Etiqueta: Caderno dos Mundos

  • Pena suspensa: A última ceia

    Pena suspensa: A última ceia


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 2 de Julho de 1988, sobre João Carlos, 25 anos, solteiro, serralheiro desempregado.


    Foto: Rui Araújo

    A ÚLTIMA CEIA

    — Os problemas que tenho tido é coisas simples: um sozinho abalar sem pagar. Uma vez até foram dois, mas era uma conta relativa. Fora disso, nunca tive problemas nem com isso nem com aquilo. Tenho sido uma pessoa feliz… — justifica-se o dono do restaurante.

    Eram cinco. Foi um fartar vilanagem. Comeram, beberam… E deram à sola. Só que o mais lento ou o mais ingénuo — João Carlos, 25 anos, solteiro, serralheiro desempregado — permaneceu no restaurante e meteu-se numa alhada. Ficou a contas com a Justiça.

    O senhor Joaquim José, patrão do restaurante, conta a ementa da malandragem. É um homem sem papas na língua…

    A ementa

    — Entraram cinco indivíduos. Mandaram vir logo pão, queijo, manteiga e cinco vermutes. Estudaram a lista e mandaram vir duas amêijoas — uma à Bulhão Pato e outra à Espanhola. Paparam tudo. Atiraram-se à lista outra vez e mandaram vir mais cinco escalopes aos champinhons. Comeram os escalopes — ainda foi mais um bocadinho de arroz porque um gostava muito de arroz —, regados com duas garrafitas de vinho verde. E mais duas garrafas. E outras duas. Acabaram de comer os escalopes e atiraram-se a umas mousses e ao arroz-doce. Repetiram. Pediram cinco cafés e cinco uísques.

    Escuto o dono do restaurante, algo intrigado.

    rice in bowl
    Foto: D.R.

    — Eu, aí, comecei a desconfiar um bocado mas já que ia embalado, continuei. Gelo e duas colas. Mais cinco uísques. Daí a mais um bocadito, mais cinco uísques. E mais duas Colas. Aí, um deles abalou, não sei onde foi. E outros três começaram a ir para a porta. Eu abeirei-me deste que está aqui preso e perguntei-lhe se ficava responsável por aquilo. «O senhor não tenha problemas. Fique descansado que eles vão ali e não demoram nada…» Pois, só que eu comecei a ver aquilo —  a conta já ia nos 13.520 escudos [67,43 euros] — e chamei o guarda. E foi aí que fomos todos parar à esquadra de Arroios. O homem não tinha um «chavo». Não tinha carteira nem maço de cigarros, uma carteirita de fósforos, nada. Tinha mas era um cordel a atar as calças… Começou a chorar muito. Pediu-me desculpa. Se soubesse que era assim não tinha aceite o convite deles. Quanto a mim ele serviu de cobaia daqueles grandes gabirus…

    E a sentença

    Não chegou a haver julgamento. João Carlos não possui qualquer documento de identificação. A história vai continuar nos juízos correccionais de Lisboa.


    Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 2 de Julho de 1988.


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  • Pena suspensa: Tarde de tiros

    Pena suspensa: Tarde de tiros


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 23 de Julho de 1988, sobre José Manuel, 30 anos, casado, três filhos, canalizador, montador de andaimes e agora réu por injúrias e desobediência à Autoridade.


    Foto: Rui Araújo

    TARDE DE TIROS

    José Manuel, 30 anos, casado, três filhos, canalizador, montador de andaimes e agora réu por injúrias e desobediência à Autoridade.

    Versão da PSP 

    (AUTO DE NOTÍCIA)

    «Sai daí, palhaço! Manda andar esta merda!» Perante tal fraseado, aconselhei o réu a mudar a sua compostura. Só que o mesmo, em vez de se moderar, repetiu as mesmas frases e ainda acrescentou: «Vai para o c… , que é o que tu queres!» Em face disso, mandei-o encostar, mas o mesmo não só não parou como acelerou a viatura passando pela minha esquerda em grande velocidade, ao mesmo tempo que gesticulava frases imperceptíveis.»

    Perante tal atitude movemos-lhe perseguição, alcançando-o. Colocando-me ao lado do veículo, voltei a ordenar que parasse a viatura. Este disse a seguinte frase: «Eu paro mas é o c…».

    Fizemos todas as tentativas em vão. Tivemos de abandonar aquela posição para não sermos colhidos. Em vez de afrouxar ainda acelerava mais. Optei por fazer um disparo de pistola para o ar com o intuito de intimidar, mas, como isso não aconteceu disparei mais três tiros para os pneus não acertando em nenhum deles. O mesmo prosseguiu a fuga só vindo a parar 500 metros mais à frente por não ter onde passar devido a um congestionamento do trânsito por motivo da ocorrência de um acidente de viação. Uma vez imobilizado, o condutor foi instado a facultar a documentação referente a si e à viatura, ao que respondeu: «Tenho-os aqui, mas não os dou a merdas como vocês! Nem saio de dentro do carro.» Assim, dei-lhe voz de detenção. Uma vez nesta Divisão de Trânsito, o detido foi submetido ao teste alcoolémico onde acusou 3,8 gr de álcool por litro (NOTA: Limite legal é de 0,49 gr/l).»

    selective-photography of stop signage
    Foto: D.R.

    Versão do réu

    — Eu vou de carro. O polícia manda-me parar ali na Rotunda, mas quando olho para o meu lado direito verifico que estão ali parados autocarros. Levo o meu vidro a meio. Também penso que não é para mim. Continuo a andar. Com as motas atrás. Deixo-as andar. Sem dizer patavina. Mandam-me encostar. Chego a determinado sítio e eles  começam a atirar tiros. Aí, paro. Conforme eu paro, abrem-me a porta do carro e sacodem-me cá para fora. Agarro-me ao braço desse agente que ia a cair também, mas vem o outro. Agarra-me, dá-me com o joelho nas «partes», amanda-me um murro na cara, passa-me as algemas, põe-me dentro do carro patrulha e leva-me para baixo. Lá, conversei com eles porreiramente. Se eu não tivesse bebido, não tinha dito nada. Eu até sou um gajo que anda na estrada… E obedeço sempre às patrulhas. Até à data de hoje nunca levei uma multa.

    Versão do tribunal

    (SENTENÇA)

    «Houve crime de desobediência e injúrias. Como os agentes da PSP declaram não desejar procedimento pelas palavras injuriosas, o réu vai condenado em 40 contos (200 euros) de multa ou, em alternativa, 36 dias de prisão.»


    Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 23 de Julho de 1988.


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  • Pena suspensa: Palavras

    Pena suspensa: Palavras


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 13 de Agosto de 1988, sobre António, 45 anos, casado, pintor de automóveis, e a única pessoa ferida nesta história.


    Foto: Rui Araújo

    PALAVRAS

    — A moral deste caso é que os agentes da Autoridade… Mais grave do que agredirem os cidadãos no exercício excessivo da sua autoridade é virem aqui aos tribunais e mentirem. Dizerem coisas que não se passaram  ou ocorreram de forma diferente. — denuncia o homem.

    António, o réu

    António, 45 anos, casado, pintor de automóveis — um homem sereno e senhor de si que veio parar ao Tribunal de Polícia porque há dois anos teria injuriado e agredido um agente da PSP. Nota bastante curiosa à margem deste processo: António — acusado de agressão — é a única pessoa ferida nesta história.

    A testemunha do crime

    — Eu fui ao café mais o senhor António e umas pessoas amigas. Até que ele foi falar com a dona do estabelecimento para ela acabar com determinados problemas — telefonemas — lá para casa. Ela chateou-se. Deu-lhe com o tabuleiro dos copos. A seguir, deu-lhe com o rolo da massa. A gente acorreu para acudirmos. Entraram dois guardas de repente. O filho da dona do café saiu, entretanto, do balcão e atirou um soco ao senhor António. Aí, ele gritou logo para o guarda  que o rapaz  — o Manuel — acabara de lhe dar um soco. O guarda virou-se para o senhor António, que filho da p… era ele.

    handcuff, black silver, caught

    Aí, António sentiu estalar qualquer coisa dentro do coração. A brutalidade daquelas palavras sobre a sua mãe e o escarolado sorriso de desdém do polícia passavam das marcas. E o temporal, em vez de amainar, piorou. A partir daí…

    A palavra da defesa

    — O mais grave nisto tudo é que é fruto da sociedade em que estamos inseridos. A Polícia aproveita-se da farda que tem em cima do corpo e agride e insulta. Foi o caso do polícia que me chamou filho da p…

     Isso marcou-o?

    — Isso marcou-me muito porque eu com seis anos fiquei sem mãe. Não a conheci. Não soube o que é chamar mãe. E de forma alguma aceitaria vir alguém — quanto mais uma Autoridade — chamar-me filho da mãe.

    — Foi parar à esquadra. O que é que sucedeu?

    — Fui agredido a caminho da esquadra. O polícia em causa deu-me um soco no rim do lado esquerdo. À noite, senti-me mal. Socorri-me ao Hospital de São José. Estive na sala de observações. Saí no sábado. Voltei a entrar novamente.

