Como muitíssimos brasileiros mal informados, estava eu tranquilo a assistir televisão – uma pacata e sangrenta partida do enlameado rúgbi inglês – quando uma nota no telefone celular me informou que uma baderna em verde e amarelo estava destroçando instalações do Palácio do Planalto (sede do Poder Executivo), do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.
Porquê mal informado?
Porque no dia anterior as águas turvas chamadas redes sociais – nas quais não navego – já haviam antecipando a possibilidade desses atos de pirataria política.
Busquei o socorro de um ditado popular para tentar começar a explicar a um amigo português, Pedro Almeida Vieira, a minha visão – perfunctória e apressada – do acontecimento:
– Arrombada a porta da casa, coloca-se o cadeado.
[N.D. Os adágios na língua de Camões têm distintas versões de um lado e do outro do Atlântico; em português europeu dizemos simplesmente “casa arrombada, trancas à porta”]
Vamos aos fatos.
Pouco horas depois da arruaça vandálica, o governador de Brasília, Ibaneis Rocha, demitiu seu Secretário de Segurança, Anderson Torres, que há poucos dias era – vejam só! – o ministro da Justiça de Jair Bolsonaro.
Onde estava Anderson em dia tão movimentado? Nos Estados Unidos, na Flórida, onde, por acaso (será?) se encontra exilado por vontade própria o ex-presidente.
Em Anderson foi posto o primeiro cadeado.
Horas mais tarde, o ministro Alexandre de Moraes, o mais temido do Supremo Tribunal Federal, afastou, por noventa dias, o próprio governador.
Segundo cadeado posto.
Ora, a tomada e destruição dos prédios mais simbólicos da democracia brasileira certamente não se restringirá a esses dois cadeados. Exigirá outros. Mas quem os colocará? E em quem?
Isso é o que veremos nos próximos capítulos da novela televisionada que teve início ontem.
Para irmos mais além dos furibundos editorais da imprensa e dos sempre inflamados discursos dos políticos, que pedem cabeças e mais cabeças, seria interessante darmos um passeio pelas esquisitices da administração pública brasileira, esquisitices que seguramente contribuíram para o descalabro de 8 de janeiro.
O Brasil é constituído por 26 Estados e um Distrito Federal (onde fica Brasília, claro). Tem um Estado que é mais populoso que muitos países: São Paulo, com seus 45 milhões de habitantes. E tem Estados com menos de um milhão de habitantes. Todos eles contam com forças policiais fardadas e armadas: as Polícias Militares.
O Distrito Federal, como diz o nome, deveria ser um distrito, ou seja, uma unidade administrativa dependente de autoridade maior. Além da capital federal, também conhecida como Plano Piloto, o Distrito Federal conta com uma dezena de povoações menores, chamadas cidades-satélites.
Criado em 1960, o Distrito Federal tem hoje 3,5 milhões de habitantes. Até 1988 era chefiado por alguém indicado pelo Presidente da República. Mas, no auge de euforia democrática da Constituinte de 1988, recebeu o direito de escolher pelo voto seu governador, três senadores, oito deputados federais e vinte e um deputados locais (chamados distritais).
Agora, simultaneamente à carnificina que foi a última eleição presidencial, o Distrito Federal reelegeu governador um simpatizante do Governo Bolsonaro: o advogado Ibaneis Rocha.
Então o paradoxo que temos hoje é: um aliado (ou ex-aliado, nunca se sabe porque os políticos brasileiros mudam facilmente de posição) de Bolsonaro no comando da cidade onde ficam as sedes das embaixadas e os prédios dos três poderes, entre os quais está o palácio de despachos do presidente Lula.
Embora tenha obtido a liberdade de escolher seus políticos, o Distrito Federal continuou recebendo verbas federais para pagar suas forças policiais e os funcionários do sistema de saúde e educação (primeiro e segundo graus). Ou seja, continuou distrito.
Ibaneis Rocha, governador do Distrito Federal (Brasília)
Essa baderna, arruaça, barbárie ou mesmo tentativa de golpe – embora anunciada pelas estrondosas trombetas das redes sociais – não foi contida pela força oficialmente encarregada de impedi-la: a Polícia Militar do Distrito Federal. Daí as punições às autoridades de Brasília.
Ocorre, porém, que o Governo Federal tem seus próprios mecanismos de vigilância: as poderosas Polícia Federal e Agência Brasileira de Informação (Abin), e mais os sistemas de informação das forças armadas que, em tese, todos eles, deveriam estar alertas para a eclosão de um atentado predatório de tais dimensões.
Foi mesmo uma tentativa de golpe?
Muita gente acha que sim. Mas as perguntas são muitas. Os que invadiram os palácios estavam à espera de alguém que viesse assumir a cabeça do complô? Quem seria esse alguém? Por que se retiraram sem resistência dos prédios públicos se eram tão numerosos?
Destruídos os palácios, chega o momento de descobrir quem financiou a vinda de tanta gente à capital (fala-se em quatro mil pessoas, transportadas em cem ônibus, centenas delas já presas). Quem são e quantos são?
Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Jair Bolsonaro (ao lado), é o Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal. Fez entretanto um pronunciamento sobre os acontecimentos de ontem.
Nas redes sociais há milhares de rostos exibidos em retratos tirados dentro dos edifícios invadidos. Serão todos acusados?
Cabe ainda uma pergunta indigesta: haverá punidos dentro do próprio governo federal que, a rigor, estava no comando da nave chamada Brasil fazia uma semana?
Enfim, só nos resta esperar que agora as autoridades brasileiras, que tanto falharam, se mostrem à altura de enfrentar esse novo desafio, que é esclarecer como, num certo domingo sem futebol, o país ganhou negativamente as manchetes de todo o Mundo.
E profetizar, como o faria um iracundo editorialista de um jornal do século XIX: “Faltarão cadeados!”
Lourenço Cazarré vive em Brasília e é jornalista e escritor, sendo autor, entre outros, dos romances Kzar Alexander, o louco de Pelotas e A longa migração do temível tubarão branco
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
[Este texto foi publicado, como capítulo no livro Assim se pariu o Brasil, sob o título “Um reino a quatro mãos”, editado originalmente naquele país em 2015 pela editora brasileira Sextante. Manteve-se a grafia da edição original, em português do Brasil, num trabalho conjunto do autor com Bruno Anselmi Matangrano. Esta obra conheceu uma edição em Portugal pela Saída de Emergência, em 2016, e outra na Itália pela editora Mimesis, em 2020.]
O Brasil, como hoje o conhecemos, não devia existir. Ou melhor dizendo, é um milagre possuir um território de mais de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, figurando como o quinto maior país mundial. Na verdade, os ventos separatistas que percorreram a América Latina no século XIX deveriam ter feito com os domínios portugueses aquilo que aconteceu com as antigas possessões espanholas: um desmembramento em várias nações. Se assim tivesse acontecido, talvez houvesse agora uma nação chamada Brasil, mas de menor dimensão, rodeada de outros países lusófonos. E, pelo meio, muitas cruzes marcando sepulturas, porque infelizmente quase todas as independências são pagas com sangue.
Embora se trate sempre de um exercício especulativo, pois jamais será possível ter certeza do que se passaria se as circunstâncias e personagens de um determinado momento da História não tivessem se “encontrado”, o Brasil dificilmente seria uma nação unificada e federativa se não fossem dois homens que lá estiveram: o rei português D. João VI e seu filho, o primeiro imperador, D. Pedro I. E também indiretamente por causa de um terceiro homem que nunca lá pôs os pés: Napoleão Bonaparte.
Texto publicado no livro Assim se pariu o Brasil, mantendo a grafia da edição original em português do Brasil.
Com efeito, a retirada estratégica de D. João VI para o Brasil, no final de 1807, no momento da invasão das tropas napoleônicas em Portugal, permitiu não apenas evitar a perda da independência lusitana – porque assim seu soberano não pôde ser deposto – como involuntariamente uniu ainda mais o território brasileiro.
Por outro lado, optando por manter a velha aliança com a Inglaterra, em vez de se subjugar aos caprichos de Napoleão, o rei português esquivou-se também da má sorte de seus pares da Espanha, com graves consequências para esta nação, quer na Europa quer em suas colônias americanas.
De fato, Carlos IV da Espanha foi ingênuo quando assinou com a França o Tratado de Fontainebleau, em outubro de 1807. Pensava que, aliando-se a Napoleão, ficaria mesmo com parte do território português e com um bom quinhão de suas colônias[1]. Não menos surpreendente foi o fato de que o rei espanhol pretendia invadir o reino vizinho onde o regente, D. João VI, casara-se com sua filha, D. Carlota Joaquina.
O feitiço virou contra o feiticeiro. Em março do ano seguinte, o rei castelhano foi obrigado a abdicar em favor de seu filho Fernando VII, em uma revolta conhecida como Motim de Aranjuez, que causaria também a queda de Manuel Godoy. Dois meses depois, foi a vez de Fernando VII ser preso por Napoleão em Bayona. A Espanha ficou assim sob domínio francês – sendo nomeado como rei-fantoche o irmão do próprio Napoleão, com o título de José I. Somente em 11 de dezembro de 1813, a Espanha se livraria na Europa do jugo francês, através de duras batalhas contra seu traiçoeiro aliado.
Porém, o mal já estava feito na Espanha. Durante os seis anos de guerra interna estima-se que morreram entre 215 mil e 375 mil pessoas, às quais se somam mais algumas centenas de milhares em resultado da fome e de epidemias. Sem esquecer a destruição econômica e a redução da capacidade militar. Ou seja, a Espanha ficou na bancarrota, precipitando a perda do controle de seus domínios ancestrais na América do Sul. E não em um só bloco, mas se desmembrando em pedaços.
