Etiqueta: Brás Cubas

  • Gouveia e Melo: a epopeia de um narciso

    Gouveia e Melo: a epopeia de um narciso

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta décima segunda edição, o piparote de Brás Cubas ‘quebra o costado’ à vaidade do Almirante Gouveia e Melo, que transforma cada operação rotineira numa cruzada épica.


    Se os navios portassem alma, como supunha Aristóteles das plantas, é certo que muitas frotas desejariam antes naufragar no silêncio dos oceanos a serem comandadas por líderes cuja maior preocupação não é cumprir a derrota de um escalambrado navio, mas sim almejar a vitória de uma pose perfeita. A vaidade no comando das naus, ou dos submarinos, ou dos faróis, ou de toda a Armada, meus estimados leitores, é o escorbuto das marinhas; enquanto o verdadeiro rói somente as gengivas e articulações dos marinheiros, o segundo corrói a estrutura das esquadras.

    Como testemunha póstuma de tantos egos desvairados, sinto-me compelido a narrar-vos a tragédia daqueles que, sobre ou sob as águas, se esmeram mais na fotogenia do que no leme, convertendo rotineiras missões marinhas em odes à sua própria vanglória terrena.

    Há géneros diversos de Narcisos em fluidos aquosos, todos figuras mais deploráveis do que a daquele que fez perder a ninfa Eco. Um dos mais patéticos que me surge em memória é o Narciso de Alto Mar. Uma visão magnífica da inutilidade. Rodeado por um oceano sem fim, lançado na vastidão de um palco que jamais requereu assistir ao seu espectáculo, esse tipo de Narciso descobre sempre que, afinal, as pelágicas águas não foram concebidas para o adorar. É que o mar, com sua vastidão preguiçosa, não reflecte como um cristalino lago ou umas poças saídas do marulho à beira-mar. Impacientes, por vezes em vagas, as ondas movem-se sem prestar vassalagem nem quitar pedágio ao nosso pobre narcisista. Ele ainda se debruça sobre a proa, olhos ansiosos na cachola, para se reflectir, mas o mar, debochado, lhe devolve somente espuma na tromba. Este Narciso, na sua barca de orgulho, sente cada onda como um insulto, uma conspiração contra a sua contemplação, ignorando que o mar nem se queda por caprichos humanos. Enquanto ele se lamenta pela ausência da efígie, o oceano continua o seu eterno trabalho de existir, sem o menor interesse por feições ou egos. O oceano não é plateia; é abismo.

    Que o diga o Narciso dos Submarinos. No fundo, bem no profundo de mim, tenho certa comiseração por este. Entre as muitas almas de ego latente que tive a ventura de examinar, nenhuma me causou mais espanto, porquanto, sentindo-se ele apaixonado por si mesmo, mesmo assim troca o tranquilo lago por um submarino metálico, numa insana busca do centro do mundo. Mas, como toda boa comédia humana, não é o mundo que ele deseja explorar, mas a si. Por regra, os submarinos, coitados, são logo tomados por espelho. Cada painel brilhante, cada vidro, o tanque de lastro, as lentes e espelho do periscópio, tornam-se o proscénio da sua contemplação. Este Narciso multiplica ângulos para amplificar o ego, e ademais das vezes irrita-se até com os peixes porque, arrogantes, se interpôem entre si e ele próprio. Quando, finalmente, chega ele bem fundo, não da alma mas do mar, e se depara com o escuro e vazio tédio, onde nem sequer criaturas fosforescentes o brilham, e afinal o silêncio o vela, somente lhe resta os ensurdecedores ecos de uma plateia ausente.

    E depois destes, temos, mais refinado, o Gouveia e Melo, o Almirante que se insinua acima das mundanas firulas, mas que se espraia em escrupulosidades pindéricas, de sorte que, por exemplo, o seu uniforme reluz com mais esmero do que um convés em dia de inspecção. Dir-se-ia que, no seu estilo, um militar não é alguém que arrisca desboroar a farda e rasgar o corpo no confronto com o inimigo, mas antes sim uma figura de sarau na Old Albion, desfilando entre debutantes. Informalidades, isso, só quando vai trincar pregos com os amigos…

    Por isso, num preceito ordinário, com a solenidade de um Aquiles lusitano, o Almirante nunca perde tempo, e se se tem de proclamar vitória, então que se proclame vitória! E com pompa, e em qualquer circunstância. Ah, mas não sejamos injustos. Gouveia e Melo não inventou a vaidade no comando; ele apenas a aprimorou. Afinal, quem pode esquecer Alonso Pérez de Guzmán y de Zúñiga-Sotomayor, duque de Medina Sidonia, o infeliz comandante da Armada Invencível, que conduziu sua frota à ruína porque preferiu não parecer fraco a ser eficaz? Ou Pierre-Charles-Jean-Baptiste-Silvestre de Villeneuve, que na Batalha de Trafalgar escolheu a bravata em vez da estratégia? E que dizer do capitão Smith, do Titanic, cuja confiança na ‘inafundabilidade’ do navio o levou ao fundo? A vaidade, meus amigos, é uma correnteza traiçoeira que arrasta até os mais poderosos.

    Mas que vitória foi essa, a de Gouveia e Melo? – perguntam os mais distraídos. Ora, não repararam? Então não souberam que cruzaram mares lusitanos, há muito vistos e transcritos, duas fragatas da Rússia, mais uma corveta da Rússia, mais dos navios reabastecedores da Rússia, mais três navios de pesquisa científica da Rússia, mais um navio de (suposta) espionagem da Rússia. Dir-se-ia que, não fosse a Marinha Portuguesa, liderada pelo intrépido Gouveia e Melo, e Portugal estaria na iminência de ser invadido pela famigerada Frota do Norte à bolina desde Severomorsk. Na verdade, só não desembarcaram no Mindelo, os russos, porque houve “uma resposta”, como afiançou Gouveia e Melo aos jornalistas, e uma acção: “segui-los, controlá-los, mantê-los sob pressão constante, com a nossa presença também constante”. Estou a imaginar se ousassem, os russos, ripostar: teriam o triste fim de Alcibíades na expedição siciliana no século quinto antes de Cristo. Eis-vos assim, de graça e por graças de Gouveia e Melo, com “a soberania nacional defendida”. Que frase”! Bem digna de se inscrever no mármore do Torre de Belém, ao lado do “Aqui nasceu Portugal”.

    E, na verdade, conseguiremos alguma vez saber as profundíssimas, e intrinsicamente malignas, intenções dos argonautas de Putin? Um mundo de possibilidades se escantilha, não havendo sequer detidos para elicitar verdades mediante pulsão muscular. Por isso, especulo: os russos desejaram somente saber o preço da sardinha na lota de Matosinhos; ou a densidade do nevoeiro no cabo Espichel; ou se o polvo já andava a mercadejar lotes no fundo do mar, inflaciando o valor das âncoras enferrujadas; ou se o velho farol do Bugio mudara de luz para ‘Light Emitting Diode’, por questões de sustentabilidade; ou se os besugos estavam a conspirar protestos contra a pesca com palangre de fundo; ou se a bússola da caravela perdida do século XVI ainda andava a rodopiar, indecisa entre o sul e a saudade. Ou talvez pressaber pormenores da noite de borga de dois (cara)Melos no bar Cockpit.

    Enfim, marchemos adiante: a frota russa, na versão Gouveia e Melo, saiu derrotada – e nem foi pelo confronto, mas somente pela narrativa, causando mais pasmo. Afinal, em Portugal, quem precisa da glória de uma batalha quando se tem ao pé um triunfal comunicado de imprensa ou um esplendroso pé-de-microfone pré-cozinhado à mão? Quem não inveja o titânico engenho do antigo director dos faróis em transmutar um banal exercício numa homérica epopeia lusitana? Camões, se o visse, de olhos esbugalhados ficaria, incluindo o direito, que perdeu algures, ou alhures – nem ele sabe. Aliás, o Vate ainda agora me disse que se deveria decretar já, se voluntária acção não se impuser, a recolha editorial de todos os exemplares pretéritos e presentes d’Os Lusíadas, para uma competente e justa correcção póstuma da terceira estância do primeiro canto, que assim passará a constar, segundo me ditou:

    Cessem do sábio Grego e da Pompeia
    As navegações grandes que fizeram;
    Cale-se de Alexandre e de Medeia
    A fama das vitórias que tiveram;
    Que eu canto o peito ilustre do Gouveia,
    A quem Neptuno e Putin obedeceram.
    Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
    Que outro valor mais alto se alevanta.

    Direis: e Vasco da Gama e tantos outros? Não foram mais ousados e corajosos? Oh desditosas mulheres e desventurados homens, ambos sem tino: Vasco da Gama e outros tantos foram, deveras, verdadeiros heróis dos mares de antanho, que armados em caravelas navegaram com sucesso em busca de novas rotas e riquezas para a Nação Lusitana; mas todos ficaram rasos aqui, aquém e além-mar, a milhas, do ínclito Gouveia e Melo, que, municiado de câmaras e microfones, como um Atlas marítimo, carregando não o peso do mundo, mas o volume da sua vaidade, atrai mais manchetes do que as sereias de Homero alguma vez imaginariam, mesmo entoando melodias de encantar. Enquanto os heróis de outrora, enfrentavam, é certo, monstros e tormentas, não julgueis que Gouveia e Melo tem menores desafios.

    Se os Albuquerques, os Bartolomeus, os Dias, os Cãos, os Gamas, os Cabrais, os Lopes, os Cortes-Reais, os Magalhães, os Tristões, os Pachecos, os Castros, os Fagundes, os Teixeiras e até os Escobares e os Pinheiros enfrentaram, além de tempestades, o escoburto, o beribéri, a disenteria, a febre tifóide, a malária, a sífilis, a pneumonia, a tuberculose, a escabiose, a pelagra, o raquitismo, mais intoxicações alimentares, e ainda a peste bubónica e a leptospirose, o vosso Gouveia – único, apenas acompanhado pelo Melo, não o Nuno, que esse é só para os pregos – combate, de modo bravo e tenaz, a indiferença a que são botados agora os militares em democracia e tempos de paz, para assim chegar ao cesto da gávea do protagonismo mediático.