    — O que tinha?

    — O relatório acusou traumatismo craniano. Só que depois tinha de me apresentar aqui em tribunal na segunda-feira às 10 horas. Uma senhora doutora perguntou-me o que tinha no corpo. Mostrei-lhe. Despi a camisa. Ela viu. E por ordem deste tribunal este julgamento passou a criminal. Afinal de contas o julgamento acabou por se dar aqui.

    A sentença

    E demorou algumas horas até o juiz dar por finda a audiência. Veredicto do tribunal: não houve injúrias nem agressão a agente da autoridade. António foi simplesmente absolvido.


    Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 13 de Agosto de 1988.


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  • Pena suspensa: Lisboa 1988

    Pena suspensa: Lisboa 1988


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 5 de Novembro de 1988, sobre Maria João, 26 anos, solteira — dois filhos — , desempregada há uma eternidade.


    Foto: FRONTERAd, Madrid

    LISBOA 1988

    Esta história começou ontem.

    Maria João, 26 anos, solteira — dois filhos — , desempregada há uma eternidade, compareceu em tribunal e não chegou a ser julgada. Não possuía qualquer documento de identificação. Ficou mais uma noite detida. Esta manhã, voltou ao banco dos réus para julgamento.

    Tentou furtar num supermercado da capital duas embalagens de carne — alcatra e cachaço —, uma embalagem de lulas e sete iogurtes naturais.

     A rapariga deu um jeito no cabelo, sorriu com os lábios grossos e contou o seu calvário sem protestos ou imprecações.

    — Eu estou em casa dos meus pais. Tenho duas meninas. O pai está com a mais velha. Pois teve uma zanga com os meus pais. A minha mãe chateou-se comigo e meteu-me na rua.  Eu, como não tinha comer nem para a minha filha nem para mim, fui buscar para as duas. Tive um bocadinho de pouca sorte. Fui apanhada pelo chefe e puseram-me aqui no tribunal. Fiquei cá duas noites a dormir por causa do bilhete de identidade.

    — E agora? O que vai fazer?

    — Tentar ir para casa. Ir ter com a minha filha.

    A white stuffed animal sitting on top of a table

    — Como é que é a vida lá em casa?

    — Acho que é tudo bem só que eu não tenho emprego. Já tive um emprego de mulher-a-dias. Estive um ano a trabalhar. Fui cozinheira, também. Eu precisava era de arranjar um emprego. E esquecer esta asneira que eu nunca tinha feito isto. Foi só por a gente estar com fome…

    — E já tiveram fome muitas vezes?

    — Já. Mas aguenta-se. Há vezes em que mesmo com fome não me chateio. Só que desta vez estava enervada por a minha mãe me ter posto na rua. Eu gostava mesmo  era de arranjar um emprego. Mulher-a-dias, secretária, sei lá…

    — Para não andar mais em tribunais?

    — Para ter uma vida…

    Conclusão

    Veredicto do tribunal: houve crime de furto. Maria João condenada a 40 dias de prisão, substituídos por uma multa de 12 mil escudos. Pena suspensa por um ano.


    Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 5 de Novembro de 1988.


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  • Pena suspensa: África ainda…

    Pena suspensa: África ainda…


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 26 de Novembro de 1988, sobre Aníbal, 29 anos, solteiro, toxicómano, ‘barman’ e réu.


    Foto: Rui Araújo

    — Foi à garrafeira. Pegou numa garrafa de vinho verde e noutra de uísque. Foi à padaria. Sacou meia dúzia de pães. Foi à caixa número cinco. Pagou o vinho verde e o pão… — explica a funcionária da segurança do supermercado.

    Antecedentes:

    — Furto de motociclo.

    — Ofensas à Autoridade.

    — Posse de estupefacientes.

    — Furto em supermercados com agressão a agente.

    — Assalto a um estabelecimento comercial com arrombamento e tentativa de fuga.

    Aníbal, 29 anos, solteiro, toxicómano, «barman» e agora réu por 1.438$00 (7,17 euros) — o preço de uma garrafa de uísque novo.

    alcoholism, sick, alcoholics

    O pai do rapaz conta o pesadelo da família.

    — Acho que as autoridades onde deviam actuar não actuam.

     Isso significa o quê?

    — É que eu tenho um filho que, infelizmente, está no mundo da droga. É um consumidor. E o que eu tenho deparado ao longo destes anos é que as autoridades actuam sobre os consumidores — que são autênticas crianças — e nunca vejo prenderem os indivíduos que são os passadores. E...

    — Como é que o seu filho mergulhou na droga?

    — Foi há alguns anos atrás. Nós viemos de África. Isto tem sido uma luta constante. Já não bastou o problema da descolonização. E continuamos numa situação difícil. Ainda não me sinto realizado. Temos sido marginalizados…

    — Isso aplica-se também ao seu filho?

    — Sim. E a gente tem lutado muito para o salvar mas ninguém ajuda. A droga está a dar cabo da juventude. E devia haver instituições para recuperar esses jovens. Na prisão, eles apodrecem. Os governos deviam fazer algo. Gastam-se milhões de contos não sei onde e coisas necessárias como a reinserção dos jovens não existem.

    Veredicto

    Aníbal vai condenado. Uma multa de 27 contos (134 euros) ou em alternativa 60 dias de prisão. Mais as custas do processo.


    Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 26 de Novembro de 1988.


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  • Pena suspensa: o homem que queria ser lavrador

    Pena suspensa: o homem que queria ser lavrador


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 20 de Agosto de 1988, sobre António, 34 anos, profissão desconhecida.


    Foto: Rui Araújo

    — Tem 34 anos e nunca trabalhou?

    Trabalhei uma vez já lá vão muitos anos. Muito mais … já não me lembro.

    — E como é que vive?

    — Vivo mal. Não tenho alimentação e vivo mal.

    — Como é que vai arranjando o suficiente para comer?

    — Ando no… lixo. Tenho de apanhar umas coisas no lixo. Nos supermercados.

    — E já alguma vez tentou arranjar emprego?

    Não. Não me interessa derivado ao ponto que já tenho…

    António, 34 anos, solteiro, profissão desconhecida — desde que veio ao mundo apenas trabalhou meia dúzia de dias na faina da pesca —, antecedentes criminais banais. Preso várias vezes por vadiagem, furto e agressão a tiro. Pelo menos estas. Desta vez, veio parar ao Tribunal de Polícia por estar a perturbar o trânsito. Quando o agente da PSP o interpelou, António, mal-encarado e porventura bem bebido, puxou de uma navalha e tentou sangrar o polícia como quem sangra um porco.

    handcuff, black silver, caught

    Ainda bastante «entorpecido» o rapaz conta a história.

    Apanharam-me com um saco de lixo duas vezes e levaram-me à esquadra.

    E desta vez qual á a história?

    Desta vez? Ameacei o polícia. Estava assim um bocadinho bebido…

    Quem é que estava bebido?

    Eu.

    E ameaçou-o com quê?

    Com uma navalha.

    Mas ameaçou o agente porquê?

    — Estava um bocadinho bebido. Deu-me na vida… Deu-me na vida e ameacei.

    E a seguir foi conduzido à esquadra?

    — Fui.

    O que é que aconteceu lá?

    Deram-me pancada. Por onde calhou. Mas não me bateram muito… E depois trouxeram-me para aqui.

    white painted wall

    E qual é a moral desta história?

    A moral desta história é derivado… Tenho mais coisas, mas não me rima contar.

    Que coisas?

    Coisas… Coisas que eu faço por aí na vida. Não me rima para falar desta maneira…

    E agora? O que vai fazer?

    Vou esperar até ver o que me vai acontecer.

    E vai acontecer o quê?

    Talvez ficar preso. Ou ir para a vida…

    Qual é o seu sonho?

    Ser lavrador!

    Porquê?

    Tem gente na vida. Tem gente na vida…

    Não chegou a haver julgamento. Durante o interrogatório surgiram algumas dúvidas quanto à integridade mental do réu. O juiz decidiu restituir António à liberdade. Os autos vão agora ser remetidos para os juízos correccionais de Lisboa. Julgamento daqui a uns meses. Depois de António ser visto por um psiquiatra.


    Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 20 de Agosto de 1988.


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  • Os ‘cowboys’ de Santo António

    Os ‘cowboys’ de Santo António


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada na revista Grande Reportagem, em Maio de 1985.

    Na Serra de Santo António, os proprietários organizam-se e armam-se para combater os ladrões de gado, porque, dizem, “as autoridades nada fazem”

    Uma milícia privada ou um ‘Far West’ português?


    Foto: Rui Araújo

    “A paz orvalhada que há pouco cobria a aldeia enxugava agora ao claro sol que rompia. Todas as chaminés fumegavam, todas as casas estavam abertas, todos os mistérios desabrochavam e perdiam insensivelmente a graça da virgindade”, Torga mal podia imaginar e, no entanto,…

    Foi quando a filha do Prudêncio casou! É verdade, os roubos começaram no dia do casamento, há uns cinco anos atrás…

    Aníbal morde o beiço e põe-se a meditar. Aí, os fregueses do Café do Agostinho param de jogar às cartas, pedem mais uma rodada e ficam a ouvir. Sentem-se obrigados a comparticipar — atentamente — na conversa. Aníbal sabe falar.