Embora as primeiras insurreições na América espanhola tenham se iniciado, mas em pequenos focos, ainda em 1806 – no mesmo período em que a Inglaterra tentou invadir, sem sucesso, os territórios do Rio da Prata, na atual Argentina –, a ruína começou apenas durante o reinado espanhol do irmão de Napoleão. Primeiro, perdeu a Venezuela, pouco depois várias regiões na costa do Pacífico – que formariam, em um primeiro momento, a chamada Grã-Colômbia –, seguiram então as Províncias Unidas do Rio da Prata, o Paraguai, o Império Mexicano e muitas outras regiões.
Esta desagregação evoluiu depois para novas divisões. Simón Bolívar, o chamado Libertador da América, ainda tentou concretizar seu sonho de criar, na América hispânica, uma solução federativa similar aos Estados Unidos na América do Norte. Mas nunca conseguiu. Atualmente, os territórios americanos que a Espanha dominou até o início do século XIX estão distribuídos em mais de duas dezenas de países. Ao contrário disso, os domínios portugueses originaram apenas o Brasil, com uma estrutura federativa e territorial quase similar ao período colonial.
Não foi obra do acaso, este distinto desfecho. A razão é simples: quando as convulsões nas colônias espanholas iniciaram, o Brasil já não era uma colônia portuguesa; era Portugal, de fato, pois D. João VI e a família real nele viviam. E não estavam só de passagem. Tanto que, quando o principal motivo para sua saída de Portugal – as invasões napoleônicas – deixou de existir, nunca houve pressa para regressar à Europa. Aliás, embora nunca o manifestasse abertamente, D. João VI sentia-se melhor sendo rei no Brasil do que em Portugal, o que é compreensível; o território sul-americano era quase cem vezes maior do que o minúsculo retângulo europeu.
A manutenção de D. João VI na América do Sul também se dava por um motivo de estratégia política, além das belezas do Rio de Janeiro, que obviamente o agradavam bastante. Sua presença no Brasil apaziguava, de forma decisiva, eventuais “contaminações” subversivas vindas do lado espanhol. Uma coisa eram os movimentos separatistas contra um soberano que vivia do outro lado do Atlântico, como se passava nas colônias espanholas – ainda mais diante de um rei-fantoche, como José Bonaparte, irmão de Napoleão –, outra bem diferente era uma revolta acontecer perante um inédito rei presente.
Napoleão Bonaparte
Além disso, olhando para os três séculos anteriores de colonização portuguesa na Terra de Vera Cruz, o Brasil transfigurou-se com a estadia da família real. Para bem melhor. E mais ainda o Rio de Janeiro.
No momento da chegada dos monarcas portugueses, a cidade era, nas palavras do comerciante inglês John Luccock, “o mais imundo dos ajuntamentos de seres humanos debaixo do céu”. Com uma população de 60 mil habitantes, dos quais apenas 20 mil brancos e 15 mil escravos, a cidade era um aglomerado de apenas setenta ruas e algumas vielas, todas pestilentas devido às águas estagnadas e pântanos, e aos despejos generalizados de lixos nas vias públicas. Havia doenças para todo gosto.
Nas palavras do médico Bernardino Gomes, as moléstias mais frequentes eram “sarnas, erisipelas, impingens, bolbos, morfeia [lepra], elefantíase, formigueiro, bico dos pés, edemas de pernas, hidrocele, sarcocele, lombrigas, hérnias, leucorreia, dismenorreia, hemorroidas, dispepsia, vários afectos compulsivos, hepatites e diferentes sortes de febres intermitentes e remitentes”.
A falta de edifícios para acolher milhares de reinóis, muitos dos quais de famílias nobres, impulsionou um crescimento urbano nunca antes visto. Construíram escolas, hospitais e teatros; fundaram a Academia Real Militar e a Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica, estabelecendo uma provedoria da saúde, para controlar as epidemias, e um corpo especial de guardas, para melhorar a segurança pública. E, além de tudo isso, introduziram a tipografia no Brasil, até então proibida. A vida cultural, então inexistente, floresceu para entreter fidalgos e pessoas de posses. O comércio de todo tipo de produtos teve um crescimento ímpar. Em menos de uma década, para tanto serviço, foram trazidos mais de 200 mil escravos.
D. João VI soube também agradar às elites cariocas. Fartou-se de distribuir cargos públicos e outras prebendas e também títulos nobiliárquicos. Até 1821, “criou” vinte e oito marqueses, oito condes, dezesseis viscondes e vinte e um barões – um número impressionante, jamais registrado em toda a História da Monarquia Portuguesa –, alguns destes títulos beneficiando pessoas havia muito radicadas em terras brasileiras e, pelo menos, duas nascidas na colônia: Ana Francisca Maciel da Costa, nomeada baronesa de São Salvador de Campos de Goitacases, e José Egídio Álvares de Almeida, nomeado barão de Santo Amaro. Também não foi por um acaso, nem por fanfarronice, que em dezembro de 1815, o Reino de Portugal e dos Algarves passou a incluir o Brasil com similar estatuto. E mais, com o privilégio de ter o rei em seu seio.
As comunicações terrestres ao longo do Brasil melhoraram extraordinariamente. O Rio de Janeiro tornou-se uma capital nevrálgica, de onde partiam estradas para todas as principais cidades de outras capitanias, como Belém do Pará, numa extensão de mais de 120 léguas, Salvador da Bahia, São Paulo, Vila Rica, Sabará, Vila do Príncipe, Vila Boa de Goiás e tantas outras, tornando-se assim uma alternativa segura e confiável ao transporte marítimo.
Por outro lado, longe de ser um rei autoritário, D. João VI sempre surpreendeu com sua atitude conciliadora e atenciosa. Mesmo quando aportou pela primeira vez no Brasil, em Salvador da Bahia, chegado de uma longa e acidentada travessia atlântica, recebeu em audiência toda a casta de gente, desde agricultores e negociantes até oficiais e padres, inclusive as pessoas mais humildes. Nem sempre era rápido em se decidir, o que por vezes parecia denotar pouca firmeza; mas, porventura, assim procedia por pensar menos naquilo que era melhor para si mesmo.
Também nunca mostrou ser um rei atormentado ou traumatizado por ser o primeiro monarca português a se refugiar fora de seus domínios europeus. Pelo contrário, além da decisão imediata à sua chegada ao Rio de Janeiro de invadir a Guiana Francesa[2],
Partida da Corte Portuguesa para o Brasil,em 1808.
D. João VI soube aproveitar as fragilidades e dificuldades da Coroa espanhola na gestão das colônias americanas. Por via de seu casamento com uma infanta castelhana, D. Carlota Joaquina, filha do deposto Carlos IV, tentou no início da segunda década do século XIX, através de ações diplomáticas, mescladas de atitudes por vezes intimatórias, que as autoridades coloniais da região do Rio da Prata, na atual Argentina, aceitassem a proteção lusitana. Porém, alguns erros estratégicos, bem como certa rebeldia de D. Carlota Joaquina, gorariam a concretização desse plano.
Em todo o caso, D. João VI queria mesmo seu quinhão na região meridional. E apostou assim na região onde Portugal até já tivera um pequeno enclave no meio do território espanhol: Sacramento. De fato, desde meados do século XVII, Portugal tentara ocupar a margem esquerda do Rio da Prata por ser uma área de acesso aos rios Uruguai e Paraná. Embora na margem direita já se localizasse a cidade de Buenos Aires, os espanhóis não tinham considerado a ocupação do outro lado prioritária. Mas como pelo Tratado de Tordesilhas aquele pedaço de terra lhe pertenceria, também não queriam portugueses por lá.
No entanto, quase quatro décadas após a Restauração da Independência, no fim de 1679, o governador da capitania do Rio de Janeiro, Manuel Lobo, foi incumbido de fundar uma fortaleza na margem oposta a Buenos Aires. Na boca do lobo, se assim se pode dizer. Poucos meses após a instalação de um pequeno forte na ilhota de São Gabriel, que deveria constituir o primeiro baluarte para uma posterior ocupação terrestre, o governador de Buenos Aires, José de Garro, enviou um grande contingente naval. Eram centenas de soldados espanhóis auxiliados por três mil índios guaranis.
Perante o fraco contingente português, assistiu-se a um massacre naquela passagem de 8 para 9 de agosto, tristemente conhecida como Noite Trágica. “Não se dava quartel aos que se rendiam as armas pelos índios […], a nenhum dos quais perdoou a fúria gentílica”, escreveu Manuel Lobo. Morreram 112 portugueses, a que se seguiu o habitual saque, executado, sobretudo, pelos indígenas. “E não foi pouco, pois todos perdemos tudo”, como se lamentou o malfadado governador português, que veio a morrer, poucos anos mais tarde, ainda prisioneiro em Buenos Aires.
Retrato de D. João VI, pintado por Jean-Baptiste Debret (1817).
Os desejos lusitanos não amainaram, apesar do vexame. Procuraram então a via diplomática. Em 1681, um tratado provisório entre os dois reinos ibéricos acabaria assim concedendo o direito a Portugal de construir naquela região uma cidadela de terra e madeira, com baluarte, fosso e tudo mais. E assim nasceria a colônia de Sacramento.
Porém, os acordos de um dia, se desfaziam no outro. Sobretudo a partir de 1699 e até o final de 1716, os espanhóis arrependeram-se da concessão, atacando por diversas vezes o reduto lusitano.
Com o tratado de Utrecht, Portugal garantiu o direito de permanência naquelas terras, iniciando-se então uma intensa migração de reinóis, sobretudo da província lusitana de Trás-os-Montes. Em 1730 já viviam ali mil famílias portuguesas, dedicando-se principalmente à exploração do gado e ao comércio de couros.
