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  • Chega e a história da Gigi

    Chega e a história da Gigi


    Por um lado, até gostava de ver o Ventura no poleiro. O trafulha populista, ardiloso, manhoso, carroceiro, oportunista, réplica anacrónica do Botas. Teríamos penas perpétuas, uma Gestapo, o PÁGINA UM encerrado e o tribuno Almeida Vieira torturado, eu próprio içado num mastro ao lado de asiáticos, africanos e lelos.

    O sucesso desta estirpe é natural. O descontentamento com os xuxas capciosos e os laranjas amargos, a pobreza recidiva, a corrupção endémica, a cepa sempre torta, convida à mudança. Dêem-lhe, pois, a oportunidade — e ao seu escol de portadores do facho. Haverá sangue e limpeza. Os serviços de Uber e Bolt passarão a ser conduzidos por escravos. A Rua do Benformoso dará lugar a uma artéria de zelotas da propaganda racista. Votem nele e não se admirem de recuarmos à Idade do Poço dos Negros.

    Todo aquele que me quer governar é meu inimigo.

    Deixo-vos uma pequena ficção elucidativa.

    Bem-haja.

    ***

    O meu nome é Gigi. Sou uma barata. Há quem me chame fala-barata. Isto porque estou sempre a falar. Eu já entrei num livro. É a história da minha vida. Lá por ser barata, e quase ninguém gostar de mim, houve um senhor que se interessou por contar as minhas aventuras. Acho que o livro ficou muito divertido. Eu sei ler. Aprendi com o meu pai. Não conheço nenhuma barata da minha idade que goste de ler. É pena. Há tantas histórias nos livros para partilhar.

    Já passaram alguns meses desde esse dia maravilhoso em que saiu o meu livro. Não fui eu que o escrevi, mas tudo o que lá vem escrito é verdade. Nem tudo o que vem nos livros é verdade, mas pode ser. Eu gosto de histórias que foram mesmo assim. Podem ser alegres ou tristes. Tanto me faz, desde que sejam bem contadas e quem as escreva não diga mentiras. Eu não gosto nada de mentiras.

    O senhor escritor que escreveu o meu livro chama-se António Pereira. As crianças gostam muito do que ele escreve. Depois de ter contado a minha história ao senhor escritor, vieram à minha procura para me conhecer. Antes só andavam atrás de mim para me exterminar. Logo eu, que não faço mal a uma mosca. Nem eu, nem nenhuma barata. Como andamos no chão, acham que somos nojentas. Mas se andassem por onde eu ando, viam como em todo o lado há coisas bonitas — ou, se não forem bonitas, podem ser interessantes. Eu sou muito curiosa e gosto de saber tudo. Ou tudo o que puder saber. Felizmente, sei escapar de alhadas, senão já me tinham esmagado. Aprendi a fugir com os ratos. Os ratos são muito espertos. Só os conseguem enganar quando põem queijo nas ratoeiras.

    Estava a contar que agora tenho uma vida melhor. Quero dizer, graças ao senhor escritor, tenho mais amigos. Há sempre quem se ponha aos gritos ao darem comigo a passear, mas quando vêem que sou eu, a Gigi, até são capazes de pedir desculpa e oferecerem-me umas migalhas, um pedacinho de chocolate ou pedir-me um autógrafo. Sabem, é que eu tenho uma conta no Instagram. Não acreditam? Então vão lá ver. E, se quiserem, apareçam na Rua do Benformoso, que é onde eu moro. Podem vir brincar comigo e com a Antónia, que é a minha melhor amiga. A Antónia é uma traça e voa bem que eu sei lá. Se quiserem, podem tocar nas minhas antenas. Eu não mordo. Nem sou venenosa. E quem diz que eu sou feia é porque nunca olhou bem para mim.

    ***

    Aqui há tempos, mudei de casa. Agora moro na casa de um senhor chinês. É cozinheiro e está sempre a dar-me petiscos. Eu ponho-me de patas no ar e ele mete-me pedacinhos na boca. O meu petisco favorito é pão ralado. Hum…

    A minha casa é no rés-do-chão direito do número 6, na Rua do Benformoso. Há ruas de nomes bonitos como esta. Antes de vir para aqui, morei numa rua chamada da Rosa. A Rosa, descobri num livro, é por causa da rosa-dos-ventos, e não uma senhora fadista, como já ouvi uns senhores que passeiam turistas a contarem.

    Um dia, ia a subir a rua e a voltar para casa e quase levei uma bengalada na carapaça de um homem com cara de mau. No dia seguinte, vim para aqui. Este senhor chinês é muito simpático e, além de me dar comida, não se importa que traga as minhas amigas para brincarmos. O que eu mais gosto é de voar nas asas da Antónia e passarmos em cima do fogão quando a comida está ao lume. A Antónia voa melhor do que muitos passarinhos.

    Sabem como se chama o senhor chinês? Não sabem porque eu ainda não disse. Hihihihi. É o senhor Lim-Pó-Pó. Ele é muito engraçado. Tem a mania de limpar tudo e depois volta a limpar. Eu sei o que é um chinês porque li um livro sobre a China. Também li uma história sobre o Japão, que fica lá perto. Os japoneses são muito diferentes dos chineses, embora sejam vizinhos e tenham olhos em bico. Deve vir tudo nos livros — e o que não vem, passa a vir, assim que alguém se lembrar de escrever.

    ***

    Na Rua do Benformoso há pessoas de muitos países. Eu sou portuguesa, porque nasci em Portugal, mas a minha mãe veio de Angola, num navio, e foi cá que conheceu o meu pai. Ele é do Ribatejo, mas o meu avô era da Guiné. Lisboa é uma cidade muito antiga. Tem mais de dois mil anos. Já passaram por cá pessoas de muitos lugares — e milhões de baratas.

    Não preciso de dar uma volta ao mundo para conhecer pessoas de muitos países — e baratas então nem se fala. Só na minha rua há pessoas de mais de trinta lugares diferentes! Quantas baratas há em Lisboa não vos sei dizer, porque nunca ninguém as contou. São tímidas e andam sempre escondidas em buracos. Eu sou uma felizarda! Até tenho direito a uma caminha e a um candeeiro para ler antes de dormir.

    A Antónia diz que o bisavô dela era da Mongólia, mas eu acho que ela está a inventar. Como é que ela sabe? Um dia, estávamos a voar e vimos um senhor de olhos em bico a pintar na rua, ao pé do rio. Ela aterrou de repente e meteu-se com ele. Esse senhor é de Ulan Bator, que é a capital da Mongólia. Chegou a Lisboa num cargueiro e ficou cá a morar. A Antónia disse-lhe que o bisavô dela sabia andar a cavalo, pois na Mongólia há mais cavalos do que pessoas. Ele riu-se. Como é que uma traça anda a cavalo? É fácil. Agarra-se à crina e aí vai ela. A crina é o cabelo do cavalo.

    O senhor da Mongólia é o Gengis. Fala muito bem português. Quem me dera falar todas as línguas do mundo. Já imaginaram? Conseguir falar em chinês ou árabe, ou mesmo em hebraico ou em mirandês? O mirandês é uma língua que se fala em Miranda do Douro, que fica no Norte de Portugal. Eu nunca lá fui, mas já ouvi essa língua uma vez, quando me cruzei com um corvo muito preto e ele me disse “buonos dies”, que é “bom dia” nessa língua. O Lim-Pó-Pó e o Koksu falam em inglês um com o outro e, pelo meio, dizem umas palavras em português, chinês e turco. Eu cá só falo português — e até falo muito bem. Quero dizer, não digo calinadas, que é dizer palavras que não se dizem assim.