    A coisa repetiu-se há uns dois anos e o ano passado tentaram fazer mais três desvios. Só de uma vez queriam levar 14 bois de engorda… Em cinco anos roubaram-nos dezenas de cabeças de gado.

    Sem dar conta, temos um grupo de velhotes à volta da nossa mesa. A mirar e a inventariar. João Louro, jovem proprietário e guardador de vacas, continua a história.

    O homem comprou os animais em Santarém e volvidos poucos dias os ladrões tentaram levá-los. Como estava a chover muito, o carro deles afundou-se. Foi por isso que tiveram de soltá-los todos para fora. Um Mercedes é que veio puxar o carro da lama. Eles costumam tirar os animais dos cerrados [zonas vedadas por muros de pedra] e depois forçam-nos a entrar nas camionetas mesmo à porrada. Uma vaca chegou a vomitar o bucho. Ela já devia ir morta ou perto disso…

    Um velhote despega-se do grupo e diz que não se deve esconder nenhum bocado da história. As características da região impõem que o gado ande à solta, pelo menos, nove meses por ano e esteja, assim, mais à mercê dos ladrões. Mas há outros ladrões. Os caçadores não roubam, mas destroem muita coisa a pretexto de darem uns tiritos aos tordos: “cortam pinheiros a tiro, furam bidons de água para o gado, deitam muros de pedra abaixo e dão cabo da calma e da vida das gentes das serranias“.

    Serra de Santo António.

    Montes, muitos montes, trilhos, veredas e meia dúzia de casas dispersas. Uma paisagem de pedregulhos alvos e de erva bem verde. Ali vivem 1.000 almas e 3.000 cabeças de gado que produzem uns 15.000 litros de leite por dia, mais alguma carne. A edificação de quatro moradias afrancesadas e as manobras nocturnas dos 60 homens da milícia armada para combater os ladrões de gado — face ao aparente sonambulismo das autoridades — são os primeiros sinais palpáveis da vida que por ali corre.

    Aníbal Agostinho e João Louro acompanham-me à Junta de Freguesia. O presidente, Lourenço Rosa, manda-nos entrar. Enquanto trocamos as primeiras palavras aparece um latagão que se abeira do guichet e se queda a escutar. Lourenço Rosa faz o ponto da situação:

    As rondas vão prolongar-se, pelo menos, até ao final do Verão. Depois, logo se verá. A GNR não tem capacidade para fazer mais. Foi essa a razão que levou os proprietários a fazer a sua própria segurança, formando uma escala de serviço para guardar o gado. Vai ser preciso um desastre para que as autoridades comecem a preocupar-se com isto. Mas nessa altura, quando isso vier a suceder, não virão cá fazer nada. Já será tarde… Os ânimos estão exaltados. Já lá vão umas dezenas de cabeças de gado roubadas na área e isto é muito grave. Com as pessoas a terem que guardar os seus bens, estamos no Far West…

    A segurança é efectuada diariamente por dois grupos armados com dois homens cada um. As rondas começam depois do pôr do Sol. A escala de serviço (secreta, se faz favor!) obriga cada homem válido a patrulhar todos os 15 ou 19 dias, faça o tempo que fizer.

    Foto: Rui Araújo

    Esta noite estão de guarda o João Louro e Aníbal Agostinho numa zona, e dois homens da serra, noutra. Decido acompanhar os primeiros. A patrulha começa com uma ´bica´ na tasca do Agostinho. Depois, cada grupo segue o seu caminho. Levamos umas latas de atum e uma garrafa de bagaço. Os outros, um pedaço de carne assada. O regresso só está previsto para as 05:00 da manhã, hora em que começam a circular os “carros do comércio”.

    Faz frio. Do sítio elevado onde nos encontramos controlam estradas e atalhos. A carrinha está escondida atrás de um muro de pedra. Os dois homens encostam-se ao pára-choques e puxam das caçadeiras. Mil e um ruídos surdos invadem a serrania. É altura de meter conversa.

    Isto é um bocado chato…

    Pois é, mas se ninguém o faz há roubos. — conta João.

    Eu gostava mais de estar na cama ou ir até ao café, mas temos de salvaguardar os nossos interesses.

    Ouvimos passos que se aproximam. Os dois homens levantam as caçadeiras. O ruído cessa. Uma voz áspera grita que ali vai “gente de paz“. Sorrimos. O outro grupo decidiu visitar-nos. E ainda bem. A noite estava a tornar-se longa.

    Sentamo-nos ao lado de uma casota de pedra. Pergunto quais foram as últimas peripécias da “força armada” da serra. Os cowboys começam por nada dizer, mas quando Aníbal se decide a abrir a boca para contar a história do cunhado (que atirou um tiro para o ar quando um forasteiro saiu do carro para urinar de noite e acabou por fugir a sete pés) a língua solta-se a todos os outros.

    João Costa Gaspar, 68 anos, 34 vacas, é o veterano do corpo de intervenção da serra. O homem fala pelos cotovelos. Diz que antigamente tinham o gado à toa. Passavam dois ou três dias sem o ver, mas andavam descansados. Agora, quando lhes falta uma rez, pensam logo que foi roubada. E as aventuras?

    João Louro aproveita a deixa para contar. Uma vez, alguns rapazes de fora da serra foram de noite para uma gruta  e um dos homens da patrulha ouviu um deles dizer aos outros para mandarem a corda, “que esta já está“. Eles queriam dizer a pedra, mas o guarda entendeu que era uma vaca. “Veio cá acima chamar a gente enquanto o outro ficou lá em baixo de espingarda apontada. Só não foi parar dentro da gruta com um tiro porque houve controlo…”

    O velhote volta ao ataque. Uma outra noite, viu a luz de uma camioneta com taipais altos. Mandou-a parar. O condutor respondeu-lhe que não era ladrão de vacas. Transportava azeite. Ora, para o senhor Gaspar, “transportar azeite em Setembro é uma mentira“. Além disso, o veículo circulava numa estrada intransitável. “Se ele não tivesse com mau sofisma ia pela estrada directa. Em seguida, até mudou de residência. Era uma forma de declarar que deve mesmo ser ele, porque não se sente bem ao pé da gente.

    Arménio Santos Duque, 32 anos (e co-autor das listas de ronda) conclui que “é ingrato e grave” terem de fazer justiça. O ancião dá-lhe uma cotovelada sorrateira e adianta que se vir alguém a andar com vacas atira “como aos coelhos, tal e qual, igualzinho. Atiro, decidido, logo. Ou mato ou morro. Mesmo se, como agora, ando um bocado destreinado…

    Bebemos um trago, damos uma última volta pelas propriedades vizinhas e voltamos à aldeia. O dia não vai tardar em nascer. Na estrada aparecem os primeiros comerciantes. Os cowboys da serra têm de despachar-se. Mudar de roupa e de ofício. Amanhar a terra, ordenhar as vacas e trabalhar na fábrica.

    Uma fonte próxima do posto da GNR de Alcanena (do qual depende a Serra de Santo António) limita-se a confirmar que “há poucos efectivos” para a região e nada se pode fazer para impedir patrulhas privadas. Os roubos de gado assolam o país de Norte a Sul. A iniciativa dos homens da Serra de Santo António, ao tomarem nas suas mãos a defesa das suas manadas, pode ser eficaz. Mas também pode ser que um dia destes algum inocente acabe por apanhar com os ricochetes.


    Reportagem originalmente publicada na revista Grande Reportagem, na edição de 10 a 16 de Maio de 1985, Lisboa.


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  • A sombra do tempo

    A sombra do tempo


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, emitida na TVI em Junho de 2017, com um olhar sobre a vida dos homens detidos no Estabelecimento Prisional de Olhão.


    É tempo de partirmos. Os presos ficam com a noite que não pertence a ninguém, graças a Deus.
    (Foto: Rui Araújo)

    Estabelecimento Prisional de Olhão, uma manhã destas.

    A história deles começa aqui.

    07:45

    É o momento da alvorada redentora ou nem por isso porque o mundo carceral é sinónimo de castigo, constrangimento, exclusão ou, por outras palavras, isolamento.

    Os presos — e eles são 65 aqui — passam quase 15 horas por dia na cela. Daqui a um quarto de hora é o momento da abertura geral. A punição, que se quer exemplar, do culpado ou do inimigo social passa pela disciplina, o respeito dos horários. E há horas para tudo apesar de o tempo, aqui, significar sobretudo imobilidade e alheamento do real. E… aprendizagem do vazio porque a prisão é isso mesmo: vacuidade.

    Luís, 31 anos, primeiro testemunho. Primeiro retrato da prisão.