    Se os mares bravios de outrora ameaçavam caravelas e corpos, agora não se substime as dificuldades de encerar palavras e poses até ao porto de aclamação pública. Não se subestime, pois, a gesta de Gouveia e Melo, feita não de mapas e astrolábios, mas de soundbites e vaidades.

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    Contam as crónicas que Afonso de Albuquerque, quando conquistou Malaca e se instalou nas Molucas, não perdeu tempo em comunicar os seus feitos. Nem Magalhães, ao circunavegar o globo, publicou boletins diários. Da mesma sorte, Nelson, que despedaçou a frota de Villeneuve em Trafalgar a tiros de canhão, preferiu os seus actos às jactâncias da tinta no papel. Mas Gouveia e Melo, ah, ele é um homem do seu tempo, e entende que a vitória não se forma completa antes de ser compartilhada em alta resolução. Em Full HD, de preferência.

    E aqui chegamos à pergunta que não cala: porque um homem como Gouveia e Melo sente a necessidade de transformar cada operação rotineira numa cruzada épica? A resposta, temo, não está no mar, nem nos búzios, mas na política. Porém, sejamos francos, a vaidade de Gouveia e Melo não é um fim em si mesma; é um meio. Cada comunicado, cada manchete, cada proclamação, cada dentada num prego, sempre em estilo de sobranceira superciliosa empáfia, é um passo em direcção ao Oceano primordial, ou à doce Tétis, isto é, às urnas eleitorais. E, no fim, o narciso só quer um singelo artefacto se chegar à cadeira do Palácio de Belém: um espelho. Ou talvez um pavão.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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  • Crónica de um guru urubu, ou o lacrau ofendido (‘editio princeps’)

    Crónica de um guru urubu, ou o lacrau ofendido (‘editio princeps’)

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. o PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta edição especial, o piparote de Brás Cubas mima o guru urubu Luís Paixão Martins, agora lacrau mercenário, o conhecido ‘agente de comunicação’, que ficou ‘arreliado’ com um ‘furo’ jornalístico do PÁGINA UM sobre o encontro nocturno entre o Chefe do Estado-Maior da Armada e o ministro da Defesa, Nuno Melo, num bar, em Lisboa.


    Não há criatura mais fascinante que um guru urubu, essa figura moderna e versátil que povoa o mercado de opiniões e as antecâmaras do poder. Ora rapina, ora rasteja, ora saltita, mas nunca se esquece da sua natureza – sempre calibrado para bicar e a chafurdar em nome de quem lhe paga a conta.

    É, afinal, um agente de comunicação do século XXI: um escultor de narrativas, um virtuoso da manipulação, e, por vezes, um malabarista das aparências. Um velhaco, que aparenta ser uma ave de rapina, mas, na verdade, só rapina. Porém, no caso em questão, o nosso ilustre guru urubu mostrou que, quando mordido por palavras que doem mais que o seu próprio bico, a compostura pode falhar como uma velha ponte ao vento.

    Eis o caso: num cenário digno de crónica do absurdo, o guru da nossa estória – profissional de “construir imagens” para políticos de gestos tão firmes como gelatina e para empresários de ética tão rígida quanto um elástico – viu-se confrontado por uma sentença proferida pelo director do PÁGINA UM, que ousou nomeá-lo não guru urubu, como deveria, mas, chamando o ‘boi pelo nome’, o fez descer do topo dos brilhantes ares para a lúgubre aba de um calhau, dando-lhe epíteto de lacrau mercenário. Não que tal caracterização seja inaudita; é preciso dizer que a fauna comunicacional está repleta de sevandijas equivalentes, embora, eufemisticamente, os nomeiem com expressões mais cândidas, variando entre ‘spin doctor‘ e ‘traficante de influências’.

    Desta vez, o veneno das palavras atravessou as espessas escamas do dito lacrau. O insulto, ao que parece, feriu-o como um espinho peçonhento, talvez porque, na sua infinita ironia, acertou o alvo com precisão cirúrgica. “Maldito negacionista!” – presumo que tenha gritado o guru lacrau antes de partir para o seu golpe final, que, convenhamos, foi menos de mestre e mais de aprendiz: bloqueio nas redes sociais. Ah, que doce vingança é esta de um clique, que elimina o adversário do horizonte digital como quem apaga uma mosca irritante com um peteleco. Mas, como em tudo na vida, o bloqueio tem o efeito de um ‘boomerang’: longe de silenciar, ainda causa mais vontade de amplificar o eco do conflito.

    E que não se pense que o lacrau ficou apenas no bloqueio. A ofensa ainda latejava como artrose em dia de frio. Talvez o movimento dos ferrões o tenha deixado em dores crónicas, porque não só bloqueou, como decidiu, num raro ataque de prolixidade digital, lançar não um, mas dois posts inflamados sobre o PÁGINA UM.

    A ironia, aqui, é tão espessa que quase pode ser cortada à faca: o lacrau, especialista em gerir crises de imagem, acaba ele próprio preso no turbilhão de uma crise que já não sabe controlar. Talvez por excesso de zelo, ou por uma confiança desmesurada no poder do seu ferrão.

    Agora, sejamos justos: o lacrau mercenário não é figura recente na zoologia social. Desde os tempos de Roma, sempre houve aqueles que vendiam os seus talentos retóricos ao melhor licitador. Mas há algo de tragicómico no seu destino contemporâneo. Imagine-se: passou a vida a vender políticos e empresas aos média, a moldar manchetes e fabricar consensos. E agora, neste pequeno escândalo, vê-se desnudo perante a plateia pública, o veneno de outros a corroer-lhe a reputação que tanto cuidou em maquilhar.

    O director do PÁGINA UM – chamado de “negacionista” por esta mesma criatura – sai incólume, exactamente porque não o conhece, o que só o abona por estar longe da peçonha. Afinal, ele não é feito de artifícios comunicacionais, mas de palavras, e estas são as armas que melhor maneja.

    Resta perguntar, por fim: e se o director do PÁGINA UM o tivesse chamado de serpente venenosa em vez de lacrau mercenário? Seria o lacrau capaz de suportar tamanha metáfora? Ou morderia a própria língua, de tão enraivecido, selando assim o seu destino num ciclo irónico de auto-envenenamento?

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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  • Os arabescos retóricos em negação de Maria Luís Albuquerque: uma reflexão

    Os arabescos retóricos em negação de Maria Luís Albuquerque: uma reflexão

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. o PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta décima primeira edição, o piparote de Brás Cubas arremete contra Maria Luís Albuquerque, a nova comissária portuguesa na Comissão Europeia, por mor da logorreia de negações durante a sua apresentação em Bruxelas.


    Aprecio deveras frases retumbantes e grandiloquentes vocábulos, com dotes para se alcandorarem sobre os muros da volátil memória da plebe, impondo-se como lapidares axiomas que, mesmo se de calcanhares de barro, sempre dignas serão de um Panteão em preito ao efémero, encravando-se nos neurónios como epitáfios para aí se perpetuarem, embora por breves momentos, na impossibilidade de se eternizarem. Por exemplo, o mais famoso Sócrates, José de nominata, aprecia proclamações fortes, que muito eu estimo pelo vigoroso e impetuoso léxico, como “golpada judicial”, “sinistro aparelho de produção das mentiras mais escabrosas”, “profunda canalhice” e “cobardia moral”. São autênticos torpedos retóricos, crivados de paixão e despeito, que erguem o insulto ao nível da arte e transformam uma acusação em epopeia.

    Aliás, com amarga nostalgia relembro tropos seus que, lamentavelmente, caíram em desuso na língua de Camões, como infâmia, acinte e azedume, que outrora envergavam uma dignidade ácida mas sedutora. Num cenário ideal, esses vocábulos deveriam reviver nas vossas pragas diárias, para elevar os impropérios ao sublime, à erudita perfídia, de sorte que o insulto se fizesse com elegância, minorando, ou tornando mesmo elogiosa, a ofensa, e confortando o vexado.

    Esse Sócrates não fez escola neste estilo político, na arte da verborreia, mas há um outro mal, que atinge os políticos, e que, aparentemente, copiaram de um Sócrates menos conhecido, o grego: a logorreia.

    Ora, como sabeis, o tal grego clamou, certo dia, a hora incerta, pelo que poderia ser já noite, um axioma: “Só sei que nada sei”. A frase carrega um irónico paradoxo, fundando-se numa autocontradição ao se afirmar uma sabedoria que, curiosamente, se resume à negação do próprio saber. Trata-se, contudo, de um axioma da negação: em vez de destruir, a negação ilumina. Ao declarar que sabe nada, Sócrates professava o conhecimento de uma única certeza: a da sua ignorância.

    Essa afirmação gera, hélas, um efeito de ouroboros filosófico, a mítica serpente que morde a própria cauda, pois se alguém sabe que nada sabe, então possui pelo menos o conhecimento da própria ignorância. Assim, a máxima não é uma rejeição da verdade, mas uma celebração da humildade intelectual, uma abertura ao desconhecido, que torna o saber genuíno possível ao reconhecer as suas fronteiras.

    Porém, sendo certo que o “só sei que nada sei” funciona como uma vacina contra o dogmatismo e a arrogância, tornando o filósofo num D. Quixote do saber, lançado ao mundo não para possuí-lo, mas para questioná-lo, caiu-se na exageração: negar a negação passou a ser, em circuitos políticos, um exercício de prestidigitação retórica, onde as palavras giram sobre si mesmas, como num bailado de lógica invertida, até que o sentido, ou a falta dele, se dissolve nas sombras do absurdo.

    É como se o próprio ouroboros do discurso devorasse o seu rabo de razão, num ciclo infindável de “eu disse o que disse, mas não disse o que queria dizer”, em que se afirma e desmente com a fluidez de uma brisa maliciosa, deixando no ar apenas um rasto de dúvidas. E, ao fim desse malabarismo verbal, talvez a única certeza seja a incerteza – ironicamente, estamos em face do derradeiro triunfo do sofista.