    Uma palavra é uma coisa muito especial. Como nascem as palavras? Antes de serem palavras, eram apenas sons. Querem ver uma? Schhhh, que é dizer a alguém “xiu” ou “caluda”. A mim estão sempre a dizer-me isto. Porquê, será? Hihihihi. Porque eu sou uma Fala-Barata.

    ***

    O senhor Lim-Pó-Pó é de Macau. Tem os olhos castanhos e um pequeno bigode. Parece que está sempre a rir. Só fica zangado quando vê alguma coisa suja — ou que, para ele, deve estar suja, pois, para mim, não está. Vai logo com o pano do pó e põe-se a limpar. Assim que fica tudo limpinho, volta a sorrir. Ele diz que eu tenho a mania de que sou muito esperta.

    — Não basta lel livlos. É pleciso vel — diz ele, de dedo espetado, a dar-me piparotes nas antenas.

    Ele troca os erres pelos eles. Hihihihi. Eu sei onde fica Macau. Já sabia antes de vir morar com ele. É na China, e os portugueses foram os primeiros a lá chegarem. Os primeiros, estou a dizer desta parte do mundo, porque de outras partes já lá tinham chegado outros. Na minha família houve uma barata que esteve no Brasil. Foi o meu pai que me contou.

    — Muito antes do avô Fernando andar a viajar, tivemos uma antepassada que andou pelo mundo todo.

    — Todo, todo? Mas o mundo é tão grande… — disse eu, intrigada. — Devia ter as botas das sete léguas.

    — Foi a primeira barata a andar numa caravela.

    — O que é uma caravela, pai?

    — Foi um barco que os portugueses inventaram e que tinha velas capazes de navegar contra o vento.

    — Um dia gostava de navegar.

    — Mas tu não sabes nadar.

    — Aprendo. Não és tu que dizes que tudo se aprende?

    Tenho saudades do meu pai. Também, quem é que o mandou ir morar para a Serra da Estrela?

    ***

    Um dia, quando tinha três anos, o meu pai deu-me uma bússola para nunca me perder. Antes de dormir, ponho a bússola num lugar direitinho (não pode ser de pernas para o ar) e assim já sei onde está o Norte e a Serra da Estrela. Quando me aventuro por outras ruas de Lisboa, também a levo. O meu pai sabe de cor o nome de muitas estrelas, planetas e constelações — que são muitas estrelas — como a Ursa Maior, Orion e Cassiopeia. Diz que, quando o céu está sem nuvens, consegue ver o planeta Urano e nem precisa de usar o seu telescópio. Eu já tentei, mas, para mim, são apenas estrelas a brilhar. Se calhar, foi para a serra porque lá as montanhas são altas e fica mais perto das estrelas e dos planetas.

    O lugar mais alto do mundo, e também um dos mais frios do nosso planeta, fica no Nepal, que é de onde vem o Kenzig, o senhor que mora no número 8, no primeiro andar com mais uma dúzia, e anda numa bicicleta a levar comida e outras coisas de casa em casa. Chama-se Evereste a montanha mais alta e é preciso ter muita força nas pernas e vontade para lá chegar. O Kenzig é um sherpa, e antes de vir para Lisboa carregava mochilas e sacos dos turistas. Subiu e desceu cinco vezes o Evereste. Disse-me isto quando ia a passar e o vi sentado a comer um pãozinho. Parei a olhar para ele e, no lugar de me tentar pisar ou enxotar, atirou-me um bocadinho do seu pão. Desde aí, sempre que posso, vou até à porta de casa dele, quando a noite cai e há menos gente na rua — não vá alguém dar-me uma pisadela e esmagar-me, mesmo que seja sem querer.

    O Kenzig está sempre a rir ou a sorrir e só o ouvi queixar-se de uma vez em que lhe roubaram as encomendas. Foi dizer a uns senhores polícias o que tinha acontecido, mas não lhe ligaram grande coisa, apesar de soluçar e explicar tudo em português. Encolheram os ombros e desapareceram num carro a toda a pressa.

    As pessoas estão sempre com pressa. Não sei porquê. Eu cá ando muito devagar. Só corro se me querem fazer alguma maldade. Ninguém devia fazer maldades. Com tantas coisas boas e bonitas para fazer, como voar nas asas da Antónia ou comer migalhas.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

    As ilustrações foram elaboradas com recurso a inteligência artificial.

  • Novas notas do diário

    Novas notas do diário


    RODRIGUES DOS SANTOS I Certa vez entrevistei o grande masturbador JRS. As perguntas nausearam-no e pôs-se com apartes de seresma, debitando teorias literatas, achando-me um neófito a quem podia dar baile. Não piscou o olho. Saiu de cena com a minha deixa de mandar cumprimentos ao Boris Vian.

    Na promoção em curso, o grande masturbador deu uma entrevista à Sábado onde se arvorou como um pioneiro do romance factual sobre Auschwitz ao contar a história do mágico e dos rituais ocultos do Fuhrer. Este cagão, desonesto intelectual, prosador medíocre, não teve réplica da jornalista Rita Bertrand ao dizer tal dislate. Bastava nomear Primo Levi para lhe dar com o esfregão na tromba de boneco da Maconde. Quem pode ler esta criatura a não ser para o remeter para o chão dos escrevinhadores oportunistas?

    PAPA I A Humanidade precisa de iniciados. De exemplos virtuosos e coerentes de Amor, Paz, Compaixão, Humildade e Sabedoria. Um Papa ou qualquer mentor de qualquer procedência deve reunir este quinhão de virtudes. Passar do estado animal ao degrau da cooperação abnegada. A fé é além de igrejas e egrégoras. Implica remover as guerras do binómio da Vida.

    ESCLARECIMENTOS I Antes de ter os jornalistas e o povo à perna cumpre-me dizer dos meus pecadilhos: comprei uma casa aos 22 anos com recurso ao crédito jovem bonificado. Por insistência da minha segunda esposa, vendi a casa que estava em meu nome e era eu que a pagava, e comprei outra a meias, que mais tarde, em virtude do divórcio, vendi ao desbarato, mas que a senhora teve a decência de não me ficar com a parte do lucro que havia reinvestido. Uma senhora como deve ser. Depois, comprei outra, também a meias, com outra esposa, aplicando a totalidade das mais-valias, sendo que graças a um descuido na gestão do seu IRS, a terceira e última esposa me fez perder a totalidade do que tinha investido, bem como a casa. Coisas do romantismo e da falta de prudência a assinar o contrato. Fiquei de mãos a abanar. Hoje, não tenho outro remédio senão arrendar ao preço de mercado. Noutros domínios, do corpo e espírito, não fui santo e tive aventuras a dar com um pau, que me deram apenas o ensejo de não mais ir por aí. Não tive nem terei heranças, tal como não tive semanadas e mesadas. Tive avós generosos mas cuja maior riqueza estava nos afectos e no respeito por uma criança. Não tenho contas na Suiça. No meu ramo, sou como todos: vivo da generosidade dos estrangeiros. Ganho dez por cento de direitos de autor e em vinte anos e vinte livros editados, tudo junto o pecúlio dá para comprar uma caixa de Cohibas. Senhores imperialistas, não vos tenho absolutamente nenhum medo. Nem de nenhuma espécie de chibos ou detractores. Confesso que …i.

