Por um lado, até gostava de ver o Ventura no poleiro. O trafulha populista, ardiloso, manhoso, carroceiro, oportunista, réplica anacrónica do Botas. Teríamos penas perpétuas, uma Gestapo, o PÁGINA UM encerrado e o tribuno Almeida Vieira torturado, eu próprio içado num mastro ao lado de asiáticos, africanos e lelos.
O sucesso desta estirpe é natural. O descontentamento com os xuxas capciosos e os laranjas amargos, a pobreza recidiva, a corrupção endémica, a cepa sempre torta, convida à mudança. Dêem-lhe, pois, a oportunidade — e ao seu escol de portadores do facho. Haverá sangue e limpeza. Os serviços de Uber e Bolt passarão a ser conduzidos por escravos. A Rua do Benformoso dará lugar a uma artéria de zelotas da propaganda racista. Votem nele e não se admirem de recuarmos à Idade do Poço dos Negros.

Todo aquele que me quer governar é meu inimigo.
Deixo-vos uma pequena ficção elucidativa.
Bem-haja.
***
O meu nome é Gigi. Sou uma barata. Há quem me chame fala-barata. Isto porque estou sempre a falar. Eu já entrei num livro. É a história da minha vida. Lá por ser barata, e quase ninguém gostar de mim, houve um senhor que se interessou por contar as minhas aventuras. Acho que o livro ficou muito divertido. Eu sei ler. Aprendi com o meu pai. Não conheço nenhuma barata da minha idade que goste de ler. É pena. Há tantas histórias nos livros para partilhar.
Já passaram alguns meses desde esse dia maravilhoso em que saiu o meu livro. Não fui eu que o escrevi, mas tudo o que lá vem escrito é verdade. Nem tudo o que vem nos livros é verdade, mas pode ser. Eu gosto de histórias que foram mesmo assim. Podem ser alegres ou tristes. Tanto me faz, desde que sejam bem contadas e quem as escreva não diga mentiras. Eu não gosto nada de mentiras.
O senhor escritor que escreveu o meu livro chama-se António Pereira. As crianças gostam muito do que ele escreve. Depois de ter contado a minha história ao senhor escritor, vieram à minha procura para me conhecer. Antes só andavam atrás de mim para me exterminar. Logo eu, que não faço mal a uma mosca. Nem eu, nem nenhuma barata. Como andamos no chão, acham que somos nojentas. Mas se andassem por onde eu ando, viam como em todo o lado há coisas bonitas — ou, se não forem bonitas, podem ser interessantes. Eu sou muito curiosa e gosto de saber tudo. Ou tudo o que puder saber. Felizmente, sei escapar de alhadas, senão já me tinham esmagado. Aprendi a fugir com os ratos. Os ratos são muito espertos. Só os conseguem enganar quando põem queijo nas ratoeiras.

Estava a contar que agora tenho uma vida melhor. Quero dizer, graças ao senhor escritor, tenho mais amigos. Há sempre quem se ponha aos gritos ao darem comigo a passear, mas quando vêem que sou eu, a Gigi, até são capazes de pedir desculpa e oferecerem-me umas migalhas, um pedacinho de chocolate ou pedir-me um autógrafo. Sabem, é que eu tenho uma conta no Instagram. Não acreditam? Então vão lá ver. E, se quiserem, apareçam na Rua do Benformoso, que é onde eu moro. Podem vir brincar comigo e com a Antónia, que é a minha melhor amiga. A Antónia é uma traça e voa bem que eu sei lá. Se quiserem, podem tocar nas minhas antenas. Eu não mordo. Nem sou venenosa. E quem diz que eu sou feia é porque nunca olhou bem para mim.
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Aqui há tempos, mudei de casa. Agora moro na casa de um senhor chinês. É cozinheiro e está sempre a dar-me petiscos. Eu ponho-me de patas no ar e ele mete-me pedacinhos na boca. O meu petisco favorito é pão ralado. Hum…
A minha casa é no rés-do-chão direito do número 6, na Rua do Benformoso. Há ruas de nomes bonitos como esta. Antes de vir para aqui, morei numa rua chamada da Rosa. A Rosa, descobri num livro, é por causa da rosa-dos-ventos, e não uma senhora fadista, como já ouvi uns senhores que passeiam turistas a contarem.
Um dia, ia a subir a rua e a voltar para casa e quase levei uma bengalada na carapaça de um homem com cara de mau. No dia seguinte, vim para aqui. Este senhor chinês é muito simpático e, além de me dar comida, não se importa que traga as minhas amigas para brincarmos. O que eu mais gosto é de voar nas asas da Antónia e passarmos em cima do fogão quando a comida está ao lume. A Antónia voa melhor do que muitos passarinhos.