    E assim chegamos a Maria Luís Albuquerque, a indigitada comissária para os Serviços Financeiros e a União de Poupança e Investimentos, que, em Bruxelas, não poupando palavras, investiu no helénico axioma socrático e saiu-lhe tripla negação para o grau de espinhosidade das suas fiduciárias tarefas: “Não tenho ilusões de que não será nada fácil”.

    A pretexto desta intervenção da ex-ministra das Finanças da ‘terrinha’ em Terras de Brabante, mesmo se dita na língua de Shakespeare, merece uma breve reflexão esta arte política – ou melhor, esta ciência ardilosa – de multiplicar negativas para produzir, não clareza, mas um nevoeiro espesso de ilusões.

    Desde o túmulo, convencido cada vez mais estou, e mais até do que estava quando sobre a terra perambulava, de que o engenho e a nobreza de espírito podem existir tanto nas sinapses que sublimaram Kant, a ponderar sobre a ‘coisa-em-si’, ou nas que afundaram Hegel, a decifrar os labirintos da dialética, como nos impulso da mioleira dos políticos que verborreiam uma alquimia discursiva onde a afirmação se dilui e a verdade se suspende, transformando cada frase numa teia impenetrável de nulidades, como se o objetivo último fosse o de não dizer absolutamente nada, mas disfarçado com eloquência e pompa.

    Ora, mas direis: Maria Luís Albuquerque não esteve ali a enganar ninguém, mas apenas a comunicar. Porém, é aí que entra a questão da negativa sobre a negativa: um duplo ou triplo “não”, ao invés de anular-se como nos manuais de álgebra de um professor entediado, apenas atira a audiência numa espiral de perplexidade. Vejamos antes a palavra como “ilusão” – que evoca imagens platónicas e poéticas de sombras e luzes, com uma leve pitada de Rousseau – precedeu logo duas ou três construções que apenas se justificam para confundir.

    Talvez, ao fim do turbilhão gramatical, o pobre cidadão, exausto, já aceite o discurso como uma verdade intrínseca, como uma segunda natureza. Afinal, se algo é repetido, mesmo com tamanha tortuosidade, quem ousará dizer que nada, absolutamente nada, ali faz sentido?

    Julgo ter sido Nietzsche que, em tirada cínica, defendeu que a mentira serve, em primeira e última instância, para proteger o mentiroso, ou o político faltoso. Assim, se mentir, dissimular, forjar e deturpar são artesanias da política, então nada mais justo que sejam temperadas de pitadas generosas de logorreia com a profundidade de tripla negação e complexidade gramatical bastante para causar tremores a qualquer noviço das letras.

    Na verdade, as negativas dobradas e triplicadas que pululam nas frases políticas, como se quisessem lançar poeira aos olhos do ouvinte, funcionam como uma espécie de defesa prévia contra a indagação; tornam-se uma cortina de fumaça densa, atrás da qual se esconde o mesmo velho temor de que o discurso revele uma fragilidade desconcertante.

    Ao invés dos escritores e poetas, que lançam mão da multiplicidade de significados e da riqueza vocabular para compor as suas obras numa tapeçaria em filigrana, o político limita-se a driblar e desviar, a “não dizer” com prolixidade. Afinal, se como nos diz Fernando Pessoa, “navegar é preciso, viver não é preciso”, para um político “complicar é preciso, cumprir não é preciso”.

    O discurso político hoje deve dizer, ao mesmo tempo, tudo e nada: é como o gato de Schrödinger, presente e ausente na mesma frase. A retórica é tanta, o rodeio tal que talvez o próprio político já nem saiba o que quis dizer. Estamos defronte de um verdadeiro campo minado de palavras, onde o objetivo é deixar um rastro que nada explica, mas que evita o apedrejamento público.

    Prevejo assim que Maria Luís Albuquerque queira, em tom de introspecção perfomativa no final do seu mandato em Bruxelas, declarar sobre o seu desempenho: “Não posso deixar de não acreditar que não há razão para não duvidar de que o meu projecto não tenha fracassado.”

    Poupo-vos ao labor de discernir este enigma de penta-negações digno de teatro do absurdo, onde qualquer personagem, aí sim, deve cair no ridículo, mas com elegância. Sugiro, por isso, à Maria Luís que declare somente: “Acho que fracassei”. Sem pirotecnia verbal nem arabescos retóricos. Inteligível. E fiel à realidade.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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  • Rangel, esse ‘bipedum nequissimus’

    Rangel, esse ‘bipedum nequissimus’

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. o PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Para comemorar a aprovação do registo, o piparote de Brás Cubas, nesta já décima edição, vai para Paulo Rangel, ministro dos Negócios Estrangeiros, e a sua triste figura no aeródromo de Figo Maduro, com a ‘bênção’ de Cícero e Erasmo.


    Ah, meu caro leitor, a grandeza dos homens não se revela somente em batalhas épicas, sob os trovões da guerra ou por cima dos temporais sacudindo impérios. Não! A verdadeira magnificência da intrepidez e da sublimidade na alma humana, além do assombro do seu valor, brilham, ademais das vezes, nos momentos mais prosaicos, em horas de calmaria, no aconchego de um rooftop, quando o sol se põe, em preguiça, no horizonte, e o vento sopra em suave brisa, como quem sussurra à Terra que o dia já se foi, pelo lusco-fusco, mas que há-de vir igual pela aurora sem precisar de toque de alvorada.

    Imaginai, por exemplo, um grande estadista, daqueles que surgem esculpidos em enciclopédias ou moldados em estátuas de calcário, mesmo se, depois, pichadas de grafitos e corroídas pela caca de pombo. Nem sempre vereis relatos, necessariamente, deles a brandir uma espada à Alexandre [o Grande, não o Évora], nem a bradar com a voz de trovão de um Napoleão à beira do campo de batalha. Não, donzelas e cavalheiros, a grandeza de muitos grandes homens, ou mulheres, ou dos géneros que agora dizem existir com letras do alfabeto, pode manifestar-se numa aveludada palavra, por um olhar ponderado, através de um aperto de mão no momento certo. Sem ser na fúria dos eventos, mas sim no silêncio de ponderadas escolhas. Na verdade, quase sempre – ó, paradoxos da vida! –, é no gesto mais simples, no acto mais banal, que se revela a estatura daqueles que se elevam, e levam, para a eternidade.

    Paulo Rangel

    Pensai comigo: é fácil, e até trivial, brilhar quando o mundo exige o clamor dos heróis. Qualquer medíocre, na sorte de uma desventura, se inflado pela urgência do momento, se faz notar no caos. Mas o que dizer daquele que, num dia qualquer, num clima morno e sossegado, diante de uma situação de nada, manifesta uma sabedoria que escapa aos olhos menos atentos? É aqui, senhores, que a verdadeira grandeza se destaca. Não no fragor da tormenta, mas na paciência da brisa; não no ecoar dos canhões, mas no suspiro sereno da paz.

    Mas se assim é, também poderá suceder que seja no presumível bucólico goûter, no previsível fleumático afternoon tea, na esperada serenidade do Kaffeestunde ou na expectável plácida recepção de repatriados no aeródromo de Figo Maduro que se alce um daqueles desprezíveis homúnculos sem qualidades, desprovido de méritos, mas carregado de pretensões.

    Ah, Lisboa, e foi numa dessas tardes, em pleno Outono do ano da graça de dois mil e vinte e quatro depois do Cristo Redentor, que se viu o plenipotenciário Paulo Rangel, vestido e investido de ministro dos Negócios Estrangeiros da República Portuguesa, exibindo-se não como o gigante, que julga ser, apesar da estatura, mas como figura menor que a História tratará de lembrar não pelos feitos mas pelos defeitos.

    Dizia Cícero, que Erasmo fez questão de perpetuar: nem todos os bípedes se revelam dignos, e há homens que, ao ascenderem, se mostram tão mesquinhos que até os quadrúpedes lhes podem ser superiores. O nosso Rangel, meus caros, encaixa-se perfeitamente nessa descrição.

    Afinal, como bem sabemos, nem todos os ministros válidos têm valor, e o nosso Paulo, ajudante do primeiro-ministro não pelo mérito, mas por ser valido, mesmo se deslavado, acabou por confundir a elevação do cargo com o ser grandioso. E assim, como Icarus que ousou aproximar-se do Sol e se saiu mal, também Rangel, em pleno voo de galanterias e ofensas, derreteu as suas frágeis asas de cera no confronto com a púrpura incandescente da sua narcísica altivez, e assim o vi se despenhar, desalado, no chão da insignificância, de onde jamais deveria ter tentado sair.

    Aeródromo de Figo Maduro

    Vejam só, aterrou ele no aeródromo de Figo Maduro, vindo em voo raso do Palácio das Necessidades, como quem se prepara para uma parada triunfal, e algo não lhe caiu no goto. Indignou-se, o bípede, urrando contra uns supostos quadrúpedes, burros e camelos, que o impediram de se pavonear pelo asfalto. E como Xerxes, o grande imperador persa que, numa explosão de vaidade, ordenou que o mar fosse açoitado por afundar a sua ponte, Rangel julgou estarem aquelas alimárias a cometer afronta digna de punição por crime de lesa-majestade. E assim, ofendido no seu pundonor, por meras formalidades protocolares, desatou a gritar ao chefe do Estado-Maior da Força Aérea, o general Cartaxo Alves, como se este fosse um simplório centurião defronte de um César de toga erguida. Ah, a vaidade dos pequenos homens do século XXI.

    Dizem as crónicas que o general manteve a calma dos estóicos, daqueles que já viram o suficiente para saberem que há inimigos muito mais perigosos do que um ministro com ímpetos e altura de Napoleão. Consta que, com a sobriedade que só a experiência concede, limitou-se a observar o espectáculo com aquele olhar de quem compreende a situação melhor do que o próprio protagonista.

    Eis aqui a tragédia do vosso Paulo de Portus Cale: tão ávido em se mostrar gigante, revelou-se mais pequeno do que os seus cinco pés e duas polegadas de altura. Como tantos que se julgam superiores aos demais, ele não perceberá jamais que o poder não reside nos gritos, mas na capacidade de manter a dignidade, mesmo até nas mais corriqueiras situações. Cartaxo Alves, tal como o mar açoitado por Xerxes, não se moveu um milímetro diante das ofensas, porque sabia que quem ofende sem razão já perdeu a batalha.