    CASOS I Sou daqueles líricos que acha o seguinte: casa, educação, saúde e trabalho são bens essenciais cujo acesso deve ser acessível a todos sem excepção. Segundo uma abécula de uma associação de senhorios a habitação não é um problema nacional. Diz o proprietário que a maioria dos portugueses possui uma casa, pelo menos. Deve estar a referir-se a uma casinha de bonecas. Por outro lado, quem arrenda tem muito por onde escolher, diz a cavalgadura. Deve estar a referir-se aos estrangeiros abonados que se instalam por cá como turistas. Basta pesquisar sites de alojamento para ver que abaixo de 800€ não se arrenda népia, a não ser um quarto ou um buraco na Buraca. 200 mil euros é o preço de base para aspirar a ter casa própria. Ter filhos é um luxo. A educação é um milagre da dedicação de professores extenuados e mal pagos. A saúde um acaso da sorte. O trabalho é de quem mais ordena. O salário mínimo é dos mais baixos na Europa e assim será. Os níveis de literacia espelham-se na abstenção e no número de livros comprados e lidos. Mais depressa um português se indigna com as arbitragens da bola do que se a vida é um exercício de sobrevivência em vez de um combate às reais injustiças.

    OS MEUS LIVROS I Fico feliz quando me perguntam por um novo livro. Mais ficarei se forem às livrarias encomendar um par ou mesmo uma dúzia, dos 17 editados. A minha editora é a Leya/Oficina do Livro, mas quem está por detrás dos romances é a Maria Do Rosário Pedreira, porventura a referência máxima na edição em Português, além de poeta de fino recorte, letrista de fados e um ser humano de Exa. O mais importante na vida é a amizade, de onde brotam conselhos de abrir a pestana. Editei livros com a A23, do meu amigo Ricardo Paulouro, na Escritório, do Miguel Neto, na Nova Delphi, com o grande poeta e amigo Vítor Sousa, e na Âncora. Livros bonitos. Gosto de todos os meus livros, uns mais conseguidos do que outros. Graças à MRP aprendo muito sobre o cuidado, a confecção e a congruência. Tal como há dois ou três leitores cujo parecer me é fundamental. Quanto a vendas, não posso competir com o marketing. Por outro lado, não temos falta de autores de qualidade. A maioria não pode viver em exclusivo dos direitos de autor. É uma sina de antanho. Sem leitores e compradores não há autores a tempo inteiro.

    P.S. Em Maio há novo romance. O Judeu de Santa Engrácia. Um thriller histórico

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

    As ilustrações foram elaboradas com recurso a inteligência artificial.

  • A lenda do cavalo Mohammed (ou o puro-sangue de Alfama)

    A lenda do cavalo Mohammed (ou o puro-sangue de Alfama)


    Quando Mohammed veio ao mundo, no beco do Surra, em Al-Hamma, governava Al-Hushbuna o Califa Saladino. Durante a reza da aurora, antes de começar o dia de trabalho, o profeta Arafat anunciou a boa-nova.

    Está para nascer um cavalo que terá o dom de falar. Será hoje, quando o sol estiver a pino.

    Os devotos, ajoelhados nos tapetes, soltaram um coro de inxalás.
    A profecia cumpriu-se e assim veio ao mundo Mohammed, no exacto momento do sol atingir o zénite.

    O parto decorreu sem embaraços e pouco depois de ver a luz do dia já Mohammed dava pinotes e relinchava alto e bom-som com a particularidade de a cada saltinho dizer allahu akbar.

    O meu nome é Sal-Azar e assisti a tudo, pois morava nas redondezas. A fama de Mohammed depressa chegou aos ouvidos do Califa e este ordenou a sua incorporação nos estábulos da Alcáçova. Coube-me a tarefa de escrever a história de Mohammed, sendo eu o responsável pelas narrativas de tudo o que se passava e se passa em Al-Hushbuna. Tudo teria decorrido sem grandes sobressaltos na vida de Mohammed não fora haver uma revolta no ano de 1492, que para os infiéis dominados era o ano de 2052.

    Morava algures na terra de Chelas um agitador infiel de seu nome Geraldes conhecido por furar pneus com uma navalha afiada e pintar nas paredes a figura de um santo padroeiro com cara de anjo, que, segundo os seus seguidores, viria destronar os muçulmanos. Saladino, um homem supersticioso, temia estes rebeldes e pusera a cabeça de Geraldes a prémio. Encarregara o seu mais temível general, Ali, o Africano, de varrer a cidade a pente fino e procurar o infame Geraldes e a sua milícia. Noite e dia, montado em Mohammed, Ali vasculhava cada recanto de Chelas sem nunca lograr dar com Geraldes que devia ser esperto o suficiente para se disfarçar de árabe e andar por aí de barba comprida e jelaba.

    Foi pois num dia como outro qualquer que Mohammed cheirou o esturro ao dar com um tuk tuk abandonado numa viela de Al-Hamma. Diz-se, pois eu não vi e só o soube por me terem contado as gentes que sobreviveram para contar, que o tuk tuk estava armadilhado e não fora as narinas de Mohammed serem prodigiosas, e ter este a capacidade de falar, e nem ele, nem o general Ali teriam escapado a esse dia e à explosão que se seguiu.

    Saladino viu naquele incidente um motivo para reforçar as suas tropas e condecorar Mohammed pela sua façanha. Desde então quando os guias passam nos seus tuk tuks contam aos estrangeiros que nos visitam a razão de haver uma estátua de um cavalo preto como a fuligem num lugar de destaque, que é a praça mais bela de Al-Hamma, junto à velha cisterna e à amena enseada.

    Parece que a história termina por aqui, mas muitas coisas se sucederam desde então. Mohammed está vivo, tal como eu Sal-Azar, e Geraldes continua a monte.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

    As ilustrações foram elaboradas com recurso a inteligência artificial.

  • Artérias de Liberdade

    Artérias de Liberdade


    GUETOS FELIZES I Um libertário defende a LIBERDADE como valor supremo. A LIBERDADE termina onde começa a dos outros. Há um erro crasso na análise de um libertário. Anarquia não é rebaldaria. Simplesmente, o Acrata não aceita um Sistema só porque ele existe. Se existe e se revela disfuncional há que ser derrubado. O problema da eficácia da anarquia está na pobre harmonia de vontades (ineficiência da comunhão e comunicação) e de entre quem a defenda haja sempre um ou outro mais vaidoso, impetuoso e autoritário que queira sobressair. Mandar nos outros. Ora, eu não quero mandar nos outros, nem que mandem em mim. É como numa relação amorosa: só resulta se houver igualdade, bem como verdade e vontade de cooperar. Um amante do fascismo aprecia pôr a pata em cima. Ama a palavra conjugal que é pôr jugo. Nem tudo se resolve com o bom uso da palavra justa. Mas se porventura não há coincidência de pontos de vista, o caminho libertário é seguir a viagem solitário. Há guetos felizes.

    OS RUSSOS I Quando era chavalito dizem que um dia me apanharam a dizer spasiba e pajalsta e outras palavras em russo. O meu livro favorito era As Aventuras do Miguel Strogoff, o carteiro do Czar Nicolau. Antes dos vinte anos, li Pushkin, Yevtushenko, Gogol, Tolstoi, Dostoiévski, Tchecov, Ribakov, Bulgakov entre outros. Nunca os abandonei. Um dia, um bruxo vidente disse-me que antes desta reencarnação andei pelas estepes como médico de campanha. Gosto de casacos à cossaco. Tive duas filhas na Rússia tal como tenho agora. A minha primeira viagem foi à URSS. Estudei a fundo o comunismo e o anarquismo para me situar, tal como os liberais e fascistas e toda a sorte de ismos. Acrata fiquei, muito em parte graças ao meu preclaro tio Filipe. A mãe Rússia é fértil de prodígios. Nem vou nomear os músicos, compositores, escultores ou o Aranha-Negra. Estes são os russos que me interessam. Prefiro-os aos cobóis.

