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  • Notas do diário

    Notas do diário


    CERTIFICADOS I Todo o trabalho tem o seu saber. A certificação de um ofício (e o estudo com aproveitamento) é uma forma de arrumo. Se não houver batota, de separar o trigo do joio. Ora, exerci o ofício de jornalista entre 1991 e 2016 sem nenhum diploma, por tal não ser imperativo, letra de lei.

    Fiz o tirocínio com mestres (sem cursos de Jornalismo) e vali-me de uma vontade e à-vontade de contar histórias que me acompanham desde menino e moço. De então para cá sustento-me a guiar montadas e a pé a fazer o que sempre fiz: contar histórias. O critério é idêntico: seriedade e atenção plena ao interlocutor. Escrever livros é mais do mesmo. Podia ter cursado Letras ou Turismo. Poderei ser forçado a tal se assim me for exigido, tal como um dia tirei a certificação de técnico de exercício físico e uma especialidade em boxe, estas obrigatórias por lei para ser remunerado na actividade de PT.

    Não me encanitam os auto-didactas. Só me dá espasmos no esófago a concorrência desleal, a patranha, o cinismo do bom “colega” ou a exclusão boçal de quem dá o litro por fazer bem o Bem, que é justificar o valor recebido pelo serviço. Vale o raciocínio para os clientes, que sejam gratos pela dedicação ao que lhes é servido de bandeja.

    MIGRANTES I Lido todos os santos e profanos dias com migrantes. Ou melhor, imigrantes, pois são oriundos de lugares fora do burgo lusitano. No ramo dos tuks há marroquinos, argentinos, argelinos, bangladeshis, paquistaneses, indianos, brasileiros, angolanos, guineenses, cabo-verdianos, espanhóis de várias procedências, franceses e até um dissidente da América de Trump. Deve haver mais, mas não os contei. Também há famílias inteiras de ciganos no activo, sendo este um ramo da mercância de rua onde têm atávica experiência. Este melting pot dá um colorido ao já de si garrido andar das “carruagens”. O que leva os emigrantes a instalarem-se, dito por todos à uma, são os euros. E uma certa paz lusitana.

    No ramo paralelo dos carteiristas é esta mesma paz mansa que atrai. Afinal são detidos mas quase nunca deportados. Portugal acolhe e ao acolher sem crivo, encolhe. Aposto o dedo mindinho esquerdo em como no ramo dos tuks nem dez por cento dos habibis estudam a língua nativa, a História (onde também pulularam califas) e se convertem como apaixonados camonianos. Os camones e as suas carteiras aliviadas são o cânone. Pespegar um dichote qualquer e siga a Marinha. Ligar a estereofonia, o luzeiro e adejar as flores artificiais em troca de verdinhas. E ala pois Alá é grande. Por outro lado, deve ser tão mau o panorama de onde vêm que se sujeitam à diáspora. Um ou outro já emborca pastéis de bacalhau, bojecas e não arrota. Só postas de pescada, mas essas são toleradas porque o turista é pouco exigente e acha graça a passear por Lisboa como se andasse na Tailândia.

    OS DONOS DISTO TUDO I Quem manda no burgo? Vamos lá ver: Há o Estado e as suas instituições, corporações e companhias limitadas. Dado o passivo, o Estado obedece à UE, e aí mandam a Alemanha e a França. Costa late para a caravana passar. Voltemos ao burgo: Opus Dei, Maçonaria, Igreja, as sete famílias do grande capital e os seus contributos partidários. Os penetras novos ricos também ditam regras ao açambarcar o seu quinhão.

    A CS obedece ao Capital. Há que a comprar. Há as polícias e exércitos, a soldo e mando do Estado e das suas governações. Depois, há as ilusões dos outros mafiosos de que ao terem negócios obscuros e amealharem os seus milhões (lavados ou deslavados) mandam através da lei da bala e do suborno. Plata ou plombo. Há umas aves raras, Agostinhos da Silva e Joãos Césares, e um punhado de lúcidos insubmisos, que mandam sem mandar. Nem que seja pó caralho. A “melhor” forma de exercer e aplicar o poder é manter na ignorância, subjugar pela pobreza, esconder as verdades às marionetas e alimentá-las com circo e patranhas.