    Mas a estória, meus amigos, não termina aqui. Não se contentando com uma única cena ridícula, ele precisou de mais. E assim, ao lhe ser apresentada a mão cordial do coronel Abel Oliveira, comandante do aeródromo, resolveu Paulo ‘Calígula’ Rangel, ranger dentes, e em gesto de suprema arrogância, virar-lhe as costas. Não havia ali um inimigo ou uma ameaça, apenas um gesto de cortesia, como tantos outros que sucedem em ocasiões de formalidade, mas o altivo pequeno plenipotenciário assim castigou os afrontosos.

    Tal como Cícero execrou Públio Clódio Pulcro, deveríamos nós proscrever Paulo Rangel chamando-lhe, apropriadamente, bipedum nequissimus, porque se um ministro de Estado chama camelos e burros a militares, mostra não perceber não ser a posição que faz o homem, mas o homem a conferir valor à posição. Por isso, ladeando-te desse ministro, te aviso Luís Montenegro, parafraseando o falecido Marco, não o Paulo, mas o Túlio: “Tu, com este proscrito, com este conselheiro, com este serviçal, que é o pior, não só entre todos os bípedes, mas também entre os quadrúpedes, arruinarás o Estado!”

    Sem este bipedum nequissimus, vaticino, Luís, que também em ruínas deixarás o poleiro; mas poderás, entretanto, escolher se os escombros do teu Governo serão como Roma, ainda glorificada, ou antes como Palmira, absolutamente devastada.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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  • Francisco, que subiu a partir do berço pensando ser do braço

    Francisco, que subiu a partir do berço pensando ser do braço

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. Pareceu assim oportuno ao PÁGINA UM, no contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais. Desta vez, o piparote de Brás Cubas vai para Francisco Pedro Balsemão, no decurso da sua entrevista na SIC.


    As senhoras leitoras e os senhores leitores certamente já se depararam com figuras de incomum bravura, invulgar destreza e inabalável audácia, e que, sagazes e bem capazes, superam as agruras mais terríficas e os mais temíveis obstáculos, contrariando a má sina que sempre os quis arredar do sucesso.

    Está esse vosso mundo pejado desses heróis, alguns aqui ao meu lado, que, arremessados contra o rochedo da adversidade, se soergueram, depois, altivos e, claro, triunfantes.

    Não me é agora mister enaltecer tais personagens dignas dos versos de Camões, porque, recentemente, na ocidental praia Lusitana, ali nos arredores da Quinta da Marinha, se agigantou um espécime mui nobre de fauna humana que coloca rasteiros os voos das águias.

    “De parcas vestes e incomuns percursos”, poderá algum ingrato murmurar à entrada, “será, porventura, este seu, ou nosso, herói oriundo de estirpe modesta?”. Ah, se tal fosse o caso, a história seria menos trágico-cómica e somente heróica!

    Não. Nem sempre as proezas se medem pela superação do braço; também há o capricho do berço, embora o nosso herói, que já agora posso anunciar-vos a nominata – Francisco –, se arraste mais hoje cavalgando um império, outrora brilhante nos fastos da imprensa nacional, em espasmos de uma falência semi-escondida por cortinas de retórica.

    Mas que importa o sol, a treva, a sombra – como clamava o meu patrício Augusto dos Anjos, que se finou aos 30 anos.

    Ou então, como gritava o Álvaro de Campos, alias Fernando Pessoa, na sua Ode Triunfal:

    Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto

    Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,

    Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?

    Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,

    O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,

    O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,

    O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes

    Interessa sim saber que Francisco, meu caro leitor, nasceu envolto nas alvas sedas de uma cuna que não soube senão exalar opulência. Desde a mais tenra idade, o rebento do grande barão dos media lusos, fugaz primeiro líder de um governo da Nação, teve a primazia de comungar com o mundo através de cruzeiros exóticos e outras viagens oníricas que lhe moldaram, por certo, um espírito cosmopolita. “Ainda me lembro de Gilbraltar, do Estreito de Messina e de Corfu”, recorda-nos o jovem herdeiro, qual Ulisses lusitano, parafraseando Homero e a encher o peito com reminiscências dos seis anos de idade, quando a Ryanair, a EasyJet e a Vuelling não faziam ainda voos ao preço da uva mijona, e ainda nos tempos em que havia gentes de Trás-os-Montes que nunca tinham visto o mar.

    Francisco Pedro Balsemão, CEO da Impresa.

    Disso, porém, convenhamos, não é já atributo invejável, nem guardar berlindes em casa, mas, digam-me, desafio-vos: que outras empresas têm a ventura de acolher um líder tão sabiamente lapidado pelo oráculo das MTV Awards, e que, aos treze anitos, desfaleceu ante a imagem mitológica de Kurt Cobain? Não percebi bem se foi por essas alturas que teve ele uma epifania, não para dedilhar guitarra, ou snifar coca, mas para ser jornalista, iludido por testes psicotécnicos. Ah, inocente embriaguez dos infantes!

    Mas a vida, meus amigos, qual senhora austera, encarregou-se de lhe mostrar outros caminhos – “mais pragmáticos”, como assim descreve o infante Dom Francisco. Na verdade, os tais pragmáticos descaminhos levaram-no até à liderança de um império que, tal qual o de D. Sebastião, há muito se perdeu na neblina do infortúnio. Em que, pois, se distingue este CEO de outros tantos figurões cuja presença é requerida em jantares de gala e conferências desinteressantes?

    Em nada. O segredo, revelado na entrevista ao seu canal televisivo, com o pudor de uma aparente confissão, é uma a rara combinação entre a ‘privilegiatura honesta’ e a ‘humildade aristocrática’, atributo daqueles que, alcandorados à torre de marfim, acreditam piamente que o fizeram pelo seu valor e não pelos genes.

    O meu leitor mais perspicaz poderia aqui questionar-se: “Mas como, caro Brás Cubas, se explica este divórcio entre vocação e realidade? Como se passa de um sonhado jornalista, que nunca se exercitou, para a liderança de um grupo de media outrora imponente, regido ao som de violinos para abafar o afundanço?”

    Aí reside o espírito trágico-cómico, que, convenhamos, até engrandece a narrativa do CEO Francisco: é que ele, na sua irremediável cegueira, nunca verdadeiramente se afastou da verve jornalística. “Sempre quis ser jornalista”, insiste, qual mantra de um desejo inatingível por malignas forças, como se as marés do destino, guiadas pelo sopro paternal, o houvessem deitado à deriva numa inóspita e hostil praia, ou na carreira 1706 que sai de Alfornelos às 04h56 em direcção à Avenida da Liberdade para limpar escritórios, tendo ainda de permeio que mudar para a 746, sem esquecer o tempo para preparar o aconchego de mantimentos na marmita para a criançada dejejuar no Agrupamento de Escolas Fernando Namora, na Brandoa.

    Enfim, em vez da pena afiada do jornalista, coube ao Francisco a desgraça do Excel e da acta, do lay-off e da alienação de activos, da negociação de ‘media partners’ e de contratos comerciais de mercantilização do jornalismo, como quem, a meio de uma peça shakespeariana, se vê obrigado a trocar a falange do herói pela figura patética do bufão.

    Ah, loucura! Na verdade, o nosso herói há muito deixou de se ver ao espelho, enredado que está numa presunção tão ridiculamente inflada que o leva a citar antepassados remotos e fábulas dinásticas. “Não foi por ser filho de quem sou que cheguei a presidente”, reitera o pobre diabo com ar grave e punhos cerrados – estou claramente a exagerar na pose, que um herói sempre é contido –, como quem ousa desafiar o bom senso e a evidência.

    Seria risível se não fosse absolutamente patético. Não fosse, de facto, filho do outro Francisco, e este nosso Francisco nunca teria ao seu dispor a confortável poltrona da falência para vergar as costas.

    Ah, mas não são apenas a desmesura e a soberba que iluminam os nossos risos irónicos; há também a ignorância de um mérito desmerecido, um despudor próprio dos filhos de património que, julgando ter alçado o trono por força de braço, não se enxergam como caricaturas do privilégio. Tem ele agora o Expresso, esse emblema de outra era, subjugado agora ao vil e viscoso prato de lentilhas – vendendo a primogenitura do jornalismo por lugar em comendas menores, por contratos publicitários de conteúdo fabricado, e, sempre, com uma genuflexão reverente ao poder. E tem ele agora a SIC, a nau errante a vagar no pantanoso oceano das audiências, mal distinguindo a esfera do entretenimento do abismo do sensacionalismo rasteiro.

    Francisco, qual moderno Polichinelo, a quem nada é vetado, fez-se grande em bravatas menores; acariciou o ego com os louros do pai; gabou-se de conquistas que nunca suas foram. No fim, toda a ruína, todo o desconcerto, toda a falência, serão justificadas, por certo, com as palavras certas – um léxico arranjado para iludir o senso comum, uma retórica de negação contínua que só poderia exalar de um homem que aprendeu desde cedo a brincar fora de casa, alheio à dura realidade.

    Mas isso sou eu a dizer, porque, entretanto, a mãozinha do Estado está aí para adiar a queda deste decadente império, e para dar oportunidade a que Francisco, embevecido com o reflexo distorcido de virtudes que nunca verdadeiramente teve, ainda se mantenha por alguns anos mais como um Romeu provinciano, crendo-se cosmopolita por ter provado os ralos prazeres de uma discoteca londrina em tempos de juventude.

    Triste fim se anuncia, porém, nesta tragicomédia: veremos, um dia, Francisco, o príncipe herdeiro, filho de deuses, sentado numa casa em ruínas, feito CEO por desígnio de sangue e não por tino, cair com estrondo das alturas – não porque tenha tentado alcançar as estrelas, mas porque acreditou, em sua infinita vaidade, que lá residia.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM em processo de aprovação de registo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Quanto ao nome do autor (Brás Cubas), será o pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira nestas crónicas, constituindo apenas uma humilde homenagem a Machado de Assis e ao seu personagem. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou sarcástico.


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  • Que restará das literárias flatulências quando tudo arder?