    1991 I Escapa-me o dia exacto, mas foi em Outubro de 1991 que desaguei na redacção do extinto Semanário com uma carta de Adelino Alves, meu vizinho de patamar do terceiro piso na Rua Coronel Marques Leitão, número 25, na altura professor jubilado e ex-director de O Dia. Tudo começou a ganhar forma no ano de 1990, quando no dia do meu aniversário me vi posto ao fresco da casa materna por ter atingido a maturidade. Fui recambiado para casa da minha avó Vessadas. Ou melhor, depois de andar uns dias a fazer contas à vida, foi na casa da minha avó Vessadas que encontrei refúgio até ter capital próprio para a independência. Tinha feito uns biscates nas vindimas e como estafeta de uma empresa de transporte marítimo, mas o Jornalismo chamava por mim. Avô materno jornalista, apesar de nunca o ter conhecido por ter morrido nos anos 50, infância e parte da adolescência a conviver com jornalistas (o prédio era habitado por jornalistas), mais o apelo inato de contar histórias, ditaram a escolha. Uns meses antes de recorrer a Adelino Alves, ainda fui bater ao ferrolho do tio Balsemão, o Rupert Murdoch lusitano, meu conhecido da Quinta da Marinha e dos fairways do golfe, na esperança deste todo poderoso me arranjar trabalho no Expresso ou outro dos seus títulos. Procurava trabalho de estafeta, antes de me abalançar a estagiar nos jornais. É preciso dizer que podia ter feito carreira de desportista, quer no futebol, quer no golfe. Haverá quem o ateste por aqui. Sem que o tio Balsemão me desse guia de marcha, fui assim parar ao Semanário, de carta de recomendação entregue ao chefe Adriano Oliveira. Não sabia o teor da carta, deduzindo apenas que me recomendava para o cargo de estafeta. Afinal, e sem o saber até ser enviado ao primeiro serviço (no Júlio de Matos), tinha sido recrutado para estagiário de jornalismo. Vi-me assim entregue a mim próprio, sabendo apenas ler e escrever (redacções). Tinha publicado uns contos no DN-Jovem e ganho uns prémios. Achava-me capaz de dar conta do recado. Nesses primeiros meses devo ao Eurico de Barros, ao Nuno Henrique Luz e à Sofia Barrocas os ensinamentos, que se prolongaram no DN, para onde fui e encontrei a Maria Augusta Silva, a grande mestra do ofício a par do Moutinho António José M. Pereira, cuja amizade e conselho duram até hoje. 34 anos já lá vão. Fiz tudo o que quis no Jornalismo. Só não entrevistei um par de figuras por quem nutria estima. De resto, fui à fala com nomes como José Cardoso Pires ou Maria Velho da Costa, Agustina e Luiz Pacheco, entre outros ilustres. Foi no jornalismo que ganhei calo. Aprendi onde estão as rugas na prosa. Vi o Jornalismo dar lugar à promiscuidade dos negócios. Fora as desilusões próprias da vida como ela é. Sem jornalismo livre não há democracia. Tal como sem mestres não há como afirmar uma voz. O mestre está em cada um. As boas influências são uma ajuda.

    FRACTURAS I Morei uns tempos em Chelas. Tinha amigos dealers, carochos e da barra prezada. Uns faleceram de overdoses. Outros foram de cana. Havia alcunhas como “Rambo” e “Comando”. A esperança de vida era limitada e desprovida de sonhos. Ou se vendia ou se consumia. O Jordão só vendia. O Jordão gostava de atestar o meu depósito e ir pela estrada fora, de cabelos compridos encaracolados de carapinha ao vento. Tinha um Talbot Samba descapotável e o Jordão gramava o ar livre. Foi de cana uns anos e quando saiu fui buscá-lo para rodarmos pelo asfalto até gastar o petróleo. A polícia volta e meia entrava por ali adentro a distribuir cacetada. Era a forma de educação. Rusgas, porrada e insultos. Pedagogia fascista. Afinal, era um bairro de bardamerdas. A palavra bardamerdas ouvi-a da boca de um policial com cara de cu à paisana. Tal como “cambada de merdas”. Ia dar ao mesmo. Quem não se metia nas drogas, na compra e consumo ou na venda, ia jogar à bola ou para o boxe. A nobre arte salvou e salva muitos da raiva incontida. Querem um exemplo actual? O Paulo Seco, da Quinta do Loureiro. Vou lá, e ninguém me faz mal. Sou recebido como um do bairro. Sabem o que leva à revolta dos excluídos? Haver poltronas de políticos a incitar a matança dos desalinhados. Aqueles que atiram para os guetos e escravizam com salários africanos. Aqueles que são párias para eliminar.

    GRITA LIBERDADE I Quando nasci, enquanto a minha mãe chamava putas às parteiras eu gritava o meu primeiro tropo de indignação. Ou talvez berrasse por me terem roubado o aconchego uterino, a piscina morna da placenta. Os males da garganta, nos adultos, advêm de protestos contidos. Não se trata de dizer tudo como os malucos, mas de exercer a comunicação assertiva. Há que desembuchar os pedaços entalados. De preferência cara a cara com os provocadores das moléstias, no lugar de guardar as aflições no buraco escuro e cinzento do crânio. Tal serve de igual modo para declarar o amor a quem se ama sem reservas tímidas ou receios de rejeição. As cordas vocais são artérias de liberdade.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

    As ilustrações foram elaboradas com recurso a inteligência artificial.

  • Tuks

    Tuks


    Na véspera de eleições, para satisfazer os munícipes dos bairros históricos, arreliados com os enxames de tuks e afins, Dom Moedas ordenou mais uma leva de interdições à circulação de ruas cruciais para a execução do serviço de embaixada cultural. Bem feito, é disto que se trata.

    Como moeda de troca aumentou o número de lugares de estacionamento autorizado e ordenou a vigilância sistemática de quem se posiciona indevidamente em segunda, terceira ou sexta fila. Tá certo.

    Foto: D.R.

    Quanto ao escrutínio de competências bastaria certificar obrigatoriamente quem presta tal serviço, no lugar de ser uma opção aleatória. Queres ser guia? Tens paixão por contar histórias? Sabes línguas estrangeiras? Articulas sujeitos, predicados e complementos directos sem engasgos? És empático e simpático? Então estuda e obtém aproveitamento. Não um cursozeco qualquer, mas uma licenciatura ou no mínimo um bacharelato. Depois, como em qualquer lugar organizado e civilizado, haverá quem igualmente certificado se incumba de verificar a certidão profissional. Quem não o tenha, ala.

    De outro modo, tal como é há 14 anos, e continuará a ser, qualquer atrevido se fará ao piso. Estou a fazer um curso de 76 horas no Turismo de Portugal para ver o que se ensina e quem o faz. Os formadores sabem da fruta. Interessam-me em particular os módulos com as polícias.

    Dom Moedas destacou um batalhão tipo SWAT para dar caça aos tuks. Para reforçar o acto musculado, o edil juntou a famigerada EMEL, onde desagua todo aquele que não tem capacidade para mais nada a não ser dar ao dedo e apertar bloqueadores. Alguns são armários das artes marciais e do MMA, para intimidar o condutor.

    Foto: D.R.

    No lugar de ir à raiz da questão — como é possível haver uma actividade económica sem controle de facturação —, não, ataca-se com os gendarmes.

    A AT, se quisesse, apertaria os calos aos enriquecimentos ilícitos. Tem uma arma digna de um criminoso: os métodos indirectos de correção fiscal, além das penhoras e execuções. Isto não sucede, e mesmo quem foi alvo de inspeções e processos de fraude e evasão fiscal, goza com recurso ao móbil de nada ter em seu nome (recorre a família e amigos) ou se tem, ninguém lhes pergunta como obteve o capital para aumentar o património. Não lhes fodem a vida. Talvez até os corrompam.

