechava-se a porta. Eu ficava em baixo, cheia de medo, e o meu marido consertava o calçado. E uma vez encomendaram-lhe camisolas interiores de Inverno. E um deles vestiu cinco camisolas, umas em cima das outras. Porque se as levassem vestidas não ficavam sem elas…

    — São os únicos portugueses que…

    — … lá para os lados da raia.

    — Mas são os únicos que a Senhora conheceu…

    — Sim. Sei como se chamam e tudo…

    — Como é que eles se chamavam?

    — Um chamava-se João… E outro José Domingos e outro Felizário ou Feliz…

    — Felizardo?

    — Felizário e João era o irmão dele. Era o irmão dele… Tía Constantina Rodríguez Llanos, 94 anos, Comerciante aposentada.

    Os contrabandistas não andavam em magotes, mas precisavam de ter sorte.

    Seja como for, numa hora de aperto espanhóis e portugueses — nos dois lados da fronteira — eram solidários.

     Espanha é um país com inúmeros povoados pequenos, são localidades e comunidades, que respondem à mesma idiossincrasia que Pescueza. Pensamos, por outro lado, que Portugal, é um país que partilha connosco um monte de similitudes culturais, sociais e económicas muito importantes, mas também é possível fazer com que este projecto arranque e tenha um enraizamento profundo em Portugal. A partir de “Quédate con Nosotros” da Associação Amigos de Pescueza, fazemos uma proposta franca, sincera e comprometida para que qualquer iniciativa que consiga atrair o… …o interesse das comunidades de Portugal na implementação de um projecto semelhante na sua… …o seu quotidiano, em desenvolver um novo cenário do que falamos há tanto tempo… — propõe Constancio Rodríguez Martín, Presidente da Associação Amigos de Pescueza.

    Ignoramos quase tudo do viver e morrer destas pessoas, dos seus sentimentos e costumes (como diria o mestre Aquilino Ribeiro).

    Fim da viagem a Pescueza. Terra de velhos extraordinários…

    Amanhã, chove a potes.


    Reportagem originalmente publicada na CNN Portugal e emitida na TVI em 16 de Fevereiro de 2022.

    O texto também foi publicado em Espanha no jornal FRONTERAd (Madrid).

    Fotos de Rui Araújo


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  • A ilha

    A ilha


    Nesta reportagem, Rui Araújo desvenda as mágoas, os tesouros e memórias da ilha mais pequena do arquipélago dos Açores.

    No Corvo há histórias de corsários e de baleias. E de milagres.


    O (meu) velho e o (meu) mar, parafraseando Ernest Hemingway. (Foto: Rui Araújo)

    É quase noite.

    Lá fora, o mar está chocalhado.

    Eles juntam-se, aqui, quando chegam das terras de cima ou do mar. Eles. Elas, não.

    Antes, há uma data de anos, o ponto de encontro dos pescadores e dos lavradores na ilha do Corvo era o Largo do Outeiro.

    Café Traineira
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    Agora, é o Café Traineira.

    Os náufragos da vida e os outros que deram à costa — a porta permanece sempre escancarada até às oito ou coisa que o valha — já não tomam resoluções. Matam o tempo. Mas há mais coisas que mudaram…

    Inácio Pimentel: “Agora, já está tudo relva“.
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    Antigamente, as pessoas trabalhavam muito mais. Agora, não. Agora, o senhor vai para cima todo o dia e vê um ou dois lá em cima. Não vê mais ninguém. Já não é como era. Trabalhavam… Agora, já está tudo relva… — conta-me Inácio Pimentel.

    — E porque é que já não trabalham as terras?

    — Já não trabalham porque não querem. Não têm falta. Querem o gado e mais nada. Já está tudo relva…

    — E a pesca? Mudou muito?

    — A pesca… Antigamente, eles apanhavam muito peixe porque havia muito. E havia muitas lanchas. Agora, só há duas ou três. Passa-se dias e dias que nem sequer vão ao mar. Pronto, já não é como era…

    A conversa e os pleitos, quando os há, são entrecortados por filmes de telemóvel. Histórias do mar. O que é que havia de ser?

    Lá ao fundo, o televisor sem conserto dependurado na parede debita ruído. Ninguém liga.

    De qualquer forma, o essencial (à semelhança da insularidade) raramente se resume a palavras.

    Às vezes, a felicidade (por mais efémera que ela seja) tem a forma da rotina dos dias numa ilha, longínqua ou nem por isso. Ou passa por histórias de baleias ou de lobos do mar. Hemingway, Melville, Conrad e London que o digam. Ou Vitorino Nemésio ou Raul Brandão…

    Corvo: uma ilha com gente rija, sobretudo os mais velhos.
    (Foto: Rui Araújo)

    Mudança de cenário.

    O nosso destino é o cemitério.

    E deixamos sempre uma parte de nós no caminho, mas no Corvo ainda há quem teime em honrar o passado. E se reconheça em Deus e na amargura da ausência. Com ou sem mortificação…

    O cemitério à beira-mar.
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    José Inácio de Fraga. A lápide não diz, mas era mais conhecido por José Augusto.

    José Inácio de Fraga, mais conhecido por José Augusto.
    (Foto: D.R.)

    O “trancador” faleceu a uma dezena de milhas do Corvo na manhã de 21 de Julho de 1955. Tinha 29 anos. Deixou 4 filhos mais um a caminho.

    A campa, o nome — a memória — e o rosto ajudam-nos a ser quem somos — diria Torga.

    Era baleeiro. É o único corvino que morreu na caça à baleia.

    O padre e os 51 fiéis abalam.

    Lá atrás, o manto sombrio do horizonte esconde as campas anónimas dos 17 romeiros — os peregrinos de Santa Cruz das Flores e da Fajã Grande, que morreram ao largo do Corvo aquando do naufrágio da lancha “Senhora das Vitórias”, mais conhecida por “Francesa”, a 13 de Agosto de 1942 .

    Sem a morte a vida não teria sentido.
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    É noite funda não tarda.

    Vila do Corvo.
    (Foto: Rui Araújo)

    Corvo.

    É a ilha mais pequena dos Açores.

    Terá sido descoberta por Diogo de Teive, escudeiro do Infante Dom Henrique, em 1452.

    O povoamento definitivo ocorreu quase um século depois, em 1548.

    O isolamento e a ausência de um porto seguro (sem contar com a dependência em relação à vizinha ilha das Flores) são uma explicação…

    O espesso mato e o arvoredo de outrora — pau branco, loureiro, tamujo, azevinho e cedro — aqui a norte, no Caldeirão! — por exemplo, desapareceram há séculos.

    Mesmo assim, o Corvo, denominado outrora a “ilha negra”, é reserva da Biosfera desde 2007. Um galardão excepcional da UNESCO.

    Mas… vamos por partes:

    Área: 17 quilómetros quadrados bem contados.

    Altitude máxima: 718 metros.

    População: 459 habitantes (mais 129 do que há seis anos), maioritariamente corvinos.

    Os outros são oriundos do arquipélago, do continente, da Madeira, de Cabo Verde, de Espanha, do Brasil e até dos confins da Ucrânia.

    Vivem todos, ali em baixo, na única povoação da ilha: Vila do Corvo.

    Principais actividades: empregos públicos, produção de gado — necessariamente com apoios comunitários que um dia destes acabam! —, no Corvo há 997 vacas, o que dá duas cabeças por habitante — algum turismo e a pesca…

    Taxa de desemprego: zero por cento.

    A ilha.
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    É uma manhã invernosa, mas com horizontes.

    No porto, à beira da vila, é a azáfama do costume — ou quase. O guincho está avariado. A grua móvel faz o serviço: mete a embarcação de pesca local “IASALDE” na água.

    Comprimento de fora a fora: 24 pés (dá 8 metros!).

    Arqueação bruta: menos de 3 toneladas.

    Velocidade máxima: 7 ou 8 nós. O motor dá o que pode…

    A pesca à linha (com anzois nº 8), aqui, é a do goraz, pargo, cherne, garoupa e… peixe-porco nos dias azarentos.

    O isco usado normalmente é o “bonito”, mas como já não há desde Janeiro… vai chicharro «bago».

    Tripulação: dois homens.

    O mestre é Eugénio de Freitas. 50 anos. 36 de mar. É corvino de gema.

    O pescador dá pelo nome de João Andrade. Tem 52 anos. É natural de outra ilha: Fogo, Cabo Verde.

    O pescador João Andrade.
    (Foto: Rui Araújo)

    Rumo: 160 ou 165: Esguilhão do Incenso.

    Se lá não der, vamos para o Pico João de Moura e a Pedra Nova.

    E, passado um bocado, cedemos à tentação de mudar de ares… o sulco ora é azulado ora é prateado, as cores como o resto dependem do céu?

    Apanhamos 3 peixões.

    É o momento do exame de consciência em voz alta ou da confissão improvisada…

    Mestre Eugénio de Freitas.
    (Foto: Rui Araújo)

    — A pesca antigamente era mais fraca porque havia muito peixe mas não havia venda para ele. Agora, tem muita venda para peixe e é assim… Onde há muito ferro há pouco carvão. Isso é sempre assim…, diz Eugénio de Freitas.

    A pesca já não é o que era. Tem dias…

    Como se não bastasse, chegam a estar semanas a fio sem poder ir para o mar por causa do mau tempo.

