A sedação terminal (ST) é uma espécie de coma induzido, em doentes terminais, para lidar com sintomas intratáveis, como dispneia (falta de ar), delírio e ansiedade extrema.
Uma vez iniciada a sedação terminal, o doente deixa de poder comunicar e não se consegue alimentar nem hidratar. O desfecho torna-se, portanto, inevitável num prazo de tempo que raramente ultrapassa os sete dias.
É muito importante explicar estas circunstâncias à família e obter o respectivo consentimento informado, uma vez que se trata de uma abordagem próxima da eutanásia.
Os sintomas do doente devem ser refractários, ou seja, não responderem a qualquer outro tipo de terapêutica. A dor, só por si, raramente constitui uma indicação para a ST, uma vez que pode ser tratada com eficácia por outros meios.
No caso de a sedação não obliterar completamente a consciência do doente, permitindo vagas intermitências de comunicação, a interrupção de alimentos e fluídos torna-se perversa por induzir uma desidratação extrema (com secura e sede) que pode aumentar o sofrimento.
Nesses casos, parece-me mais humana a administração liberal de estupefacientes, mesmo que possam ter o efeito de abreviar a vida, do que suspender o apoio hídrico e nutricional.
O momento chega em que a morte se aproxima e se torna inevitável. As intervenções médicas, porém, devem suavizar essa fase, aliviando sintomas que não são refractários e permitindo um nível de consciência que não elimine a comunicação com os entes queridos.
É muito importante, como disse, obter o consentimento informado da família, explicando que a ST põe fim à capacidade de o doente comunicar, algo de extrema relevância nos últimos dias de vida. Os médicos não têm legitimidade para desencadear uma ST sem esse consentimento e expõem-se a procedimentos criminais.
No caso de a ST ser prescrita em doentes terminais sem sintomas refractários, entramos no território da má prática. O exemplo mais evidente seria o de um doente terminal com dores moderadas.
Durante a pandemia da covid-19 (2020 -2021), foi administrada ST a muitos idosos que apenas apresentavam dispneia moderada. Foi uma catástrofe incentivada pelas autoridades sanitárias que encurtou a vida de muitos residentes em lares da terceira idade (NY destacou-se nesta actuação).
Um aspecto que não deve ser descurado é uma possível predisposição do pessoal de saúde para recorrer à ST por esta diminuir drasticamente a necessidade de assistência 24/7. Um doente inconsciente e com a “certidão de óbito assinada” é um doente que não dá problemas, não dá trabalho.
Em conclusão: a ST é uma solução que deve ficar reservada para doentes com sintomas refractários, depois do caso ser discutido com a família, com toda a transparência e cumpridas as formalidades legais e princípios da Legis Artis.
A Medicina deve conjugar a Ciência com a Caridade.
Joaquim Sá Couto é médico
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
As listas de espera têm sido uma das maiores pechas do Serviço Nacional de Saúde (SNS) quase desde a sua instituição, em 1979.
Curiosamente, a maior parte dos “especialistas da saúde” não entende a razão de ser das listas de espera. Razão que é facílima de explicar: o SNS é uma organização estatista, as instituições são públicas, os trabalhadores são funcionários públicos e a administração é centralizada por comando e controle. Ora, neste tipo de organizações sempre surgiram desencontros entre a oferta e a procura, provocando filas de espera, por vezes para bens de primeira necessidade.
Para tentar minorar o impacto das listas de espera, os Governos – dos diferentes partidos e coligações – organizaram programas especiais como o Programa Especial de Recuperação das Listas de Espera (PECLEC), o Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC) e agora o Adicional.
O Adicional, como o nome sugere, começou por oferecer às melhores equipas a possibilidade de preencheram tempos vagos do Bloco Operatório com casos “adicionais”, que eram remunerados extra (à peça). Evoluiu, contudo, para o formato actual em que o hospital designa períodos, que podem ser em qualquer dia da semana (inclusive Domingos), onde os médicos, que assim o pretendam, podem trabalhar à peça, desde que fora do horário de serviço.