Em todo o caso, embora tenha tentado, Portugal nunca conseguiu estender seus domínios na região cisplatina. Em 1723, ainda fundaram um povoado na atual cidade de Montevidéu, mas um ataque espanhol acabou com os sonhos expansionistas. Em suma, a colônia do Sacramento se manteria como um enclave, sempre sujeita ao mau humor dos castelhanos. Por exemplo, durante dois anos na década de 30, a cidade foi cercada por causa de um conflito diplomático entre as duas monarquias ibéricas.
Porém, independentemente destas indisposições, a anarquia reinava mais do que os reis ibéricos na região cisplatina. O contrabando entre as margens do Rio da Prata era intenso, pois as colônias sul-americanas da Espanha estavam proibidas de importar certos produtos da Europa. A situação era aproveitada pelos portugueses para traficarem com comerciantes de Buenos Aires a troco de prata sem precisarem pagar impostos.
Além disso, os roubos eram constantes. Os jesuítas, que desde o século XVII tinham instalado aldeias naquele trecho, exploravam extensas criações de gado, que, de quando em vez, eram dizimadas por aventureiros para roubar couro e outros produtos animais. Em poucos anos, de acordo com uma reclamação do Padre José de Aguirre, as manadas passaram de quatro milhões de animais para apenas trinta mil. Os padres da Companhia de Jesus ficaram fartos de tanta roubalheira e começaram a dar o troco. Armando os índios guaranis, fizeram diversas incursões e saques em estâncias de muitos aventureiros.
Através da assinatura do Tratado de Madri, em 1750, a colônia de Sacramento deveria ter sido entregue aos espanhóis em troca das terras de Sete Povos das Missões, mas a subsequente Guerra Guaranítica, e o desinteresse do futuro marquês de Pombal em abrir mão do enclave, fez tudo voltar à estaca zero[3]. Ou, melhor dizendo, o jogo de pingue-pongue continuou. Durante os conflitos da Guerra dos Sete Anos, que extravasou para a Península Ibérica em 1762, a Espanha decidiu, e conseguiu, expulsar os portugueses da Cisplatina, tomando ainda uma parte do Rio Grande do Sul e da ilha de Santa Catarina. Um ano mais tarde, com o Tratado de Paris, a colônia do Sacramento regressou à posse dos portugueses. E, finalmente, em 1777, com novo acordo de paz, neste caso de Ildefonso, os espanhóis ganharam a colônia de Sacramento.
Partida da Corte Portuguesa para o Brasil,em 1808.
E era assim que estavam as coisas quando D. João VI chegou ao Brasil. Porém, três anos mais tarde, em 1811, as diversas insurreições na região transplatina obrigaram as autoridades coloniais espanholas a recuar para Montevidéu sob pressão de José Gervasio Artigas, um dos generais das recém-criadas Províncias Unidas do Rio da Prata. No Rio de Janeiro, D. João VI predispôs-se logo a ajudar os castelhanos. Por interesses próprios, diga-se de passagem.
No trono da Espanha sentava-se então o irmão de Napoleão Bonaparte, e a intenção do regente português não era propriamente auxiliá-lo. Queria sim ganhar adeptos na região para o partido de sua mulher, Carlota Joaquina. Como era irmã do rei deposto espanhol, Fernando VII, pretendia Portugal que ela fosse aceita como tutora da Cisplatina, o que significaria sua integração a Portugal.
Formalmente, D. João VI não entrou em guerra contra as tropas de Artigas, nem apoiou diretamente o lado castelhano. Sob orientação do recém-nomeado capitão-general da capitania do Rio Grande do Sul, Diogo de Sousa, o contingente português tinha uma denominação eufemística: Exército de Observação, ou também Exército de Pacificação da Banda Oriental. No entanto, desde cedo e desde sempre mostraram atitudes hostis. Constituídos por diversas legiões de militares e de voluntários paulistas e gaúchos – capitaneadas por Manuel Marques de Sousa, Fonseca e Sá, Joaquim Xavier Curado e Mena Barreto –, os portugueses investiram fortemente em colunas ou ataques esporádicos, logo conquistando muitos bastiões dos homens de Artigas.
Aguarela de Jean-Baptiste Debret retratando as tropas brasileiras que invadiram a Cisplatina em 1816.
Talvez os portugueses tivessem conseguido, com estas investidas, controlar de imediato toda a Cisplatina, se não surgisse, neste meio tempo, um armistício, assinado em outubro de 1811 entre as autoridades espanholas e as Províncias Unidas do Rio da Prata. De qualquer modo, as tropas lusitanas não mostraram interesse em sair da região. Ao contrário, reforçaram os batalhões, que chegaram a atingir mais de cinco mil homens munidos com quase duzentos canhões.
Somente em maio de 1812, através do tratado conhecido como Rademaker-Herrera, intermediado pelos ingleses, a trégua seria selada com a nova república revolucionária cisplatina. No entanto, como consequência, D. João VI conseguira integrar para o território brasileiro os atuais municípios gaúchos de Uruguayana, Quaraí, Santana do Livramento, Alegrete e ainda parte de Rosário do Sul e Dom Pedrito.
Mas a coisa não parou por aí. Quatro anos mais tarde, os tempos já eram outros. Napoleão tombara, os territórios da Península Ibérica tinham se libertado definitivamente do jugo francês, mas D. João VI continuava com ideias expansionistas, aproveitando o desmantelamento do império espanhol. Em 1816, a Espanha já deixara de controlar a Cisplatina, dominada então por Jose Gervasio Artigas, que neste meio tempo entrara em rota de colisão com os outros líderes das Províncias Unidas do Rio da Prata. Em suma, desejava a autonomia completa da margem esquerda do Rio da Prata. Ou seja, a independência.
Antes de se tornar independente, o Uruguai esteve integrado no Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, por conquista de D. João VI.
Sabendo das fraquezas de Artigas, D. João VI ordenou ao marechal Carlos Frederico Lecor, comandante da Divisão de Voluntários Reais, um ataque massivo à região cisplatina. Começou por Montevidéu, alargando depois as investidas para todo o território a leste do rio Uruguai. Sem grande dificuldade, as tropas lusitanas tomaram a estratégica fortaleza de Santa Teresa em agosto de 1816, avançando em seguida pela costa até Maldonado.
As tropas de Artigas também se dirigiram aos tropeços para o interior, deixando os portugueses dominarem toda a região meridional do rio Negro, bem como a margem oriental do rio Uruguai. Em julho de 1821, a Cisplatina foi formalmente integrada no Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
Enfim, tudo parecia estar correndo bem na vida de D. João VI. Para um rei supostamente medroso, em menos de uma década, ele conseguira transformar a geografia e o urbanismo do Brasil e até aumentar seus domínios ao norte e ao sul[4]. Nem parecia que ao seu redor as colônias espanholas entravam em colapso. Durante esse período, tivera de se preocupar apenas com uma insurreição em Pernambuco, no ano de 1817, mas logo abafada ao fim de três meses[5].
Porém, não há mal que sempre dure, nem bem que não acabe. Durante este tempo, os portugueses europeus fartaram-se de ver seu rei no Rio de Janeiro. Ou melhor dizendo, em uma Europa em convulsão, os portugueses do Velho Mundo – que durante séculos se habituaram a explorar as colônias sul-americanas, africanas e asiáticas – ficaram perplexos ao se sentirem colonos em suas próprias terras. Na Europa, Portugal quase se transformara, depois das invasões napoleônicas, em um protetorado britânico.
Com efeito, na ausência de D. João VI, o território lusitano passara a ser administrado por um conselho regente que, embora composto por portugueses, estava sujeito ao controle militar do marechal inglês William Carr Beresford. Também por via de acordos comerciais, a Inglaterra dominava os principais negócios, causando um mal-estar geral entre a população.
Em 1817, a insatisfação teve um lampejo subversivo. Uma conspiração de caráter liberal e maçônica foi aniquilada em Lisboa, levando ao enforcamento de doze envolvidos, incluindo um renomado general. Se esta primeira tentativa de insurreição em Lisboa foi logo cortada, as raízes, no entanto, mantiveram-se fortes e despontariam cerca de três anos mais tarde na cidade do Porto.
Aproveitando a ausência de Beresford – que se deslocara ao Rio de Janeiro para solicitar reforço de poder ao rei–, um movimento liderado pelos magistrados Manuel Fernandes Tomás e Ferreira Borges desencadeou, em 24 de agosto de 1820, uma revolução apoiada pelo exército, pela nobreza e pelo clero.
Depondo as autoridades da cidade, criaram uma Junta Provisória do Governo Supremo. Através de um manifesto disseram o que queriam: o retorno imediato de D. João VI a Portugal e a reposição do Brasil ao estatuto de simples colônia. Em setembro daquele ano, Lisboa e todo o país adeririam ao movimento liberal. O marechal Beresford foi impedido de desembarcar, quando regressava do Brasil, e a situação política deixou de estar sob o controle do rei.
Grito de Ipiranga de D. Pedro I do Brasil. Seria possível sem o papel de D. João VI?
Apesar disso, esta revolução nunca teve características republicanas nem questionou a soberania de D. João VI; somente cerceava -lhe o poder absoluto – o que, diga-se de passagem, já era muito. Quando comunicaram o Rio de Janeiro sobre suas ações, os líderes do pronunciamento até pediram a bênção do rei “como bom, como benigno e como amante de um povo que o idolatra”.