    Que restará das literárias flatulências quando tudo arder?

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. Pareceu assim oportuno ao PÁGINA UM, no contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais. Desta vez, o piparote de Brás Cubas vai o prefácio de Valter Hugo Mãe na edição de ‘Os Lusíadas’ em comemoração aos 500 anos de Luís de Camões.


    Ah, vaidade! Essa busca pela validação externa, que nos infla o peito, como se fôssemos balões subindo como Ícaro, embora a terra e seus torrões, e também o ridículo, e não o abrasador sol, nos puxe sempre, nestes acasos e preparos, pela ponta dos pés, cruel e irremediavelmente. Razão tinha Matias Aires, com o seu olhar perspicaz, quando desnudou a Humanidade, não poupando um único felicíssimo vaidoso. Por mais que nos embelezemos, com as roupas mais finas, com as cortesias mais elegantes, com as palavras mais eruditas, somos, no fundo, pouco mais que pavões sem plumas, cacarejando orgulhosos no meio de um chavascal charco.

    Bem sei que, a muitos, é a vaidade que os move, que os faz crer no reconhecimento dos seus conterrâneos e na imortalidade quando estiverem na terra, ou em cinzas. Homem sábio, esse Matias Aires que, apesar de nascido na entediante capitania de São Paulo, já pressentia as risadas que damos diante do espelho, nos ensinou que buscamos incessantemente o aplauso, como se o aplauso dos outros nos convertesse em alguma coisa mais nobre do que o pó ao qual regressaremos. O homem, afinal, é vaidoso até quando finge ser modesto, tal como eu mesmo, que agora declamo sobre vaidade, fingindo estar acima dela – e, no entanto, me comprazendo do exercício da palavra.

    Mas se até eu – um escriba póstumo que só se deu a conhecer quando morto – não estou imune à vaidade, pelo menos jamais poderei ser acusado de superciliosa empáfia, porque já se me tinha ido as sobrancelhas quando à estampa deram as minhas póstumas memórias.

    Ah, mas os escribas vivos! Esses, esses sempre ávidos, esses rastejantes que, não satisfeitos em tropeçar nas próprias pernas, ainda insistem em escalar os ombros dos cadáveres alheios. São criaturas, isso admito, afáveis mas petulantes, quase comoventes, não fosse o espectáculo tão grotesco, tão patético, que nos oferecerem, e que se assemelham àquele bufão de feira insistindo em piruetas para um público que nem sequer é de maus costumes.

    Enfim, eu, que morto estou, sim, meus senhores e senhoras donzelas, defunto com todas as letras e os pingos nos is, vejo-me agora compelido a escrever sobre os vivos que tentam parasitar a fama dos mortos, quais carraças literárias agarradas ao osso do sucesso póstumo.

    Eu, Brás Cubas, que só permiti a minha própria escrita sobre mim mesmo após a conveniente travessia do Aqueronte, ergo-me agora do túmulo, depois de muito capim ter já comido pela raiz, para emitir um aviso. Cuidai-vos, vivos!, cuidai-vos e não vos atreveis jamais a tomar o meu brilho literário para iluminar as vossas estreitas existências, incluindo literárias. E ouso dizer-vos: aquele que se arriscar a tal ofício, receberá mais que um simples peteleco deste espectro insolente que daqui vos fala. Ah, sim! Ficará esse impertinente desditoso com verrugas nos pés, que nem o Miguel Vila Pouca, por muito que José Gabriel Quaresma interceda, será capaz de as arrancar com cinzel, espátula ou qualquer engenhoca do século XXI. Ficará o malandro a coçar os pés enquanto tenta, em desespero, alinhar meia dúzia de ideias que valham a tinta que nelas se gastará.

    Convenhamos, porém, haver algo mais trágico que um simples escritor medíocre: é o bajulador que, com ar grave, tenta elevar-se ao fazer encómios aos maiores gigantes mortos. Ah, como é risível a figura de quem se espreme em exaltações banais, na esperança vã de que, ao tecer loas ao imortal, consiga ele próprio imortalizar-se. Estes medíocres são incapazes do silêncio, de aceitarem ser varridos pelo esquecimento de um modo discreto. Não! Antes, querem empoleirar-se nas costas de um Camões, esperando que o grande Luís, já também sem o olho que lhe restou, os veja, e que, ao contrário do Herberto Helder (poeta pouco dado a abrir uma porta), grite da janela: só aceito o Valter Hugo Mãe a dar-me a mão para eu deixar de ser anão!

    [devo antes escrever valter hugo mãe?]

    Valter Hugo Mãe, vestido e com barbas, antes de prefaciar ‘Os Lusíadas’.

    Ah, dizem-me que o bom do senhor Lemos, valter hugo de nominata, antes de se apodar da mãe (ou do mãe) é escritor de renome, premiado mesmo com o Prémio Saramago – uma láurea que, presumo, serve para enfeitar prateleiras e envaidecer almas pequenas –, e tornou-se famosos por terras de Pindorama desde que, em 2011, chorou em Paraty e causou cachoeira de lágrimas numa plateia. Ainda pensei, de início, que ele tinha cantado, mas afinal, não, só leu mesmo uma carta.

    Confesso-vos que eu, defunto curioso, ou curioso defunto, ainda tentei mas não consegui passar da terceira página de qualquer obra por ele parida. Não foi sequer por estilo, mas por paciência. As suas palavras deslizam diante das minhas desidratadas órbitas, e tudo aquilo me parece um exercício de banalidades. Armado em original, forçando uma profundidade que mal passa de um poço seco, onde nem a mais mísera gota de talento faz eco.

    E o que dizer da sua pose estudada, daquele culto da auto-imagem tão próprio de quem se acha enigmático e especial? O homem fotografa-se em todas as posições possíveis e imaginárias: ora encarando o infinito, ora deitado no chão como um mártir moderno, ora – pasme-se! – nu. Sim, nu, como se a nudez lhe trouxesse alguma dignidade literária. Ainda que prefira a nudez à roupa que o cobre de clichés, nem nu lhe encontro graça. O que hei-de inventar?

    Mas o ridículo (ou a estupidez, tanto faz), como dizia Einstein, segue no infinito, e gostava de saber quem foi a besta que julgou que valter hugo mãe deveria prefaciar a edição comemorativa de ‘Os Lusíadas’ a pretexto dos 500 anos do nascimento do Camões. Ah, só esta ideia bastaria para o grande épico arrancar o segundo olho e atirar-se ao Tejo, em desespero. Como pôde a Porto Editora, em sua suposta sapiência, permitir tamanho desaforo? Leio o dito prefácio, em sete parágrafos – imaginem se fosse em dez cantos – e nem sei por onde começar.

    Estátua de Luís de Camões no Gabinete Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro.

    Com toda a sua pose, vem ele nos falar de um “espaço imaterial” que nos implica profundamente. Ora, senhor mãe, eu pergunto: quem, neste reino dos vivos e dos mortos, pode levar a sério tamanha verborragia? Espaço imaterial, sim, e o que mais? A nuvem dos sonhos? O sopro etéreo da existência? Tantas palavras ocas, soltas ao vento, que não se agarram a nada, mas que, no entanto, aspiram a ser algo profundo, algo “inesgotável”, segundo o próprio.

    Ah, prezado valter hugo mãe, sois um hábil artífice de frases de efeito, um ourives de máximas ocas, um filósofo das grandiosas metáforas vazias, um alquimista de balofas paremias, um maestro na sinfonia de ampulosas inanidades! Nem sei se a tua pena desliza sobre o papel ou se, de facto, pensas que alças voos tão altos que nós, reles mortais, nos contentamos em admirar a tua sombra.

    Vejamos: escreves que “domar o Adamastor e contar como se domou o Adamastor podem ser grandezas semelhantes.” Ah, sim, claro! Domar monstros míticos e tagarelar sobre isso devem, sem dúvida, estar no mesmo patamar de grandeza! Afinal, nada mais audaz do que vencer uma tempestade atlântica e, logo em seguida, puxar uma cadeira e narrar o feito como quem descreve uma tranquila manhã de domingo no parque. Senti-me quase tentado a domar o meu Adamastor pessoal – quem sabe aquela conta de padaria que nunca quitei.

    E, sobre a arte, esse cofre de tesouros que “quanto por mais gentes se distribui, mais rica se torna”! Oh, valter, valter, que prodigiosa economia inventaste! E eu que, por ignorância, acreditava que o valor da arte residia na sua singularidade, na sua beleza, na sua raridade, sou agora educado por ti! Que fortuna maior há do que ver a arte convertida em moeda corrente, que circula entre os dedos de todos, multiplicando-se como os pães da fábula bíblica? A cada novo olhar, eis uma pepita de ouro a surgir, como por mágica!

    Camões, coitado, que o diga – a sua epopeia já deve estar mais rica do que qualquer baú de tesouros do Ali Babá, embora tenha ele morrido na penúria. Ai, Portugal, como bem gritou o Almada Negreiros, a pátria onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de Camões! E assim eis-te, valter, prestes a sacar uns cobres por um reles prefácio de sete parágrafos sobre quem escreveu dez cantos em perfeitos versos decassílabos heróicos com oitavas-rimas. Meu sacripanta!

    Valter Hugo Mãe, vestido e sem barbas, antes de prefaciar ‘Os Lusíadas’.

    Só te perdoo porque, enfim, nos ofereces pérolas de basófia: “É preciso amar Camões como um diamante que nasce a partir das carnes vivas e mortas, do que floriu e do que se viu deitado a escombros.” Ah, que imagem pungente! Um diamante brotando de carnes mortas e vivas, um verdadeiro milagre da Natureza! Talvez seja um novo ramo da Geologia, que desconheço, em que as pedras preciosas emergem não de minas profundas ou de riachas obscuros, mas de necrotérios e de jardins floridos, ou de um talho e de um curral de bácoros.