Evoluiu para “UM SNS, DOIS SISTEMAS” (parafraseando Deng Xiaoping, “Um país, dois sistemas”). Dentro do horário de serviço, o médico é um funcionário do Estado; e fora do horário de serviço, mas sempre dentro do SNS, é um freelancer pago à peça.
Ora, o que é que pode correr mal neste arranjo, que tem o alto patrocínio do Ministério da Saúde?
E se… os profissionais “travassem a produtividade” nas horas de serviço e “acelerassem a fundo” no adicional?
E se… desnatassem a seleção de casos para o adicional (selecionando os casos mais fáceis)? E se… usassem técnicas diferentes na rotina e no adicional?
Vale a pena fazer este clássico “What If”, quando nos chegam ecos de Domingos de Adicional preenchidos com dezenas de casos e períodos de rotina com o Bloco Operatório meio-vazio. Serão apenas rumores sem fundamento ou haverá algo indecoroso que se está a passar.
Como médico, ficaria surpreendido que um colega fizesse depender a sua praxis da remuneração. Como gestor, ficaria surpreendido que as administrações fechassem os olhos a abusos que defraudassem o SNS, onerando o custo de cada intervenção (não esquecendo que há também a cegueira da corrupção). Como cidadão ficaria escandalizado com os cambalachos a céu aberto.
O meu desejo é que os incentivos perversos inscritos no ADN do Adicional não tenham dado lugar a “What If”. Já há demasiados problemas no País.
Joaquim Sá Couto é médico
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Um livro recentemente apresentado em Lisboa, intitulado O valor dos medicamentos e das vacinas no contexto da pandemia – da autoria de distintas personalidades do meio académico, da área da regulação farmacêutica e da avaliação económica dos medicamentos – contém “erros de palmatória”.
O primeiro e mais evidente tem a ver com a menção no título e dezenas de vezes no texto – a bem dizer no cabeçalho de dezenas de páginas do livro – da expressão “medicamentos e vacinas”. Uma incorreção grosseira para prestigiados farmacêuticos, em contradição com a definição de medicamento que apresentam logo na primeira página:
“O medicamento é toda a substância ou associação de substâncias apresentada como possuindo propriedades curativas ou preventivas de doenças em seres humanos ou dos seus sintomas ou que possa ser utilizada ou administrada no ser humano com vista a estabelecer um diagnóstico médico ou, exercendo uma ação farmacológica, imunológica ou metabólica, a restaurar, corrigir ou modificar funções fisiológicas.“
Lamentavelmente nenhuma definição de “vacina” é apresentada, o que seria muito útil no âmbito deste livro para o esclarecimento do público.
Sim, vacinas são medicamentos, e falar em “medicamentos e vacinas” é, no mínimo, uma redundância.
Será intencional para criar a dúvida na mente dos leitores, de que vacinas não são medicamentos? Ou que há diferenças na metodologia de avaliação do risco/benefício e avaliação económica, o tema do livro, das vacinas em relação aos restantes medicamentos?
Se este fosse o caso, esperar-se-ia que essas diferenças fossem bastante desenvolvidas no texto. Mas não. Por exemplo, nos dois capítulos dedicados à avaliação económica, praticamente só se fala em medicamento.
Quanto à avaliação do risco e às reações adversas a medicamentos (RAM), sem destacar diferenças nas metodologias para “medicamentos e vacinas”, a segurança é apresentada como distinta: “Tal como os medicamentos, as vacinas podem originar RAMs mais ou menos graves. No entanto, de um modo geral considera-se que o perfil de segurança das vacinas é superior ao dos medicamentos, pois a frequência de efeitos adversos a elas associado é muito baixa.”
José Aranda da Silva, José Cabrita e Carlos Gouveia Pinto são autores do livro O valor dos medicamentos e das vacinas no contexto da pandemia.