    PRÉ CAMPANHA I Estamos naquele impasse de venha o Diabo e escolha. Negar a existência do Mal, é imoral. Quanto ao Bem, entende-se o dar a mão à família e aos amigos. Que se o faça na Política é humano, mas não deixa de ser desfaçatez e abuso de poder. Entre a Camorra e qualquer organização mafiosa e os clubes, seitas e partidos a diferença está no método. Mata-se na mesma, se o inimigo faz dano. Recorre-se ao jogo sujo, à exposição de toda a sorte de actos e factos, com recurso à mentira, à coacção e agora à IA, esse recurso de cariz gótico. Valha-nos Deus se mais nada valer.

    POLÍTICOS I Hannah Arendt escreveu um ensaio sobre A Política e a Mentira. Como acreditar na política e em políticos? Ver para crer é um bom princípio. O que devia ser uma arte nobre é um lodaçal de falta de seriedade. A ideologia é de somenos (cada um vota e come o que gosta). Grave, gravíssimo, é o impacto da política na vida real e a dificuldade em encontrar bons políticos e políticos bons neste burgo mal frequentado. Um mau carácter pode ser um bom político, mas só para quem nele se filia, dele tira partido e lhe lambe as botas. O voto é o remédio da Democracia. É rara a Democracia que não redunde numa oligarquia. Tal como nenhuma Ditadura é boa. Que fazer? Estudar, estudar os programas, estudar os políticos, escrutinar e dar o voto em consciência. Mesmo em branco, o voto é relevante. Venham as eleições.

    COMUNS MORTAIS I No geral acho que sou um tipo porreiro. Por vezes, a roçar o ingénuo. Se me pisam os calos sou capaz de dizer qualquer coisa na justa medida do ataque. Porém, aceito criticas bem urdidas. Isto, a propósito de sacralizar os artistas. Exemplos comuns entre nós são as azias, as purgas e o comunismo do Nobel Saramago, que limpou o DN e as dedicatórias nos livros à esposa Isabel. Ou o cinismo e crueldades de Agustina. A arrogância de Lobo Antunes e de outros quinhentos. Os pavões e pavoas.

    A distinção entre o homem e a obra é um tema de peso. Neruda e a rejeição da filha macrocefala. Picasso, o misógino. Pelé, o promíscuo. Maradona, o drogado impostor e putanheiro. Celine e o anti-semitismo. Em todos os artistas há paradoxos, egos hipertrofiados e indomados, sobressaltos, causas por vezes radicais e injustas. O desgosto pode ser um laboratório para o mal. Virgínia dizia que não trocava um bom coração por uma cabeça dotada mas retorcida. Ou como dizia o tio do Peter Parker, com grandes poderes vêm grandes responsabilidades.

    CONTEÚDOS I Cada um de nós é uma consequência de aspectos, do mapa astral ao lugar (família, país) onde nasceu. Há aspectos marcantes como desaguar onde haja livros e o gosto por ler e dialogar. No meu caso uma avó professora e um pai alfarrabista.

    A minha avó era franciscana e purista com a expressão da linguagem. O meu maior orgulho era escrever redacções sem erros. A avó oferecia-me um docinho quando a redacção vinha limpinha. Fiquei como o cão de Pavlov. A salivar depois de dar ao gatilho. O meu pai já leu milhares de livros e tem o condão da filosofia. Quando falamos do rescaldo dos jogos de futebol é de xadrez e da arte da guerra que se trata. Um sistema de crenças deve ser revisto e rebatido. Embora defenda os Acratas, leio toda a sorte de ideologias, até o Mein Kampf e a cartilha de João de Deus. Há dias estóicos e outros tomado por Epicuro. Ou outros em que harmonizo o dever e o prazer. Ontem vi o filme sobre o George Foreman. O corpo pode ser forte, o coração de leão, mas as vitórias estão na cabeça.