    Há uma ou outra empresa que trabalha com marcações através de sites e plataformas e lá vai pagando, mesmo que empregue sem grande respeito pelo trabalhador, nomeadamente no vínculo que o une à empresa. A maioria é tarefeiro ou trabalha por conta própria e risco.

    Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa. / Foto: D.R.

    Outra forma de asseio seria determinar quantos veículos cabem sem estorvar. Já agora, estabelecer critérios de ordem nas filas e preços fixos. No dia em que se fizer um documentário, ensaio ou investigação séria, este ramo cairá de maduro. Mas isso será no dia de S. Nunca à Tarde. Até lá, será o que sempre foi: a selva, lugar do mais forte e adaptado. Até lá, assiste-se ao espectáculo do mundo. Da sobrevivência a quanto obrigas.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

  • Notas do diário

    Notas do diário


    CERTIFICADOS I Todo o trabalho tem o seu saber. A certificação de um ofício (e o estudo com aproveitamento) é uma forma de arrumo. Se não houver batota, de separar o trigo do joio. Ora, exerci o ofício de jornalista entre 1991 e 2016 sem nenhum diploma, por tal não ser imperativo, letra de lei.

    Fiz o tirocínio com mestres (sem cursos de Jornalismo) e vali-me de uma vontade e à-vontade de contar histórias que me acompanham desde menino e moço. De então para cá sustento-me a guiar montadas e a pé a fazer o que sempre fiz: contar histórias. O critério é idêntico: seriedade e atenção plena ao interlocutor. Escrever livros é mais do mesmo. Podia ter cursado Letras ou Turismo. Poderei ser forçado a tal se assim me for exigido, tal como um dia tirei a certificação de técnico de exercício físico e uma especialidade em boxe, estas obrigatórias por lei para ser remunerado na actividade de PT.

    Não me encanitam os auto-didactas. Só me dá espasmos no esófago a concorrência desleal, a patranha, o cinismo do bom “colega” ou a exclusão boçal de quem dá o litro por fazer bem o Bem, que é justificar o valor recebido pelo serviço. Vale o raciocínio para os clientes, que sejam gratos pela dedicação ao que lhes é servido de bandeja.

    MIGRANTES I Lido todos os santos e profanos dias com migrantes. Ou melhor, imigrantes, pois são oriundos de lugares fora do burgo lusitano. No ramo dos tuks há marroquinos, argentinos, argelinos, bangladeshis, paquistaneses, indianos, brasileiros, angolanos, guineenses, cabo-verdianos, espanhóis de várias procedências, franceses e até um dissidente da América de Trump. Deve haver mais, mas não os contei. Também há famílias inteiras de ciganos no activo, sendo este um ramo da mercância de rua onde têm atávica experiência. Este melting pot dá um colorido ao já de si garrido andar das “carruagens”. O que leva os emigrantes a instalarem-se, dito por todos à uma, são os euros. E uma certa paz lusitana.

    No ramo paralelo dos carteiristas é esta mesma paz mansa que atrai. Afinal são detidos mas quase nunca deportados. Portugal acolhe e ao acolher sem crivo, encolhe. Aposto o dedo mindinho esquerdo em como no ramo dos tuks nem dez por cento dos habibis estudam a língua nativa, a História (onde também pulularam califas) e se convertem como apaixonados camonianos. Os camones e as suas carteiras aliviadas são o cânone. Pespegar um dichote qualquer e siga a Marinha. Ligar a estereofonia, o luzeiro e adejar as flores artificiais em troca de verdinhas. E ala pois Alá é grande. Por outro lado, deve ser tão mau o panorama de onde vêm que se sujeitam à diáspora. Um ou outro já emborca pastéis de bacalhau, bojecas e não arrota. Só postas de pescada, mas essas são toleradas porque o turista é pouco exigente e acha graça a passear por Lisboa como se andasse na Tailândia.

    OS DONOS DISTO TUDO I Quem manda no burgo? Vamos lá ver: Há o Estado e as suas instituições, corporações e companhias limitadas. Dado o passivo, o Estado obedece à UE, e aí mandam a Alemanha e a França. Costa late para a caravana passar. Voltemos ao burgo: Opus Dei, Maçonaria, Igreja, as sete famílias do grande capital e os seus contributos partidários. Os penetras novos ricos também ditam regras ao açambarcar o seu quinhão.

    A CS obedece ao Capital. Há que a comprar. Há as polícias e exércitos, a soldo e mando do Estado e das suas governações. Depois, há as ilusões dos outros mafiosos de que ao terem negócios obscuros e amealharem os seus milhões (lavados ou deslavados) mandam através da lei da bala e do suborno. Plata ou plombo. Há umas aves raras, Agostinhos da Silva e Joãos Césares, e um punhado de lúcidos insubmisos, que mandam sem mandar. Nem que seja pó caralho. A “melhor” forma de exercer e aplicar o poder é manter na ignorância, subjugar pela pobreza, esconder as verdades às marionetas e alimentá-las com circo e patranhas.

    PRÉ CAMPANHA I Estamos naquele impasse de venha o Diabo e escolha. Negar a existência do Mal, é imoral. Quanto ao Bem, entende-se o dar a mão à família e aos amigos. Que se o faça na Política é humano, mas não deixa de ser desfaçatez e abuso de poder. Entre a Camorra e qualquer organização mafiosa e os clubes, seitas e partidos a diferença está no método. Mata-se na mesma, se o inimigo faz dano. Recorre-se ao jogo sujo, à exposição de toda a sorte de actos e factos, com recurso à mentira, à coacção e agora à IA, esse recurso de cariz gótico. Valha-nos Deus se mais nada valer.

    POLÍTICOS I Hannah Arendt escreveu um ensaio sobre A Política e a Mentira. Como acreditar na política e em políticos? Ver para crer é um bom princípio. O que devia ser uma arte nobre é um lodaçal de falta de seriedade. A ideologia é de somenos (cada um vota e come o que gosta). Grave, gravíssimo, é o impacto da política na vida real e a dificuldade em encontrar bons políticos e políticos bons neste burgo mal frequentado. Um mau carácter pode ser um bom político, mas só para quem nele se filia, dele tira partido e lhe lambe as botas. O voto é o remédio da Democracia. É rara a Democracia que não redunde numa oligarquia. Tal como nenhuma Ditadura é boa. Que fazer? Estudar, estudar os programas, estudar os políticos, escrutinar e dar o voto em consciência. Mesmo em branco, o voto é relevante. Venham as eleições.

    COMUNS MORTAIS I No geral acho que sou um tipo porreiro. Por vezes, a roçar o ingénuo. Se me pisam os calos sou capaz de dizer qualquer coisa na justa medida do ataque. Porém, aceito criticas bem urdidas. Isto, a propósito de sacralizar os artistas. Exemplos comuns entre nós são as azias, as purgas e o comunismo do Nobel Saramago, que limpou o DN e as dedicatórias nos livros à esposa Isabel. Ou o cinismo e crueldades de Agustina. A arrogância de Lobo Antunes e de outros quinhentos. Os pavões e pavoas.

    A distinção entre o homem e a obra é um tema de peso. Neruda e a rejeição da filha macrocefala. Picasso, o misógino. Pelé, o promíscuo. Maradona, o drogado impostor e putanheiro. Celine e o anti-semitismo. Em todos os artistas há paradoxos, egos hipertrofiados e indomados, sobressaltos, causas por vezes radicais e injustas. O desgosto pode ser um laboratório para o mal. Virgínia dizia que não trocava um bom coração por uma cabeça dotada mas retorcida. Ou como dizia o tio do Peter Parker, com grandes poderes vêm grandes responsabilidades.