    O vento ruim sopra sempre de nordeste.

    E a tarde está a cair…

    A voragem do tempo não poupa nada nem ninguém…

     Sonho com o meu marido e pouco mais. Já não tenho mesmo aquela vontade de querer. Eu posso limpar os olhos? — indaga Odete Vieira.

    A senhora Odete Vieira
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    — A gente está bem e de uma hora para a outra desmorona-se tudo. Vai-se tudo embora. Ele adoeceu e depois de ele adoecer a minha vida perdeu o rumo…

    O marido morreu-lhe na manhã de 21 de Abril. Eram 5 e meia da manhã. Parece que foi hoje.

    O marido da senhora Odete Vieira.
    (Foto: D.R.)

    Odete Vieira. Nascida e criada no Corvo.

    — Antigamente, o Corvo era fraco em tudo. Tínhamos miséria. Não padecíamos da fome, mas… pão, leite nunca nos faltou. E queijo, que a gente fazia-os em casa. Mas de resto havia pouco. Hoje em dia, é que há a modernice das hamburgers e da batata doce. Dessas comidas assim…

    — O que é que mudou nestes anos todos?

    — O cacau! O dinheiro!

    Dona Odete é católica e praticante. Tem fé em Deus, Nossa Senhora dos Milagres e Nossa Senhora de Fátima. Mas… mas a sua especialidade são os altares do Espírito Santo e os presépios.

    Seguimos caminho.

    A memória preservada.
    (Foto: Rui Araújo)

    Logo a seguir à igreja, damos com dois velhotes.

    José Alferes Pedras, 75 anos. É corvino. Foi guarda florestal.

    A mulher, Maria José, tem 72. É florentina. Era lavradora.

    O casal tem 4 filhos e 5 netos.

    É o primeiro encontro inopinado.

    José Alferes Pedras, um homem sem papas na língua
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    — Essa casa era da filha do padre. O padre casou e fez essa casa para moradia para ela… — conta José Alferes Pedras.

    O cepticismo da idade está em harmonia com o falar.

    Metemos conversa.

    — A vida, aqui, agora é malandrice… que eu já estou reformada. E este também… — confessa Maria José Pedras.

    Os hábitos e as tradições mudam mais depressa do que as mentalidades.

    — Mas a senhora gosta de viver cá. Ou não?

    Ela acena que não.

     Se não gostasse, já se tinha ido embora! — acrescenta José Alferes Pedras.

     É uma coisa assim, mas não é da ilha que se gosta. É das pessoas! — diz a mulher.

    Há gente que não renuncia à humanidade.

    Mais palavras para quê?

    Os cimos verdejantes e desertos.
    (Foto: Rui Araújo)

    Outro encontro.

    O sujeito que vem por aí acima a passos arrastados tem cara de poucos amigos. Mesmo assim, metemos conversa.

    João Grevis. 62 anos. Foi lavrador, carteiro, deputado e presidente da câmara.

    — Ó senhor, o futuro do Corvo… Eu não vejo grande futuro para a ilha… Portanto, acho que a ilha está um pouco estagnada. O empreendimento é pouco. Os jovens já não têm muita garra para se dedicar a muitas coisas… Procuram um emprego. Um emprego… e os sectores produtivos estão praticamente abandonados. Portanto, a lavoura devia ser um pilar forte, aqui, na ilha… praticamente, a lavoura está a desaparecer. Estão as pessoas já de idade. Jovens que se dediquem à agricultura são muitos poucos… — garante João Grevis.

    Há, aqui, alguns jovens acomodados que se contentam de um emprego fictício. A servidão por mais mal remunerada que seja não os incomoda… mas quem somos nós para os julgar? É um lugar-comum, mas… ninguém faz o que quer!

    — Antigamente, já do meu tempo, tínhamos um navio aqui de 3 em 3 meses. Depois, passou a vir de mês a mês e antes de mim muito menos do que isso. E era assim. As pessoas estavam completamente isoladas, mas eram pessoas que se inter-ajudavam a si próprias, uma comunidade entregue a si própria, mas uma comunidade de grande garra e que… toda a gente sabia fazer qualquer coisa.

    A deferência do timbre é enganosa…

    João Grevis recusa o comodismo e a lisonja gratuita.

    Está reformado. Agora, entretém-se a sonhar com outro futuro para a ilha e a viver: cuida das hortaliças e pesca uns chernes e uns gorazes.

    O Corvo selvagem…
    (Foto: Rui Araújo)

    O mundo mudou. 

    E esta gente mudou…

    — O meu trisavô, o meu bisavô emigraram a bordo de uma baleeira. Trabalharam um ano a bordo. Depois, foram para os Estados Unidos. Naturalizaram-se americanos. Depois de terem a vida mais ou menos arranjada, regressaram. Compraram mais uns bocados de terra e fizeram a sua vida cá — conclui João Grevis.

    — E, como eles, houve muitos…

    — Sim. Sim. Como eles… quase todas as famílias do Corvo têm descendentes que foram baleeiros e tinham nacionalidade americana.

    A caça da baleia requeria força e coragem.
    (Foto. Captura a partir de imagem do Museu da Fábrica da Baleia do Boqueirão)

    A caça à baleia acabou em 1987 com a morte de 3 cachalotes ou em 1984, quando fechou a última fábrica dos Açores.

    Os corvinos pararam muito antes, logo no início do século 20.

    A falta de um varadouro decente complicava as manobras de varar e de arrear.

    A baleia dava de comer a muita gente em todo o arquipélago dos Açores.
    (Foto: D.R.)

    24 de Julho de 1896.

    Depois de uma passagem pela ilha das Flores, o Príncipe Alberto do Mónaco desembarca, pela segunda vez, no Corvo.

    O ancoradouro de Nossa Senhora do Rosário era isto aqui.

    Nossa Senhora do Rosário, hoje Vila do Corvo.
    (Foto: Musée Océanographique de Monaco)

    A povoação mencionada nas chapas é “Rosário”. Hoje, Vila do Corvo.

    O soberano permanece 3 dias na ilha e almoça no Caldeirão a 25 de Julho, um dia depois de chegar.

    O almoço da comitiva do Príncipe Alberto.
    (Foto: Musée Océanographique de Monaco)

    É a segunda visita do soberano à ilha. A primeira ocorreu 7 anos antes, em 1879.

    Imagem do passeio de três dias.
    (Foto: Musée Océanographique de Monaco)

    A 24 de Novembro de 1981 é caçado o último cachalote nas águas do Corvo por baleeiros florentinos.

    A memória das quimeras e dos dias de servidão – a fúria do mar, as preces e as lágrimas de sal —… a memória… com o vento de Oeste parece resistir ainda mais ao tempo.

    O meu amigo Pedro Melo Lindo.
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    — Eu queria era apanhar baleias para o patrão ter o seu lucro e a gente ter o nosso. Às vezes, dá-me saudades.  Dá-me saudades…

    Era caçador de baleias.

    — Se eu voltasse para trás, se eu fosse mais novo, que eu já não tenho idade para a pesca da baleia, se eu fosse mais novo eu hoje ainda ia. Gostei muito daquilo. Foi o melhor tempo que eu tive na minha vida. Foi a pesca da baleia.. Porque foi uma das coisas que me levantou a minha vida, está a perceber? Que ganhei dinheiro para me poder manter a mim e a minha mãe. O meu pai quando morreu eu tinha 7 anos. Perdi-o. Tive de começar a trabalhar muito novo. Está a ver?

    O mar — ao contrário da terra — une os homens.

    Pedro Melo Lindo, 77 anos, caçador de baleias aos 14.

    Um homem sério e humilde, que se respeita.

    Hoje, vive numa casa sombria com a mulher e um filho. Paredes meias com a melancolia de antanho e a paz do dever cumprido.

    Mata o tempo a cuidar de um porco e de 36 vacas (de carne), mas não são os raciocínios economicistas que o animam.

    O mar engrandeceu esta gente rudimentar…

    Acompanhamos o caçador de baleias aposentado lá acima, à Lomba da Rosada.

    Esta manhã, é preciso mudar a cerca dos bezerros — mudar de pasto.

    Passamos pela Lomba do Feno.

    E esperamos…

    Pedro Lindo espera.

    O filho e um amigo andam à cata dos bichos.

    Aparecem dois. O desfecho é normal. Amanhã, procuram mais…

    Cada bovino tem direito a nome: Galho PartidoTrigueiraMourataLavradaCalçada

    Eles lá sabem. É assim. E desde sempre.

    Damos de caras com o carteiro.

    — Tenho, aqui, uma carta para si…

    — Não deve ser boa coisa… Da minha namorada não deve ser… (RI-SE) Ela está divorciada há muito tempo. deixa ver…

    Orlando Rosa. 46 anos. É o carteiro do Corvo. O único.

    Faz a distribuição e o atendimento.

    Dona Hélia? (O carteiro abre a porta e deixa ficar a carta).

    — Como vêem, ninguém tem, aqui, número de porta e quando para cá vim há 20 anos tive de decorar todos os nomes das pessoas que cá viviam. Dos que cá viviam e dos que vinham para cá trabalhar. Tive de decorá-los todos!

    — Sónia? Tem uma porção de coisas aqui. Jornais…

    — Muito obrigada!