    — Eu fui condenado por tráfico de droga e posse de arma. Falta-me cerca de 4 anos para sair. A minha condenação é de 6 anos e 2 meses, mas não conto muito o tempo porque o tempo a mim custa-me a passar. Assim, se não contar, quando dou por conta já alguma coisa passou. Estive um ano a trabalhar em Espanha só que a coisa não correu bem lá. Era marítimo. Ia ao polvo… Quando voltei para Portugal vi os meus filhos a passar fome. Tinha o caminho da droga para vender. Não tinha mais nada. Pois… ou via-os a passarem fome ou vendia droga. Eu escolhi vender droga! E depois habituei-me ao sistema de vida que a droga me dava. Eu, um dia estava a ver os meus filhos passar fome. Passado um mês já tinha dinheiro que sobrasse para tudo: para carros, para casas, para boas vidas… Saídas todos os dias. Dinheiro não faltava… Habituei-me àquela vida e deixei-me levar ao sabor do crime… E, hoje em dia, estou a pagar pela escolha que fiz. Eu não estou aqui por culpa de ninguém. A culpa de eu estar aqui é minha…

    Mea culpa, ingénua. Ou mera ladainha de circunstância. E as mesmas justificações para as mesmas misérias de sempre. A material e a outra, a taparem a vergonha.

    Luís. (Foto: Captura a partir de imagem de Romeu Carvalho/TVI)

    08:00

    Alvorada.

    É a abertura geral da camarata e das 18 celas. A disciplinar está vazia hoje. Ergue-se um clamor surdo na Zona. O ‘conto’ dos 28 preventivos e dos 37 condenados é logo a seguir. É ainda o momento da higiene. Um duche a correr. O Despacho 2/2015 — o “Horário Prisional” — é peremptório: 10 minutos bem contados para limparem os corpos curtidos de sol e de salmoura, roídos por dentro. Não se sabe de quê…

    Flávio, 23 anos, mais uma contrição bem intencionada ou mais uma elegia sobre a falência da família.

    — O meu nome é Flávio. Tenho 23 anos. Apanhei 5 anos e 5 meses. Estou preso há 1 ano e 3 meses. Como é que eu vim parar aqui? Vim por tráfico. Por vários crimes. Na altura um gajo não pensava bem no que fazia…

    08:10

    Pequeno-almoço. Pequeno-almoço no refeitório que serve também de parlatório e de sala-de-aulas. É à vez já que o espaço é exíguo.

    — A minha história de vida… Cresci só com a minha mãe e os os meus irmãos. Conheci o meu pai com 15, 16 anos na altura. Apareceu uma vez. O que é que eu andava a fumar? O encontro não foi assim muito agradável… E mais? Ninguém gosta de estar aqui. Estamos presos. Sozinhos, não estamos. Conhecemos sempre um ou outro. Passamos aí o dia. Jogamos à bola, às cartas. O que houver a gente joga. — conta Flávio.

    Flávio. (Foto: Captura a partir de imagem de Romeu Carvalho/TVI)

    Mas quem é esta gente? Homicidas, traficantes de droga, ladrões. Há de tudo. De todas as origens e idades. O mais novo tem 19 anos. O mais velho 68.

    —  O que é que custa mais aqui? Você quando entra você perde tudo o que tinha. Namoradas, amigos, não sei quê. O que vai estar cá é só a sua família. O que custa não é estar trancado. O que custa é esquecerem-se da gente… —  acrescenta o jovem preso.

    É preciso amarrar as pontas. Aqui, como lá fora, o pior é a indiferença. A do presente. A dos homens, à falta de da Deus.

    08:45

    Fecho.

    Os presos regressam às celas. Daqui a 10 minutos há ‘conto’ outra vez.

    — Ora vamos embora. Tá na hora… — diz um guarda.

    São sobretudo portugueses e cabo-verdianos. Os outros são espanhóis, romenos, marroquinos e guineenses. Mais os guardas: 28 homens e quatro mulheres. Ao fim e ao cabo outras tantas histórias de desiludidos que passam mais tempo na cadeia do que os próprios presos.

     Vladimir, 50 anos, foi contrabandista. É guarda há 22 anos. 

    — Venho de uma família pobre do Alto Alentejo, que a terra é Campo Maior. Sete irmãos. Comigo éramos oito. Depois, tive que deixar a escola para acompanhar a minha mãe na minha zona que o trabalho era pouco. E a minha mãe era contrabandista. Tive que acompanhar a minha mãe para ajudar a criar os meus irmãos.

    (Foto: Captura a partir de imagem de Romeu Carvalho/TVI)

    08:55

    Mais um ‘conto’. Não há tempo a perder. Dez minutos depois é a reabertura das celas. Os presos que não têm aulas nem trabalho vão para onde querem: pátio, ginásio ou bar.

    A imagem ambígua dos guardas — ausência de reconhecimento público e não só — é uma realidade desde sempre. A política de recursos humanos melhorou, mas o peso de décadas de centralismo hierárquico, de gestão quase autocrática, e um clima social marcado por uma conflictualidade latente não poupam a profissão.

    João Ribas. Beirão de gema. 21 anos de serviço. Um homem atormentado…

    — Sou guarda prisional há 21 anos. Neste momento sou guarda principal. Estou no Algarve. E após um curso vim para o Algarve por opção. A Portimão. Entretanto, fui deslocado para Olhão, sem querer. Sem nós querermos foi uma corporação inteira movida, mexendo com as vidas. Mexendo com tudo… Estragando certas vidas, como foi o meu caso…

    Uma noite, já lá vão quase dois anos, o guarda armadilhou a casa com botijas de gás e barricou-se. Chegou a dar dois tiros, mas acabou por render-se à PSP. Resistiu à tentação do abismo.

    — Ao mesmo tempo eu sou um dos gajos mais revoltados aqui dentro… — conclui.

    João Ribas. (Foto: Captura a partir de imagem de Romeu Carvalho/TVI)

    Vigiar, isolar e punir — a lógica da prisão é essa. E a sua perenidade parece estar garantida.

     — Olá, boa tarde. Olha, Bruno, hoje ficas tu com a rega das aromáticas e o senhor Gilberto faz a retirada das infestantes. — avisa uma monitora.

    A missão de reinserção, que passa pelos estudos, a formação profissional ou o exercício de uma actividade laboral, só vem depois. O resto é rap!

    Hugo, aliás Chimbóia, 33 anos. Crime: furtos qualificados.

    — Palavras do preso 00737, Chimbóia: Eu expresso no verso o incompleto imenso, extensivelmente intenso, porque penso. Estou preso porque mereço. Uma vida perdida chama-se a vida possível, não me convence, confesso. Há mais caminho para além deste. Eu sei que a cadeia choca milhares de gente. A cadeia não é boa nem para o teu oponente. É evidente que o complemento não será bem pior. Estás privado da liberdade. É um osso duro de roer. Ouve bem, convém que me possas entender… Nada vem à tua vida que não consigas suportar. Se errares, tem cuidado! Podes vir cá parar. É de evitar pois aqui já não podes lutar. A tua luta continua, mas é inválida aqui. Aqui, já não estás na rua. Vais lutar contra ti.

    Ninguém pode viver sem esperança. Mais não seja a esperança de fugir. O importante é não desistir, nunca.

    Bruno é um dos raros presos que frequenta a biblioteca do estabelecimento. É o seu refúgio para as poucas horas autónomas, devolutas. Tem 30 e poucos anos. É toxicodependente e traficante. Foi apanhado. Está, aqui, há 3 anos e 3 meses.

    — A leitura para mim é uma fuga. Posso encarnar qualquer personagem quando leio um livro. Sou um actor. Sinto-me um actor quando leio um livro. Leio um livro e, às vezes, uso essas ideias para escrever uma música ou para me sentir também bem disposto. É sempre uma lição de vida. Um livro é sempre uma lição de vida. É bons conselhos. Qualquer livro, no fim, tem um bom conselho…

    11:45

    Almoço.

    — Tira lá dois cafés aí, pá!

    O bar também serve de drogaria e de mercearia. Abre depois do almoço. Um preso serve os outros presos. Apesar de não haver concorrência, os preços praticados aqui são módicos: café a 20 cêntimos, água a 15… O dinheiro, o pouco que circula, não dá para mais.

    (Foto: Captura a partir de imagem de Romeu Carvalho/TVI)

    14:30 – 17:00

    Às 14:30, depois do fecho, do ‘conto’ e da reabertura há mais actividades.

    A aula da professora Paula Serina começa com um documentário televisivo sobre Olhão, aqui tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe. O marroquino El-Mahdi e os espanhóis Bebito e Diego escutam. Três histórias. Três destinos a cumprir, mas já lá iremos.

    O nível escolar dos 65 reclusos é aquilo que é: um desastre. Feitas as contas, 90% dos reclusos (89,2% mais exactamente) atingiram no máximo o 3.º ciclo. O que vale é não haver na prisão espaço para máscaras deformadoras. Os homens, aqui, não se medem aos diplomas.

    José. 55 anos. A primeira vez que foi preso tinha 18.