Sabem como se chama o senhor chinês? Não sabem porque eu ainda não disse. Hihihihi. É o senhor Lim-Pó-Pó. Ele é muito engraçado. Tem a mania de limpar tudo e depois volta a limpar. Eu sei o que é um chinês porque li um livro sobre a China. Também li uma história sobre o Japão, que fica lá perto. Os japoneses são muito diferentes dos chineses, embora sejam vizinhos e tenham olhos em bico. Deve vir tudo nos livros — e o que não vem, passa a vir, assim que alguém se lembrar de escrever.
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Na Rua do Benformoso há pessoas de muitos países. Eu sou portuguesa, porque nasci em Portugal, mas a minha mãe veio de Angola, num navio, e foi cá que conheceu o meu pai. Ele é do Ribatejo, mas o meu avô era da Guiné. Lisboa é uma cidade muito antiga. Tem mais de dois mil anos. Já passaram por cá pessoas de muitos lugares — e milhões de baratas.
Não preciso de dar uma volta ao mundo para conhecer pessoas de muitos países — e baratas então nem se fala. Só na minha rua há pessoas de mais de trinta lugares diferentes! Quantas baratas há em Lisboa não vos sei dizer, porque nunca ninguém as contou. São tímidas e andam sempre escondidas em buracos. Eu sou uma felizarda! Até tenho direito a uma caminha e a um candeeiro para ler antes de dormir.
A Antónia diz que o bisavô dela era da Mongólia, mas eu acho que ela está a inventar. Como é que ela sabe? Um dia, estávamos a voar e vimos um senhor de olhos em bico a pintar na rua, ao pé do rio. Ela aterrou de repente e meteu-se com ele. Esse senhor é de Ulan Bator, que é a capital da Mongólia. Chegou a Lisboa num cargueiro e ficou cá a morar. A Antónia disse-lhe que o bisavô dela sabia andar a cavalo, pois na Mongólia há mais cavalos do que pessoas. Ele riu-se. Como é que uma traça anda a cavalo? É fácil. Agarra-se à crina e aí vai ela. A crina é o cabelo do cavalo.

O senhor da Mongólia é o Gengis. Fala muito bem português. Quem me dera falar todas as línguas do mundo. Já imaginaram? Conseguir falar em chinês ou árabe, ou mesmo em hebraico ou em mirandês? O mirandês é uma língua que se fala em Miranda do Douro, que fica no Norte de Portugal. Eu nunca lá fui, mas já ouvi essa língua uma vez, quando me cruzei com um corvo muito preto e ele me disse “buonos dies”, que é “bom dia” nessa língua. O Lim-Pó-Pó e o Koksu falam em inglês um com o outro e, pelo meio, dizem umas palavras em português, chinês e turco. Eu cá só falo português — e até falo muito bem. Quero dizer, não digo calinadas, que é dizer palavras que não se dizem assim.
Uma palavra é uma coisa muito especial. Como nascem as palavras? Antes de serem palavras, eram apenas sons. Querem ver uma? Schhhh, que é dizer a alguém “xiu” ou “caluda”. A mim estão sempre a dizer-me isto. Porquê, será? Hihihihi. Porque eu sou uma Fala-Barata.
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O senhor Lim-Pó-Pó é de Macau. Tem os olhos castanhos e um pequeno bigode. Parece que está sempre a rir. Só fica zangado quando vê alguma coisa suja — ou que, para ele, deve estar suja, pois, para mim, não está. Vai logo com o pano do pó e põe-se a limpar. Assim que fica tudo limpinho, volta a sorrir. Ele diz que eu tenho a mania de que sou muito esperta.
— Não basta lel livlos. É pleciso vel — diz ele, de dedo espetado, a dar-me piparotes nas antenas.
Ele troca os erres pelos eles. Hihihihi. Eu sei onde fica Macau. Já sabia antes de vir morar com ele. É na China, e os portugueses foram os primeiros a lá chegarem. Os primeiros, estou a dizer desta parte do mundo, porque de outras partes já lá tinham chegado outros. Na minha família houve uma barata que esteve no Brasil. Foi o meu pai que me contou.