Espera-se então encontrar menos RAMs nas vacinas, nomeadamente nas utilizadas contra a Covid-19. Os autores, procuram fazer crer aos leitores que na análise dos relatórios de farmacovigilância a grande maioria dos efeitos adversos apresentou gravidade ligeira a moderada.
E que estas são semelhantes aos reportados a outras vacinas (inchaço, vermelhidão, dor no local de injeção, etc, etc.); que como efeitos adversos graves e potencialmente fatais a Agência Europeia dos Medicamentos (EMA) e a Food and Drug Administration (FDA) identificaram “apenas” a anafilaxia, a síndrome de Guillain-Barré, a trombose com trombocitopénia, a miocardite e a pericardite; e ainda, que as mortes com associação causal com as vacinas identificadas pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC norte-americano) não ultrapassaram algumas dezenas.
Pena que os autores não tenham considerado importante deterem-se a justificar por que razão nos sistemas de farmacovigilância, cujo papel muito destacam, havia já em 2021 para as vacinas Covid-19 mais de nove mil mortes notificadas ao CDC e 116 mortes notificadas ao INFARMED, mais de 700 mil RAMs notificadas ao CDC, e em Portugal mais de 20 mil, sendo quase sete mil graves, um número sem precedentes em toda a História (que tanto prezam) da farmacovigilância em Portugal, assim como na Europa e nos Estados Unidos.
Grave, porque enganosa, num livro que se pretende didático e esclarecedor, é a afirmação que no final do ano de 2020 “já estavam distribuídas vacinas seguras e eficazes e que foram aprovadas de acordo com uma rigorosa avaliação científica e com os procedimentos de autorização mais exigentes. Até 25 de março de 2021 foram aprovadas 12 vacinas, 4 das quais estão autorizadas pela EMA para utilização pela União Europeia: Comirnaty (BioNTech-Pfizer, Spikevax (Moderna), Vaxrevia (AstraZeneca) e Covid-19 Vaccine Janssen (Johnson &Johnson).”
Os autores, sabendo bem o que é uma Autorização de Introdução no Mercado (AIM) Condicional, em nenhum momento do livro mencionam que as ditas vacinas “autorizadas” ou “aprovadas”, afinal têm apenas uma AIM Condicional, o que significa, como explicam mais à frente: “a autorização condicional é um processo que permite desenvolver um medicamento que responda a uma necessidade médica não preenchida quando ainda não são conhecidos todos os dados científicos normalmente requeridos para a obtenção da AIM, assumindo que o benefício para a saúde pública supera o risco associado à incerteza inerente à inexistência de dados completos.”
Enquanto reconhecem que para o tratamento da doença Covid-19 os novos medicamentos disponíveis detêm apenas uma AIM Condicional, porque escondem essa informação relativamente às vacinas em utilização na população portuguesa e induzem os leitores a pensar que as vacinas estão autorizadas? Como podem afirmar que as vacinas são eficazes e seguras, se estudos estão em curso, e os seus dados científicos ainda não conhecidos?
Também omitem que à luz da regulamentação europeia as vacinas são medicamentos biológicos e que a sua natureza de autorização condicional obriga a consentimento informado. Detalhes importantes que foram aparentemente esquecidos.
“No Contexto da Pandemia” figura no título desta obra, quiçá com um intuito comercial, ou talvez para justificar a premeditada inserção de determinada narrativa pandémica. Com efeito, sem o devido suporte bibliográfico (uma importante lacuna numa obra que se pretende didática e credível) são feitas afirmações, aparentemente do foro do senso comum, como:
“Parece também já ser inquestionável o impacto positivo da vacinação no contexto da pandemia de COVID-19 que atravessamos (…)
Embora ainda seja cedo para avaliar o contributo global da vacinação na COVID-19, é evidente o seu impacto positivo na mitigação de surtos, na redução de casos graves e consequentemente na mortalidade associada (…)
A pandemia foi mais uma experiência que permitiu demonstrar a superioridade do benefício terapêutico face ao risco iatrogénico dos medicamentos e vacinas aprovados pelas agências reguladoras.”