    CONTEÚDOS I Cada um de nós é uma consequência de aspectos, do mapa astral ao lugar (família, país) onde nasceu. Há aspectos marcantes como desaguar onde haja livros e o gosto por ler e dialogar. No meu caso uma avó professora e um pai alfarrabista.

    A minha avó era franciscana e purista com a expressão da linguagem. O meu maior orgulho era escrever redacções sem erros. A avó oferecia-me um docinho quando a redacção vinha limpinha. Fiquei como o cão de Pavlov. A salivar depois de dar ao gatilho. O meu pai já leu milhares de livros e tem o condão da filosofia. Quando falamos do rescaldo dos jogos de futebol é de xadrez e da arte da guerra que se trata. Um sistema de crenças deve ser revisto e rebatido. Embora defenda os Acratas, leio toda a sorte de ideologias, até o Mein Kampf e a cartilha de João de Deus. Há dias estóicos e outros tomado por Epicuro. Ou outros em que harmonizo o dever e o prazer. Ontem vi o filme sobre o George Foreman. O corpo pode ser forte, o coração de leão, mas as vitórias estão na cabeça.

    PAX, PAZ, PÁS I Levo 53 anos e alguns dias nas pernas, ou seja, tempo suficiente para dissertar sobre a paz como uma Miss Mundo. Desde o instante da inseminação na praia da Ursa até escorregar pra fora do loft uterino e ser instalado num par de berços entre a Coronel Marques Leitão e a Leite Vasconcelos conheci a paz da placenta. Talvez. Não sei nem nunca vou saber. Sei do dia em que realizei morar numa casa de possessos e na rua valer a lei do mais forte. O Cabanas, por exemplo, mais velho e mais encorpado, a jogar à bola dava cacetada de três em pipa. O Bernardo um dia espetou-me um soquete assim do nada durante uma jogatina (talvez por não dar tantos toques na chincha). Não reagi. Até porque gostava dele e da sua postura. O Joca, um puto estúpido, cravou-me um x-acto na palma da mão esquerda e quase me deixava deficiente. A ciganada andava sempre à coca dos nossos pertences e de nos aviar. Um dia, num raide, levei uma pedrada num olho. Hoje, dá para rir, eu aos gritos que tinha ficado cego. Durante anos comi mais do que aviei. Não entendia a violência. Em casa, por dá cá aquela palha, levava solhas, socos, carolos, insultos. Na rua, tinha que gramar com caceteiros e larápios.

    Tenho impressão que o trauma de ter partido o nariz num choque brutal me coibiu de pelejas mais acesas. A primeira vez que puxei da culatra foi à saída da catequese, quando um gajo me gozou e por instinto lhe preguei um directo. De tal ordem, que daí em diante passou a ser meu amigo ou coisa parecida. Na adolescência tive umas cegadas. Um dia, uns galfarros apalparam a Célia no comboio e inspirado no Balboa distribuí um arraial. Safei-me pelo inesperado de fazer frente a uma mão cheia de chico-espertos. Na faculdade repetiu-se a cena do conflito. Um idiota, que era o Artur, levou uma bolachada por conta de um rol de provocações. Em casa, levei carolos e insultos até quase à idade adulta. Depois, havia a violência psicológica. A rejeição e o rebaixamento. Imagino ser judeu, preto, cigano ou outra coisa qualquer. Ter ido à guerra. A escrita cedo ocupou o lugar da revolta. Meti-me no boxe para saber bater em caso de. Tudo dava azo a uma certa agressividade. Ser do Sporting, por exemplo. A paz é uma miragem. Depende de como reagimos ou não.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

    N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • Os encarniçados

    Os encarniçados


    O Sol é para todos, mas não o tapemos com uma peneira. O privilégio de estar aqui (a banhos), de charuto na mão esquerda, enquanto o indicador direito vos escreve, é, em boa parte, fruto do meu trabalho. Não os recebo, aos puros, dos meus amigos castristas. Volta e meia recebo um charuto de amigos que sabem ser este o meu prazer mais excelso, a par de celebrar o Amor carnal e espiritual.

    Devo aos genes, a uma avó professora, ao acaso feliz, a amizades do Caminho, a conjugação de valorizar o empenho como forma de obter o justo retorno do que quer que seja e me apaixone. Não nasci em berço de ouro, mas nos verdes anos nunca faltou nada, a não ser a presença afectiva dos meus imberbes pais. Talvez essa carência prematura dite a minha busca de prazeres, como deve haver outra razão qualquer para padecer de uma curiosidade insaciável.

    Tudo me interessa, da vida dos santos ao mais ínfimo detalhe da tola de bandidos. Faço um exercício diário de reflexão ao espelho e escrevo coisas assim:

    ORDEM E PROGRESSO I A demanda e a debanda de brasileiros que se instalam em Portugal afina quase sempre pelo mesmo diapasão: escapar da violência e da corrupção. Os nossos patrícios de língua preferem a Pátria de Cabral à terra amaldiçoada do pau brasil. Juca Chaves determinou que o Brasil não ia para a frente por terem cortado o pau do índio. Os euros também contam na decisão, perante a fraqueza do real. Há brasileiros e brasileiros nesta demanda. Mas a maioria não traz doutoramento, a não ser na universidade da vida. Os crânios do Brasil mais depressa se instalam nos EUA ou na Austrália. Dá pena, um país tão sobredotado pela mãe Natureza ter pais tão medíocres. Não foi por impulso que D. Pedro escolheu o Brasil. Eu, se fosse parido lá, não o trocava. Fazia de Paraty ou da chapada dos Veadeiros a minha eterna morada. Deixava crescer a barba. Lia e escutava Machado de Assis, Clarice, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, Vinícius, Jobim, Chico, João Gilberto, Betânia, Drummond de Andrade, Veríssimo, Amado… amava a minha pátria e agradecia ao Cabral.

    SANTOS I O meu santo padroeiro é o Fernando de Bulhões, arrebanhado pelos italianos de Pádua e santificado como António. Devo-lhe a recuperação de todas as coisas perdidas. Oro com fé e nunca me falha. Só não lhe devo a felicidade conjugal perpétua com uma das três nubentes do meu currículo porque não me deu para lhe pedir o quesito. A felicidade, porém, depende do que faço por ela. Os santos ajudam na curva descendente. Tenho um lema: todos os dias arrancar um sorriso ou gargalhada da consorte. O humor não chegou para lavar e durar noutros enlaces porque não tinha que ser mais do que foi. Santo é quem abdica das suas paixões e dá a vida por uma causa ou causas. Sem lixar o próximo. O santo é por natureza um milagreiro. É um milagre ainda haver santos.

    BANDIDOS I Eu gosto de bandidos que são bandidos porque há bandidos eleitos e venerados. Esses bandidos que são bandidos à margem das leis feitas por bandidos não aceitam que os tomem por lacaios e por parvos. Dillinger, Pancho Vila, Ernesto Guevara, Zapata, Makhno. Alguns a quem chamam de bandidos e assassinos são guerrilheiros imbuídos de ideais elevados que busca(ram) um mundo melhor, livre de bandidos como Nixon, Fulgêncio, Trump ou assim. Pinto da Costa foi um bandido e se eu fosse do FCP admirava-o. Teria um altar no WC. Faria parte da milícia pretoriana. Estou a exagerar. Mas gostaria dele. Há, houve e haverá bandidos em todos os lados, clubes, religiões, seitas, empresas. À solta, odiados e venerados. Para algumas mulheres eu sou um bandido arranca-corações. Onde é que isso já vai… Mas se calhar é por dizer estas coisas.