    PAX, PAZ, PÁS I Levo 53 anos e alguns dias nas pernas, ou seja, tempo suficiente para dissertar sobre a paz como uma Miss Mundo. Desde o instante da inseminação na praia da Ursa até escorregar pra fora do loft uterino e ser instalado num par de berços entre a Coronel Marques Leitão e a Leite Vasconcelos conheci a paz da placenta. Talvez. Não sei nem nunca vou saber. Sei do dia em que realizei morar numa casa de possessos e na rua valer a lei do mais forte. O Cabanas, por exemplo, mais velho e mais encorpado, a jogar à bola dava cacetada de três em pipa. O Bernardo um dia espetou-me um soquete assim do nada durante uma jogatina (talvez por não dar tantos toques na chincha). Não reagi. Até porque gostava dele e da sua postura. O Joca, um puto estúpido, cravou-me um x-acto na palma da mão esquerda e quase me deixava deficiente. A ciganada andava sempre à coca dos nossos pertences e de nos aviar. Um dia, num raide, levei uma pedrada num olho. Hoje, dá para rir, eu aos gritos que tinha ficado cego. Durante anos comi mais do que aviei. Não entendia a violência. Em casa, por dá cá aquela palha, levava solhas, socos, carolos, insultos. Na rua, tinha que gramar com caceteiros e larápios.

    Tenho impressão que o trauma de ter partido o nariz num choque brutal me coibiu de pelejas mais acesas. A primeira vez que puxei da culatra foi à saída da catequese, quando um gajo me gozou e por instinto lhe preguei um directo. De tal ordem, que daí em diante passou a ser meu amigo ou coisa parecida. Na adolescência tive umas cegadas. Um dia, uns galfarros apalparam a Célia no comboio e inspirado no Balboa distribuí um arraial. Safei-me pelo inesperado de fazer frente a uma mão cheia de chico-espertos. Na faculdade repetiu-se a cena do conflito. Um idiota, que era o Artur, levou uma bolachada por conta de um rol de provocações. Em casa, levei carolos e insultos até quase à idade adulta. Depois, havia a violência psicológica. A rejeição e o rebaixamento. Imagino ser judeu, preto, cigano ou outra coisa qualquer. Ter ido à guerra. A escrita cedo ocupou o lugar da revolta. Meti-me no boxe para saber bater em caso de. Tudo dava azo a uma certa agressividade. Ser do Sporting, por exemplo. A paz é uma miragem. Depende de como reagimos ou não.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

    N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • Os encarniçados

    Os encarniçados


    O Sol é para todos, mas não o tapemos com uma peneira. O privilégio de estar aqui (a banhos), de charuto na mão esquerda, enquanto o indicador direito vos escreve, é, em boa parte, fruto do meu trabalho. Não os recebo, aos puros, dos meus amigos castristas. Volta e meia recebo um charuto de amigos que sabem ser este o meu prazer mais excelso, a par de celebrar o Amor carnal e espiritual.

    Devo aos genes, a uma avó professora, ao acaso feliz, a amizades do Caminho, a conjugação de valorizar o empenho como forma de obter o justo retorno do que quer que seja e me apaixone. Não nasci em berço de ouro, mas nos verdes anos nunca faltou nada, a não ser a presença afectiva dos meus imberbes pais. Talvez essa carência prematura dite a minha busca de prazeres, como deve haver outra razão qualquer para padecer de uma curiosidade insaciável.

    Tudo me interessa, da vida dos santos ao mais ínfimo detalhe da tola de bandidos. Faço um exercício diário de reflexão ao espelho e escrevo coisas assim:

    ORDEM E PROGRESSO I A demanda e a debanda de brasileiros que se instalam em Portugal afina quase sempre pelo mesmo diapasão: escapar da violência e da corrupção. Os nossos patrícios de língua preferem a Pátria de Cabral à terra amaldiçoada do pau brasil. Juca Chaves determinou que o Brasil não ia para a frente por terem cortado o pau do índio. Os euros também contam na decisão, perante a fraqueza do real. Há brasileiros e brasileiros nesta demanda. Mas a maioria não traz doutoramento, a não ser na universidade da vida. Os crânios do Brasil mais depressa se instalam nos EUA ou na Austrália. Dá pena, um país tão sobredotado pela mãe Natureza ter pais tão medíocres. Não foi por impulso que D. Pedro escolheu o Brasil. Eu, se fosse parido lá, não o trocava. Fazia de Paraty ou da chapada dos Veadeiros a minha eterna morada. Deixava crescer a barba. Lia e escutava Machado de Assis, Clarice, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, Vinícius, Jobim, Chico, João Gilberto, Betânia, Drummond de Andrade, Veríssimo, Amado… amava a minha pátria e agradecia ao Cabral.