    — Como vêem, as casas, aqui, no Corvo não têm número. Quando cá cheguei, há 20 anos, levei mais de um mês a decorar o nome de toda a gente. Foi difícil na altura, mas agora já sei o nome de toda a gente. Já está resolvido!

    A solidez do sistema postal passa pelas pessoas e pelo código postal que começa em Lisboa e acaba aqui: 9980.

    Esta parte tem de cortar! (O carteiro ri-se) Deixa ver se tenho, aqui, cartinhas para ti, Teresinha.

    O carteiro do Corvo é do Pico. Orlando Rosa veio por um ano. Está cá há 20.

    — Sempre a trabalhar. Tenho, aqui, uma cartinha para si. Até logo!

    Encontros e desencontros instrutivos.

    A harmonia é aparente, mas há paz e sossego.

    Um sol baço ilumina o burgo.

    A última fronteira.
    (Foto: Rui Araújo)

    A escola do Corvo tem 42 alunos e 20 professores (todos de fora).

    Há turmas com um aluno. A maior tem 7.

    Aula de geografia.

    — Estava muito habituada a ter indisciplina na sala de aula e acabava por ser um bocadinho como um desafio. Aqui, não tenho esse desafio, mas tenho outros… outros desafios, que é o facto de estar a lidar com 1, 2. 3 alunos e trabalhar ao ritmo deles, mas também tendo a noção que… uma parte dos alunos não tem a ambição que, se calhar, noutros… noutros lugares, noutras escolas eles têm.

    Esta juventude perde-se. Com emprego garantido (independemente das vocações e dos resultados dos estudos), deixa de sonhar. Ou acomoda-se.

    As perspectivas destes jovens são magras, mas quem somos nós para os julgar?

    — O futuro da ilha do Corvo passa obviamente por três… três pilares: a pesca, a agricultura e a agro-pecuária e o turismo. E o turismo, queremos que seja um turismo selectivo e, como eu costumo dizer, o Corvo é para ser vivido e não visto. Portanto, precisamos de turismo que venha vivenciar aquilo que foi a nossa História e aquilo que é o nosso presente. E que, provavelmente, continuará a ser no futuro. E espero que os jovens sejam capazes de perpetuar isto… — palavras de José Manuel Silva, presidente do município.

    É possível que o futuro da ilha também passe pelo turismo cultural…

    Esta gente arranjou sempre soluções para sobreviver neste pedaço de terra cercada de mar.

    A destrinça entre natureza e História, aqui, é por isso mesmo impossível.

    — A caça à baleia era uma maneira de eles fazerem dinheiro para sustentar a família. E eles caçavam a baleia, aqui, entre a ilha do Corvo e das Flores… — refere Maria Luísa Pimentel.

    — Há histórias tristes. Morreu um rapaz aqui do Corvo. Morreu um rapaz que era daqui do Corvo. Ele era trancador. Trancava a baleia e o meu pai não estava no bote que ele estava. Estava noutro. Eles juntavam-se, os das Flores com os do Corvo, e depois punham a companha da maneira que era preciso. E… E ele trancou a baleia quando não devia ter trancado a baleia. Eles tinham que esperar a maneira melhor de trancar a baleia e ela  não fazer mal a eles. A baleia é um animal mamífero que não faz mal nenhum… Se vai ver uma baleia passar pode passar a mão por cima que ela não faz mal. Mas trancaram-na, já se sabe, feriram-na. Ela levantou o rabo e entrou o barco. O barco era de madeira e não era muito grande. E… E feriu o rapaz. Ferido morto. Morreu imediatamente.

    — A cabeça e a cara não se sabia que era uma pessoa.

    A ilha mais pequena dos Açores…
    (Foto: Rui Araújo)

    No lar da vila encontramos Fernando Pimentel. 85 anos. É o cunhado de José Augusto da Fraga, o jovem “trancador” corvino sepultado no cemitério à beira do mar que não o viu morrer.

    O velho homem assistiu ao drama…

    Fernando Pimentel – a outra face da coragem…
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    — Eu pensava que estava vivo. Ele estava todo rebentado. Ele tinha um golpe na cabeça. Eu quando fui ao pé dele… um golpe na cabeça. Depois a gente foi para as Flores. Depois, veio para o Corvo. Eu perdi a fala naquela altura. (Chora)

    — Lembra-se como se fosse hoje…

    — Lembro!

    Há mortes que são uma desgraça.

    Muitos açorianos emigraram para escapar à miséria. Alguns — e não foram poucos — foram parar aos Estados Unidos…

    Dona Guiomar e o marido, Raúl Trindade, chegaram a New Bedford (Massachusetts), no dia 8 de Julho de 1972.

    Ela arranjou trabalho numa fábrica (que, entretanto, fechou). Ele foi para cortador de peixe.

    — A gente estivemos na América quase 16 anos. Quase 16 anos… Eu estava a gostar muito. Muito. Eu adorava a América. God Bless America! É o que eu queria dizer, mas o meu marido deu-lhe aquela pancada como costuma dar à maioria deles, quis vir para o Corvo. Ah, senhor. Foi um balde de água fria para cima da minha cabeça. Que.. foi um balde de água fria para a minha cabeça…

    Escreve à filha e aos netos. Faz a mesma coisa que a sua avó fazia em 1983 quando vivia em New Bedford.

    34 anos depois, repete-se a cena da carta da “Grande Reportagem” de Miguel Sousa Tavares, emitida na RTP.

    (Foto: Arquivo RTP)

    À semelhança da avó, Guiomar Trindade deixou na América da prosperidade ou da felicidade (pouco importa agora) uma filha e três netos.

    As palavras de ontem são como as de sempre…

    Minha querida filha, netos… E netos. Muita saudinha a todos. Por cá, … vamos na forma do costume. Fomos ao Faial. Graças a Deus, mais ou menos correu tudo bem. Ah, Temos muitas saudades vossas principalmente nesta… nesta época da festa de acção de graças e o Natal…

    É a sina de muitos emigrantes.

    E esta prosa em letra redonda cheia é tudo menos oca…

    — Agora, com a idade, eu ando é com a minha muleta. Não é com o anel de diamantes nem é a pulseira de ouro. Ando com a muleta para a muleta me aguentar.  O senhor sabe…

    — E…

    — …

    — Mas continua a sonhar…

    — Bem, eu… Sonhos grandes, grandes não. Eu já não os tenho. Não. Mas, senhor, os problemas da vida são muitos…

    Igreja de Nossa Senhora dos Milagres:

    É a hora da missa.

    Esta imagem de Nossa Senhora do Rosário (que passou a ser, entretanto, denominada Nossa Senhora dos Milagres) terá dado à costa do Corvo no século 16.

    A devoção à santa padroeira da ilha é real.

    A igreja terá sido edificada em 1795.

    Curiosidade: os bancos de carvalho eram de uma sinagoga dos Estados Unidos da América. Foram comprados na década de 60 por um emigrante de New Bedford…

    É noite cerrada.

    Temos Lua cheia e firmamento (mais ou menos estrelado)…

    O céu confunde-se com o mar. E as estrelas, lá ao longe, parecem, agora, mais ilhas perdidas. Têm nomes de princesas ou de bichos fabulosos ou de coisas.

    No restaurante Metralha é noitada de bola e de comunhão.

    O pitéu é especial: alcatra de cabrito com batata doce regada de branco do Pico.

    A ideia é de Alirio Andrade, lavrador, ilhéu do Fogo.

    — Eu não vou à missa. Eu sou católico, mas não praticante. Para a igreja mexericar na vida dos outros, eu não vou. Eu não tenho pecado. Não matei. Não roubei. E não devo nada a ninguém…

    — E hoje…

    — Hoje, é comer e beber.

    — E sente-se mais corvino que cabo-verdiano ou…

    — Eu saí de Cabo Verde com 17 anos e já tenho 32 anos. É mais corvino ou mais cabo-verdiano? O senhor que é juiz… diga uma coisa: eu sou mais corvino ou cabo-verdiano?

    Não se belisca ninguém sem razão, que seja o que Deus quiser.

    Mudança de assunto: a parte dos sonhos com Cláudia Reis, filha do Metralha. 

    — Eu gostava de ser cabeleireira e estética, ou seja, fazer um salão a nível de tudo: ter massagistas, pedicure, manicure, aqui, no Corvo porque, aqui, temos uma que corta, mas é em casa. Mas não faz assim penteados radicais, não… para casamentos não há maquilhadoras, não há assim gente profissional, mas temos uma rapariga actualmente a fazer as unhas, mas é só manicure…

    Na mesa ao lado, entre a sobremesa e o café, mais um testemunho.

    Fábio Ferreira, encarregado dos resíduos, toma a palavra.

    — Façam-me um favor: separem o lixo. os restos de comida num saquinho à parte. Embalagens, garrafas de água, pacotes de leite, pacotes de massa, num saquinho à parte, não custa nada. Vocês estão a ajudar-me a mim, mas estão a ajudar o meio ambiente. É só isso que eu peço. Obrigado por tudo.

    — E, agora, uma pergunta: este jantar tem história?

    — Tem.

    — Qual é a história deste jantar, aqui, esta noite?

    — Isso... (Cala-se) Eu não vou responder a isso…

    — A história de uma grande amizade…

    — Eu não vos responder a isso, não consigo. ” (Chora)

    Inventariar as mágoas… às vezes, é preciso. Por mais atordoada que a consciência fique.