    — Eu, desde 1978, passei por várias cadeias, seja em França e em Portugal, por vários crimes. Crimes diferentes. Foi furto, proxenetismo, tráfico de droga, moeda falsa, assaltos à mão armada e falsificação. Já passei por várias cadeias que não têm nada a ver com as nossas. São muito mais violentas. Mais complicadas. E a primeira cadeia que conheci foi a de Les Baumettes (Paris) onde estive preso mais de 14 anos. Já estive preso na cadeia de Bordéus, já estive preso na cadeia de Aix-en-Provence, já estive preso na cadeia de La Rochelle, já estive preso na Centrale de Saint-Martin-de-Ré, já estive preso na cadeia de Lorient-Ploemeur. Como é que eu hei-de dizer? Eu acho que aquilo que fiz na minha vida foi uma aventura. Foi um sonho porque já tive muito como hoje não tenho nada…  Tenho mais experiência de vida cá dentro que lá fora. Estou muito sozinho. É normal. Uma pessoa tem os dele. Gostava de os ver… Eu já perdi dentro da cadeia as pessoas mais queridas que eu tinha. Foi a minha mãe. Foi a minha avó. Perdi-as dentro de uma cadeia, sem ir a funerais, sem ir a nada, sem ir a coisa nenhuma. Uma pessoa vai endurecendo…

    Com a usura do tempo, os exames de consciência, por mais lúcidos ou inquietos que sejam de pouco valem. É como os remorsos. A decepção, aqui, é compreensível.

    — Hoje, o Fernando vai lá para o fundo meter o aro na porta da casa-de-banho com o outro rapaz. O Patrick vai ajudar o Anildo ali a betumar a casa-de-banho, que é o que falta.

    No pátio da zona perimética o guarda Bruno, que é arquitecto, organiza a rotina dos dias: a construção de duas salas de aulas e de uma camarata, quartos para as visitas íntimas. É a primeira iniciativa deste género no Algarve. Faz parte. Consta da própria Lei: três horas inolvidáveis (ou não) uma vez por mês.

    — Não é só chegar ali e fazer, construir. Isto tem uma particularidade porque eles… se nós tivermos um ferro no chão, nós olhamos para ele e é um ferro. Se nós o metermos ao alto é um gradão. É uma grade fria. As coisas falam. As paredes falam… Se nós passarmos a mão, por exemplo, nesta tábua isto fala. Tem a sua textura. A sua rigidez. Se calhar, para nós é mais uma porta em casa. Esta porta ao alto, fechada numa cela, quando fecha a porta às sete da noite, a sensação, o bater do coração, a cabeça… Tudo pensa diferente. E ela fecha e ouve-se a tranca. E é complicado!

    (Foto: Captura a partir de imagem de Romeu Carvalho/TVI)

    O guarda é um poeta e, às vezes, apetece ser — já dizia outro poeta, Antonio Machado. O que é preciso é não perdermos o contacto com o chão e evitarmos os púlpitos. Sem isso não temos uma ideia aproximada da nossa estatura.

    Chefe Hélder. Trinta e dois anos de prisão. A história de um homem simples que as grades não desapossaram da humanidade.

    — Eu sou o Chefe Hélder Correia. Estou a cumprir uma pena até este momento de quase 32 anos de cadeia. Sou a pessoa mais antiga deste estabelecimento prisional. Tenho um percurso prisional que iniciou em 1984, precisamente no dia em que nasceu o meu primeiro filho. Esta é uma história engraçada. Apresentei-me ao serviço no Estabelecimento Prisional de Faro. Tinha como chefe o Chefe Gonçalves. Cheguei ao pé dele e digo: — Chefe, eu preciso de sair mais cedo porque a minha esposa foi para o Hospital de Faro ter um bebé. E eu queria ver o estado dela. E o chefe olhou para mim e diz-me assim: — Vá lá, mas não se habitue…

    Ainda há homens felizes. Afinal a prisão não mata tudo!

    Na quietude da camarata, Paulo, 46 anos, os olhos fitos no papel, lavra palavras de amor. Não precisou de coragem para ficar só. Foi caçado por tráfico de estupefacientes. É um homem atormentado. Escreve à mulher uma, duas, quatro cartas todos os dias.

    «Olá, meu Amor. Como te sentes hoje? Melhor? E bem disposta, Minha Maria? Hoje, foi um mau dia para nós, Meu Amor. Não nos encontrámos como devíamos. A nossa Felicidade há-de chegar um dia, Amor da minha vida. Mais uma coisa, Amor. Vê lá se me escreves porque estou cheio de saudades tuas, Minha vida. Oh, Minha flor. Agora, vou-te deixar por uns momentos Meu Amor. Volto já. Adoro-te com muito Amor.»

    A mulher está presa em Odemira. Amar cegamente pode ser um unguento para impedir a renúncia. Pode. Maria é o nome do salvamento ou da perdição, mas vamos por partes.

    (Foto: Captura a partir de imagem de Romeu Carvalho/TVI)

    Mudança de cenário. E regresso às aulas. Hoje é dia de substantivos. E de entrevistas.

    — Não julgo. Não comento. Eu estou aqui a ensinar-lhes a minha língua para que eles melhorem a comunicação quando vão a tribunal, porque enquanto cidadãos estrangeiros muitas vezes a comunicação com o advogado e o juiz acaba por dificultar. A língua é uma barreira. — explica a professora Paula Serina.

    Ria Formosa.

    O vídeo com música para descobrirem a terra onde vivem e não conhecem está a chegar ao fim.

    El Mahdi é marroquino. Era camionista. Foi condenado por tráfico de droga. É aluno de Português. Não tem visitas, mas o pior é outra coisa…

    — A história? A minha história é… É difícil: Eu não tenho história. É melhor não contar…

    — E a prisão é o quê para si?

    — Para mim é uma escolha da vida, mas correu tudo mal.

    — Tem um filho que não conhece…

    — Só das fotos. Tem dois anos. Nunca… nunca o vi. Só nas fotos. E oiço-o no telefone. Agora, já começa a falar.

    — Suleiman…

    — Chama-se Suleiman.

    — Qual é o seu sonho?

    — O sonho é estar com a minha família e brincar com o meu filho, sair, levar o meu filho para fora e andar na rua… Isso dói.

    — Shukran.

    — De nada.

    (Foto: Captura a partir de imagem de Romeu Carvalho/TVI)

    À tarde cada um deixa correr o tempo como quer. Como pode. O aconchego para os muçulmanos daqui passa pela Fé. Rezam cinco vezes ao dia. A dhohr — a primeira oração da tarde — é agora.

    Pedro, 27 anos, foi condenado a seis anos de cadeia. A mãe, o padrasto e o irmão também estão presos. A namorada, já esteve.  

    — Fui condenado a seis anos de prisão por tráfico de drogas. Estou detido há dois anos e sete meses. Tenho uma mãe presa, um irmão e um padrasto. O que mais me custa aqui dentro é estar longe das pessoas que eu mais gosto: os meus filhos e a minha família. Se tenho algum objectivo de vida? Tenho. Isso fez-me tornar uma pessoa totalmente diferente porque eu era, posso dizer, uma pessoa violenta, agressiva. Hoje em dia sou uma pessoa diferente. Como se diz, há males que vêm por bens. Espero conseguir ser uma pessoa diferente daquilo que eu era lá fora. Uma pessoa melhor. Ter as minhas coisas honestamente. Basicamente é isso.

    Só basicamente. O discurso bem intencionado e politicamente correcto — conivente com o sistema — deixa algumas dúvidas sobre a sua autenticidade. Nas entrelinhas está, quiçá, a perspectiva de uma precária…

    A saída anticipada é uma prioridade para estes homens apesar de a cadeia de Olhão ser um oásis no panorama carceral português.

    (Foto: Captura a partir de imagem de Romeu Carvalho/TVI)

    O trabalho — incluindo no exterior — está reservado a poucos. Na horta do Patacão, por exemplo, para ajudar o Banco Alimentar do Algarve. E na cidade de Olhão para edificar ou recuperar edifícios da Junta de Freguesia, como estes viveiros.

    — Todo este edifício foi restaurado por eles e se vos disser que ficou ao erário público em um quarto do valor inicialmente previsto é a pura da verdade. Estes homens foram excelentes. Foram de uma dedicação ímpar. E mais: eu sinto em cada um deles… Eles querem e sentiram que efectivamente participaram em algo de bom para todos. — palavras de Luciano de Jesus, presidente da Junta de Freguesia de Olhão.

    Regresso à prisão.

    A parceria é para continuar. A Junta de Freguesia de Olhão pretende criar, através de uma parceria com a cadeia e o Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) dois postos de trabalho para reclusos.  

    — Obviamente, não sejamos utópicos. Há situações de insucesso como em tudo na vida, mas a grande maioria tenta e quer não voltar á cadeia. — declara Carlos Moreira, director do Estabelecimento Prisional de Olhão.

    A boa vontade do director da cadeia de Olhão não chega para alterar a realidade. A reinserção em Portugal é ilusória, para não dizer virtual.

    (Foto: Captura a partir de imagem de Romeu Carvalho/TVI)

    17:40

    Jantar.

    A principal ligação entre o mundo social e o mundo penitenciário é a obsessão da segurança. A realidade carceral continua a ser acima de tudo sinónimo de punição e de isolamento. É por isso que democracia e prisão são antinómicos. Sempre foram.