Embora as primeiras informações sobre a revolução no Porto tenham chegado ao Brasil em outubro, somente dois meses mais tarde, com a chegada do conde de Palmela ao Rio de Janeiro, a Corte tomou consciência da magnitude daqueles episódios. De fato, ao contrário do que talvez D. João VI poderia pensar, os revolucionários não exigiam apenas seu regresso a Portugal, mas, sobretudo, a realização de Cortes Gerais Extraordinárias para que uma carta constitucional de viés liberal fosse aprovada.
Em suma, a figura do soberano português passaria a um papel secundário, quer no executivo ou legislativo. Obviamente, uma recusa de D. João VI poderia desencadear uma cisão de consequências imprevisíveis até mesmo no Brasil.
D. João VI hesitou muito sobre qual direção tomar. Alguns de seus conselheiros, sobretudo Tomás Antônio Portugal, seu primeiro-ministro, advogaram que a família real deveria permanecer no Brasil, independentemente do rumo tomado em território europeu pelos revolucionários.
Podia-se perder os anéis – o território europeu –, mas sempre restariam os dedos – ou seja, o Brasil –, repleto de recursos, ainda longe de estarem explorados. A hipótese de ser o infante D. Pedro a atravessar o Atlântico para presidir às Cortes Extraordinárias, e apaziguar os ânimos, começou a ser levantada no fim de janeiro, mas o rei hesitou também em tomar uma decisão.
Os receios transmitidos pelo conde de Palmela sobre os riscos dos movimentos liberais lusitanos se alastrarem no Brasil foram confirmados com novos acontecimentos. Em 10 de Fevereiro de 1821, em Salvador da Bahia, um grupo liderado pelo médico Cipriano Barata, que contava com diversos militares, exigiu também a limitação dos poderes do rei, propondo uma constituição semelhante à desejada pelas Cortes em Lisboa. E criticavam também a centralização do Rio de Janeiro em relação às outras regiões brasileiras.
Já com pouca margem de manobra, D. João VI tentou, por fim, convencer o infante D. Pedro a partir, em vez de ir ele mesmo. E não era apenas por apreciar a cidade carioca. Na verdade, com certeza sabia que sua presença no Rio de Janeiro e a de seu herdeiro em Lisboa garantiriam um melhor controle dos acontecimentos. Se já era certo que as Cortes Extraordinárias iriam retirar seu poder absoluto, sempre lhe seria mais fácil, estando no Rio de Janeiro, gerenciar a nova situação política e controlar focos subversivos no Brasil. No limite, caso em Lisboa a corda esticasse, teria ele refletido sobre uma cisão. Ou seja, perderia Portugal, mas permaneceria sendo rei do Brasil. Porém, o infante D. Pedro recusou esta pretensão.
. D. Miguel, D.João VI e D. Pedro I do Brasil (e IV de Portugal), retratados por Enio Squeff.
E após mais muitas indecisões, o rei acabou decidindo voltar a Lisboa com toda a família real, exceto o infante D. Pedro, que se manteve no Rio de Janeiro como regente. D. João VI rumou para Portugal em 26 de abril de 1821 em um contexto já explosivo, inclusive na cidade carioca. Quatro dias antes, um grupo de radicais, que participava numa assembleia na praça do comércio da bolsa fluminense, teve de ser repelido a tiros. Na hora da despedida, D. João VI já profetizava o futuro, quando disse ao filho: “Pedro, se o Brasil se separar [de Portugal], antes seja para ti, que me hás-de respeitar, do que para algum desses aventureiros”.
O rei ancorou em Lisboa cerca de dois meses e meio depois, em 3 julho, juntamente com quatro mil pessoas. Não foi uma chegada triunfal. Embora as ruas da capital estivessem decoradas e três noites de festas com luminárias tivessem sido organizadas, incluindo o habitual beija-mão, o ambiente não se mostrou muito caloroso. Havia muito ressentimento no ar, não apenas pela longa ausência do rei, mas também pelas muitas benesses que concedera aos brasileiros, nos últimos anos, em detrimento dos lusitanos.
Além disso, com a demora na partida, D. João VI se viu em um caldo político ainda mais desfavorável, porque as Cortes Extraordinárias não esperaram por ele e a Carta Constitucional já tinha sido aprovada. Além disso, as reuniões entre os deputados lusitanos e a centena de representantes brasileiros, que para Lisboa tinham rumado, abriram ainda mais as feridas.
Pintura de Óscare Pereira da Silva retratando as Cortes Constituintes de 1820 em Portugal.
Enquanto a facção lusitana exigia a reversão do Brasil à antiga condição de colônia, a ala brasileira reivindicava tratamento igualitário. Sem nenhum espaço para manobra, nem podendo sequer ser árbitro, o rei fora, por mais que estrebuchasse, reduzido à mera figura simbólica. Nada lhe restara além de assinar a Carta Constitucional. Ou assinava, ou era deposto. E assinou, em julho daquele ano.
A completa subalternização do rei acentuou-se ainda mais nos meses seguintes, chegando ao ponto de a regência do infante D. Pedro no Brasil ter sido retirada pelas Cortes. Exigiram também seu regresso a Lisboa. Começou uma queda de braço nos dois lados do Atlântico. Dando seguimento à assinatura da Carta Constitucional, e para pressionar o infante, seriam reforçados os batalhões militares portugueses de Pernambuco e da Bahia.
O governador desta última região, bem como o do Maranhão, majoritariamente dominadas por reinóis, passaram a recusar ordens diretas do infante. O descontentamento nas demais regiões do Brasil também aumentou. Por sua vez, D. Pedro, como herdeiro de Portugal, indisposto com a nova realidade em Lisboa, sentia-se cada vez mais humilhado e pouco disposto a acatar ordens.
Contudo, apesar de seu espírito aventureiro, irrequieto, voluntarioso e resoluto – muito diferente do pai –, o infante não desejava dar o passo que uma boa parte dos brasileiros já ambicionava: a independência do Brasil. Em setembro de 1821, em uma carta endereçada ao pai, escreveu que os movimentos em prol da emancipação o pressionavam para que aceitasse a aclamação como imperador, mas que jamais aceitaria essa solução. Só “depois de eu e todos os portugueses estarem feitos em postas”, reiterava. Terminava essa missiva com uma garantia: “juro ser sempre fiel a Vossa Majestade e à Nação e à Constituição Portuguesa”.
Nunca se deve dizer desta água não beberei, porque quando a sede aperta não há força que lhe resista. Porém, se D. Pedro parece ter depois negado o juramento feito à Nação portuguesa e à sua Constituição, ditada por uma Corte rancorosa em relação aos interesses brasileiros, não se pode dizer, por outro lado, que foi infiel ao pai. Pelo contrário. Talvez mais do que o abaixo-assinado de oito mil fluminenses que o levaram, em 10 de janeiro de 1822, a proclamar a célebre frase: “como é para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto; diga ao povo que fico”, talvez tenha pesado mais a troca de cartas mantida com D. João VI.
Com efeito, mesmo tolhido pelos ventos revolucionários, o rei português mostrava uma grande lucidez. Se na hora de sua partida do Rio de Janeiro já pressagiara a independência do Brasil, os meses em Lisboa o convenceram ainda mais de que este seria o caminho, se levado obviamente a cabo por seu filho. No fim de 1821, instigou-o implicitamente a avançar. “Sê hábil e prudente”, escreveu D. João VI ao infante, “pois aqui, nas Cortes, conspiram contra ti, querendo os reacionários que abdiques em favor do teu mano Miguel[6]. Tua mãe é pelo Miguel e eu, que te quero, nada posso fazer contra os carbonários que não te querem”.
Depois do Dia do Fico, o rumo em direção à independência avançou de forma imparável. Ainda em janeiro de 1822, ignorando um ultimato das Cortes, D. Pedro nomeou novos ministros para a regência, dentre eles, José Bonifácio de Andrada e Silva, que se tornaria um de seus mais influentes conselheiros. No mês seguinte, responsabilizando as tropas portuguesas pela morte de seu filho João Carlos Pedro[7], liderou pessoalmente um cerco ao batalhão do general português Jorge Avilez, acampado na região de Niterói, conseguindo sua expulsão.
A partir de então, ordenou que qualquer ordem vinda de Lisboa somente fosse distribuída no Rio de Janeiro após sua concordância. Exigiu também que todos os governos ou juntas das outras regiões brasileiras lhe obedecessem. Por fim, criou um Conselho de Procuradores, uma espécie de assembleia constituinte. Sobre todos os detalhes, D. Pedro informou D. João VI em carta particular, não como um regente para um rei, mas de filho para pai.
A independência já estava, então, na fase embrionária, embora ainda não declarada. D. Pedro decidiu primeiro viajar para Minas Gerais e para São Paulo com o objetivo de reconfirmar apoios e sentir o que pensava o povo. Em setembro daquele ano, nas imediações de São Paulo, perto do riacho do Ipiranga, recebeu vasta correspondência das Cortes de Lisboa, em tons ainda mais ameaçadores. E também uma carta anexa de Andrada e Silva que lhe dizia: “Senhor, o dado está lançado e de Portugal não temos a esperar senão escravidão e horrores. Venha Vossa Alteza Real [até o Rio de Janeiro] e decida-se.” Não foi; decidiu logo ali, naquela tarde do dia 7 de setembro de 1822, proferindo o célebre Grito do Ipiranga: “Independência ou Morte”. O Brasil estava independente.
Primeira bandeira do Brasil após a independência em 1822.