    Juntaram-se no Metralha para homenagear um amigo. Ruben tinha 29 anos. Faleceu no dia 14 de Outubro.

    Fim do convívio.

    As crianças salvam as aves marinhas.
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    O primeiro passo para proteger as aves marinhas da poluição luminosa é dado na ilha mais pequena dos Açores a 3 de Outubro de 1991.

    Só 4 anos mais tarde, o resto do arquipélago segue o movimento.

    Partida das brigadas “SOS CAGARRO”.

    A poluição luminosa de noite é um perigo para as aves.
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    Vão armados de lanternas, luvas, colete reflector, caixas de papelão e… boa disposição, claro.

    Vão correr, durante, pelo menos, duas horas, as canadas — as ruelas da vila e recolher aves marinhas encandeadas.

    No espaço de um mês, em 2016, foram resgatados e salvos na ilha 1.020 cagarros — é a designação local para a pardela de bico amarelo.

    Esta manhã a liberdade.
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    11 da manhã.

    A cena da libertação dos cagarros repete-se à beira da falésia, lá para as bandas dos moinhos.

    3 em cada 4 cagarros nidificam nos Açores. Estamos a falar de qualquer coisa como 200 mil casais.

    Vivem 40 ou 50 anos. Reproduzem-se a partir dos 7.

    Este tem 3 meses.

    Daqui a 5 ou 6 anos volta ao Corvo — a ilha que o viu nascer.

    — Eu quando abro a caixa sinto felicidade porque sei que ele vai voltar ao seu habitat natural e vai viver a sua vida.

    — É bom para o meu ser… que eu quero ser bióloga marinha e terrestre. Ajuda-me a fazer coisas. penso melhor na minha vida e ajudo eles. — jura a menina Clara Sofia Lindo. 

    A partir de agora é o mar, imenso como os sonhos das crianças.


    Reportagem originalmente transmitida na TVI

    Fotos de Rui Araújo


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  • Quatro dias, uma moto e uma mochila

    Quatro dias, uma moto e uma mochila


    Em 2018, Rui Araújo fez uma ‘peregrinação’ sem destino traçado nem etapas definidas, a partir de Lisboa, em cima da sua então nova mota, apenas pelo prazer da viagem e de encontros imprevistos. Estava para ser uma espécie de ‘viagens à minha terra’ versão motorizada, mas atravessou a fronteira, e não se satisfez apenas com Espanha, galgando o País Basco, até à francesa Baiona, nos Pirenéus Atlânticos. O importante é a viagem, não o destino – e um diário para que a memória se mantenha.


    LISBOA. 

    É uma viagem (essencialmente por estradas secundárias) sem acompanhantes. E, sobretudo, sem destino.

    VENDAS NOVAS.

    Decido abandonar a A6. Há estradas que parecem autênticos túmulos desolados a céu aberto. E faz um calor de rachar.

    MONTEMOR-O-NOVO.

    O importante não é o destino. Chegar é, aliás, irrelevante. O que importa é partir, viajar. É a peregrinação. Dou comigo a matutar, sem querer, que andar de moto é como navegar. E, se não é, parece…

    Penso na primitividade das minhas desventuras da pesca do tubarão, entre o arquipélago de Cabo Verde e a linha imaginária do Equador. Cheguei a narrá-las na revista LUZES (A Corunha).

    O meu mar…

    Essa reportagem acabava mais ou menos nestes moldes:

    Depois da faina da pesca do tubarão, a nossa conversa em torno da mesa do pesqueiro Intrujão é, necessariamente, filosófica: grogue e putas.

    — Depende da qualidade. Mais barata é 250 escudos [2,5 euros]. Depois, há 300 escudos [três euros]. A diferença é a qualidade. A chinesa é de 500 [cinco euros] para arriba. Badia, há a todos os preços… — explica Magrás.

    — São Vicente é mais caro do que a Praia. Mamada a 500, fodas a 1.000 é o mais barato — acrescenta Mendonça.

    Ti John coça o pescoço, vagarosamente.

    — Hoje, é dia de foder a mulher de cada um, não é dia de puta… — adianta.

    — Se o senhor quer uma mulher em São Vicente, eu arranjo… — propõe-me Magrás.

    Acabamos por atracar no Mindelo. O pescador ferido, Luís (Malulula), é transportado imediatamente para o único hospital da ilha de São Vicente. 

    Largamos amarras (há pescadores que preferem a expressão «largar cabos») segunda-feira, às duas da tarde. Serão mais três semanas sem avistar terra, se tudo correr bem. De resto, sinto-me  melhor no mar. E não estou aqui a fazer nada…

    O pescador Luís Malulula aprendeu a ler e a escrever comigo. Três semanas de mar e uma tempestade foram suficientes para ele conseguir gatafunhar o nome e dois ou três verbos a acabar em «ar». Morreu no dia em que atracámos no Mindelo. Teve um desastre. Tinha 40 anos. E deixou uma família por sustentar e muitas histórias de mar para contar, pelo menos isso. Não é nada e é muito…

    Luís Malulula: depois da pesca do tubarão as aulas de português.

    PASTANEIRA.

    Apesar da grandiosidade da planície bravia, dou graças ao destino por ter nascido junto ao mar. Esta paisagem árida, poeirenta e monótona atordoa-me.

    ARRAIOLOS.

    Paro no Forjador... Café e cigarro. As especialidades do restaurante são as empadas de galinha e os bolos tradicionais.

    ESTRADA NACIONAL 4. 

    É, portanto, mais uma tarde canicular. E os dias largos ainda nem sequer chegaram.

    Vimieiro e, em seguida, Estremoz. Em Borba, hesito. Tenho gasolina para mais 100 quilómetros.

    Badajoz? Ou meto pela N255 em direcção a Monsaraz? Eu adoro aquela vilazinha medieval alegre e buliçosa alcandorada sobre um cabeço. Do esplendor de antanho restam as casas caiadas e uma calçada bruta de xisto. O castelo. O muro da cerca, que esconde com parcimónia a melancolia daquela terra poeirenta e abrasadora e uma luzidia albufeira verde-doirada que se estende até ao horizonte. No burgo ninguém me espera…

    MONSARAZ.

    Parece que foi ontem. Fiquei na Casa Pinto, uma pensão situada diante da sumptuosa igreja de Nossa Senhora da Lagoa, ao lado de um pelourinho de factura oitocentista. Deus e a Justiça dos homens no mesmo espaço. Era o local ideal para mim, o zeloso e fiel combatente da infâmia e dos actos de arrepia-cabelo que corroem a normalidade envergonhada (?) da sociedade bem-pensante ou tão simplesmente do fingidor de jornalista.

    Eu recordo-me. A porta baixa de linhas austeras da pensão estava entreaberta. Entrei. A casa, que tinha sido restaurada pelo novo dono, um tipo mais triste do que taciturno, preservara o decoro devido à tradição. O resto não é para aqui chamado. Morrer mal é a mesmissíma coisa que morrer…

    No fim de contas, opto por Elvas. Não dá para matar o Diabo, mas teimar em correr atrás de fantasmas é doentio…

    ELVAS.

    Entrada da cidade. Depois da operação da GNR (ao lado da rotunda do costume, claro!). Faço uma paragem imprevista. E esboço um gesto de repulsa assaz patético, mas sincero. O raio da viseira está repleta de insectos . Puta que os p…

    Limpo o capacete e arranco ou, por outras palavras, invisto contra a soalheira, tão rija que faz calar as cigarras (como diria Aquilino Ribeiro).

    CAIA.

    É na fronteira desolada (edifícios do Estado abandonados e comércios fechados) e cada vez mais simbólica (apesar da propagação dos populismos por essa Europa fora) que começa a E-90/A-5, uma via idêntica a qualquer autoestrada nacional. A única diferença é o preço: é gratuita.

    BADAJOZ.

    E a seguir? Podia enveredar já pelas estradas secundárias, mas não o faço apesar de serem as mais interessantes porquanto permitem descobrir um país quiçá desconhecido e «escutar o canto dos pássaros». 

    A natureza disciplinada acompanha os grandes eixos rodoviários, aqui como em Portugal. 

    As aldeias antigas e vazias, desertas de gente, por estas bandas, proliferam dos dois lados da raia.

    A 120, a velocidade legal (a CB 1100 só dá 190), chego rapidamente ao El Torero.

    LOBÓN.

    A via rápida passa perto da vila, situada a 35 quilómetros (praticamente a meio caminho entre Badajoz e Mérida). A escassa circulação rodoviária em Portugal  sobretudo de camiões e carrinhas  contrasta com o movimento daqui. E as velocidades praticadas.

    El Torero está fechado. O café é estupendo e o patrão uma pessoa afável. É, quem sabe, um filósofo. A mensagem pintada em letras garrafais no espelho diante do balcão é peremptória: «Por muito alta que seja uma montanha, há sempre um caminho até ao cimo. Tudo é muito difícil antes de se tornar fácil.» Do outro lado do pilar, meio escondido, acrescentou: «O segredo está na vontade.»

    Acabo por ir parar à esplanada do café/lar da vila. As veredas da vida estão muitas vezes onde menos as procuramos. Os velhotes sentados à minha volta conversam ou dormitam, tanto faz, aninhados nas recordações ou no esquecimento.