    Hora da última confissão.

    — Olá, sou espanhol. Estou condenado por tráfico a 5 anos e 5 meses na cadeia de Olhão. Apanharam-me há 17 meses. E pedi transferência para Espanha. Para o meu país. E aquilo de que temos mais saudades aqui é da família. Agora, damos mais valor à liberdade. Mais do que antes. Muito mais… É uma experiência nova que tento esquecer. Mais adiante tentarei olvidar, tanto quanto puder. É verdade…

    É verdade. Tão verdade quanto a liberdade só existir para quem luta.

    (Foto: Captura a partir de imagem de Romeu Carvalho/TVI)

    19:00

    Hora do encerramento e do ‘conto’. E princípio de mais uma noite de prisão.

    É o momento de esquecer a desilusão ou a falência do passado, a amargura do presente e de começar a sonhar com outro destino para um dia mais tarde o cumprirem. Talvez. Levarem a cruz ao calvário sem fatalismos e sem desculpas.

    22:00

    Hora do Silêncio ou nem por isso. É tempo de partirmos. Eles ficam com a noite que não pertence a ninguém, graças a Deus.

    Uma noite destas. A nossa história acaba aqui.


    Reportagem originalmente emitida na TVI em 23 de Junho de 2017. Texto de Rui Araújo, imagem de Romeu Carvalho edição de imagem de Miguel Freitas.


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  • Sagres: a viagem

    Sagres: a viagem


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, emitida na TVI em Fevereiro de 2020, a bordo do Navio Escola Sagres. O navio partira para a sua mais longa e distante viagem para comemorar os 500 anos da circum-navegação de Fernão de Magalhães ao serviço do Rei de Castela. Mas a missão, que previa inicialmente uma viagem de 371 dias e a passagem do veleiro por 22 portos e 19 países, teve de ser encurtada devido à pandemia de covid-19. Nesta reportagem, Rui Araújo acompanha o navio de Lisboa até às Canárias.


    O mar, derradeiro espaço de liberdade… (Foto: Rui Araújo)

    Atlântico Norte.

    O veleiro corre com o tempo.

    Temos vento pela alheta por estibordo.

    14… 15 nós de vento real. É uma brisa moderada. Força 4 na escala de Beaufort: mar sereno, de pequena vaga. 

    Mar de saudade…

    Rumo: 2-1-0. Velocidade: 6 nós… 6 nós e meio «steady» — constante. São 11 ou 12 mil metros por hora à vela. Papafigos, gáveas e velachos caçados…

    Na «casa de navegação» é o momento de o comandante escrever as ordens, que lavra diariamente em livro, depois assinado pelos oficiais de quarto.

    Aqui, não há espaço nem tempo para a poesia ou a para a divagação austera e purgadora.

    Há uma missão para cumprir e não é uma qualquer.

    — Eu saio com planeamento desde o minuto da largada até ao minuto da chegada coisa que o Fernão de Magalhães não tinha porque não fazia ideia daquilo que iria ocorrer. A viagem de Magalhães — completada por Elcano — durou três anos e eu tenho um ano. E vai ter que ser cumprido dessa forma! — diz-me Maurício Camilo, comandante do navio-escola. 

    O veleiro vai dar uma volta ao mundo por 22 portos de 19 países durante 372 dias, no quadro das comemorações do Quinto Centenário da circum-navegação do português Fernão de Magalhães e do espanhol Sebastião de Elcano (ao serviço de Castela).

    É a maior viagem em tempo e em distância desde a construção do navio, em 1937.

    23 de Junho de 1962: Chegada do veleiro a Lisboa.
    (Imagem: Cinemateca Portuguesa)

    23 de Junho de 1962

    «De aspecto menos majestoso do que a velha barca que o antecedeu, tem, no entanto, belas linhas, recorda os admiráveis tempos das Descobertas.

    A Sagres com bandeira nacional…»

    Noticiário oficial (Documento: Cinemateca Portuguesa):

    «O novo navio-escola Sagres adquirido ao Brasil chegou finalmente ao Tejo.»

    «As novas velas que a brisa do Tejo fará tufar vêm dar continuidade a uma velha tradição da nossa marinha e contribuirão para tornar mais marinheiros os futuros oficiais.»

    Um veleiro excepcional, ontem como hoje…
    (Foto: Marinha Portuguesa)

    Entre 1937 e 1948 o navio Albert Leo Schlageter — construído no estaleiro Blohm Und Voss, em Hamburgo — hasteou bandeira alemã.

    Era o terceiro de uma série de quatro navios.

    Adolfo Hitler chegou a visitá-lo antes do início da guerra.

    Em 1948 foi cedido pelos Estados Unidos à Marinha do Brasil por um preço perfeitamente simbólico: 5.000 dólares. E mudou de nome. Passou a ser chamado Guanabara

    (NOTA: O navio foi cedido por causa dos danos causados pelos submarinos alemães aos navios brasileiros durante a Segunda Guerra. Em 1961 foi adquirido por Portugal para substituir a antiga Sagres, outro navio alemão.
    A 10 de Outubro de 1961 foi arriada, pela última vez, a bandeira brasileira.
    A 30 de Janeiro de 1962 foi aumentado ao efectivo dos navios da Armada.
    )

    Portugal pagou 150 mil dólares pelo veleiro. É o terceiro veleiro português de instrução com o nome «Sagres».

    (NOTA: A página sobre a Sagres pode ser consultada no sítio da Marinha portuguesa).

    A actual Sagres. (Foto: Rui Araújo)

    É a quarta volta ao mundo do navio.

    Tirada 0 – 1. 

    Lisboa — Santa Cruz de Tenerife, que ainda está a 243 milhas.

    Amanhece.

    Na padaria é a azáfama do costume. E é o mesmo sopro cálido de fornalha que nos consome…

    O cabo Santos, que é homem para meter no chinelo ao mais chique dos padeiros, está de quarto e prepara mais uma fornada de pão: broa naval e, por vezes, carcaças ou croissants. Ou até bolos (de anos e não só)…

    Feitas as contas, são precisos 40 a 50 quilos de farinha para fazer 110 broas (ou pães de quilo).

    Os 3 padeiros cozem pão 4 vezes por dia.

    Meto conversa com o cabo Paulo Santos, padeiro.

    — Estar no mar é o período da noite em que não se vê nada. Parecemos uma pequena ilha. Andamos aí no meio, não há luz, não há nada. Literalmente, não há nada. Se viermos aqui, temos os camaradas que vão passando, dizemos um «olá» à noite, servem de companhia. Senão, não há barulho, não há nada, passa a ser tudo muito vazio…

    A ideia, aqui, é não matutar muito. É o lance de vida ou de sobrevivência possível…

    As cogitações no mar são, aliás, inúteis. O mar obriga-nos a encarar a multiplicidade dos mundos, das hierarquias e das lógicas. Sempre. É o que apregoam os filósofos…

    Um P-3C Orion CUP+ da Força Aérea Portuguesa, que efectua patrulhamento marítimo nesta área, sobrevoa-nos: 1, 2, 3 vezes.

    A aeronave da Base Aérea Nº 11 – Beja – pertence à Esquadra 601 – LOBOS.

    Tem participado também em missões internacionais de patrulhamento no Mediterrâneo.

    No «poço», encontramos os fuzileiros: seis praças e o primeiro-sargento Valério Afonso — o chefe da equipa de segurança. 

    A missão destes homens das Forças Especiais é a protecção da Sagres, se houver ataques de piratas, longe daqui.

    O cabo de manobra Pedro Miguel Lopes Rodrigo, 36 anos, a caminho dos 18 na Marinha, é sota-gajeiro e barbeiro, nada mal afreguesado. Tirou o curso em Lisboa no ano passado.

    O cliente, agora, é o marinheiro MS (Manobra e Serviços) António Vareta.

    O corte é um dégradé. É o que está na berra. Ninguém que se preze quer outra coisa…

    O pagamento, como está sabido, é à vontade do freguês. Só pode. Costuma ser uma «Mini» acompanhada de um sermãozinho de fazer chorar as pedras da calçada ou nem por isso.

    A cerveja corre não menos fluentemente que a palavra… diria Aquilino Ribeiro.

    Navegamos a motor: «Toda a força» a vante. 8 nós e meio. É uma boa velocidade.

    Temos vento de feição, mas fraco: 3 nós. Direcção: 2-4-7.

    O nosso rumo é o mesmo desde Cascais: 2-1-0.

    A chefe dos serviços de mecânica e LA (Limitação das Avarias) é a engenheira Rita Rodrigues de Oliveira.

    As ideias conservadoras dos perigos a bordo: a terra, o fogo e as mulheres — por mais salutares que fossem — já não se aplicam aqui. Não comento…

    Há quatro oficiais do sexo feminino a bordo.