A adesão das diversas regiões à aclamação de D. Pedro como primeiro imperador do Brasil não foi imediata; pelo contrário. Na Bahia, um forte contingente português, liderado por Madeira de Melo, já desde março de 1822 dominava a capitania. E bateu o pé diante do Grito de Ipiranga. Foi osso duro de roer. Com um número reduzido de tropas fiéis à nova nação, pois os batalhões militares estacionados no Brasil eram, sobretudo, provenientes de Portugal, D. Pedro viu-se obrigado a contratar mercenários. Grande parte veio da Inglaterra, como Thomas Cochrane, famoso por suas ousadas campanhas navais.
Conhecido como “o Lobo dos Mares”, foi logo nomeado primeiro-almirante do Brasil, desempenhando um papel vital na organização dos combates que levariam, em 2 de julho de 1823, à difícil renúncia de Madeira de Melo. Pouco meses antes, a resistência à integração do Pará, Maranhão e Piauí também tinha sido aniquilada, por vezes de forma sangrenta. O mesmo se passou na Cisplatina. Depois de alguns confrontos, D. Pedro acabou sendo aclamado em Montevidéu no início de 1824.
Mais problemática se mostrou a região pernambucana. Historicamente imbuídas de espírito autonomista, como se vira recentemente em 1817, as elites não se mostraram predispostas a aderir a qualquer um dos lados; nem a Portugal nem ao Brasil. Muitos idealizaram sua emancipação, dentro do contexto de certa anarquia, mas com um viés republicano. Assim, tendo como mentor o carmelita Joaquim da Silva Rabelo, popularmente conhecido como Frei Caneca, arquitetaram a criação da Confederação do Equador. Proclamada em 2 de julho de 1824, a nova nação foi subjugada poucos meses depois.
Mapa do Brasil publicado em 1849.
Consolidada a independência do Brasil, faltava o seu reconhecimento. Os Estados Unidos foram o primeiro país a fazê-lo, logo em maio de 1824. Porém, as diversas nações mundiais aguardaram por mais desenvolvimentos que clarificassem a estranha gênese desta emancipação. Afinal, apesar da Constituição do Brasil impedir seu imperador de governar outro país, para todos os efeitos D. João VI mantinha D. Pedro I como seu herdeiro em Portugal; e D. Pedro não renegara ainda esse estatuto.
A Inglaterra, desejando estreitar relações comerciais com o Brasil, predispôs-se então a mediar uma solução diplomática, enviando o embaixador Charles Smith ao Rio de Janeiro. A proposta britânica inicial, articulada em segredo com Portugal, passava por um reconhecimento imediato desde que a independência fosse assumida como uma “doação” do rei D. João VI ao seu filho. Em uma primeira fase, D. Pedro negou essa solução de forma categórica. Contudo, a habilidade britânica acabou conseguindo um acordo que, na verdade, se mostrou extremamente desvantajoso para o Brasil, embora favorável ao seu imperador.
De fato, nas negociações, além do reconhecimento simultâneo da independência brasileira por Portugal e Inglaterra, D. João VI aceitou que o herdeiro ao trono lusitano passasse a ser sua neta, a infanta Maria, filha do imperador D. Pedro I, que então tinha apenas seis anos[8]. Porém, em troca destas concessões, o Brasil obrigou-se a pagar uma indenização de dois milhões de libras esterlinas – obtidas por um empréstimo bancário inglês –, além de outorgar benefícios especiais ao comércio britânico. Para evitar qualquer integração de outras colônias portuguesas, nomeadamente africanas – a principal “fonte” de escravos –, o Brasil também se comprometeu a não ter uma política expansionista contra Portugal.
Imperador Pedro II e família, segundo monarca do Brasil, desde 1840 até 1889.
Depois disso, com um mau ou péssimo acordo, o Brasil iniciou finalmente sua viagem pelo tempo como país independente. Não sem sobressaltos, pois teve muitos, mas conseguindo manter quase imaculadas suas fronteiras do tempo colonial. De fato, com exceção da perda da Cisplatina, que originaria o Uruguai em 1828 – por via de uma negociação intermediada pelos ingleses –, da incorporação do Acre – “adquirido” da Bolívia no início do século XX – e de pequenos acertos diplomáticos com os países vizinhos, o Brasil permanece ainda hoje unido e federalista, como D. João VI e D. Pedro I o idealizaram[9].
E, claro, somando, como todos os países, e já sem poder culpar os antigos colonizadores, infinitos conflitos e insurreições, carnificinas e selvagerias, despotismos e ditaduras, injustiças e perversões.
Mas relatar com pormenor esses sempre trágicos episódios ficará para outros carnavais, e por conta de outros escribas. Um português se meter com a História do Brasil colonial, até que tudo bem; agora, na História do Brasil independente, já seria meter o bedelho onde não se foi chamado. Ou, como se diria em terras lusitanas, meter foice em seara alheia.
[1] – Antes da invasão a Portugal, Napoleão e o rei Carlos IV da Espanha “decidiram” a divisão do território lusitano: a província de Entre Douro e Minho, incluindo a cidade do Porto, destinava-se a Carlos Luís, neto do rei espanhol (como compensação pela anexação do efêmero reino da Etrúria, que tinha Florença como capital), sob a denominação de Lusitânia Setentrional; o Alentejo e Algarve ficariam nas mãos de Manuel Godoy, duque de Alcudia e primeiro-ministro espanhol, sob a denominação de Principado dos Algarves; e a restante região seria depois distribuída entre a França e a Espanha. Ficou também estabelecido que estas duas nações decidiriam posteriormente a “igual divisão das ilhas, colônias e outras possessões ultramarinas de Portugal”.
[2] – Ver o capítulo “A vingança servida quente” (pág. XXX).
[3] – Ver o capítulo “Um acordo para um real pesadelo” (pág. XXX).
[4] – A Guiana Francesa, conquistada logo em 1808, veio, contudo, a ser devolvida aos franceses, depois da queda de Napoleão. Ver o capítulo “A vingança servida quente” (pág. XXX).
[5] – Ver o capítulo “A república tingida de sangue” (pág. XXX).
[6] – D. Miguel, terceiro filho de D. João VI e D. Carlota Joaquina, viria a participar ativamente em dois movimentos contrarrevolucionários em Portugal para o estabelecimento do regime absolutista em 1823 (Vilafrancada) e no ano seguinte (Abrilada). Ele chegou a tentar obrigar o pai a abdicar. Foi exilado em Viena, regressando em 1828 para se casar com sua sobrinha, D. Maria II, filha de D. Pedro I do Brasil, e se impôs em seguida como rei absoluto de Portugal. Como resultado, uma guerra civil eclodiu, perdurando até 1834 com a recondução ao trono de D. Maria II. Para este desfecho a participação do imperador D. Pedro I, que voltou a Portugal após abdicar do trono brasileiro em 1831, foi essencial.
[7] – Após o Dia do Fico, as hostilidades com as tropas fiéis a Portugal só aumentaram, obrigando o infante D. Pedro a enviar sua família para Santa Cruz. Durante a viagem, seu pequeno filho, ainda com menos de um ano de idade, adoeceu gravemente e acabou morrendo. O infante escreveria, mais tarde, ao rei D. João VI que foi “a divisão auxiliar [o batalhão português no Rio de Janeiro] que assassinou o príncipe, o neto de Vossa Majestade”.
[8] – A infanta D. Maria, que se tornou a rainha D. Maria II, nascera e vivia então no Rio de Janeiro. Apenas partiu para Portugal após a morte do rei D. João VI em março de 1826. Por razões estranhas, D. Pedro I do Brasil concordou com o casamento da filha com seu irmão D. Miguel, que se encontrava exilado em Viena. Uma péssima decisão – como muitas outras que D. Pedro I haveria de tomar até abdicar do trono brasileiro –, porque D. Miguel, apesar de ser apenas um rei consorte, usurparia o trono português, desencadeando uma guerra civil.
[10] – Além de conflitos armados com outras nações e insurreições políticas, o Brasil assistiu ao longo do século XIX a alguns movimentos separatistas, que resultaram em estados efêmeros, nomeadamente no Rio Grande do Sul (República Rio-Grandense, 1836-1846), Salvador (República Bahiana, 1837-1838), e Santa Catarina (República Juliana, durante menos de quatro meses em 1839).
No Palácio de Queluz, nos arredores de Lisboa, há um quarto muito especial. É decorado com cenas do livro D. Quixote, do espanhol Miguel Cervantes, e é esse o nome daquela habitação real. Foi aí que nasceu e morreu o rei D. Pedro IV de Portugal, primeiro Imperador do Brasil, cujos 200 anos de Independência hoje se comemoram. Apenas 36 anos separam as datas do seu nascimento – 12 de Outubro de 1798 – da sua morte – 24 de Setembro de 1834 -, mas este rei e imperador teve uma vida tão preenchida cujos efeitos ainda hoje se fazem sentir em ambos lados do Atlântico.
Faltavam dois anos para a invasão de Portugal pelas tropas de Junot quando, esse mesmo Junot chegou a Portugal para servir como embaixador do governo de Napoleão. Em 1805, o homem que alcançara o posto de general francês durante a campanha do Egipto, apresentou-se na corte portuguesa, perante o príncipe regente, D. João VI, trajando o seu uniforme de coronel general dos hussardos. Branco e azul, as mesmas cores do Portugal de então.
Pormenor do quarto D. Quixote, Palácio Nacional de Queluz
As cicatrizes no rosto do francês compunham a imagem militar e o pequeno D. Pedro, presente ao lado do pai, não deixou de ficar impressionado. Mal sabia que, dentro de dois anos, aquele mesmo homem iria dar início a uma invasão de Portugal que marcaria a história do mundo. E da qual ele também faria parte de forma preponderante.
Dizem as crónicas da época – registadas nas memórias de Laura, mulher de Junot – que dois dias depois da apresentação das credenciais do embaixador francês, um criado de D. João VI foi pedir o uniforme hussardo para que se fizesse uma cópia para uma versão de adulto e outra para uma criança. A criança que o vestiria depois era D. Pedro, aquele que ficaria conhecido para a história como “Rei Soldado”.