    TRUJILLO.

    No cimo de um prédio arcaico ou decrépito da Plaza del Campillo, a passarada encastelada bate asas e some-se. À hora do crepúsculo cada qual acoita-se onde pode. Empurro a porta do Hotel Victoria. Fico no quarto 109. O 110 é mais bonito, mas está ocupado.

    Deambulo, vagueio para matar o tempo e apaziguar a memória atordoada. Somos todos iguais, regemo-nos pela mesma cartilha. Discorremos como armaduras vazias e mutilamos o sentir, com trapaças ou futilidades, tornando-o inexprimível.

    Tienda de Isidro – Chorizos Caseros fica no outro passeio, paredes meias com o Hostal – Restaurante Julio.

    O lugar está mergulhado na obscuridade. Dou as boas tardes. Uma cliente bem-parecida observa algo numa prateleira. Um velhote, magrinho, ágil, que arruma latas, mete conversa comigo. É o pai de Isidro, o dono. Tem 90 primaveras ou outros tantos invernos. Faz parte dos encontros improváveis. Conta-me que foi operário da construção civil e que agora passa as tardes no estabelecimento. E que só arreda pé na hora do fecho.

    — E de manhã? — indago.

    — De manhã, estou no mercado.

    Isidro confirma com os olhos as palavras do pai.

    — Temos óptima patatera…

    — Estou mais interessado no queijo do que nos enchidos… — informo.

    — Tenho um curado de cabra, aqui, da Estremadura que é fenomenal…

    Duas velhotas descoradas, trajadas de negro, passam diante da porta. Parto.

    — Há alguma livraria em Trujillo? — pergunto por perguntar.

    A da esquerda acena que sim. A outra nem por isso.

    — Só temos uma. É na Calle Tiendas. É antes de chegar à Plaza Mayor. Fica no lado direito de quem sobe…

    Agradeço a resposta ou a doçura do tom. A doçura das espanholas é uma realidade.

    — E como é que é a vida aqui?

    — Há cada vez menos gente em Trujillo. Já não há trabalho. Os jovens partem para as grandes cidades e para o litoral, que são o futuro…

    — São? — pergunto como quem não quer a coisa.

    Elas não respondem. Limitam-se a sorrir. É um recado silencioso: lamúrias e queixumes não é com elas. Ou com os velhos…

    «A velhice é isto: ou se chora sem motivo, ou os olhos ficam secos de lucidez», escreveu Torga.

    Instalo-me num mesón que conheço perto da Plaza Mayor (a da estátua de Francisco Pizarro, conquistador do Perú). Peço migas. Já comi melhores, designadamente num restaurante perto dos bombeiros de Grândola. Cada região da península ibérica tem as suas. Desde sempre ou quase… já que a gastronomia resiste ao tempo e à distância.

    As ruelas esguias e acanhadas do lugarejo estão desertas, mas aquilo que  incomoda mais é o silêncio. É a mudez ensurdecedora dos manequins clonados tristes que nos macaqueiam nas montras e nos escaparates.

    O sol peneirado invade o quarto. Espreguiço-me, espreguiço-me, espreguiço-me. Como quando era puto. Depois do duche e do pequeno-almoço na cafetaria, subo ao castelo, compro um livro («Tecleo en vano» de Pilar Galán, Editorial de la Luna Libros, Mérida) e visito uma capela esplêndida porquanto os palácios aristocráticos continuam a ter dono…

    A meio da manhã, arranco de luto na alma. Isto é muito mais do que uma mera viagem improvisada: é uma peregrinação, amarga e solitária, feita de memórias desarrumadas, de saudade e de mais saudade. Penso muito no meu pai, que partiu há dias. Não me habituo. Jorge Araújo «partiu» porque as pessoas só morrem mesmo quando deixamos de pensar nelas.

    «A minha alegria em velho consistiria em ter aqui meu pai para falar com ele. Não é só saudade que sinto: é uma impressão física. Agora é que acharia encanto até às lágrimas em termos a mesma idade, conversarmos ao pé do lume e morrermos ao mesmo tempo…» Palavras do imenso Raul Brandão em 1908 e que permanecem actuais. Para mim, claro…

    TALAVERA DE LA REINA. 

    Estaciono à frente do restaurante El Monasterio (na Avenida Real Fábrica de Sedas, 3 – Ronda Sur). Subo seis degraus, ocupo a única mesa vaga da esplanada e encomendo leitão assado (cochinillo). O Tejo, alheio aos ruídos do mundo, corre tranquilo, ali à minha frente.

    Para fugir dos camiões e dos carros dos caixeiros-viajantes, abdico do caminho mais curto para Madrid. Dou preferência a uma estrada municipal que vai para Norte. É menos frequentada e, lá ao longe, dá para acompanhar a linha da Sierra de San Vicente (Cerro de San Vicente: 1.321 metros).

    NAVAMORCUENDE. 

    Após Cervera de los Montes, Marrupe e Los Jarales (um complexo de turismo rural para famílias numerosas com animais e para casais felizes) subo a encosta (770 metros) e entro (pela CM-5006) no município.

    O encanto do lugar é relativo. Devidamente decepcionado, chego à arreliadora conclusão de que a igreja é a única salvação de Navamorcuende. 

    Tomo um café morno. E parto como cheguei: com sossego e sem esperança. Madrid fica a 126 quilómetros (M-501). Serão mais duas horas a arder de solidão amorfa entre montes e vales…

    MADRID.

    É uma cidade incrível. E é ainda — ao contrário de Lisboa — uma capital europeia. Continuo a deslumbrar-me com as suas avenidas, praças, jardins (estou a pensar no parque del Buen Retiro) e nas esplanadas (como a do Cinco Jotas na Jorge Juan – C/ Puigcerdà, s/n). E com a movida. Os espanhóis podem ser danados, mas são acolhedores, alegres, menos formais e bem mais cojonudos do que nós.

    Despeço-me de Madrid. E, do mesmo modo, das minhas intenções gastronómicas: jantar no galego O’Grelo (C/ Menorca, 39). Desta vez, não fico no Petit Palace Savoy Alfonso XII (C/ Alfonso XII, 18, Retiro – Puerta de Alcalá), não compro livros na Pérgamo (esquina da C/ de Lagasca com a do General Oráa), não…

    Depois da peleja impossível para escapar ao tráfego madrileno sigo para Guadalajara (recordo que a autoestrada com portagem é a pior solução!) e chego lá em menos de uma hora.

    GUADALAJARA.

    Preciso de procurar o Norte. Tudela? Tudela soa-me a caça e pesca e a Bardenas Reales (um parque natural selvagem e semi-desértico).

    Decido ir em direcção a Tudela. Percorro a E-90/A-15/CL-101 (256 quilómetros de desolação monótona) ou a E-5 (337)? Hoje é a vez da primeira, que margina a aridez. Coincide com o meu estado de espírito. A E-90 será pois o meu miradouro para a outra Espanha. E a admirável terra sacrossanta de que(m) eu gosto é estimulante até nos seus mais ínfimos recantos. O desabafo é sincero, mas não me levem a sério. E não me peçam lucidez. O calor embrutece e embriaga…

    Paro num saloon de «moteros» no meio de nenhures. Feitas as saudações da praxe, entro e bebo uma água suja do imperialismo norte-americano, vulgo cola. Pago na caixa à saída – a troco da entrega de um papelinho manuscrito.

    «Na minha terra sou quem sou; na terra alheia sou quem vou», reza o ditado popular…

    TUDELA. NA-8703. 

    Os candeeiros da ponte sobre o barrento rio Ebro são iguais aos de Lisboa. E se não são, parecem. O centro da cidade é à esquerda. Como há coincidências (apesar de Fernando Pessoa não acreditar), desrespeito a sinalização. Todas as inépcias vão dar ao mesmo…

    CADREITA.

    Cinco da tarde. Está mais do que visto: é aqui que fico. A intuição raramente nos engana. Procuro a pensão. Desgraçadamente, La Casa de la Abuela (Calle Aralar, 2, Cadreita, Navarra) está fechada a sete chaves. Milagre crucial: descubro um contacto atrás do toldo esverdeado que tapa a porta. Ligo.

    — Podes ocupar o quarto 3, cariño… — diz-me dona Esperanza, solicíta.

    — Pois… mas como é que eu entro? ¬— indago.

    — É fácil…

    — E a mota?

    — Pode ficar na rua. Aqui ninguém mexe no que é dos outros…

    — Mas eu não estou habituado a esse regime…

    — Falamos às sete. Não te preocupes…

    — Ya veremos...

    Louvo Deus. Entro. Esperanza é uma optimista genuína que conseguiu preservar o que as gentes do interior têm de bom. Coloco a mochila, o capacete e as luvas no meu quarto. Está uma tarde bonita. Em desespero de causa, entro no primeiro bar que encontro.

    Triángulos (C/ Bardenas, 37) dá para aconchegar a alma e matar a sede. E o espaço é hospitaleiro.

    — Hola! — dispara o dono.

    — Buenas tardes…

    O Triángulos

    Sensação estranha: sou um perfeito forasteiro aqui, mas sinto-me como em casa. Há encontros felizes. Falamos de Pamplona (a capital da fiesta taurina de San Fermín, narrada, designadamente, por Hemingway em Fiesta) e de Arguedas, a povoação das imediações, conhecida sobretudo pelo deserto e as suas cuevas, autênticas cavernas escavadas na falésia, que chegaram a estar habitadas nos séculos XIX e XX.