    — Eu vim para a Marinha por causa do mar, por aquilo que ele representa, a curiosidade, a aventura… Um dos meus sonhos era conhecer o mundo. (Ri-se) E vou… Pelo menos, embarco agora, em grande parte, na sua totalidade, vou poder cumpri-lo agora, que é conhecer novas culturas, ter novas experiências, entrar em contacto com o desconhecido, o próprio mar, a aventura do próprio mar, conhecer… conhecer… passar por tempestades, pela bonança, sentir a adrenalina de… de resolver cada um dos problemas que vão surgindo no dia-a-dia. — conta a tenente Rita Rodrigues de Oliveira.

    O conforto a bordo é muito razoável… (Foto: Rui Araújo)

    Paiol de mantimentos.

    O que se gasta mais a bordo é batata, arroz e cebola.

    Aqui dentro, transportamos 8 a 10 toneladas de secos (farinha, arroz, massas, açúcar, leite…). 3 ou 4 toneladas de frescos (fruta, tomate, alface…). Mais 8 a 12 toneladas de carne e peixe.

    É o mundo do cabo Pedro Lima, que faz anos hoje.

    — Isto é o meu mundo. Aqui há de tudo menos gente.

    — E o mar? O pior, aqui, não é o mar?

    — Não. O mar a nós não nos faz grande diferença. Às vezes é um grande adjunto nosso o mar. Quando está mau tempo as pessoas comem menos e aí já nos facilitam mais a vida a nós…

    Temos mar sereno…

    «Enjoar que nem uma pescada» — como eles costumam dizer — ainda não é para hoje…

    O problema dos portugueses é o tempo. Nunca foi o mar…

    «Só há bons ventos para quem sabe onde quer chegar» – Séneca. (Foto: Rui Araújo)

    A distância estimada de 41 mil milhas (mais de uma volta ao mundo) para esta Missão 2020 foi dividida por um tempo médio de 6 nós…

    Feitas as contas, a Sagres só deve regressar a Lisboa a 10 de Janeiro de 2021.

    É a homenagem aos navegadores Fernão de Magalhães e João Sebastião de Elcano. E, do mesmo modo, a Portugal e a Espanha, que edificaram os primeiros impérios de dimensão mundial.

    — A expedição de Magalhães é uma das aventuras marítimas mais conhecidas e mais divulgadas do Mundo sobretudo porque dela resultou uma volta ao mundo numa viagem redonda: a primeira volta ao mundo, que partiu de um porto que foi Sanlúcar de Barrameda, e regressou ao mesmo porto três anos depois. Mas é preciso que se perceba que o objectivo de Fernão de Magalhães não era dar a volta ao mundo. As intenções dele e do rei que o apoiou, Carlos I, eram chegar às ilhas Molucas, onde se produzia o cravo. E fazê-lo, navegando para Ocidente, para fora da área onde andavam já há alguns anos os portugueses. Encontrar as ilhas do cravo, o cravinho, que ainda hoje é uma especiaria apreciada e que na altura tinha um custo elevadíssimo, supondo-se que a Europa podia consumir grandes quantidades dessa riqueza que era o cravo. E a viagem tem detalhes naturalmente fantásticos na sua execução. Detalhes humanos e sobretudo detalhes de natureza náutica de elevado gabarito. A viagem no Atlântico até ao Rio da Prata já era conhecida. Já se sabia como é que poderia ser feita, mas a partir daí tudo foi mais difícil de realizar porque não sabiam quais eram as condições de vento que iam ser encontradas, as condições climáticas… Encontrar a entrada do Estreito foi difícil. Navegar à vela dentro do Estreito foi difícilimo e depois a travessia do Pacífico, que são 3 meses sem abastecimentos, sem água, com grandes dificuldades até chegar às Filipinas. — explica o Comandante Jorge Semedo de Matos, historiador da Escola Naval. 

    O marinheiro Gonçalo Moura Antunes está de serviço na copa.

    Integrou a guarnição do navio há oito meses. Participa na quarta volta ao mundo da Sagres.

    O avô, que navegou no mesmo navio em 1978-79, fez a primeira.

    Há dois marinheiros e um cabo despenseiro de serviço aqui.

    Na Câmara de Oficiais, o cabo Adilson Pina Macedo, 37 anos, 18 de Armada, põe, decidido, mas sem brusquidão, a mesa rectangular. Calado. Arfa-lhe o peito quando pensa que só poderá abraçar o filho que vai nascer daqui a uma data de tempo. Demasiado…

    Porque amanhã é pai

    — Olá, meu filho. Espero encontrar-te em 2021, dia 10 de Janeiro, com grande saúde. O pai está morto para te dar um abraço, um beijo, sentir o teu cheiro pela primeira vez e sabes que a vida vai ter muitos obstáculos. Eu, a tua mãe, a tua família e os teus amigos, vamos estar aqui para te ajudar a ultrapassar esses obstáculos. Espero mais uma vez que venhas cheio de saúde e que sejas um grande homem como o teu pai é. Um grande abraço para ti e espero dar-te um grande beijo no primeiro dia que estiver contigo. Sei que é um ano muito longo e sei que não vou estar a acompanhar possivelmente o teu nascimento, mas espero que saias com bastante saúde. Grande abraço para o meu filho que ainda não sei o nome e para a minha família. Adeus. Até 2021. Muito obrigado. — palavras cheias e sinceras do cabo Adilson Pina Macedo.

    É desnecessário o homem desfazer-se em bem-hajas. O nascimento do filho é lá só para 12 a 19 de Junho, se Deus quiser.

    Cabo José Oliveira: 41 anos e 23 de Marinha. É alentejano. A família vive lá para os lados de Beja e de Ourique. É um dos cinco cozinheiros do navio. É o chefe de cozinha hoje.

    Às 6 da manhã, ligam os fogões.

    Às 9:00… 9:30 da noite, partem. É a hora que podem jantar.

    Preparam, aqui, 200 e muitas refeições por dia.

    Dezoito quilos de arroz. O tomate (que não é de lata!) é a olho… E o peixe frito,  não contámos, mas… feitas as contas, cada homem ou mulher da guarnição terá direito a uns 300 gramas de comida no prato.

    — Eu nunca fui cozinheiro. Nunca aprendi nada deste ramo derivado às minhas raízes familiares. Nunca foi necessário eu estar perto de um fogão porque por trás tinha sempre grandes mulheres que me proporcionaram sempre boas e grandes refeições. Comecei a tomar o gosto pela cozinha quando assim a Marinha me proporcionou este curso e esta aprendizagem já há algum tempo, em Vila Franca, onde era a nossa escola… — diz-me o cabo José Oliveira.

    — Qual é a sua especialidade?

    — Um prato? É todos! Mas a gente gosta… Agora, temos de referenciar o nosso bacalhau à Brás. Esse vai ser o prato que nós vamos levar em todos os portos, em todo o lado vamos levar essa cultura portuguesa. É isso.

    Refeitório de praças. 11:15. Horas de almoçar. Comem cedo por causa das rendições de quarto.

    E quem não está de quarto só se senta quando houver lugar. É que, aqui, à semelhança do que sucede nas câmaras de oficiais e de sargentos, há duas bordadas.

    Ementa: creme de cenoura, filetes de pescada com arroz de tomate e uma peça de fruta. 

    Sobremesa não há. É só à quinta-feira e ao domingo.

    Toda a gente come a mesma coisa.

    O mar

    É (com o deserto) um dos raros espaços do planeta onde ainda se contam as distâncias em dias…

    E o tempo no mar não tem só outra dimensão. Faz a diferença…

    Uns, fazem torneios de burro (quando o mar e o clima permitem). Equipas de dois. Duas malhas por jogador… Quem acertar no burro perde 10 pontos. E vence quem ganhar dois jogos… Sistema de eliminação: é à melhor de 3.

    «A Pátria honrae que a Pátria vos contempla.» Palavras de José da Silva Mendes Leal, político, escritor e jornalista, que datam de 1863, e continuam a ornar as rodas do leme: uma está junto à agulha de governo. E outra à ré da casa de navegação.

    A superioridade filosófica, quiçá moral, da gente do mar, se calhar, ainda existe…

    Do outro lado do leme, palavras perdidas ou gastas, em alemão e português que o tempo e os homens não apagaram.

    A epopeia marítima ibérica mudou o mundo. Terá permitido a criação das bases políticas, militares e económicas da primeira globalização.

    — Portugal e os Reinos da Espanha foram os protagonistas da expansão Quinhentista e rivais nesses tempos. Por vezes, transportam para o presente essa historiográfica e isso faz menos sentido. Esta viagem é uma ocasião única de unir esforços e compartilhar as investigações e os estudos para um melhor conhecimento do passado desse tempo. A comunidade científica — os historiadores, em geral, já compreenderam bem isso e estão a proceder dessa forma, mas não é esse o caso de todos os elementos envolvidos nos estudos associados a esta comemoração. Na viagem de Magalhães e Elcano estiveram as duas potências ibéricas de forma que a colaboração nestas comemorações pode beneficiar o conhecimento sobre os seres humanos no seu tempo e é esse o objectivo fundamental do estudo da História. A História com ‘H’ grande. — acrescenta o historiador Jorge Semedo de Matos.