    Quem diria! Afinal, amar Camões está já longe de ser uma questão de gosto literário, mas antes um exercício de espeleologia emocional, onde escavamos os escombros do passado em busca da jóia perdida entre cadáveres poéticos. Só me pergunto, ainda, se o Camões, o bom do zarolho, lá nas suas eternas Ilhas dos Amores, ao ouvir tudo isso, solta um riso sarcástico ou um suspiro cansado. Enfim, valter hugo mãe, tu que julgas domar a língua do Vate com a mesma leveza com que outros controlam mostrengos, escreves como quem monta fogos de artifício: brilhas por instantes, deixas o rastro no ar, mas depois, ah, depois, parafraseando Sá de Miranda, que farei das tuas literárias flatulências quando tudo arder?

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM em processo de aprovação de registo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Quanto ao nome do autor (Brás Cubas), será o pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira nestas crónicas, constituindo apenas uma humilde homenagem a Machado de Assis e ao seu personagem. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou sarcástico.


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  • Uma sarrafada no jornalismo mas sem verrugas nos pés

    Uma sarrafada no jornalismo mas sem verrugas nos pés

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. Pareceu assim oportuno ao PÁGINA UM, no contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais. Desta vez, o piparote de Brás Cubas vai para José Gabriel Quaresma, que se assume como jornalista & ‘anchor’ da CNN Portugal, ‘media trainer’e promotor de uma clínica de podologia.


    José Gabriel Quaresma é um espécime digno de estudo em qualquer gabinete de curiosidades sociais e antropológicas, um verdadeiro campeão na arte da elasticidade ética. Este prodígio, iniciado na imprensa desportiva – onde em incerto dia, por certo, terá relatado ou comentado ou tergiversado, em qualquer dos casos com fervor, o enredo épico de um Merelinense-Riopele, como se o Johnny Pirulito, nascido e criado em São Pedro de Merelim, fosse a reencarnação de Homero, não o Serpa d’A Bola, mas o da Ilíada ,– encontra-se agora numa complexa demanda: sarrafada no jornalismo, que vale sempre a pena, se os despojos concederem pilim e, de permeio, se sumirem excrescências.

    Com efeito, despindo-se já há muito das nobres vestes de especialista do ludopédio, trocou ele agora o gramado pelos solados – não há mais euforia ao golo chutado, mas temos agora, nele, o drama caloso dos pés alheios. Sim, meus amigos, José Gabriel Quaresma – que consegue, sem dietilamida do ácido lisérgico, ver “coisas mágicas” numa conversa com Ana Mendes Godinho –mergulha, neste momento, os seus talentos a pés juntos como embaixador da nobre ciência da… podologia.

    Jose Gabriel Quaresma, que se auto-apresenta como “jornalista & Anchor da CNN Portugal” e “Media Trainer”.

    Tendo-me finado nos tempos de Dom Pedro II, o nosso aqui de Pindorama – ainda Charles William Miller era um moleque de São Paulo que nem sequer imaginava vir a dar uns pontapés numa bola no Saint Mary’s Football Club, na Velha Albion –, concedo, pelo que me foi sendo permitido assistir deste lado, que, tal como o próprio futebol, também o jornalismo desportivo é uma forma de arte, uma poesia em movimento, um espaço onde os grandes espíritos podem divagar sobre os matizes tácticos de um empate suado. Nada percebo de matizes, em verdade, mas José Gabriel Quaresma percebe. Porém, tudo cansa. E assim, cansado de cantar as glórias e misérias da esfera de couro, e de debitar o teleponto, e de fazer entrevistas espúrias, decidiu José Gabriel Quaresma que, na verdade, o grande campo de batalha da Humanidade é outro: os pés.

    Ah, os pés! Esses que, na sua modéstia, carregam o peso do Mundo e, ao que parece, também os delírios empreendedores e de marketing de certos jornalistas.

    Mas não é de se estranhar. Em perspectiva, sempre soubemos que José Gabriel Quaresma tinha uma queda – ou seria melhor dizer, um tropeço? – pela autopromoção e pelo marketing um tanto quanto escorregadio, mesmo se voando, por vezes, no aconchego da Força Aérea. Aquilo que começou com a sua entrada no fascinante universo do pomposo ‘media training’ – uma espécie de alquimia moderna onde se transforma uma fala truncada em eloquência estudada, para endrominar o povoléu – rapidamente evoluiu para algo mais… tangível.

    Qual a razão de esconder uma ilegalidade quando tudo se pode fazer às claras?

    Ora, se ele já ensinava, avidamente, tanto a militares como a civis, que nenhum negócio se deve descartar, a não trocarem os pés pelas mãos em entrevistas, nada mais natural que passar a ensinar, também, a não se porem as mãos – ou os pés – em tratamentos errados.

    Portanto, melhor do que aconselhar a coluna perfeita para a câmara, José Gabriel Quaresma recomenda agora o bem-estar pedestre onde, graciosa e elegantemente, se tratou. E como promove! Com um entusiasmo digno de um vendedor de elixires miraculosos em feira medieval. Notem só o enunciado sublime recentemente derramado nas redes sociais por este “Communication Specialist”, e que eu tomo a liberdade de transcrever, com o devido respeito que tal prosa, no original, merece:

    Parece estética e também é! Mas, é, sobretudo, bem estar e saúde! Sobretudo, isso! 🙂 Unhas destruídas por causa da corrida e do Muay Thai. Verruga plantar = prego espetado na planta do pé há anos – com uma Maratona e 20 meias maratonas pelo meio – ! 🦶 Tantos anos depois, finalmente, um pé(s) novo(s), sem dor!🚀 Obrigado, Miguel Vila Pouca, pela excelência, profissionalismo, conhecimento, diferenciação, simpatia. ✨ E, já agora, por me explicares a importância e a abrangência da podologia no nosso bem estar! 🙏 Não imaginava 🤷🏽‍♂️ Na verdade são os pés que sustentam tudo!…🧿 Mais uma razão para não meter os pés pelas mãos 🙂‍↔️‍Centro Clínico Andar”.

    Ah, que espectáculo! Que lirismo dos calcanhares! José Gabriel Quaresma, um artista, desenha diante dos nossos olhos um retrato sublime da jornada heróica do seu próprio pé – um pé que, ao contrário dos mortais comuns, atravessou maratonas e meias-maratonas, na Grécia, presumo, com uma verruga plantar como companheira fiel.

    É um jornalista? É um ‘media trainer’? Não! É um mercador.

    E que subtileza. Não é qualquer um, e somente poderia ser um “Communication Specialist” e um “Anchor & Senior Journalist”, que se atreve no mesmo parágrafo a usar uma metáfora bíblica – um “prego espetado”, lembrando a cruz – e o emoji 🚀, mas aí está a genialidade de um homem único – um homem que concilia o sublime e o ridículo com a leveza somente alcançada pelos mais refinados trapaceiros da retórica.

    Agradecimentos públicos a Miguel Vila Pouca pelo “profissionalismo, conhecimento, diferenciação, simpatia”? Certamente, porque nestes vastos negócios é fundamental haver simpatia. Ou empatia, mesmo quando somente se vislumbra uma superciliosa empáfia. Enfim, nas mãos do Vila Pouca o pé do cliente não precisa apenas de muito alívio, mas também de uma pitada de charme na hora da remoção da verruga – e se for feito sob a forma de promoção através de um jornalista comercial, tanto melhor.

    E que dizer mais do maravilhoso “São os pés que sustentam tudo!” – quanta verdade condensada em frase tão curta! Quem, afinal, poderia nos revelar, senão José Gabriel Quaresma, que o eixo do cosmos repousava tão humildemente sobre os nossos calcanhares? Nietzsche, que dizia que “Deus está morto”, talvez devesse ter conhecido José Gabriel Quarema antes de proferir tal declaração. Se assim fosse, o prussiano teria descoberto que a chave para a redenção humana estava, afinal, na podologia.

    Enfim, com Miguel Vila Pouca e o Centro Clínico Andar, talvez José Gabriel Quaresma não salve a sua alma – eu próprio não me acho a salvo de nada, sobretudo ao ridículo dos outros –, mas, ao menos, posso garantir que os seus pés caminham em próspero rumo, aliviados do fardo das verrugas.

    Os pés como revelaçoes cósmicas.

    Agora, se permitirem, faço uma pequena pausa para reflectir sobre a transição deste jornalista que, outrora, nos encantava com as suas narrativas de grandes conquistas futebolísticas – se calhar, exagero –, e que hoje nos educa sobre a importância do bem-estar plantar, enquanto “nos mostra as passagens da vida vista da janela “, mas só para quem “gosta de coisas mágicas”, sobretudo com a Ana Mendes Godinho. Eis-nos aqui, Senhor, contemplando um notável monumento de versatilidade!

    E quanto à Deontologia e à Ética jornalística? Ah, isso são ninharias para espíritos tão elevados como o de José Gabriel Quaresma, que já transcendeu as amarras das profissões mortais para trilhar o caminho divino da multifuncionalidade. Jornalismo, “media training”, lambe-botismo e podologia – tudo cabe na sua paleta, contanto que, claro, haja um bom contrato de marketing envolvido.

    E assim seguirá, sem verrugas nem mácula, a carreira de José Gabriel Quaresma, exemplo ímpar de como, neste vasto mercado de trabalho, o importante não é exactamente para onde seus pés estão indo, mas sim quanto você pode facturar com eles, mesmo se vergastando o Estatuto do Jornalista. Afinal, como o próprio diria, por certo, com uma piscadela, talvez não tão boa como a do José Rodrigues dos Santos, mas com um emoji voador, importante mesmo é “não meter os pés pelas mãos”. E se houver calosidades, o Miguel Vila Pouca trata.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM em processo de aprovação de registo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Quanto ao nome do autor (Brás Cubas), será o pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira nestas crónicas, constituindo apenas uma humilde homenagem a Machado de Assis e ao seu personagem. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou sarcástico.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

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  • Exaltação a Rangel, ou o terremoto de Sines (em versão canónica e não-canónica)

    Exaltação a Rangel, ou o terremoto de Sines (em versão canónica e não-canónica)

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. Pareceu assim oportuno ao PÁGINA UM, no contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais. Desta vez, o piparote de Brás Cubas vai para Paulo Rangel, o ministro que, qual Pombal do século XXI, após as ondas telúricas, levantou uma Lisboa que não caiu.