    PROFECIAS I Os açorianos riem-se da cagufa dos alfacinhas quando a terra treme. Habituados a viver debaixo de provações e abalos, um sismo moderado, um vinho entornado, não é nada. Ontem, estava eu no mictório, quando se deu a sacudidela de 4.7 ou 4.2. para bater certo com a falsa notícia de que pela última vez o pintinho assustava os mouros de Lisboa. Não precisei de sacudir as miudezas. Foi divertido. Mais tarde ouvi o Moedas e o noticiário da quase catástrofe. Tal como o analista sismólogo a classificar o fenómeno de “interessante” e estabelecer um paralelo curioso com outros paradeiros sacudidos como Santorini fruto de partilharmos o globo terrestre. De facto, na partilha é que está o ganho. Se deixassem de haver competições e troféus na esfera terrestre como seria? Um tédio, certamente, para quem aprecia a agitação.

    Estas pequenas coisas levam-me a pensar que sou um privilegiado. Nada me é dado de bandeja. Nem estas crónicas são feitas em troca de pilim. Recebo em géneros. É o meu género. Os encarniçados, descontentes, que só espumam e lamuriam, entediam-me.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

    N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • Praça da Figueira

    Praça da Figueira


    A contingência da necessidade levou-me ao ofício de animador turístico. Vulgo condutor de animação turística, driver, guia ou, se for mais ousado, embaixador cultural. O romantismo ingénuo e a falta de cuidado na observação do contrato de casamento levaram-me tudo de material (até os anéis) e assim dei por mim a vender na rua. Mal que veio por bem, pois ter-me-ia passado ao lado esta grande carreira de diplomata.

    Embora licenciado em Relações Internacionais, descurei a candidatura ao corpo diplomático e como Deus escreve direito e nós somos as linhas tortas, desaguei no mais próximo do ofício de honrar a pátria. O p pequeno advém do facto de não se dar um chavo por quem labuta neste serviço. É como ver um pedinte esquálido e sem dentes e só atentar na sua triste figura quando, por vezes, nele habita um génio incompreendido. Há um na Figueira, o senhor Carlos, que declama Gedeão deitado na lage onde dorme, come e sonha com dias melhores. Até escreveu um poema ao Moedas.

    a small orange truck parked in front of a building

    Carlos como eu, és tu, ó Moedas
    Tu dizes que fazes, e fazes
    Mas não são grandes merdas

    A praça que elegi para montar a loja é a da Figueira. Convivo com vendilhões de várias procedências, do Magrebe a terras de Vera Cruz. Marrocos, Argélia, Paquistão, Bangladesh, Índia, Brasil, França, Espanha, Itália… há guias de todas estas procedências. A maioria são tipos esforçados e vão além do aceno do folheto no imperativo de mostrar e contar a cidade. Um ou outro é da variante abrenúncio e só vê cifrões. Pode suceder que este ou esta não mereça o chão que pisa, entre a preguiça de falsear o contado e o descaramento de ludibriar as autoridades.

    Nem a razão da praça se chamar da Figueira são capazes de dizer. É como os vendilhões da Sé, criaturas bíblicas que se engasgam nas rezas. Não me espanta ser por cá que se tenha estabelecido uma actividade como esta, afinal estamos na cidade rainha do comércio. Quem inventou o negócio dos tuks foi um senhor chamado Paulo Oliveira. Um dia, a passear no Chiado no seu Piaggio Apê Calessino, reparou no interesse dos estrangeiros na sua montada e logo mandou vir uma dúzia para explorar o filão. Os outros, macacos de imitação, seguiram-lhe a peugada. Sem espanto, o negócio foi estabelecido e ninguém das autoridades económicas e do Trabalho foi verificar de que se tratava.

    Foto: DR.

    E quando foi já era tarde. Treze anos passados é uma actividade instalada onde aterra toda a sorte de necessitados. Não direi que se façam fortunas, mas posso garantir que só a apanha da amêijoa se equipara no banho à realidade tributária. No meu caso, enriqueci de tal forma que empreguei sem contrato o Nuno o Salazar o Garcia o Sousa e o Gomes. Somos uma empresa familiar. Tributada no altar do altíssimo que é a fonte de inspiração para a escrita de rua. O melhor lugar para se estar.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

  • A princesa Clara

    A princesa Clara


    Nunca vi a Clara Pinto Correia ao vivo e a cores. Não a entrevistei (mas gostava e quem sabe). Soube da existência desta dama das Camélias cruzada de Madame Pompadour nos meus primórdios no Jornalismo. O camarada Rui Barros, meu fornecedor de Literatura, passou-me o ‘Adeus, Princesa’. Li o romance numa noite, como pedem as grandes prosas a arder de emoção e inventiva. Daí para cá, passei a ser omnívoro das coisas da Clara, fosse onde fosse, fosse o que fosse. Gosto dos ecléticos. A Clara faz parte desta família. Quando a acusaram de plágio(s) cheirou-me a esturro. O Jornalismo é prenhe de fait-divers e histórias mal contadas. A defesa da Clara, e a sua retratação pública destemida, seriam argumentos suficientes para a poupar ao ostracismo e penúria que daí veio. A bruxa fora caçada, para gáudio dos Torquemadas.

    Antes de prosseguir lembro aqui umas quantas histórias pessoais. Comecei a trabalhar no Semanário, aos 19 anos. Na altura, propus à direcção do jornal um artigo sobre um cambalacho na Quinta da Marinha que metia uns poderosos. Tinha as provas, os depoimentos, tudo afinado para atacar a prosa e desmascarar o esquema financeiro que recuava ao tempo do fogo posto nas matas à beira do Guincho. As chefias tomaram o assunto por delicado e declinaram a publicação. Aliás, recomendaram-me o silêncio. Teimoso, e sem exclusividade que me impedisse de escrever e publicar fosse onde fosse, bati o texto na Remington do meu avô Vítor Garcia e levei o artigo ao O Jornal, onde esperava melhor recepção, mais ousada.

    Calhou ir à fala com o Rogério Rodrigues, figura por quem tinha apreço e tomava por imune à desonestidade intelectual. Leu a prosa à minha frente, de olhos arregalados, e perguntou se tinha sido mesmo eu a escrevê-la. Era matéria de peso. Disse-me então para lhe dar uns dias que ia pegar no assunto e dar-me-ia notícias. Insisti que se era para ser, era então, antes do assunto vir à baila e “nos” passarem a perna. O “nos” vinha de um sentido ingénuo de camaradagem. Na semana seguinte comprei O Jornal e lá estava, a minha prosa, com ligeiros retoques, assinada pelo Rogério. Fiquei estarrecido e a única coisa que me ocorreu foi ir à redacção chamar-lhe de pulha. Que dizer de uma apropriação deste calibre? Ainda no tempo dos faxes, deveria ter enviado o artigo por forma a provar a minha autoria. Mas não. Entreguei o original em mão, à confiança no camarada.

    Tive outra destas com o senhor E., meu editor no Semanário, que me pediu um retrato do amigo Vasco de Castro. Lá fui, a minhas expensas, a Fontanelas. Desta feita, antes de entregar a prosa, mostrei-a de antemão ao Vasco, que me devolveu uma carta a dizer “um jovem tão verde com prosa já tão vermelha”. Ficou uma amizade para a vida. Quanto ao artigo, saiu assinado pelo senhor E. Desta vez fui atrás dele para o encher de porrada. E só não o fiz porque se raspou de véspera para Cuba. Fiz queixa em vão no Sindicato. Acabei por virar a página sem pugilato. Deixei passar vinte anos ate voltar a dar-me com a figura e, tal como nos assuntos familiares aziagos, optei por esquecer o dito.