    SANTOS I O meu santo padroeiro é o Fernando de Bulhões, arrebanhado pelos italianos de Pádua e santificado como António. Devo-lhe a recuperação de todas as coisas perdidas. Oro com fé e nunca me falha. Só não lhe devo a felicidade conjugal perpétua com uma das três nubentes do meu currículo porque não me deu para lhe pedir o quesito. A felicidade, porém, depende do que faço por ela. Os santos ajudam na curva descendente. Tenho um lema: todos os dias arrancar um sorriso ou gargalhada da consorte. O humor não chegou para lavar e durar noutros enlaces porque não tinha que ser mais do que foi. Santo é quem abdica das suas paixões e dá a vida por uma causa ou causas. Sem lixar o próximo. O santo é por natureza um milagreiro. É um milagre ainda haver santos.

    BANDIDOS I Eu gosto de bandidos que são bandidos porque há bandidos eleitos e venerados. Esses bandidos que são bandidos à margem das leis feitas por bandidos não aceitam que os tomem por lacaios e por parvos. Dillinger, Pancho Vila, Ernesto Guevara, Zapata, Makhno. Alguns a quem chamam de bandidos e assassinos são guerrilheiros imbuídos de ideais elevados que busca(ram) um mundo melhor, livre de bandidos como Nixon, Fulgêncio, Trump ou assim. Pinto da Costa foi um bandido e se eu fosse do FCP admirava-o. Teria um altar no WC. Faria parte da milícia pretoriana. Estou a exagerar. Mas gostaria dele. Há, houve e haverá bandidos em todos os lados, clubes, religiões, seitas, empresas. À solta, odiados e venerados. Para algumas mulheres eu sou um bandido arranca-corações. Onde é que isso já vai… Mas se calhar é por dizer estas coisas.

    PROFECIAS I Os açorianos riem-se da cagufa dos alfacinhas quando a terra treme. Habituados a viver debaixo de provações e abalos, um sismo moderado, um vinho entornado, não é nada. Ontem, estava eu no mictório, quando se deu a sacudidela de 4.7 ou 4.2. para bater certo com a falsa notícia de que pela última vez o pintinho assustava os mouros de Lisboa. Não precisei de sacudir as miudezas. Foi divertido. Mais tarde ouvi o Moedas e o noticiário da quase catástrofe. Tal como o analista sismólogo a classificar o fenómeno de “interessante” e estabelecer um paralelo curioso com outros paradeiros sacudidos como Santorini fruto de partilharmos o globo terrestre. De facto, na partilha é que está o ganho. Se deixassem de haver competições e troféus na esfera terrestre como seria? Um tédio, certamente, para quem aprecia a agitação.

    Estas pequenas coisas levam-me a pensar que sou um privilegiado. Nada me é dado de bandeja. Nem estas crónicas são feitas em troca de pilim. Recebo em géneros. É o meu género. Os encarniçados, descontentes, que só espumam e lamuriam, entediam-me.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

    N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • Praça da Figueira

    Praça da Figueira


    A contingência da necessidade levou-me ao ofício de animador turístico. Vulgo condutor de animação turística, driver, guia ou, se for mais ousado, embaixador cultural. O romantismo ingénuo e a falta de cuidado na observação do contrato de casamento levaram-me tudo de material (até os anéis) e assim dei por mim a vender na rua. Mal que veio por bem, pois ter-me-ia passado ao lado esta grande carreira de diplomata.

    Embora licenciado em Relações Internacionais, descurei a candidatura ao corpo diplomático e como Deus escreve direito e nós somos as linhas tortas, desaguei no mais próximo do ofício de honrar a pátria. O p pequeno advém do facto de não se dar um chavo por quem labuta neste serviço. É como ver um pedinte esquálido e sem dentes e só atentar na sua triste figura quando, por vezes, nele habita um génio incompreendido. Há um na Figueira, o senhor Carlos, que declama Gedeão deitado na lage onde dorme, come e sonha com dias melhores. Até escreveu um poema ao Moedas.

    a small orange truck parked in front of a building

    Carlos como eu, és tu, ó Moedas
    Tu dizes que fazes, e fazes
    Mas não são grandes merdas

    A praça que elegi para montar a loja é a da Figueira. Convivo com vendilhões de várias procedências, do Magrebe a terras de Vera Cruz. Marrocos, Argélia, Paquistão, Bangladesh, Índia, Brasil, França, Espanha, Itália… há guias de todas estas procedências. A maioria são tipos esforçados e vão além do aceno do folheto no imperativo de mostrar e contar a cidade. Um ou outro é da variante abrenúncio e só vê cifrões. Pode suceder que este ou esta não mereça o chão que pisa, entre a preguiça de falsear o contado e o descaramento de ludibriar as autoridades.