    Das misérias humanas, sei eu bem, embora não tenha, como sabeis, transmitido a nenhuma criatura esse legado, mas jamais deixei de me interessar pelas idiossincrasias da espécie, especialmente quando se trata de comparar a minha ilustre pessoa à do meu ilustre amigo Quincas Borba, pouco dado agora, neste estado, às escritas, mal-refeito ainda do estado de penúria e desemparo com que se finou da vida.

    Mas vamos, então, ao que interessa. Como tendes conhecimento, eu, Brás Cubas, sou o autor da “primeira narrativa póstuma do Brasil”, e, portanto, devo ser respeitado. Não é todo defunto que se dá ao trabalho de contar a sua própria história, ademais com o brilho de minha pena, afiada pela navalha da ironia e do sarcasmo, para vos deixar um ‘património do nada’. Já o meu amigo Quincas Borba quis, com o seu Humanitismo, criar uma filosofia que mais não será que egoísmo, disfarçado sob um véu de altruísmo, e que mais não nos deu do que a cómica expressão “Ao vencedor, as batatas” – que, para ser honesto, e sabendo-se que estas solanáceas se comem, assim concedem, na melhor das hipóteses, escatologicamente, uma porcaria.

    Alegoria do Terremoto de 1755, de João Glama Ströberle, exposta no Museu Nacional de Arte Antiga.

    Mas não me perca a atenção, caro leitor, pois as diferenças entre nós são cruciais. Enquanto eu, Brás Cubas, fui um desocupado crónico, que dedicou sua vida ao ócio e às frivolidades da alta sociedade, Quincas Borba teve a ousadia de ser um homem de ideias — não menos absurdo por isso.

    Agora, sejamos sinceros: entre o ócio intelectual que me caracterizou e a filosofia insana de Quincas Borba, o que é mais nobre? Difícil dizer, caro leitor, difícil dizer. De qualquer modo, ambos tivemos nossos momentos de glória.

    Sabemos todos que as glórias surgem, as mais das vezes, das desgraças. E, ah, meu prezado leitor, mas não nos devemos atender em demasia ao conceito de desgraça. Por exemplo, na transacta semana, a cidade das sete colinas, e arredores, foi sacudida por um terremoto. Uma desgraça certa se não fosse a realidade pregar uma peça: o tremor, ao invés de devastar tudo, não passou de um tremelique inofensivo, que nem telha fez cair. No entanto, se a terra não se moveu com grande entusiasmo, já a alma dos políticos, ah, essa sim, tremeu de excitação! Que ocasião perfeita para se glorificarem, como se tivessem salvado a cidade de uma hecatombe bíblica.

    Agora, imagine, leitor, eu e Quincas Borba nos reunimos em torno desse evento tão magnânimo, discutimos forma de honrar o terremoto de Sines de 2024, com artes de Voltaire em 1755. E daí a nada estava Quincas tomado por uma inspiração doida, a compor versos sobre a “grande vitória do espírito humano” diante do “inesperado cataclismo”. Segundo ele, o Humanitismo havia provado sua força mais uma vez, pois, mesmo diante do nada, o ministro Rangel fora capaz de transformar o vazio em glória. Ah, que bela reviravolta da lógica! Glorificar-se por sobreviver ao que não aconteceu é mesmo um feito digno de nota.

    Eu, por outro lado, não pude deixar de me divertir com tamanha patacoada. Que poema, que nada! Propus que escrevêssemos algo mais adequado ao contexto: uma ode à inutilidade da prontidão política, que se exibira com pompa e circunstância diante de um abalo que nem o Serafim acordara.

    Paulo Rangel, o Pombal do século XXI.

    Não chegámos a consenso, embora tivéssemos trabalhado com afinco e denodo. Quincas Borba pretendeu linguajar grandiloquente e heróico, como se a resposta do Governo tivesse sido uma vitória monumental – e merecesse as batatas. Já eu, preferia tom mais sarcástico e jocoso. Divergimos, e portanto, como sucede a bons políticos, criámos cada um seu partido, partindo a concórdia.

    Assim, a mim saiu-me isto:

    Ó Terra ingrata, que em teu forte bramir,

    Lisboa em pó já fizeste abater.

    Agora, tremes mas sem força a ferir,

    Tão leve o abalo que nada há-de ceder.

    Se outrora o Tejo em ondas te acolheu,

    E a cidade em chamas o céu ofendeu,

    Hoje, em Sines, apenas murmurou

    Um fulgor brando, que o sono não quebrou.

    Mas, ó governos, tão prontos e sagazes,

    Ao menor tremor, do que sois capazes!

    De, em alta voz, a todos proclamar:

    Que prontas estão as defesas a marchar.

    Ó Rangel, ministro de virtude,

    Que, com firme e solene atitude,

    Te ergueste, qual gigante pela paz,

    Pronto a defrontar o que a Sorte traz.

    E se em Setecentos, o grande Pombal,

    Com mão sábia, reconstruiu Portugal,

    Tu, Rangel, no abalo que nada derribou,

    Firmaste a fé em terra que jamais tombou.

    Em Belém, Marcelo, em voz segura,

    Exaltou a prontidão que, em tal altura,

    Fez da ameaça um exercício vão,

    Mas onde o Estado mostrou perfeição.

    Ó, como tal Governo é capaz

    De, na menor crise, erguer-se audaz!

    Pois se a Terra treme, sem destruição,

    Louvores mil à força da Nação.

    E se assim cantamos, em verso aclamado,

    O sismo que nenhum deixou acamado,

    E que, em verdade, nada abalou,

    Foi pela grandeza de quem não hesitou.

    Camões, visses tu como se faz,

    Como quem nos governa é falaz…

    Pois não sendo a ruína o qu’o valor mede,

    É à prontidão qu’o perigo cede.

    Por sua vez, ao meu amigo Quincas Borba, já pouco humorado, ademais por, por mofice, lhe afiançar ser eu a seguir o cânone, saiu-lhe apenas isto:

    Ó Terra ingrata, o teu forte bramir,

    Lisboa em ruína ele já fez cair.

    Mas, hoje, em Sines, apenas murmurou

    Um sismo brando, que a casinha não quebrou.

    Ó Rangel, ministro sem engano,

    Com tal destreza evitaste o dano!

    Ergues-te, qual gigante, sem tardança,

    A defrontar a Sorte com a Esperança.

    Se em Setecentos, se alevantou Pombal,

    Com sábia mão, a reconstruir Portugal,

    Tu, Rangel, no abalo que nada derrubou,

    Atinaste que a terra não tombou.

    E, na praia de Belém, com voz segura,

    Marcelo louva a prontidão que n’altura,

    Fez da ameaça um trabalho são,

    Onde o Estado mostrou a perfeição.

    Ó, como tal Governo é capaz

    De, na menor crise, erguer-se audaz!

    Pois se a Terra treme, sem destruição,

    Louvores mil à força da Nação.

    E se assim cantamos, em versos aclamados,

    O sismo que deixou a todos acordados,

    Mas que, em verdade, nada abalou,

    Foi pela grandeza de quem não hesitou.

    Camões, visses tu o que se faz,

    E do que quem nos governa é capaz…

    Pois, não sendo a ruína o que o valor mede,

    É à prontidão qu’o perigo cede.

    Agora, proponho aos nossos leitores que decidam a quem pertencem as batatas.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM em processo de aprovação de registo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Quanto ao nome do autor (Brás Cubas), será o pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira nestas crónicas, constituindo apenas uma humilde homenagem a Machado de Assis e ao seu personagem. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou sarcástico.


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    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

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  • O Alexandre, que não é grande ‘coisa’ na arte da escrita

    O Alexandre, que não é grande ‘coisa’ na arte da escrita

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. Pareceu assim oportuno ao PÁGINA UM, no contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais. Desta vez, o piparote de Brás Cubas vai para Alexandre Évora, um pivot com ares de comunicador, que decidiu assassinar o português, a língua.


    Neste vosso tempo, com a poderosa espada da turba digital e o escudo do cancelamento impondo uma superioridade moral, sem sair do conforto de cadeiras ergonómicas, ou do sofá, temo ser incompreendido ao preparar-me, eu um branquela, embora enegrecido por quase um século e meio de cadáver, para dar uns petelecos no jornalista Alexandre Évora. E vejam que é um mero peteleco, nem sequer é um tabefe, e muito menos umas chibatadas, mesmo se metaforicamente merecidas no caso em juízo por conta de se tratar de um jornalista a maltratar a língua portuguesa.

    Convenhamos que seria, passe a intencional redundância, mais conveniente ser o meu criador, o próprio Machado de Assis, homem de tez mais bronzeada do que a minha, a curvar a ponta do indicador até apoiar a unha sobre a cabeça do polegar e desferir-lhe o tal peteleco na orelha, para pelo menos aprender a não envergonhar mais a língua de Camões, enegrecida em grau superlativo pela má casta de jornaleiros.

    Enfim, em abono da verdade, longa vida desejo a Alexandre Évora, porque, salvo todos os horrores, sempre me deleito com os monumentos ao pedantismo gramatical e ao descaso sintático, especialmente provindo de alguém impecavelmente vestido, lencinho no bolso do paletó, mãos depostas como vem nos livros de fotogenia, barba e cabelo à medida, e gravata a matar tanto quanto ele chacina o seu instrumento de trabalho: a língua.

    Enalteçamos este hino ao disparate: em apenas uma frase de apresentação, Alexandre Évora não apenas tropeça, mas se esparrama de forma desajeitada numa cacofonia de vírgulas mal colocadas, se colocadas, redundâncias desnecessárias e uma estrutura que faria corar de vergonha até o mais complacente dos revisores.

    Detalhemos, para o retalhar. Comecemos pela própria essência da frase: “Pessoa que tem por profissão trabalhar no domínio da informação, num órgão de informação social numa publicação periódica escrita ou na televisão, na rádio, na Internet.” O sujeito, uma suposta “pessoa” cuja profissão é trabalhar no tal “domínio da informação”, já nos faz arquear sobrancelhas, e rezar pelos anjinhos.