— Muito antes do avô Fernando andar a viajar, tivemos uma antepassada que andou pelo mundo todo.
— Todo, todo? Mas o mundo é tão grande… — disse eu, intrigada. — Devia ter as botas das sete léguas.
— Foi a primeira barata a andar numa caravela.
— O que é uma caravela, pai?
— Foi um barco que os portugueses inventaram e que tinha velas capazes de navegar contra o vento.
— Um dia gostava de navegar.
— Mas tu não sabes nadar.
— Aprendo. Não és tu que dizes que tudo se aprende?
Tenho saudades do meu pai. Também, quem é que o mandou ir morar para a Serra da Estrela?
***
Um dia, quando tinha três anos, o meu pai deu-me uma bússola para nunca me perder. Antes de dormir, ponho a bússola num lugar direitinho (não pode ser de pernas para o ar) e assim já sei onde está o Norte e a Serra da Estrela. Quando me aventuro por outras ruas de Lisboa, também a levo. O meu pai sabe de cor o nome de muitas estrelas, planetas e constelações — que são muitas estrelas — como a Ursa Maior, Orion e Cassiopeia. Diz que, quando o céu está sem nuvens, consegue ver o planeta Urano e nem precisa de usar o seu telescópio. Eu já tentei, mas, para mim, são apenas estrelas a brilhar. Se calhar, foi para a serra porque lá as montanhas são altas e fica mais perto das estrelas e dos planetas.
O lugar mais alto do mundo, e também um dos mais frios do nosso planeta, fica no Nepal, que é de onde vem o Kenzig, o senhor que mora no número 8, no primeiro andar com mais uma dúzia, e anda numa bicicleta a levar comida e outras coisas de casa em casa. Chama-se Evereste a montanha mais alta e é preciso ter muita força nas pernas e vontade para lá chegar. O Kenzig é um sherpa, e antes de vir para Lisboa carregava mochilas e sacos dos turistas. Subiu e desceu cinco vezes o Evereste. Disse-me isto quando ia a passar e o vi sentado a comer um pãozinho. Parei a olhar para ele e, no lugar de me tentar pisar ou enxotar, atirou-me um bocadinho do seu pão. Desde aí, sempre que posso, vou até à porta de casa dele, quando a noite cai e há menos gente na rua — não vá alguém dar-me uma pisadela e esmagar-me, mesmo que seja sem querer.

O Kenzig está sempre a rir ou a sorrir e só o ouvi queixar-se de uma vez em que lhe roubaram as encomendas. Foi dizer a uns senhores polícias o que tinha acontecido, mas não lhe ligaram grande coisa, apesar de soluçar e explicar tudo em português. Encolheram os ombros e desapareceram num carro a toda a pressa.
As pessoas estão sempre com pressa. Não sei porquê. Eu cá ando muito devagar. Só corro se me querem fazer alguma maldade. Ninguém devia fazer maldades. Com tantas coisas boas e bonitas para fazer, como voar nas asas da Antónia ou comer migalhas.
Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)
As ilustrações foram elaboradas com recurso a inteligência artificial.