    Nem a razão da praça se chamar da Figueira são capazes de dizer. É como os vendilhões da Sé, criaturas bíblicas que se engasgam nas rezas. Não me espanta ser por cá que se tenha estabelecido uma actividade como esta, afinal estamos na cidade rainha do comércio. Quem inventou o negócio dos tuks foi um senhor chamado Paulo Oliveira. Um dia, a passear no Chiado no seu Piaggio Apê Calessino, reparou no interesse dos estrangeiros na sua montada e logo mandou vir uma dúzia para explorar o filão. Os outros, macacos de imitação, seguiram-lhe a peugada. Sem espanto, o negócio foi estabelecido e ninguém das autoridades económicas e do Trabalho foi verificar de que se tratava.

    Foto: DR.

    E quando foi já era tarde. Treze anos passados é uma actividade instalada onde aterra toda a sorte de necessitados. Não direi que se façam fortunas, mas posso garantir que só a apanha da amêijoa se equipara no banho à realidade tributária. No meu caso, enriqueci de tal forma que empreguei sem contrato o Nuno o Salazar o Garcia o Sousa e o Gomes. Somos uma empresa familiar. Tributada no altar do altíssimo que é a fonte de inspiração para a escrita de rua. O melhor lugar para se estar.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

  • A princesa Clara

    A princesa Clara


    Nunca vi a Clara Pinto Correia ao vivo e a cores. Não a entrevistei (mas gostava e quem sabe). Soube da existência desta dama das Camélias cruzada de Madame Pompadour nos meus primórdios no Jornalismo. O camarada Rui Barros, meu fornecedor de Literatura, passou-me o ‘Adeus, Princesa’. Li o romance numa noite, como pedem as grandes prosas a arder de emoção e inventiva. Daí para cá, passei a ser omnívoro das coisas da Clara, fosse onde fosse, fosse o que fosse. Gosto dos ecléticos. A Clara faz parte desta família. Quando a acusaram de plágio(s) cheirou-me a esturro. O Jornalismo é prenhe de fait-divers e histórias mal contadas. A defesa da Clara, e a sua retratação pública destemida, seriam argumentos suficientes para a poupar ao ostracismo e penúria que daí veio. A bruxa fora caçada, para gáudio dos Torquemadas.

    Antes de prosseguir lembro aqui umas quantas histórias pessoais. Comecei a trabalhar no Semanário, aos 19 anos. Na altura, propus à direcção do jornal um artigo sobre um cambalacho na Quinta da Marinha que metia uns poderosos. Tinha as provas, os depoimentos, tudo afinado para atacar a prosa e desmascarar o esquema financeiro que recuava ao tempo do fogo posto nas matas à beira do Guincho. As chefias tomaram o assunto por delicado e declinaram a publicação. Aliás, recomendaram-me o silêncio. Teimoso, e sem exclusividade que me impedisse de escrever e publicar fosse onde fosse, bati o texto na Remington do meu avô Vítor Garcia e levei o artigo ao O Jornal, onde esperava melhor recepção, mais ousada.

    Calhou ir à fala com o Rogério Rodrigues, figura por quem tinha apreço e tomava por imune à desonestidade intelectual. Leu a prosa à minha frente, de olhos arregalados, e perguntou se tinha sido mesmo eu a escrevê-la. Era matéria de peso. Disse-me então para lhe dar uns dias que ia pegar no assunto e dar-me-ia notícias. Insisti que se era para ser, era então, antes do assunto vir à baila e “nos” passarem a perna. O “nos” vinha de um sentido ingénuo de camaradagem. Na semana seguinte comprei O Jornal e lá estava, a minha prosa, com ligeiros retoques, assinada pelo Rogério. Fiquei estarrecido e a única coisa que me ocorreu foi ir à redacção chamar-lhe de pulha. Que dizer de uma apropriação deste calibre? Ainda no tempo dos faxes, deveria ter enviado o artigo por forma a provar a minha autoria. Mas não. Entreguei o original em mão, à confiança no camarada.