    Falo aqui destas incidências da vida porque nunca fiz tal coisa. Aliás, de mim só podem dizer que quero é que se fodam estes e outros, tomados por tibieza de carácter. Querem outra? Trabalhava então na Capital, do tio Balsemão. Digo tio porque o conheci na minha vida passada de betinho de Cascais. Betinho radical. Aliás, só não me estreei no Expresso porque o tio tinha mais do que fazer do que andar a interceder por mim. Verdade seja dita que ainda me remeteu para a directora de recursos do Expresso, uma senhora que estava sempre de baixa, e, farto de levar tampas, acabei por bater à porta do Semanário com uma carta do professor Dr. Adelino Alves, que julgava ser de recomendação para estafeta, mas afinal era para ser acolhido por estagiário.

    Mas voltemos à Capital. Um dia, o senhor P. destacou-me para entrevistar uma alta patente da PSP. Fiz o serviço, entreguei as laudas e deparo-me com espanto ter sido alterada no artigo publicado a patente do homem, para uns degraus abaixo. Crime de Lesa-Majestade. Toca de receber um telefonema da bófia a descompor o reles escriba. Ora, o reles escriba, já tinha passado por umas quantas e guardara o original. Levei a prova à Exª Sra. Helena Sanches Osório que arrumou o quiproquó, evitando o meu despedimento por justa causa de ofensa à intendência do reino. Acabei por sair daquele viveiro de invertebrados da Capital pelo meu próprio pé e nem a estima pela directora me fez vacilar.

    Voltemos ao Semanário dos meus 19 anos, ainda trabalhador-estudante. Chegada a hora dos exames de final de ano lectivo na Universidade, pedi uma licença sem vencimento, fruto do meu direito e do vínculo que tinha ao jornal por contrato assinado. Para minha surpresa, ao regressar dos exames, tinha sido dispensado e nem uma das minhas canetas sobrara na secretária, entretanto ocupada por outro estagiário. Resolvi levar os tratantes ingratos a Tribunal. Na barra, os senhores, meu chefe de redacção e director, mentiram com todos os dentes ao dizer que eu era um mero colaborador pontual e irregular.

    Dez meses de palmadinhas nas costas, idas ao SNOB e louvores ao puto talentoso que publicava aos dois e três artigos por semana (alguns deles manchetes), redundaram num perjúrio descarado, que o meu defensor não soube contornar porque o contrato tinha desaparecido. Mais uma vez, o totó do Salazar, não guardara uma cópia. Não bastaram as provas de vencimentos pagos a termo certo, a avença, outra galga, porque se fosse colaborador pontual não receberia um vencimento nem uma avença, quanto muito uns patacos dos artigos publicados.

    Foto: PÁGINA UM

    [Nunca contei isto em público, e mesmo em privado, evitei ao máximo andar a remexer na trampa. O Jornalismo para mim só não feneceu porque há o PÁGINA UM. Pode ser que no rescaldo de outra revolução (ou de uma Revolução em casa alta) volte a haver desse Jornalismo em que acreditei e a quem dei três décadas da minha existência. Mas se voltar, que volte livre destes sujeitos. O mais certo é ser no dia de S. Nunca à tarde.]

    Volto à Clara que terá destas e doutras para contar. É claro que a Clara, como todos os que caem em desgraça, deixou de ser fiável. É como um adúltero. Uma vez adúltero, adúltero para sempre. Ou um larápio de maior ou menor envergadura. Faz a fama e deita-te na cama. Para os conservadores do burgo, a Clara é a gaja dos plágios e dos orgasmos porventura fingidos. Build yourself a reputation. A Clara a quem os revisionistas acusam, sem ler mais do que as infâmias em sua honra, de ser uma fraude de alto abaixo e de cara a rabo. Não há período de nojo que lhe(s) valha, nem a confissão e a decorrente absolvição dos seus actos, sejam eles de facto, manietados ou inventados como na melhor ficção.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

  • Memórias de Adriano

    Memórias de Adriano


    Há uma penada de anos conheci um mestre-de-obras romeno, o Adriano. Naqueles meses a revirar-me a casa do avesso, a picar, estocar, pintar, derrubar e levantar paredes, abrir rossos, fazer argamassa, barrar cimento, instalar cabos, acartar baldes, afagar, polir e instalar as traquitanas, descobri uma inusitada faceta do mestre Adriano.

    Certo dia, ao subir a escada para ver o andamento da obra, ouvi os trinados de uma guitarra e o Ai Mouraria cantado com voz roufenha. Entrei, pé ante pé, e lá estava o mestre Adriano, sentado num par de tijolos, de olhos semicerrados, a dar no fado como um fadista de Alfama. Quando me viu, à falta de melhor desculpa, esticou a mão para me passar uma bucha de torresmos. Enquanto os trolhas, três eslavos e um cearense, se deliciavam nas bifanas,  a ouvir o mestre, limitei-me a dizer-lhe, prossiga. Nesse dia fiquei a saber que tinha em casa, além de um trolha, um fadista, que passei a frequentar, entre pincéis, martelos e ferramenta.

    Quis saber de onde lhe tinha brotado a paixão por coisa tão portuguesa. Era daí que lhe vinha o dedilhar e o canto, do território da paixão. Contou-me, no seu português de quem rodara por bairros populares, que trinta anos antes embalara a trouxa e zarpara de Bucareste, depois de ouvir Amália Rodrigues cantar na rádio. Foi, disse-me, como se Deus o tivesse chamado à terra onde só podia ter nascido tal melodia. Entre ouvir Amália e abalar passaram menos de cinco dias.

    Adriano nada sabia de Portugal ou da diva. Na Roménia tocava viola de ouvido, as canções dos Beatles, The Who, dos Led Zeppelin. Ao chegar a Lisboa, a primeira coisa que fez, antes de se instalar na pensão Girassol, foi ir aos fados. Entre uns biscates e aperfeiçoar a arte do estuque, passou a ser assíduo do Luso, da Parreirinha, da Tasca do Chico. De então para cá, ouviu e bebeu de tudo e de todos, até eleger Joel Pina para o altar do seu panteão. Nada lhe passou ao lado. A todos acolheu, de todos aprendeu, a ouvir e a ver, todos os que pôde. De Beatriz da Conceição a Marceneiro, de Carlos do Carmo a Argentina Santos. Era um fadista e não sabia.

    Tenho admiração por quem sente o que é dos outros como seu, todo aquele que torna o estrangeiro a sua morada. Não apenas por razões que o bolso conhece, mas por emoções desconhecidas. Gente que desce às profundas de genes tomados por adopção. Desde o meu achado na obra da Rua Correia Teles, passei a ir ouvir o mestre Adriano às tascas do fado, onde acompanha fadistas de todos os quilates, de aspirantes a veteranos. Pedem-lhe um dó maior e ele dá tudo de si. Alguns, creio, não saberão estar ali um romeno que largou a sua terra  por causa do fado. Adrián e não Adriano. Não darão conta pela sua fala sem sotaque ou por ser tão raro meter galgas como é próprio do mais virtuoso. E se as mete, logo as disfarça como fazem os indígenas do ofício, sem dar parte fraca.

    city landscape photography during daytime

    Adriano diz caralhadas com o deleite de um gimbra. Tal como sabe de cor e salteado as deixas e os intervalos de dar ou não dar as notas. Ou quem foram o Pacheco, o Pina, o Paredes, as guitarras do Grácio, as madeiras, os seus veios, nervuras e as suas minudências de onde só uma alma unida a outra pode tirar os sons mais límpidos.

    Quando um estrangeiro se instala num país por motivos de uma força maior, fazendo da terra que o adopta a sua pátria sentimental, aí está o significado de um mundo sem fronteiras. Nós demos-lhe o fado, ele devolve-nos a dádiva como se fosse nascido no seu caldeirão. Limpinho.

    Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)


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