    Este cubículo é a Central de Limitação de Avarias (LA na gíria da Marinha), que monitoriza as emergências: incêndios, alagamentos, o que houver… Quando há um problema esta central passa a ser o local de comando e de coordenação para a resolução das avarias. E faz ainda os avisos e os alarmes através do ETO (o equipamento de transmissão de ordens).

    Central LA está permanentemente em comunicação com a casa da máquina.

    O primeiro-sargento electricista Pedro Silva Curto tem uma história para contar.

    — O mar? Nos últimos 24 anos tem sido a minha vida. Desde que vim lá de Vilamar, a minha aldeia no concelho de Cantanhede, e que ingressei na Marinha. Têm sido basicamente comissões de embarque em vários navios da Armada e algumas comissões também em terra, mas sempre privado e distanciado de grande parte da minha família… — afirma o sargento Pedro Silva Curto.

     — E o mar?

    — O mar para mim é… O mar para mim agora é uma epopeia. É celebrar…. É um misto de emoções. É.… além de desenvolver aqui as tarefas e aplicar todos os conhecimentos que aprendi nas funções que desempenho diariamente, é ter oportunidade — porque para mim é um privilégio! — é um orgulho servir neste navio que é, sem dúvida, o navio mais bonito do mundo!

    No castelo, a vante, é o afã do costume. Condição: faina geral de mastros. Acabaram de encostar os braços do grande e do traquete — a maior vela do mastro da proa — e retranca a meio, a estibordo.

    Apesar da negrura é noite de lua cheia.

    Matam o tempo e a saudade — a espuma dos dias — que se sucedem e se assemelham com o que há: dois dedos de conversa ou uma cervejola.

    O mar é o nosso mundo. Mas não é o mesmo para todos. Ocupamos o seu centro de forma diferente, desigual

    Independentemente do rumo, da deriva e das solidões…

    A rota traçada na carta acaba rapidamente, aliás, em ficção.

    Carta do Atlântico Norte.
    (Fonte: National Oceanic and Atmospheric Administration)

    Enfermaria principal

    Apesar do cartaz provocador com o telefone 911 (o número de emergência nos Estados Unidos), o atendimento, aqui, é permanente: 24 – 7.

    Não há quartos nem horários: «Bordada zero».

    Consultas do dia: uma congestão nasal, quistos sebáceos na parede abdominal e uma infecção viral a nível da face.

    O primeiro-tenente Diogo Alpuim Costa é o médico do navio. A especialidade do «Doc» (é assim que o chamam) é a oncologia — o cancro. 

    Lá fora, investiga a relação entre cancro da mama e flora intestinal. 

    A bordo, trata do que é preciso com a ajuda do enfermeiro Ricardo Simões.

    —  Acima de tudo um médico naval tem de estar preocupado, assim como um enfermeiro, na consciencialização da guarnição para pequenos acidentes que podem ocorrer. Outra coisa muito importante é manter a motivação das pessoas porque uma viagem tão longe mesmo com o apoio — estamos na era da informação — é manter a parte da saúde mental controlada.

    — Como?

    — Com… acima de tudo ser uma pessoa… Eu e o enfermeiro sermos pessoas muito próximas de todos. Cada um tem a sua hierarquia, mas acima de tudo as pessoas sentirem que têm ali um pequeno refúgio para poderem falar dos pequenos problemas que possam ter a bordo ou que tenham trazido de casa e acho que esse aspecto também é muito importante que é manter a motivação e controlar fenómenos de ansiedade ou pequenas situações depressivas que possam vir a acontecer. — responde o afável e sorridente tenente Diogo Alpuim Costa.

    Santa Cruz de Tenerife (Foto: Rui Araújo)

    Santa Cruz de Tenerife é o primeiro porto de escala.

    O milagre chamado “A ILHA”… (Foto: Rui Araújo)

    As Canárias são o segundo arquipélago que avistamos.

    E as ilhas interpelam o nosso imaginário, não por estarem cercadas de água, mas por nos deixarem entender a terra… a terra, a terra e os homens e.… a morte, que dá sentido às nossas vidas.

    O arco-íris lá ao fundo é apenas uma coincidência…

    Regresso das Canárias. (Foto: Rui Araújo)

    NOTA: O navio-escola acabou por regressar antecipadamente a Lisboa. Não chegou a haver volta ao mundo por causa da covid-19.


    Reportagem originalmente emitida na TVI em Fevereiro de 2020.

    Pode consultar AQUI informação sobre Fernão de Magalhães.


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  • O meu avô espião

    O meu avô espião



    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma nota sobre o passado misterioso de António Araújo, avô paterno do jornalista Rui Araújo, que foi publicada no livro ‘O Império dos espiões‘.

    Novembro de 2008. 

    Eram umas dez da noite. Estava a atiçar o azinho na lareira quando o telefone começou a tocar.

    — ‘Tás bom? Comprei o teu livro e resolvi ligar-te. É por causa dele… — lançou-me a voz rouca do outro lado da linha.

    Era a minha prima. O primeiro volume de O Diário Secreto que Salazar não leu sobre espionagem em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial tinha sido publicado semanas antes.

    Ele o quê… — retorqui, a pensar que estava a referir-se ao seu pai, o meu tio, capitão de mar-e-guerra, que tinha trabalhado na DINFO .

    — Ele era misterioso…

    Pois era, mas o pior é o resto… — acrescentei.

    — Encontrei duas cartas escondidas no forro da cómoda dele, que mandei restaurar.

    — E?

    — Foram-lhe enviadas em 1946.

    Mas estás a falar de quem? — indaguei.

    — Do nosso avô.

    — Do António Araújo?

    Sim. Quem mais podia ser? — exclamou a minha prima em voz dolente.

    Fiquei a matutar naquelas palavras, que soavam a desaire.

    — Ele era…

    Eu não morria de amores pelo meu avô paterno. Não podia nem queria. Era apenas um estrangeiro para mim.

    — Podes arranjar-me cópias?

    Passados uns dias, a Rita entregou-me duas folhas amarelecidas. Duas cartas enigmáticas escritas em Inglês e Português.

    A primeira missiva era do adido de Imprensa. G.M.F. Stow homenageia, a pedido do embaixador, o meu avô pelos “valiosos serviços prestados” à Secção de Imprensa “durante toda a guerra” e aproveita a oportunidade para lhe testemunhar o seu “profundo reconhecimento pessoal pela sua leal cooperação e pela confiança indefectível na nossa causa [sic] de que deu provas durante os longos e amargos dias de luta” que juntos tiveram de enfrentar.

    O meu avô paterno era bancário. É possível que tenha cedido aos britânicos informação privilegiada sobre os clientes e as operações do banco. Era informador? Espião? É inútil especular. Tanto mais que a afável conclusão de G.M.F. Stow adiciona uma peça ao puzzle: “Creia V. Ex.ª que o seu apoio e amizade perdurarão na memória de quantos de entre nós tiveram o privilégio de trabalhar com V. Ex.ª”.

    O anuário do Foreign Office contém apenas duas referências a G. M. F. Stow, o Adido de Imprensa.

    A primeira carta endereçada ao meu avô é do Adido de Imprensa e oficial dos serviços secretos G.M.F. Stow.

    Em Abril de 1942, o Tenente Geoffrey Montagu Fenwick Stow é nomeado Assistente do Adido da Força Aérea (Assistant Air Attaché) na representação diplomática britânica, em Lisboa.

    Stow colaborou com o Serviço de Operações Especiais em Portugal.
    (Fonte: National Archives – Kew, Inglaterra.)

    O Adido de Imprensa é um homem dos serviços secretos: recolhe informações sobre a aviação, oriundas sobretudo de outros países que não Portugal.

    Stow também colabora em Lisboa com o Special Operations Executive (SOE — Serviço de Operações Especiais). 

    A carta para Stow pode ser enviada pelos canais das Operações Especiais. (Fonte: National Archives – Kew, Inglaterra)

    O SOE chega a propor, por exemplo, ao Ministério do Ar um contacto com Stow através do canal reservado das Operações Especiais de forma a impedir que o Adido da Força Aérea, seu responsável hierárquico directo, tenha conhecimento da sua colaboração.

    No final da guerra, Stow permanece em Lisboa. O almanaque diplomático britânico de 1946 indica que o militar assume um “appointment” do “M of I” [Ministério da Informação]. É com o estatuto de Adido de Imprensa que escreve ao meu avô.

    A segunda missiva (mais formal), assinada pelo embaixador Owen O’Malley, é praticamente idêntica à primeira.

    O meu avô preservou o segredo até à hora da morte, embora tenha estado do lado dos vencedores. É absurdo, para não dizer imoral, humanizar as guerras e os seus actores com ou sem mistificação, idolatria ou obra de sarcasmo.

    António Pinto de Araújo

    Ironicamente, passei 19 longos meses a vasculhar as existências de dezenas de desconhecidos nos arquivos nacionais e estrangeiros quando havia na minha própria família um homem secreto e uma história secreta.

    Rui Araújo


    in O IMPÉRIO DOS ESPIÕES, Oficina do livro – Lisboa.


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