    O convívio é cordial, mas ficar aqui parado ou quiçá pasmado não me interessa. Devoro duas excelentes omoletes com presunto e vou deitar-me. Mas só depois de arrumar a moto no pátio da cunhada de dona Esperanza, claro.

    CADREITA.

    Às 10 parto para Arguedas. Na rotunda ao fundo da rua, dou com Milagro (milagre, em português). Confesso que depois de Esperanza e de Milagro sinto um misto de curiosidade temperada de esperança apesar de crer que o pretenso destino é coisa que não existe.

    ARGUEDAS.

    Comarca de Ribera Navarra. 2.400 almas. Percorro a vila em segunda. Os vecinos idosos sentados num banco ao pé do cemitério fitam-me com olhos de espanto. Sorriem. Saúdo os velhotes com um gesto da mão.

    Arguedas, Navarra

    De um lado, a planície do rio Ebro, os soutos e os arrozais. Do outro, a Sierra del Yugo e a Bardena Blanca. Independentemente das tentações, há terras luminosas onde não me importava de viver. Se Arguedas tivesse mar ou chovesse mais esta seria uma delas. Há serenidade aqui. E pena, sabe-se lá…

    Calle la Peña – Arguedas

    A igreja paroquial de San Esteban (dos séculos XVI e XVII) está encerrada. Ignoro a liturgia. Desato com imprecações sonoras. Porque necessitamos do sagrado?

    CADREITA.

    Um duche. Um copo no bar. E dois dedos de conversa com dona Esperanza sobre o jornalismo de guerra e a solidariedade (ou a ausência de solidariedade) e a desistência moral. O resto é conversa de desbocado que não interessa…

    Arguedas – Las Bardenas Reales, território árido e semi-desértico.

    IRUN.

    Esta manhã, parto para França. Opto pela estrada nacional, que passa por Pamplona. Padeço tormentos com o frio e a chuva miudinha nos Pirinéus.

    Os redutos separatistas continuam a ser uma realidade mesmo em lugares recatados do País Basco. Mas não há tempo para questionar identidades.

    Pirinéus

    HENDAIA.

    Os engarrafamentos propiciados por ridículas limitações de velocidade sucedem-se e repetem-se para mal da minha paciência.

    Fronteira

    CIBOURE.

    Paro na primeira padaria que encontro. Papo um croissant (de manteiga, se faz favor!).

    BAIONA.

    É uma cidade bonita, preservada. Mas a prioridade é visitar o cemitério (obviamente privado) judeu. Muitos judeus de Baiona eram oriundos de Portugal. Nos editais da monarquia francesa eram denominados, aliás, a «Nação Portuguesa». Tinham o seu próprio bairro, Saint Esprit. Hoje, já ninguém dá pela sua presença…

    Compro chocolate belga e um ensaio do filósofo francês Michel Onfrain (Zéro de Conduite, Editions de l’Observatoire, França) sobre o bando de jornalistas sem olfacto a soldo de Maastricht e do político Emmanuel Macron, inventado pelos media e o mercado. A decomposição do jornalismo e da democracia está em marcha…

    PAMPLONA.

    Decido regressar a Lisboa pelo mesmo caminho. E hoje. São 1.016 quilómetros. Com este calor, a indolência deixa de ser defeito.

    LISBOA.

    Sol sem calor. A ponte sobre o Tejo é a minha fronteira. Circulo na faixa do meio porque no meio é que está a velocidade. 

    Penso que por muito que me esforce não vou escapar à saudade antecipada da minha próxima peregrinação: Santiago de Compostela para jantar com o meu amigo Xosé Manuel Pereiro (da revista LUZES) na Casa de Xantar (onde se fala, aliás, português!) O Dezaseis.

     Apertas, meu.


    Reportagem originalmente publicada no site Autoportal, já inactivo

    Fotos de Rui Araújo


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  • Dois portugueses nas prisões tailandesas

    Dois portugueses nas prisões tailandesas


    No passado mês de Março, dois portugueses foram detidos na Indonésia por tráfico de droga.

    Mas, em 1982, dois outros jovens lusos foram condenados a uma pesada pena de prisão na Tailândia, um dos piores lugares do mundo para se ficar detido.

    Nesta reportagem publicada em 1983 na Revista ABC, o jornalista Rui Araújo segue os passos de “Márcia” e “Luís” e relata como o destino dos dois jovens se revelou sombrio e sem esperança, entre os muros de duras prisões.


    Nesta edição assume particular relevo a reportagem realizada por Rui Araújo, em que se conta a história dramática de dois portugueses, presos desde Maio do ano passado em prisões tailandesas, por tráfico de heroína.

    Um trabalho em que, mais do que os nomes, pretendemos levantar a questão da falta de um acordo de repatriação entre Portugal e a Tailândia — e assinalar o destino a que estão votados dois elos de uma cadeia mais vasta.

    António Mega Ferreira – Director da revista ABC

    Fevereiro de 1983


    Márcia, portuguesa, 24 anos: mais 24 anos à vista numa prisão tailandesa

    Em 7 de Maio de 1982, dois jovens portugueses eram detidos no aeroporto internacional de Banguecoque. Na bagagem, um quilo de heroína. 

    ABC conta como vive, na prisão de Bangkhen, Márcia, nome suposto de uma portuguesa identificada pela nossa reportagem.

    Capa da Revista ABC de Fevereiro de 1983 com destaque da reportagem sobre os dois portugueses detidos nas prisões tailandesas. (Foto: D.R.)

    É curioso. Nunca pensara poder suar tanto. Do outro lado,  eles sabiam. Mas davam-lhe mais uns minutos. Estavam só à espera que ele escrevesse o nome na ficha de embarque. Mas é claro que sabiam. Um policiamento paranoico, absurdo. A liberdade estava a escassas centenas de metros. Depois da inspecção das bagagens. Mas aqui, no hall, começara o pesadelo. Porque eles sabiam. «A viagem até ao fim do inferno». A morte, talvez…

    Os dedos tremiam. Olhou em redor. E acabou por quebrar a regra: dirigiu-se a ela. Pediu-lhe uma caneta. Em português. Não valia a pena esconder. Eles sabiam. Gritou o nome dela. E transpirava cada vez mais. E no momento seguinte já não havia nada a fazer: um «speak english?» anasalado fê-lo sobressaltar. «Hey, you too, stay here, understand?» Nesse instante, os potentes altifalantes transmitiram a última chamada para o voo Banguecoque – Bruxelas. Dia: 7 de Maio de 1982.

    As malas —  dele e dela — foram abertas. Cada um transportava meio quilo de heroína pura dentro de dois livros. A ideia não era má. Excepto que ninguém vai a Banguecoque para comprar literatura. A Tailândia é mais o país de sonho para quem pretende assistir a um «banana show», a um «fucking show», a um «lookie-lookie», passar uns momentos com um travesti ou uma criança. É isso «enjoy Thailand», para a grande maioria. Com uma massagem especial porque «we offer our heart». Mas a Tailândia é também símbolo de droga dura…

    No gabinete da polícia, ao lado do retrato oficial da família real tailandesa, um poster visivelmente ultrapassado ainda preconiza 100 anos de prisão para os exportadores de estupefacientes. Hoje, o crime é punido com a pena de morte.

    Luís e Márcia, correios de droga, portugueses, pouco mais de 20 anos de idade, caíram na armadilha. E sem dinheiro não há sequer hipótese de suborno. Os poucos dólares de que ainda dispunham para os cigarros da free shop não chegam para comprar a polícia. Os dois jovens tornam-se um número de processo. Um extenso dossier é enviado à Drug Enforcement Agency (DEA), um outro à INTERPOL. A Polícia Judiciária portuguesa fica para outra altura. Os detidos, depois de longas horas de espera, acabam por ser enviados para o Centro de Detenção de Banguecoque. «Uma pocilga nojenta», diz um familiar de Márcia.

    Aeroporto Don Mueang. O antigo aeroporto internacional de Banguecoque serve hoje como aeroporto regional. (Foto: D.R.)

    Oito meses depois de ter sido detida no Aeroporto de Banguecoque, Márcia está reduzida a um simples número: 519-25. Um número que corresponde a 24 anos de idade, completados na prisão; 24 anos e uma história que explica (talvez não completamente) quais as razões que a levaram ao aeroporto internacional de Banguecoque naquele dia 7 de Maio do ano passado.

    Márcia nasceu algures em Lisboa de um terceiro casamento do pai, um homem de tradição aristocrática que se ligara à família de um banqueiro judeu, numa operação muito ao  gosto do tempo. «Foi para disfarçar a miséria franciscana», comenta um familiar.

    Tal como o pai fizera na sua juventude, também Márcia foge de casa. Foi há oito anos e a jovem decidiu então ir viver para casa de um irmão, no Estoril. Acabara de fazer 16 anos e deixava atrás de si algumas más recordações. «Menina mimada, introvertida, sobretudo até ao fim do 1.º ciclo da adolescência», diz um familiar à ABC, «ela começa a chumbar anos. É expulsa do Liceu Charles Lepierre e começa uma vida de café».