Este livro editado no início de 2022, teve apresentações em instituições académicas entre Abril e Junho e para o público em geral também em Julho; pois nesta época de divulgação do livro, o senso comum que transparece é, afinal, uma enorme prevalência da variante Ómicron sobre anteriores variantes, mais transmissível, menos letal, com escape vacinal em milhões de portugueses que contraíram a infeção por SARS-CoV-2 apesar de este ser um dos países mais vacinados do mundo.
Acresce-se um excesso de mortalidade global em vários países e na populaçãoportuguesa, de causa(s) desconhecida(s), desde há alguns meses, pelo que falar em redução da mortalidade pelas vacinas sem estudos robustos que o confirmem, é uma questão de opinião.
Mais, segundo informações que os próprios autores veiculam no livro, a EMA calculou para o ano de 2012, a ocorrência de 197 mil mortes no espaço europeu atribuídas às reações adversas a medicamentos, além de 5% do total de internamentos hospitalares, sendo assim a quinta causa de morte em unidades de saúde.
Seria um grande esforço dedutivo colocar pelo menos a hipótese de as reações adversas a medicamentos (com o advento das vacinas Covid-19, em 2021, em Portugal, as notificações triplicaram relativamente aos anos anteriores), poderem ter alguma relação com o aumento da mortalidade da população mais vulnerável?
Questionável é ainda a descrição que os autores fazem das novas estratégias para desenvolvimento muito mais rápido de vacinas para a Covid-19, que habitualmente levariam mais de dez anos; e, segundo os autores, sem que tenha havido minimização de etapas, com uma avaliação que cumpre todos os requisitos aplicáveis a qualquer outra vacina ou medicamento, não comprometendo assim a comprovação da qualidade, segurança ou eficácia exigida na União Europeia.
Ora, se tivesse sido assim, no final do processo as vacinas teriam recebido uma AIM, o que não aconteceu até ao momento. As vacinas detêm apenas uma Autorização de Introdução no Mercado Condicional, enquanto se aguarda por mais resultados de estudos científicos requeridos pelas autoridades.
Lê-se no texto que “a FDA estimou que por cada 10 000 a 15 000 novos compostos investigados na Fase da Descoberta, cerca de 250 concluem a fase de investigação pré-clínica, dos quais apenas 5 são consideradas elegíveis para os ensaios clínicos em humanos e, finalmente destes, somente um apresentará eficácia, segurança e valor terapêutico acrescentado para justificar a sua aprovação e entrada no mercado terapêutico.”
Apesar da incapacidade de se terem produzido vacinas nas anteriores epidemias de coronavírus – SARS (2002/03) e MERS (2012) – não estranham os autores, nem fornecem aos leitores qualquer explicação, sobre a inusitada taxa de sucesso da investigação e desenvolvimento das vacinas para o SARS-CoV-2, com a chegada à fase final de ensaios clínicos, como eles próprios afirmam, de mais de uma dezena de novos compostos em apenas dois anos de pandemia.
Ainda uma curiosidade sobre algo que é afirmado neste livro: “No caso do INFARMED, esperemos que a nível nacional se encontrem soluções para reforçar uma instituição reconhecidamente à beira do colapso. Contudo, se adequadamente afetadas possui verbas próprias que permitam ajustar o seu funcionamento às exigências da União Europeia.” Assim, a seco, sem justificações para o eminente colapso do INFARMED nem de que forma desadequada estão a afetar as verbas próprias que possuem. E os leitores ficam por esclarecer.
Em conclusão, os autores invocando os seus “galões” académicos, e permeando um conjunto de informação tecnicamente correta que fará porventura parte dos programas de ensino superior na área do medicamento, enxertam neste livro, a propósito da Covid-19 e do desenvolvimento de vacinas, um conjunto de afirmações de propaganda, semeiam inverdades, omitem dados relevantes e demitem-se de questionar.
Por estas razões, um livro que não se recomenda.
Teresa Gomes Mota é médica
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.