    Tive outra destas com o senhor E., meu editor no Semanário, que me pediu um retrato do amigo Vasco de Castro. Lá fui, a minhas expensas, a Fontanelas. Desta feita, antes de entregar a prosa, mostrei-a de antemão ao Vasco, que me devolveu uma carta a dizer “um jovem tão verde com prosa já tão vermelha”. Ficou uma amizade para a vida. Quanto ao artigo, saiu assinado pelo senhor E. Desta vez fui atrás dele para o encher de porrada. E só não o fiz porque se raspou de véspera para Cuba. Fiz queixa em vão no Sindicato. Acabei por virar a página sem pugilato. Deixei passar vinte anos ate voltar a dar-me com a figura e, tal como nos assuntos familiares aziagos, optei por esquecer o dito.

    Falo aqui destas incidências da vida porque nunca fiz tal coisa. Aliás, de mim só podem dizer que quero é que se fodam estes e outros, tomados por tibieza de carácter. Querem outra? Trabalhava então na Capital, do tio Balsemão. Digo tio porque o conheci na minha vida passada de betinho de Cascais. Betinho radical. Aliás, só não me estreei no Expresso porque o tio tinha mais do que fazer do que andar a interceder por mim. Verdade seja dita que ainda me remeteu para a directora de recursos do Expresso, uma senhora que estava sempre de baixa, e, farto de levar tampas, acabei por bater à porta do Semanário com uma carta do professor Dr. Adelino Alves, que julgava ser de recomendação para estafeta, mas afinal era para ser acolhido por estagiário.

    Mas voltemos à Capital. Um dia, o senhor P. destacou-me para entrevistar uma alta patente da PSP. Fiz o serviço, entreguei as laudas e deparo-me com espanto ter sido alterada no artigo publicado a patente do homem, para uns degraus abaixo. Crime de Lesa-Majestade. Toca de receber um telefonema da bófia a descompor o reles escriba. Ora, o reles escriba, já tinha passado por umas quantas e guardara o original. Levei a prova à Exª Sra. Helena Sanches Osório que arrumou o quiproquó, evitando o meu despedimento por justa causa de ofensa à intendência do reino. Acabei por sair daquele viveiro de invertebrados da Capital pelo meu próprio pé e nem a estima pela directora me fez vacilar.

    Voltemos ao Semanário dos meus 19 anos, ainda trabalhador-estudante. Chegada a hora dos exames de final de ano lectivo na Universidade, pedi uma licença sem vencimento, fruto do meu direito e do vínculo que tinha ao jornal por contrato assinado. Para minha surpresa, ao regressar dos exames, tinha sido dispensado e nem uma das minhas canetas sobrara na secretária, entretanto ocupada por outro estagiário. Resolvi levar os tratantes ingratos a Tribunal. Na barra, os senhores, meu chefe de redacção e director, mentiram com todos os dentes ao dizer que eu era um mero colaborador pontual e irregular.

    Dez meses de palmadinhas nas costas, idas ao SNOB e louvores ao puto talentoso que publicava aos dois e três artigos por semana (alguns deles manchetes), redundaram num perjúrio descarado, que o meu defensor não soube contornar porque o contrato tinha desaparecido. Mais uma vez, o totó do Salazar, não guardara uma cópia. Não bastaram as provas de vencimentos pagos a termo certo, a avença, outra galga, porque se fosse colaborador pontual não receberia um vencimento nem uma avença, quanto muito uns patacos dos artigos publicados.

    Foto: PÁGINA UM

    [Nunca contei isto em público, e mesmo em privado, evitei ao máximo andar a remexer na trampa. O Jornalismo para mim só não feneceu porque há o PÁGINA UM. Pode ser que no rescaldo de outra revolução (ou de uma Revolução em casa alta) volte a haver desse Jornalismo em que acreditei e a quem dei três décadas da minha existência. Mas se voltar, que volte livre destes sujeitos. O mais certo é ser no dia de S. Nunca à tarde.]