Este pequeno episódio da infância de D. Pedro poderá ajudar a explicar o sentimento militar que esteve presente durante a vida de D. Pedro e levou a vários episódios que marcaram as relações entre Portugal e Brasil, países irmãos, com história comum, mas que parecem estar cada vez mais afastados, sobretudo quando a política brasileira surge polarizada nas eleições marcadas para Outubro.
D.Pedro I do Brasil, e IV de Portugal, quando infante.
Se antes havia um fluxo migratório de Portugal para o Brasil – país imenso e com uma capacidade de fixação mais ampla -, agora o polo inverteu-se e Portugal tem de receber os irmãos falantes de português, procurando integrar hábitos e costumes próprios da geografia livre e tropical do que da soturna e fria cultura europeia.
O processo da Independência do Brasil já foi sobejamente descrito. Não faltaram recentemente obras sobre a questão e revistas nacionais dedicaram páginas e páginas ao assunto. O coração de D. Pedro, depositado na Igreja da Lapa, no Porto, viajou de avião da força aérea do Brasil, com o presidente da Câmara do Porto a bordo, para levar a relíquia até às antigas terras de Vera Cruz.
Faltou, no entanto, frisar que a ideia de exibir o coração do Imperador no Brasil partiu de um descendente brasileiro de D. Pedro, Luiz Philippe de Orléans e Bragança, que tem a particularidade de, ao contrário do que sucede com grande parte da família, exercer actividade política desde 2005. O descendente do rei português é actualmente deputado federal por S. Paulo, representando o Partido Liberal, do qual também faz parte o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro.
Por cá, podemos lembrar que também temos um descendente de D. Pedro na política: é Francisco Pinto Balsemão, militante número 1 do PSD e empresário de Comunicação Social.
As comemorações dos 200 anos da Independência do Brasil acontecem num país que organizou um referendo em 1993 para poder decidir se queria um regime republicano ou monárquico. A maioria optou pela forma republicana, mas o referendo não ficou livre das acusações de anti-democrático pelo facto dos membros da família real terem sido proibidos de participar nas campanhas do lado monárquico. Em Portugal, República desde 1910, nunca houve esse referendo, sendo que o regime é imposto ao povo sem qualquer escrutínio.
Os 200 anos da Independência do Brasil são apenas um episódio num caminho cujos primeiros capítulos começaram em 2008, quando o presidente português, Aníbal Cavaco Silva, fez uma visita de Estado ao Brasil, entre 6 e 9 de Março, para celebrar os 200 anos da chegada da Corte portuguesa após a invasão das tropas de Napoleão, comandadas por Junot. Entre as várias cerimónias públicas, Cavaco jantou, no Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, com o então presidente Lula. De destacar que o actual primeiro-ministro português, António Costa, também fez parte da comitiva oficial que se deslocou ao Rio de Janeiro com Cavaco Silva, indo então na qualidade de presidente da Câmara de Lisboa.
Coração de D. Pedro IV em exposição. (Foto: D.R.)
Eram tempos diferentes: Lula, que é agora candidato contra Bolsonaro, ainda não tinha sido julgado e preso na sequência do caso “Lava-Jato”. O nome de Jair Bolsonaro não surgia nas notícias como o de um adversário político de relevo.
Entre 2008 e o presente ano de 2022, podemos ainda evocar a data que, em 2015, registou os 200 anos da criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Foi a 16 de Dezembro de 1815 que Portugal se tornou numa imensa Nação transatlântica, com capital no Rio de Janeiro. A bandeira passou a incluir uma esfera armilar – a mesma que está ainda hoje na bandeira da República portuguesa.
Só que, dois anos depois, houve a revolta liberal no Porto. O 24 de Agosto, data que faz parte da toponímia da cidade Invicta e que teve os seus 200 anos assinalados com relevo. O rei teve de regressar a Lisboa e D. Pedro disse: “Eu fico”! Mas nunca se explicou bem porque falhou a ideia da capital de Portugal ficar no Brasil. Isso seria uma boa ideia para se discutir nos próximos anos, sobretudo quando parece que a capital do Brasil começa a ser Lisboa.
Lula da Silva, presidente do Brasil aquando da visita de Cavaco Silva, então presidente da República Portuguesa, ao “país irmão” em 2008.
A história escreve-se com mais datas, perdidas nas ruas das cidades, sem que dediquemos muito mais tempo à sua origem e ao que podem representar para o nosso futuro.
Ainda vamos a tempo de celebrar mais datas que vão atingir a idade redonda de 200 anos nos próximos tempos. Ou então continuar a esquecer, a negar a sua origem e a perder mais futuro.
Lembremos então que, daqui a 10 anos, vamos ter os 200 anos da Lutas Liberais e que a Avenida 24 de Julho, em Lisboa, evocará os 200 anos da Libertação da cidade. Durante muitos anos era o equivalente ao 25 de Abril de 1974.
Lembremos ainda que D. Pedro IV cruzou o oceano Atlântico três vezes: a primeira, em criança, quando foi para o Brasil. A segunda, em 1832, quando veio lutar contra o irmão. E a terceira, em 1972, há 50 anos, quando o Brasil celebrou os 150 anos da Independência e o seu corpo foi enviado para o panteão em S. Paulo.
Agora, viajou o seu coração, a parte do corpo que faltava. Uma quarta viagem à qual, espera-se, somar-se-á uma quinta: quando o coração regressar ao Porto, a cidade que se diz “Invicta” por ter sido aí que D. Pedro resistiu, vitorioso, ao cerco das tropas absolutistas do seu irmão.
Pormenor do convite da exposição comemorativa dos 200 anos da deslocação da Corte Portuguesa para o Brasil, inauguradano Rio de Janeiro.
D. Pedro pode ter nascido e morrido no quarto do Palácio de Queluz, mas o corpo está hoje no Brasil. Entretanto, em Lisboa, no Panteão dos Bragança, no Mosteiro de S. Vicente de Fora, está o corpo de D. Miguel. O irmão derrotado nas lutas liberais mas reabilitado pela Ditadura. Foi exumado na Áustria em 1967 e trazido para Portugal, um ano antes de Salazar cair da cadeira.
Esquecer o legado liberal de D. Pedro e não compreender que Portugal e Brasil já foram um Reino Unido é condenar-nos a perder mais 200 anos de História. A não ser que se o plano seja celebrar, com grande pompa e circunstância, daqui a quatro anos, os 100 anos do 28 de Maio.
Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Carlos Drummond de Andrade, poeta das Minas Gerais, nos revela: Os morros, empalidecidosno entrecerrar-se da tarde,/ pareciam me dizerque não se pode voltar/porque tudo é consequênciade um certo nascer ali. Depois de duzentos anos de uma independência bastante duvidosa – tanto pensando no evento em si, quanto nos muitos significados que o termo pode assumir, seguimos perplexos e desgovernados.
Atuei como médico do trabalho do maior hospital do Brasil, durante a pandemia de covid-19, uma instituição de 25.000 funcionários (muito mais que a população de muitas cidades ao longo do mundo), onde pudemos oferecer aos que ali se dedicavam a cuidar dos enfermos, tentando-os devolver a suas famílias – sem saber se voltaríamos intactos para as nossas –, um atendimento digno e um pronto-atendimento voltado às queixas respiratórias, que acredito que poucas empresas puderam proporcionar com tamanha eficácia.
O hospital é ligado à Secretaria de Estado da Saúde, de São Paulo, e por contingências e malabarismos políticos, pôde atuar independente da desastrosa condução da pandemia capitaneada pelo Ministério da Saúde do Brasil. Enquanto muitos viveram isolados, com medo do vírus, minha profissão – não por opção, acredito, mas por questão de ofício – projetou-me diretamente no olho do furacão da peste e das mazelas perpetradas pelo poder público.
O conceito de independência contrasta com a forma como a vida de quase 700.000 brasileiros foram entregues à doença. Os que morreram por falta de oxigênio, por falta de vacinas e por mensagens confusas incentivando a utilização de medicamentos ineficazes, não tiveram opção. Os desmandos criminosos nos fazem pensar que, talvez, vivemos sob um poder ditatorial cuja empatia pela vida inexistiu. Uma sociedade inteira refém de um psicopata que continua ofendendo mulheres, desprezando a fome, rindo desbragadamente da dor alheia, em cadeia nacional.
Não sou historiador e tenho dificuldades de analisar os últimos duzentos anos; porém os cinquenta mais recentes, que completo em poucos dias, parecem mais próximos para um olhar, ao menos, testemunhal. Acredito que a última vez que o Brasil teve alguma chance de se tornar algo menos triste ocorreu no início dos anos 1960, até a marcha rumo a um futuro promissor ser interrompida por um golpe militar financiado pela política econômica expansionista dos Estados Unidos da América.
Com o que se chamou de redemocratização, em 1985, interesses e manobras políticas foram solidificando uma forma paralela de poder, que recentemente se intensificou com o que foi chamado de Emendas do Relator, no Congresso Nacional do país, oferecendo bilhões de reais a políticos inescrupulosos, em nome de uma frágil manutenção do poder da atual administração. Enquanto esse tipo de arranjo perdurar, vejo muito pouca esperança na construção de uma sociedade menos desigual, com chances reais de acesso a meios educacionais para a grande massa de desvalidos, que geração após geração, arrasta-se em miseráveis esforços de sobrevivência.