    Aos 18 anos, encontramo-la a viver em Paris com um namorado. Quando regressa a Portugal, em 1978, pouco depois da morte do pai, procura emprego. As dificuldades são grandes, mesmo para uma rapariga bonita e de boa família. Márcia envolve-se então progressivamente numa boémia lisboeta que desconhecia em parte.  Ataca as «ervas daninhas» (marijuana) e vai subindo. Faz uma pausa na cocaína e chega ao «cavalo» (heroína). Primeiro, «snifando», depois «shootando».

    Se é verdade que ela se drogava, não é menos certo que não precisava de forma alguma ir a Banguecoque para obter «cavalo». Tinha algum dinheiro e podia contar com o seu fornecedor habitual, com o qual traficava de há seis anos para cá. A razão da sua deslocação é apenas mais uma peripécia. Mais um nó. «Digamos que genial — mas superficial», se é correcta a forma como Márcia é definida por um dos seus irmãos.

    Márcia não teve consciência do risco que corria. «Quis recusar, mas…». Mas foi… Mas o que a levou a Banguecoque? Meia dúzia de dólares, nem mais. Porque é disso, de dólares, que se trata efectivamente…

    Dealers e 6 dólares

    Em 1983, os itinerários tradicionais utilizados pelas grandes redes de tráfico de droga, como a chinesa ou a turca, já não significam absolutamente nada. O esquema clássico Amesterdão-Copenhaga-Banguecoque, com um «stop» em Moscovo, tornou-se demasiado académico para o traficante. Para o «dealer». Para o aventureiro.

    E, no entanto, foi esse o percurso dos dois portugueses agora detidos.

    Márcia e Luís não pediram qualquer visto ao Consulado da Tailândia em Lisboa, garantiu-nos o próprio Cônsul honorário. Dr. Borges de Pinho. Não estavam sequer na «lista negra» que cada consulado tem na sua posse e que é uma relação dos indivíduos considerados «personæ non gratæ».

    De facto, os dois portugueses transitaram por Amesterdão. Em seguida, foram de comboio até Bruxelas, de onde apanharam um avião para Banguecoque.

    Vão ficar na capital tailandesa 10 dias, como simples turistas. Progressivamente, mergulham na vida da cidade. Vivem experiências sórdidas, nos bairros de lata, nos bairros de juncos. Neste «lupanar». Naquele salão de ópio. Nos templos. E acabam por ir dormir num hotel repleto de «babas», «junkies» e pequenos traficantes.

    Estiveram no Malaysia Hotel, reputado pelos anúncios «dramáticos» que inundam as paredes sujas e gastas. «Doente, triste, sozinha, sem um tostão, precisa de remédios e de uma injecção contra a cólera. São, pelo menos, x bahts, digamos 13 dólares. Helena. Estou no quarto 209.»; ou «vendo bilhete charter barato contra 10 cigarros de cavalo e 100 dólares.»

    Ou foi talvez no Patpong. É indiferente. Banguecoque, para quem dispõe de meios reduzidos, é o «flash» permanente. Mesmo para o tipo mais «cool» do mundo.

    Em cada esquina surgem propostas «aliciantes» para todos os gostos. Faz-se «deal» por toda a parte. Ora é uma dose de «cavalo» ou de «brown sugar» do melhor na loja de um ex-GI. Ora é o espectáculo mais «sexy» da cidade: imaginem para que serve uma garrafa de coca-cola, ou uma miúda de 11 anos disposta a tudo no único «waterbed» do bairro.

    people sitting on chair near store during night time
    Banguecoque. (Foto: D.R.)

    Neste universo fantástico, mirabolante, de dimensões quase inimagináveis, dois jovens portugueses são apenas dois minúsculos pontos negros.

    Márcia e Luís não são «junkies». Ou, pelo menos, não é nessa condição que vão para Banguecoque. A Tailândia representa para eles um punhado de dólares. Um quilo de heroína pura — ainda que comprada para outrem — corresponde a 10 quilos de produto comercializável em Lisboa. Vale, pelo menos, 45.000 contos. A «heroa» pura é misturada com sacarose e/ou estricnina. Rende o que rende e o que der a qualidade, mas no «mercado» português a proporção é de 10 para 1. Números redondos, quando foi presa em Banguecoque, Márcia «pesava» mais de 20.000 contos.

    Só que comprar a mercadoria na capital tailandesa, para além de ser mais caro, é perigoso. A polícia revista os quartos de hotel e chega mesmo a levar consigo a droga que quer lá encontrar. A multa varia em função da nacionalidade e do sexo. Até os motoristas de táxi chegam a levar directamente o cliente à esquadra mais próxima. E é inconveniente não esquecer os encontros de passagem: uma prostituta é sempre um denunciante potencial, a troco de uma comissão de 50 bahts (1 baht = 3 escudos) por grama confiscado, dizem os conhecedores.

    Por isso, Márcia e Luís partem para Chiang Mai. 24 horas após o regresso a Banguecoque é o choque da detenção. E a necessidade psicológica de se convencerem que a jogada ainda tinha uma hipotética solução. A menos grave. E, logo a seguir, o vazio completo. Salvo um cheiro tremendo a urina e duas tigelas diárias de arroz infecto. Com bichos, em forma de complemento, sofisticado. Um, dois, sete dias e nada…

    (Foto: D.R.)

    A ligação do triângulo

    A última colheita de papoila branca foi excelente no Triângulo de Ouro, uma zona com 220.000 quilómetros quadrados, que cobre o norte da Tailândia, o norte do Laos e o norte da Birmânia. E isto, apesar da «guerra do ópio» desencadeada pelos homens da Border Patrol Police tailandesa contra o «Rei do Triângulo» e chefe da Shan United Army, o exército de libertação dos Shan, Mister Shan Khun Sa (que controla 75% do tráfico) e os seus 4.000 homens. A produção de ópio teria atingido em 1982 as 600 toneladas (em vez das 200 de 1980), que representam mais de 90 milhões de dólares no mercado americano.

    Khun Sa, personagem digno dos melhores romances de aventuras, é um mistério. A sua idade ronda os 49 anos. O local do nascimento é uma incógnita. Ou quase. A tese da província de Yunnan, no Sul da China, que ele teria abandonado em 1949 depois da vitória comunista, é a mais plausível. O que é certo é que Khun Sa apareceu na zona do Triângulo de Ouro na década de 60. Era o chefe de um grupúsculo que reclamava a independência dos Estados Shan (no Nordeste da Birmânia) e lutava contra as forças birmanesas. Um rebelde político? Um visionário? Um defensor de uma causa?

    O único objectivo de Khun Sa era ser o «Padrinho» incontestado do Triângulo de Ouro. A região pertencia nesse momento a um general chinês, Wen Huan, cujas tropas, verdadeiros destroços das 4ª e 5.ª divisões do Kuomintang (exército nacionalista que se opôs a Mao), que se refugiaram no Norte da Tailândia, depois de serem derrotadas pelos comunistas chineses. Khun Sa desafia os «Senhores da Guerra»: ataca as caravanas de ópio protegidas pelo exército de Wen Huan.

    Violência, detenções, acordos secretos com generais corruptos acabam por fazer a fortuna de Khun Sa. Em 1977, ele é incontestavelmente o Rei do Ópio. Controla 10 refinarias de heroína na fronteira entre a Tailândia e a Birmânia. O  seu mercado é enorme: Estados Unidos, Canadá, Austrália e, bem entendido, a Europa. O seu poder aumenta. As suas provocações também. Dá entrevistas, faz libertar um dos seus homens na prisão de Banguecoque…

    drugs, addict, addiction
    (Foto: D.R.)

    Os americanos, que pretendem desorganizar as culturas, aconselham os tailandeses a porem a cabeça de Khun Sa a prémio: 25.000 dólares. O Rei responde «pondo a prémio a cabeça dos agentes americanos». Um deles é abatido. A DEA entra em pânico.

    Em Outubro de 1981, o primeiro-ministro tailandês, General Prem, avista-se com Ronald Reagan em Washington D.C.. Nesse mesmo dia, as agências noticiosas anunciam que as autoridades tailandesas tinham atacado uma caravana com 200 mulas carregadas de ópio escoltadas por 700 homens de Khun Sa.

    Os Estados Unidos, inquietos com as proporções da vaga mundial de droga, acentuam as pressões sobre os tailandeses. Tentam utilizar no Triângulo de Ouro a mesma estratégia que adoptaram na América Latina em relação à cocaína. Fornecem dinheiro, helicópteros, armas e apoio humano. E assim inicia-se mais uma fase da guerra contra a droga, que abrange todos os continentes. Tanto o pequeno dealer como o grande traficante são procurados. E nem sempre na rede vêm os «tubarões».

    Hoje, o Rei do Ópio está de novo em fuga. As autoridades não conseguiram, contudo, apanhar um único grama de heroína no seu acampamento, com piscina, hospital e perto de uma dezena de laboratórios — que foram destruídos. Nove outros ainda estariam em actividade no sul do país. Neles trabalham antigos oficiais do exército chinês, reconvertidos no ópio e na luta anticomunista.

    Neste universo fantástico, mirabolante, de dimensões quase inimagináveis, dois jovens portugueses são apenas dois minúsculos pontos negros. Sigamo-los.