    Que definição brilhante, que originalidade esta, do majestático homem da moderna televisão, que jamais poderia simplificar aquilo que cabia numa única palavra… como, deixem cá ver… já sei: jornalista. Não: Alexandre Évora quis-nos presentear com a sua definição de jornalista, e ele é, lá está, pessoa com aversão patológica à simplicidade. Qual o motivo para se usar uma palavra quando se pode enrolar o leitor numa teia de descrições redundantes e tautológicas, não é mesmo?

    A estrutura da frase é, com efeito, uma jóia rara. Imaginem o processo de pensamento de Alexandre Évora: o sujeito começa com uma tentativa de definir “pessoa”, mesmo não sendo claro por que motivo essa definição seria necessária. Depois, Alexandre Évora perde-se num labirinto de preposições e complementos que, ao invés de esclarecer, obscurecem. “Domínio da informação” é tão vago que não diz absolutamente nada, somente usada para dar ares de erudição. Afinal, que jornalista de verdade não se sentiria tentado a elevar a trivialidade da sua ocupação a (vejam se não soa melhor?) um “domínio”?

    Ah, mas não paremos por aqui! O uso indiscriminado de vírgulas, complementado aos ares de bacoca erudição, é mui digno de nota, ou talvez mais digno de um prémio de desrespeito à pontuação. A vírgula, aquela invenção gramatical que serve para separar elementos da oração de maneira lógica e coerente, é jogada por Alexandre Évora como se fosse sal lançado aleatoriamente num prato. Maravilha: “No domínio da informação, num órgão de informação social numa publicação periódica escrita ou na televisão, na rádio, na Internet.” Notem como a vírgula é tratada com um desprezo quase heróico. Uma vírgula antes de “num órgão de informação social”? Pra quê, não é mesmo? A regra da clareza deve ter sido abolida por decreto particular.

    A repetição do termo “informação” é outra faceta da vaidade deste texto. É como se o autor estivesse se certificando de que o leitor compreendesse, de uma vez por todas, que estamos, de facto, falando de informação. E caso houvesse alguma dúvida sobre isso, ele faz questão de enfiar essa palavra na nossa garganta várias vezes, até que estejamos sufocados com a obviedade.

    E que tal a menção à “publicação periódica escrita ou na televisão, na rádio, na Internet”? Aqui vemos o autor se embrenhando numa selva de conectivos que não têm destino certo. Se um jornalista escreve “ou”, talvez seja prudente não seguir com uma lista tão desconexa. Primeiro, “publicação periódica escrita” parece estar sozinho, um conceito isolado na sua magnificência sem ser contrastado com “televisão, rádio, internet”. E se tivermos a audácia de analisar o conteúdo, perceberemos o quão inútil essa separação é: óbvio será, menos talvez para o próprio Alexandre Évora, que as informações se espalham por esses meios; não havia ‘nexecidade’ de um elenco que mais parece conta de padeiro.

    E então chegamos ao grande final. Este Alexandre, que não é Grande ‘coisa’ na arte da escrita, aventura-se por uma selva de conectivos, cada um mais perdido do que o outro. “Publicação periódica escrita ou na televisão, na rádio, na Internet” – escreve ele, num elenco desconexo que não vai a lugar nenhum, a não ser talvez ao prémio de confusão gramatical. E para finalizar com chave de ouro, esquece até a última vírgula antes da conjunção “e”. Sim, até essa vírgula se sacrificou no altar da incompetência gramatical.

    Resumindo, uma frase a figurar como exemplo negativo em qualquer manual de estilo, jornalístico ou da antiga quarta classe, com direito à palmatoada com a ‘menina dos cinco olhos‘. Mas, no fim, sempre a lição se perpetuará: por mais vaidoso que seja o jornalista, por mais elevado que ele se considere no seu “domínio da informação”, a superciliosa empáfia jamais compensará a falta de habilidade em escrever de forma decente.

    Até breve, e um piparote. Ou um peteleco.

    Brás Cubas


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  • Rondadas com flic-flac e dois giros e meio no ar

    Rondadas com flic-flac e dois giros e meio no ar

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. Pareceu assim oportuno ao PÁGINA UM, no contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais. Desta vez, o piparote de Brás Cubas vai para os jornalistas que fazem rondadas com flic-flac e dois giros e meio no ar, enquanto mercadejam notícias.


    Ao contemplar, do meu etéreo descanso, o cenário contemporâneo da vossa Pátria, sou agora levado, caro leitor, a comparar a intricada dança entre jornalistas no meio da arena política e financeira com as rondadas seguidas de um flic-flac e dois giros e meio no ar com que Rebeca Andrade perfumou as Olimpíadas de Paris. A minha patrícia arrecadou merecido ouro, depois de anos de esforço, enquanto os jornalistas portugueses não param de o arrecadar.

    Ah, mas os jornalistas portugueses são, convenhamos, mais discretos na sua arte; não andam aos pulos, nem recebem palmas nem a palma, embora se mostrem exímios acrobatas, gingando graciosamente como donzelas num baile! Enfim, estrelam em noite de gala, convivendo com os demais, seguindo os conselhos de Erasmo de Roterdão. Permitam-me, pois, vestir a máscara da ironia e empunhar a pena do sarcasmo, ao melhor estilo que um defunto autor possa compor, para vos narrar a promíscua relação que ora se desenrola, quase mesmo defronte dos vossos olhos.

    Imaginem, se quiserem, um jornalista dos vossos dias. Chamemo-lo D.A., embora ele seja mais adepto de receber. Como outros, D.A. é homem astuto – e se fosse mulher, seria astuta –, de olhar penetrante e sorriso fácil, bem-vestido e melhor falante, dotado de uma rara habilidade de transitar entre a notícia e a bajulação, com o negócio no nariz. Dir-se-ia que D.A. nasceu para a arte de bem-dizer, mesmo mal sabendo escrever. Na verdade, para entes do seu quilate, basta ser versado na arte de bem entreter, desde que os seus artigos fiquem carregados de um verniz de imparcialidade, enquanto dali escorre a mensagem que deseja para benefício dos políticos e dos homens de negócios de sua feição ou afeição.

    Eis, portanto, que depois de muita tarimba, D.A. recebe os convites para jantares. Não uns jantares quaisquer, mas com as altas esferas do poder. Lá estão, à mesa, políticos de renome, senhores de negócios e outros pássaros raros da fauna social. As taças tilintam, as risadas ecoam, e D.A., qual cortesão do Ancien Régime, desliza suavemente, entre uma e outra conversa, pescando informações e semeando as suas pretensas influências.

    “Ah, senhor doutor D.A,,” diz-lhe um ministro, “as suas palavras são sempre um bálsamo para nossos eleitores, digo, leitores. Precisamos de homens como o senhor, que saibam compreender as nuances do poder e as expliquem ao povo; essa é a verdadeira função do jornalismo independente como alicerce da democracia.” Convém que isto seja acompanhado com música de violino, mas não é necessário.

    E D.A., com ar sisudo mas sorriso nos olhos, sempre responderá: “Fazemos o que podemos, digo, o que devemos, senhor Ministro, pelo bem da Nação, claro está, e do povo, contra a desinformação velhaca, que deve ser atacada pelo Estado, através de mecanismos de promovam o justo equilíbrio e sustentabilidade deste nosso serviços público”. E blá blá blá…

    E depois ajunta-se-lhes um homem de negócios. E a ladainha: “Ah, senhor doutor D.A,,” diz-lhe, “as suas palavras são sempre um bálsamo para a clientela, digo, leitores. Precisamos de homens como o senhor, que saibam compreender as nuances da economia e das finanças, e as expliquem ao povo; essa é a verdadeira função do jornalismo independente como alicerce do negócio.” Convém que isto seja acompanhado com o Money, a música dos Pink Floyd do álbum The Dark Side of the Moon, mas não é necessário.

    E D.A., com ar sisudo mas sorriso nos olhos, sempre responderá: “Fazemos o que podemos, digo, o que devemos, senhor Administrador, pelo bem da Nação, claro está, e do povo, contra a desinformação velhaca, que deve ser atacada pelos investidores, através de mecanismos de promovam o justo equilíbrio e sustentabilidade deste nosso serviços público”. E blá blá blá…

    Entretanto, meus caros, a verdade é outra. O “a bem da Nação’, essa enteléquia abstracta, é na realidade uma moeda de troca, uma mercadoria negociável em jantares e encontros furtivos. O jornalista, outrora um paladino da verdade, é agora um mercador de favores, um intermediário entre o público e os poderosos. Ele vende, a preço de ouro, a sua influência, a sua capacidade de moldar a opinião pública.

    Os homens da política e dos negócios, por sua vez, compreendem a utilidade desse intermediário. Sabeis vós que um artigo bem colocado, uma reportagem subtilmente favorável, pode valer mais que mil campanhas publicitárias e mais que mil panfletos eleitorais? D.A., o nosso astuto jornalista, sabe disso melhor que ninguém, e por isso recebe. Ele aceita de bom grado os mimos e as benesses que lhe são oferecidos, convencendo-se, enquanto conduz o seu carro, remodela a cozinha da sua nova vivenda, e passa férias numa ilha grega, de que está, no fundo, a contribuindo para o progresso da sociedade. E a lutar contra a desinformação… E, já agora, contra as alterações climáticas. E a favor da Ciência, sempre; sobretudo daquela apoiada pelos políticos e pelas farmacêuticas…

    Mas também não sejamos injustos, ainda andam por aí uns românticos, mas esses são uns líricos, uns Dom Quixote lutando contra moinhos de vento, acreditando na sacralidade da verdade. O que é a verdade, já perguntava Pilatos, sem que Cristo lhe desse resposta… Ah!, mas são já raros, esses, quase extintos, em vias de desaparecimento. Paz à sua alma; serão os heróis trágicos deste vosso tempo, que feneceram perante o pragmatismo do novi-jornalismo, que em coordenação com os reguladores, trataram de condenar ao ostracismo ou à insignificância o velho e decadentes jornalismo de outrora.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM em processo de aprovação de registo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Quanto ao nome do autor (Brás Cubas), será o pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira nestas crónicas, constituindo apenas uma humilde homenagem a Machado de Assis e ao seu personagem. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou sarcástico.


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