Somos famosos pela beleza da nossa música, pela força da nossa literatura, por uma falsa alegria do nosso povo (somos vistos como bobos-alegres, que gostam de futebol carnaval e festejos), porém os últimos anos só escancararam o que João Guimarães Rosa, no longínquo ano de 1956, expôs em seu magistral romance Grande sertão: veredas.
Neste ano, Juscelino Kubitschek, o presidente bossa-nova, falava de desenvolvimentismos enquanto as entranhas da nação corroíam-se em chacinas. Somos um povo bruto, vingativo, violentamente cruel. O homem cordial, termo equivocadamente interpretado, tirado de contexto, da obra de Sérgio Buarque de Holanda, é uma peça de marketing mal-torneada, que não existe.
Tenho duas filhas pequenas, e vejo-me obrigado a pensar num futuro um pouco mais iluminado para elas, mesmo diante de tanta tristeza. Como em qualquer lugar do mundo, o caminho está em maciços investimentos em educação, saúde, saneamento, segurança – pública e alimentar. Não vejo medidas a curto, médio ou longo prazo em direção a tal reforma. Cabe a nós mostrar às filhas que o respeito às individualidades e o amor são os valores que podem nos redimir, se não como país, pelo menos como seres humanos.
Diante da barbárie, ressaltamos os gestos de ternura. E isto já é bastante, frente aos desafios imensos que há pela frente. Nos próximos meses, aproximam-se eleições – o Brasil é pobre na cultura do voto, somos pouco versados na arte do debate, escolhemos sem critérios, somos reiteradamente maus-eleitores. Porém, caso consigamos extirpar da presidência da república o cancro que nos envergonha internacionalmente, já seria um bom primeiro passo para os próximos duzentos anos de história.
Moacyr Godoy Moreira é médico, escritor e crítico literário, tendo publicado os livros de ficção Soalho de tábua, República das bicicletas, Ruídos urbanos e Soalho de tábua. Vive em São Paulo.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Jorge Luís Borges dizia que quem acreditava em casualidade, não sabia das leis da causalidade. De fato, não foi por casualidade que li pelo menos três obras que falam diretamente e indiretamente do bicentenário de Independência do Brasil.
A primeira foi a alentada, mas quase rococó, biografia amorosa da Marquesa de Santos, Domitila de Castro Canto Melo, a rumorosa e mal falada amante de Dom Pedro I (IV em Portugal), de autoria de um colega, Sérgio Buarque de Gusmão; a segunda foi um enredo póstumo do meu mui querido amigo, José Antônio Severo, que eu ilustrei, transformado num ensaio quase romântico, sobre as guerras de Independência que se seguiram ao famoso Grito do Ipiranga (no nordeste); e, por fim, a alentada biografia de Dom Pedro IV, de Eugénio dos Santos, professor de Ciências da Comunicação, da Universidade do Porto.
Nada casual, mas também nada intencional. Os livros me chegaram, naturalmente, como de encomenda.
Não é o caso de comentá-los muito. O professor Eugénio dos Santos, trata o homem que tornou o Brasil independente de Portugal e que venceu o absolutista Dom Miguel no famoso Cerco do Porto, como um herói. E ele o foi: quando abdicou da coroa do Brasil em 1831, ninguém acreditava que venceria as forças de seu irmão Dom Miguel, em Portugal, muito mais numerosas. Mas saiu vitorioso e impôs a monarquia constitucional, com sua filha Maria da Glória, como soberana.
Está aí o defeito do livro do professor Eugénio, pelo menos para os brasileiros: ele se demora sobre as dificuldades de governar um país em ebulição, como o Brasil – mas logra deixar seu filho, que se tornará Pedro II. E então se demora sobre o picante caso amoroso do Imperador com a Marquesa de Santos. O tema é bem conhecido dos brasileiros.
Uma pena, pois a guerra civil portuguesa, a descrição de suas manobras seria muito mais interessante e o título de herói, o que supõe a coragem e a determinação, algo que quase não se divulga sobre Dom Pedro, seria plenamente confirmada.
Dom Pedro I ou IV, ainda é um dilema para os brasileiros. O antimonarquismo do Brasil, fruto de uma propaganda muito bem urdida quando os militares deram o golpe que derrubou Dom Pedro II, nunca facilitou uma visão crítica da República, que se seguiu, e que foi oligárquica até quando os militares puderam garantir. Claro que ninguém pode reivindicar o retorno à monarquia. E Dom Pedro foi o fundador da monarquia que tornou o Brasil independente, algo meio paradoxal.
Além disso, quando houve ocasião de comemorar o translado dos restos de Dom Pedro para o Brasil, como agora em que se celebra o bicentenário da sua independência, haverá quem se lembre de que o Segundo Império foi escravagista, como o Primeiro, embora nunca se releve que Dom Pedro era contra a escravatura.
Nos vários artigos que escreveu sob pseudônimo em alguns jornais que circulavam no Rio de Janeiro, Dom Pedro defendia claramente o fim da escravidão, algo impensável para os oligarcas que comandavam a Economia, à época e que dependiam da mão de obra escrava para a monocultura que então se praticava no Brasil, nomeadamente da cana de açúcar, do café, do algodão e mais modernamente da soja.
Quanto ao mais, sabe-se, Dom Pedro foi um femeeiro renitente. E o povo do Rio, que tinha a Imperatriz austríaca, dona Leopoldina, em alta conta, nunca lhe perdoou ter colocado a sua amante no Paço Imperial.
No entanto, ninguém acusa Dom Pedro de assassínios facinorosos, a não ser a suspeita pela morte de um republicano italiano, Libero Badaró, que vivia em São Paulo, e que hoje é nome de uma fundação paulistana e de muitas ruas brasileiras.
Acresce-se a isso uma espécie de maldição histórica. Quando a Independência brasileira fez 150 anos, quem a comemorou foi um ditador, o general presidente, Garrastazu Médici, um dos mais sangrentos ditadores que chegara ao poder depois do golpe militar de 1964.
Tudo nos conformes, digamos: dona Leopoldina e dona Amélia repousam, com seus restos mortais ao lado do marido. Agora, porém, no bicentenário da Independência, quem celebra a visita do coração, saído do Porto, do primeiro imperador brasileiro, é Jair Bolsonaro, talvez o pior presidente que o Brasil já teve depois da redemocratização.
Com tudo isso, o que sobra é o bicentenário. A batida frase de Samuel Johnson, de que “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”, está sendo amplamente praticada pelo ex-capitão Bolsonaro. Em nome das cores verde-amarelas e do bicentenário que deve realmente ser comemorado, sua turba fascista brandirá as cores do Brasil para rememorar o ato de Dom Pedro.
Mas há uma falácia para a grande maioria do povo brasileiro, que hoje vota em Lula para presidente. E que está liderando a corrida presidencial com mais de 40% dos votos, muito próximo de vencer o atual mandatário já no primeiro turno, pois no cômputo geral, faltam-lhe apenas alguns pontos para chegar a essa condição.
É que o Brasil de depois da independência tem uma grande imprensa definitivamente alinhada com interesses que querem reconduzir o Brasil quase à condição de colônia. Para isso, conta não só com os neoliberais que hoje se agrupam aos neofascistas brasileiros.
Há uma escumalha do exército, generais saídos diretamente da ditadura, que se alinhavam ao lado de Sylvio Frota, um dos generais que sempre defendeu a tortura e que legou vários lugares-tenentes nas pessoas de oficiais hoje ao redor do atual presidente; e que mais uma vez se valerão dos símbolos da Independência para se aliar ao capital que quer o petróleo do pré-sal.
E que incentiva as queimadas na Amazônia, no Pantanal, nos Pampas, a invasão de terras indígenas, tudo enfim, que interessa às empresas estrangeiras que aspiram explorar o rico solo brasileiro.
Dom Pedro I nunca se alinharia a eles. No entanto, a celebração de seu coração, emprestado ao Brasil pela cidade do Porto, se presta a todas as canalhices que o patriotismo encobre. O falso patriotismo, diria. Assim é que Dom Pedro não pode ser ajuizado historicamente como mereceria,
Lembro, muito a propósito, que Pedro, o Grande da Rússia, o homem que moldou o grande território eslavo, mas um assassino assumido, um déspota na acepção da palavra, nunca teve seus gigantescos monumentos ameaçados, nem mesmo pelos bolcheviques, que tomaram o poder durante certo tempo na ex-URSS.
Dom Pedro podia ser mulherengo e tratou realmente muito mal a Imperatriz Leopoldina, e muito bem a Marquesa de Santos. Mas nunca trocaria seu coração brasileiro (ou português) pela dinheirama que rendeu aos generais alinhados com o Jair Bolsonaro, o pior que um militar pode angariar: a pusilanimidade, prêmios polpudos e entreguismo.
Enfim, no bicentenário do Independência, o que ainda nos falta é justamente a independência total, algo que não entra na cabeça da soldadesca superior – hoje resolutamente tomados pela ideologia neoliberal. Serão derrotados pelas urnas, mas não se sabe até onde irão suportar um país que há dois séculos era declarado independente por um potentado português.
Independência bicentenária sim, mas claramente ameaçada e não por qualquer monarca, mas por um ex-capitão condenado, por terrorismo, mas logo absolvido pelo exército. E que talvez sonhe em ser um déspota como os muitos ditadores fantoches que até ontem assombravam a América Latina.
Enio Squeff é jornalista e artista plástico brasileiro, que vive em São Paulo
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Se há alguma novidade na relação entre Brasil e Portugal nesses últimos duzentos anos – depois que aquele jovem fidalgo dado a aventuras galantes resolveu criar uma nova nação – é a inversão do fluxo dos viajantes.