    Volto à Clara que terá destas e doutras para contar. É claro que a Clara, como todos os que caem em desgraça, deixou de ser fiável. É como um adúltero. Uma vez adúltero, adúltero para sempre. Ou um larápio de maior ou menor envergadura. Faz a fama e deita-te na cama. Para os conservadores do burgo, a Clara é a gaja dos plágios e dos orgasmos porventura fingidos. Build yourself a reputation. A Clara a quem os revisionistas acusam, sem ler mais do que as infâmias em sua honra, de ser uma fraude de alto abaixo e de cara a rabo. Não há período de nojo que lhe(s) valha, nem a confissão e a decorrente absolvição dos seus actos, sejam eles de facto, manietados ou inventados como na melhor ficção.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

  • Memórias de Adriano

    Memórias de Adriano


    Há uma penada de anos conheci um mestre-de-obras romeno, o Adriano. Naqueles meses a revirar-me a casa do avesso, a picar, estocar, pintar, derrubar e levantar paredes, abrir rossos, fazer argamassa, barrar cimento, instalar cabos, acartar baldes, afagar, polir e instalar as traquitanas, descobri uma inusitada faceta do mestre Adriano.

    Certo dia, ao subir a escada para ver o andamento da obra, ouvi os trinados de uma guitarra e o Ai Mouraria cantado com voz roufenha. Entrei, pé ante pé, e lá estava o mestre Adriano, sentado num par de tijolos, de olhos semicerrados, a dar no fado como um fadista de Alfama. Quando me viu, à falta de melhor desculpa, esticou a mão para me passar uma bucha de torresmos. Enquanto os trolhas, três eslavos e um cearense, se deliciavam nas bifanas,  a ouvir o mestre, limitei-me a dizer-lhe, prossiga. Nesse dia fiquei a saber que tinha em casa, além de um trolha, um fadista, que passei a frequentar, entre pincéis, martelos e ferramenta.

    Quis saber de onde lhe tinha brotado a paixão por coisa tão portuguesa. Era daí que lhe vinha o dedilhar e o canto, do território da paixão. Contou-me, no seu português de quem rodara por bairros populares, que trinta anos antes embalara a trouxa e zarpara de Bucareste, depois de ouvir Amália Rodrigues cantar na rádio. Foi, disse-me, como se Deus o tivesse chamado à terra onde só podia ter nascido tal melodia. Entre ouvir Amália e abalar passaram menos de cinco dias.

    Adriano nada sabia de Portugal ou da diva. Na Roménia tocava viola de ouvido, as canções dos Beatles, The Who, dos Led Zeppelin. Ao chegar a Lisboa, a primeira coisa que fez, antes de se instalar na pensão Girassol, foi ir aos fados. Entre uns biscates e aperfeiçoar a arte do estuque, passou a ser assíduo do Luso, da Parreirinha, da Tasca do Chico. De então para cá, ouviu e bebeu de tudo e de todos, até eleger Joel Pina para o altar do seu panteão. Nada lhe passou ao lado. A todos acolheu, de todos aprendeu, a ouvir e a ver, todos os que pôde. De Beatriz da Conceição a Marceneiro, de Carlos do Carmo a Argentina Santos. Era um fadista e não sabia.

    Tenho admiração por quem sente o que é dos outros como seu, todo aquele que torna o estrangeiro a sua morada. Não apenas por razões que o bolso conhece, mas por emoções desconhecidas. Gente que desce às profundas de genes tomados por adopção. Desde o meu achado na obra da Rua Correia Teles, passei a ir ouvir o mestre Adriano às tascas do fado, onde acompanha fadistas de todos os quilates, de aspirantes a veteranos. Pedem-lhe um dó maior e ele dá tudo de si. Alguns, creio, não saberão estar ali um romeno que largou a sua terra  por causa do fado. Adrián e não Adriano. Não darão conta pela sua fala sem sotaque ou por ser tão raro meter galgas como é próprio do mais virtuoso. E se as mete, logo as disfarça como fazem os indígenas do ofício, sem dar parte fraca.

    city landscape photography during daytime

    Adriano diz caralhadas com o deleite de um gimbra. Tal como sabe de cor e salteado as deixas e os intervalos de dar ou não dar as notas. Ou quem foram o Pacheco, o Pina, o Paredes, as guitarras do Grácio, as madeiras, os seus veios, nervuras e as suas minudências de onde só uma alma unida a outra pode tirar os sons mais límpidos.

    Quando um estrangeiro se instala num país por motivos de uma força maior, fazendo da terra que o adopta a sua pátria sentimental, aí está o significado de um mundo sem fronteiras. Nós demos-lhe o fado, ele devolve-nos a dádiva como se fosse nascido no seu caldeirão. Limpinho.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)


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