    O inferno tailandês

    Ao fim de uma semana que durou séculos, Márcia e Luís foram enviados para o enorme complexo prisional de Banguecoque: Bangkhen. Aí, foram separados. Entretanto, as autoridades tailandesas contactaram a Embaixada de Portugal, em Banguecoque. O processo começa a correr. O diário «Bangkok Post» publica uma curta notícia sobre a prisão dos dois jovens. As famílias são avisadas do sucedido.

    Os dois traficantes portugueses são julgados no tribunal de Banguecoque  em 20 de Setembro de 1982. Nada ou quase nada foi dito no decorrer da audiência. Neste tipo de processos a sentença já vem muitas vezes escrita antes do julgamento. Márcia e Luís viram as suas penas reduzidas. A condenação à morte inicialmente proferida transforma-se — por razões jurídicas diversas — em 50 anos de prisão maior. Pouco tempo depois, nova e última redução de pena: 25 anos, a pena mínima na nova legislação tailandesa. No código anterior teriam apanhado apenas 10 anos…

    Mas, 15 dias após o julgamento, em princípios de Outubro, Márcia é chamada à Procuradoria da República. As autoridades desejam aumentar a pena. Esta acção é sistemática desde que iniciaram as negociações sobre os tratados de repatriação. Quatro anos de permanência nas cadeias tailandesas é o tempo mínimo para que um estrangeiro possa ser repatriado. Estrangeiro, sim, mas só se for francês ou americano. Os italianos e os nossos vizinhos espanhóis estão em negociações com vista à adesão à proposta que foi adoptada (a francesa). O Canadá também estaria a negociar a assinatura de um tratado semelhante. Portugal, por estranho que pareça, ainda não tomou qualquer iniciativa concreta.

    Inexplicavelmente — e ao contrário do que sucede com as outras representações diplomáticas de países europeus em Banguecoque — Portugal não tem sequer um serviço de acompanhamento dos cidadãos nacionais detidos nas cadeias tailandesas. Márcia só tem apoio médico, apesar da gravidade do seu estado físico e psicológico, porque o médico da Embaixada de França está na disposição de a assistir a título humanitário sem qualquer retribuição.

    O mesmo já não se pode dizer dos advogados. Para defender a prisioneira portuguesa, a família de Márcia teve de recorrer aos serviços da Embaixada da Grã-Bretanha, que indicaram o advogado responsável pela defesa da jovem portuguesa. Com a diferença de que, aqui, os serviços não foram gratuitos.

    As prisões da Tailândia, sabe-se, são terríveis. Os depoimentos da rapariga a um familiar que a visitou no Verão passado, confirmam-no.

    Na cela de Márcia encontram-se exactamente 25 mulheres. Duas delas são estrangeiras, as outras são tailandesas, acusadas de homicídio, roubo, crimes políticos, delito comum. Na prisão, vivem 36 estrangeiras. Os maiores contingentes são de americanas, francesas, italianas, espanholas e até uma austríaca.

    Em virtude das péssimas condições de vida e da corrupção existente, a heroína nunca falta na prisão. Muitas vezes é o próprio chefe da secção, o Building Chief, que traz a droga para vendê-la a bom preço às prisioneiras que ainda possuem algumas notas. As outras viram-se para o Romilar — um medicamento preventivo contra a tuberculose — em doses industriais: 20 comprimidos para uma curta evasão daquele espaço asfixiante, sob todos os pontos de vista. Tensão psicológica elevada. Forte disciplina. Distanciação cultural e  idiomática. Temperatura que chega a atingir, no Verão, os 45º, com uma taxa de humidade de 98%.

    No «negócio» participa toda a gente. Os guardas são naturalmente vendedores. De heroína, em primeiro lugar, já que uma onça de pó dá para 20 doses engarrafadas, coisa para durar 10 dias a quem tivesse dinheiro para tanto. Só que o dinheiro é coisa que não abunda, enquanto não chega o vale de correio enviado pela família. Sobrevive-se com empréstimos a juros que chegam a ser de 300%; e aos maus pagadores, esquecidos ou ignorados pela família, resta a hipótese dos trabalhos menores — a limpeza das retretes, por exemplo.

    A família de Márcia envia-lhe regularmente dinheiro e encomendas com géneros alimentícios. Segundo os regulamentos de disciplina da prisão de Banguecoque, nenhuma detida pode receber mais de duas remessas por mês.

    Nestas condições, corrupção é a vida. Não ter dinheiro significa basicamente confrontação com a realidade, descida ao inferno. Muitas vezes, ao fim da viagem está a morte, ou pior: a loucura.

    Uma carta escrita na prisão em francês, para que a censura compreenda. (Foto: D.R.)

    Excerto de uma carta de Márcia

    “Não é sempre que há uma pessoa condenada à morte e quando penso que era EU!!!!”

    “Vai fazer 6 meses que estou aqui. A minha saúde está boa, mas tenho febre todos os dias desde que estou aqui. Este clima põe-me inconfortável. É muito pesado o tempo todo! E os meus nervos, há dias em que gostaria de desaparecer e porque não deixar-me levar para o país onde reina a loucura. É possível que os malucos sejam mais felizes se não derem conta daquilo que os rodeia…”

    Reza a história que um «dealer» alemão ficou mudo. Agredia os colegas e comia os próprios excrementos. Os guardas, fartos das extravagâncias do ocidental, levaram-no de rastos para a enfermaria. Partiram-lhe os dentes com os casse-têtes. Injectaram-lhe uma boa dose de Valium e deixaram-no morrer. São casos idênticos que amaldiçoam os sonhos dos presos. Com ou sem «trip»…

    Diferenças de interpretação

    Márcia e Luís (este último está hoje numa prisão fora de Banguecoque) são acompanhados pelas respectivas famílias. Márcia, desde Lisboa. Luís, de Macau, para onde foi viver a sua mulher. Assim está menos longe dela. Mas ambos os presos são acompanhados também pelo Cônsul português em Banguecoque, um goês, que está há 18 anos na Tailândia. «Por razões humanitárias», disse à ABC o representante consular José de Sousa, não por uma questão de funções. Mas a sua margem de manobra é demasiado limitada. E como nos disse um familiar de Márcia, «há visita quando há». O Embaixador de Portugal em Banguecoque, Dr. Melo Gouveia, é de opinião diferente: «Márcia é visitada  periodicamente pelos funcionários. No último Natal, foram lá vê-la».

    As diferenças de interpretação entre o Embaixador e a família não são as únicas que existem relativamente a este caso. A nível do Estado português também haveria algumas divergências de pontos de vista, designadamente  no que respeita ao famoso acordo de repatriação. Se não, vejamos: no princípio de Novembro de 1982, o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Paulo Marques, deslocou-se à Tailândia para negociações comerciais, aproveitando a oportunidade para informar as autoridades Tai do interesse que Portugal teria em assinar o acordo. «Paralelamente, o responsável da pasta dos Negócios Estrangeiros, Futscher Pereira, manifestou grande interesse pela questão dos portugueses detidos», confidenciou à ABC uma fonte diplomática. Foram, então, dadas instruções nesse sentido ao Embaixador, mas até ao momento não se tem notícia de qualquer «démarche» do representante português em Banguecoque. «Não é o momento oportuno», declarou-nos, sem explicar as razões desta afirmação. Uma falta de iniciativa que pode ser explicada por uma «extraordinária» confiança no perdão real. Mas até hoje o perdão só foi exercido três vezes…

    Márcia está numa «situação dramática», diz em Lisboa a família. A jovem portuguesa sofre de anemia crónica e de febres; o corpo inchou-lhe desmesuradamente; a inactividade é praticamente absoluta; a sobrevivência pode ser uma questão de tempo: «É provável que não morra, pelo menos, este ano…», disse a ABC o irmão que a visitou em Bangkok.

    No entanto, em conversa telefónica com o jornalista, o Embaixador Melo Gouveia manifestou opinião contrária: o estado de Márcia é «saudável» e a prisão de Banguecoque «aceitável». Mas, se os presos resistem «bem», como diz o embaixador português, como explicar a morte, em 1979, de um rapaz português na Penitenciária de Banguecoque, antes mesmo de ser julgado? Aos 28 anos, José Cid foi apanhado, encarcerado, provavelmente torturado. Sabe-se apenas que morreu, que foi enterrado num pequeno cemitério da capital tailandesa, porque não apareceu ninguém a reivindicar os seus restos mortais.

    Se o anonimato de José Cid permitiu que até hoje a sua morte tivesse sido ignorada, a situação de Márcia, portuguesa, de 24 anos de idade, e de Luís, 23 anos, é diferente: para já, porque há coisas pouco claras em todo este caso. E depois, porque, qualquer que seja a culpabilidade dos dois portugueses, é difícil admitir que, com esta idade, o horizonte de dois jovens esteja reduzido à expiação de uma pena de 25 anos, algures, numa cadeia sórdida, no país onde a heroína faz, de há muito tempo a estar parte, o papel do vilão. E nem sempre os vilões são chamados à cena. Lá, como cá.

    NOTA POSTERIOR DE RUI ARAÚJO: Márcia, depois de ser libertada, foi viver para o Canadá. Luís terá falecido. Estará enterrado no Algarve. O advogado português que lhes encomendou o “serviço”, nunca foi incomodado…


    Reportagem originalmente publicada na Revista ABC, Número 3, em Fevereiro de 1983.


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