Desde a incursão pioneira de Pedro Álvares Cabral, os lusitanos nunca deixaram de viajar à Terra de Santa Cruz. Vieram aos milhões. As últimas levas significativas talvez sejam as decorrentes da descolonização da África no começos dos anos 1970.
Porém, o que se nota agora, nos últimos dez ou vinte anos, é a alteração radical da corrente migratória.
Existem números provando isso.
As cidadanias lusitanas concedidas a brasileiros pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros nos últimos anos são somadas em dezenas de milhares.
Todo ano, incontáveis jovens brasileiros chegam a Portugal em busca de empregos melhor remunerados – e olha que os salários por aí, sabemos todos, não são lá essa maravilha!
Também desembarcam aposentados que recebem pensões que, mesmo depois de transformadas em euros, ainda podem ser consideradas razoáveis.
Por fim, aparecem os casais com filhos em idade escolar que pensam economizar um belo dinheirinho todo mês se colocarem os filhos nas escolas públicas portuguesas.
Para certos brasileiros, em especial os de classe média que perdem renda, ser obrigado a matricular as crianças em colégios do Governo é algo tão assustador quanto cair na malha fina do Imposto de Renda.
Pois bem, arrematando: estimativas apontam que os brasileiros residentes em Portugal, atualmente, seriam entre 180 e 200 mil.
O direito de ir e vir
São muitas as explicações para essa nossa hoje fortíssima inclinação por voltar à viver na Terrinha dos ancestrais. Uma delas, bastante singela, é o fato de que em Portugal se pode sair à noite sem medo de ser assaltado ou assassinado.
Em Lisboa ou no Porto, brasileiros oriundos de grandes e médias cidades podem desfrutar de um valor que perderam nos anos 1960: o simples, velho e bom direito de ir e vir após a queda do sol.
Mas onde, como e por quais motivos a coisa começou a desandar para esta nação gigantesca que, nos diziam orgulhosos os professores primários dos anos 1950 e 60, logo seria o país do futuro?
São muitas as razões, sejam elas alevantadas por acadêmicos de capelo e beca ou por cachaceiros de botequim. Vejamos umas poucas.
População
Comecemos pela explosão demográfica.
A população brasileira saltou de 70 milhões no final da década de 1960 para 143 milhões em 1991. Mais que duplicou em três décadas, fato que certamente não se repetiu em nenhum outro país.
Diante da grandiosidade desse número só resta perguntar em português claro e direto: Foi possível construir escolas e hospitais para tanta gente em tão curto espaço de tempo?
A ocupação das cidades
Paralelamente à bomba demográfica, Pindorama registrou outro fenômeno social igualmente devastador e também de dimensões bíblicas: a urbanização acelerada.
A população vivendo nas cidades brasileiras, que era de apenas 12 milhões de almas (31 por cento do total) em 1940, saltou para cerca de 137 milhões (81 por cento da soma) no ano 2000. Para simplificar, decuplicou em sessenta anos.
Logo, imensos círculos de moradias precárias se estreitaram em redor das metrópoles regionais e das cidades de médio porte, estrangulando-as.
Daí decorreram, dizem os estudiosos, a desorganização das cidades, o trânsito caótico, a poluição da água e do solo e a violência desembestada.
De novo, aqui, podemos indagar: Conseguiriam os nossos governantes, mesmo que dotados de poderes mágicos, acomodar a avalanche humana que nos chegava dos campos?
Corrupção e incompetência
A bomba demográfica e a urbanização descontrolada, como vimos, podem ser dimensionadas. Há, porém, outros fenômenos que não podem ser exatamente delimitados porque ocorrem nas brechas e desvãos da administração pública. Como, por exemplo, corrupção e incompetência.
Nós, brasileiros, sempre críticos, temos a tendência de achar que a nossa corrupção é a maior e a mais sofisticada do mundo – ler noticiário recente – e que a nossa incompetência gerencial não têm similares no vasto universo.
Pode ser que sim, pode ser que não.
Os portugueses, por exemplo, em tempos remotos, conheceram muito bem a corrupção, quando ela grassava à solta nas muitas colônias daquele império que se estendia por quase todo o globo.
O voo da penosa
Dizem os economistas brasileiros que há cerca de meio século o país não cresce de forma sustentada. A nossa atividade econômica caracteriza-se pelos voos de galinha. Ou seja, decola por um aninho ou dois para aterrissar logo a seguir, dando com o bico no chão e perdendo penas, em mais uma recessão.
Isso quando a penosa não voa para trás.
Detalhe sórdido: esses voos galináceos não são propriedade de um só grupo político, não. Ocorreram tanto nos desgovernos de direita quanto nos de esquerda.
Mas será mesmo que o Brasil deu efetivamente com os burros na água? Há exemplos internacionais mostrando isso?
Espanha e Coreia
Para demonstrar o nosso insucesso econômico nos últimos 50 anos, alguns analistas recorrem aos exemplos de Espanha e Coreia do Sul.
Em meados da década de 1970, cidadãos do Brasil, Coreia e Espanha tinham rendas médias semelhantes. Hoje, coreanos e espanhóis dispõem de ingressos duas ou três vezes maiores que o nosso.
Ações governamentais concretas explicariam essas diferentes performances. A Coreia, por exemplo, revolucionou seu sistema de ensino e criou grandes grupos industriais que hoje atuam – em dimensão planetária – na fronteira tecnológica.
Já a Espanha ingressou na endinheirada Comunidade Europeia e, com os generosos fundos comunitários, renovou sua infraestrutura e melhorou todos os seus indicadores sociais. Como fez Portugal.
O Brasil, isolado numa América Latinha que parece ter feito uma opção preferencial pela imobilidade, continuou a correr. Mas parado no mesmo lugar.
É por isso que, hoje, comentam economistas impiedosos, exporta um transatlântico carregado com soja em troca de uma canoinha com computadores.
Que falem os imigrantes
Mais interessante que debater tema tão surrado – por que o gigante permanece deitado no berço esplêndido? –, seria tentar adivinhar o que diriam os milhões de portugueses que, nesses séculos todos, se transferiram para o Brasil.
O que nos contariam os mais modestos participantes – quase sempre muitos jovens – dessa epopeia?
O que esperavam encontrar na imensa terra selvagem e desconhecida para onde seguiam?
Como era viajar mais de um mês – vendo só água e horizonte – sobre o mar do solerte Ulisses?
O que mais afligia aqueles que se viam obrigados a deixar a terra áspera e dura que os partejou, a língua de todo o dia e os parentes amados?
Alfredo e Henriqueta
No meio desse povo retirante, estavam meus avós maternos: Alfredo e Henriqueta, nascidos na aldeia de Santiago de Piães, no Concelho de Cinfães.
Na primeira década de 1900, separadamente, eles desembarcaram em uma cidade do extremo Sul brasileiro, então muito rica e industrializada, chamada Pelotas, que hoje tem 300 mil habitantes.
Lá, ajudados por conterrâneos já instalados, deram início à vidinha. Trabalhavam duro. Meu avô era padeiro, tarefa que lhe consumia grande parte da noite, mas também mantinha uma grande horta onde – durante o dia – plantava hortaliças para o consumo da família e para venda aos vizinhos. Minha avó, considerada florista de boa mão, enfeitava casamentos e batizados para reforçar o caixa da família.
Com rédeas curtas e pancadas, educaram os rebentos para que não se tornassem vadios ou debochados. As recriminações e advertências, obviamente, vinham no mavioso linguajar dos lusos. Criaram seis filhotes. Outros três morreram na infância, como era comum na época.
As crianças só conseguiram atravessar as cinco séries do Curso Primário, mas paralelamente tiveram aulas de Mecânica, Contabilidade e Corte e Costura. Tornaram-se mecânicos, costureiras, comerciárias e operárias.
Alguns dos netos chegariam à Universidade nos 1970.
O silêncio
Eram gente de pouco palavrório.
Minha avó só relatava às filhas brasileiras, para assustá-las, o medo imenso que sentia, quando pequenina, caminhava sozinha por escarpas nevadas ouvindo bem próximos os uivos dos lobos.
Nem ela nem meu avô falavam dos parentes que haviam abandonado na Terrinha. Vô Alfredo deixou para trás mãe e três irmãs.
Uma só frase
Minha avó portuguesa ficou paralítica aos 47 anos e penou por mais de duas décadas sobre cadeiras e camas até que a bondosa Velha-com-a-foice veio resgatá-la deste Vale.
Meu avô português, de bigodes de pontas retorcidas, olhos verdes e vasta e lustrosa careca, morreu aos 57 anos, meses antes do meu nascimento.
Da cantante língua lusitana só me ficou uma frase, dita e repetida por minha avó.
Na penumbrosa saleta da casinha de madeira onde morava, presa à cadeira de balanço, vó Henriqueta não podia me impedir – guri irrequieto de seis ou sete anos – de dar incontáveis saltos mortais no sofá de molas arrebentadas.
Contrariada, porque era uma velha muito brava, que nunca fizera um só carinho nos seus filhos machos ou beijado suas filhas fêmeas, resmungava:
– Deixa estar! Deixa estar, miúdo, que vou contar ao teu pai!
Assim, neste momento, enquanto rabisco sobre esses tais duzentos anos, a imagem mais forte que me vem à mente é a da minha avó aleijada, com a mão esquerda torcida como a garra de um pássaro contra o peito seco, me mirando com seus frios olhos cinzentos e resmungando com o sotaque de Maria Lionça:
– Deixa estar! Deixa estar, miúdo, que vou contar ao teu pai!
Lourenço Cazarré é jornalista e escritor, sendo autor, entre outros, dos romances Kzar Alexander, o louco de Pelotas, A misteriosa morte de Miguela de Alcazar e A longa migração do temível tubarão branco
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.