Etiqueta: Bertrand

  • Banho de persuasão

    Banho de persuasão

    Título

    Como escrever

    Autor

    MIGUEL ESTEVES CARDOSO

    Editora

    Bertrand (Julho de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Miguel Esteves Cardoso (MEC) é um autor que quase todos os portugueses conhecem, quando mais não seja da televisão e das crónicas quase diárias do jornal Público. Por isso, começo já a falar sobre este Como Escrever, o livro que se debruça sobre essa prática exclusiva humana e que, provavelmente, nos permitiu ser humanos.

    A primeira vez que vi o livro, fiquei na livraria a lê-lo em pé, durante o tempo que esperava pela pessoa que acompanhava, torcendo para que se demorasse o mais possível. Queria prosseguir na leitura. O livro correspondia ao título de um outro, As primeiras cinco páginas, de Noah Lukeman. Estava agarrada, mas hesitava. Ainda há pouco lera On writing, de Stephen King e Romancista como vocação, de Haruki Murakami, cuja recensão pode ser lida aqui). Ambos confirmaram o que é sobejamente conhecido: para escrever é preciso escrever, escrever, escrever e escrever.

    São muitos os livros com técnicas de escrita criativa e afins nas prateleiras cá de casa, um dos motivos por que não comprei o livro que me estava a impelir a continuar a ler sobre como escrever. Claro que para um escritor em progresso, ou para quem tem pretensões a escrever, não basta ler e saber como escrever. É preciso escrever. Nada de novo. Não comprei.

    Mas, duas semanas depois recebi o telefonema de uma amiga, chamemos-lhe cúmplice da leitura, para usar a expressão de MEC, e companheira de viagem pela escrita, a AI: “Já leste o livro do MEC?” É delicioso, prosseguiu mais ou menos neste registo. Nessa tarde ia à Feira do Livro. “Convenceste-me!” Como todas as pessoas que se intitulam ávidas leitoras (ou outros predicados semelhantes), só há uma desculpa para não comprar mais livros, não gastar mais dinheiro em livros.

    Comprei. Num outro stand da Feira do Livro, o alfarrabista de serviço viu-me com o livro e desdenhou. Que não havia nada de especial, que o título do livro deveria ser diferente, como por exemplo, Como eu escrevo, uma vez que era muito pessoal. Nem sequer era sobre o processo de escrita propriamente dito, como é o caso do de Stephen King, ou com técnicas de escrita, como este (para mim, claro) extraordinário Criative-se – Curso Completo de Escrita Criativa, de Pedro Sena-Lino. Não, o senhor alfarrabista, que muito apreciava escutar MEC, ficara desiludo com o tom pessoal deste Como escrever, publicado recentemente pela Bertrand Editora.

    Bom, para quem estivera hesitante, perceber que afinal acabara de fazer uma compra medíocre, não fora propriamente a conversa mais encantadora. Guardei, mas não me deixei impressionar. Todavia, a AI é uma leitora em quem confio, uma cúmplice, vá.

    Comecei a ler nessa mesma noite. E não consegui parar. Sublinhei, copiei excertos e escrevi nas margens. MEC selecionou uma qualidade de papel, cuja gramagem permite escrevinhar e sublinhar a bel-prazer. Mais do que isso, tem super-margens para que os leitores que gostam de marcar os livros o façam de consciência tranquila. Além disso, com um conselho muito útil de MEC: façam-no com letra legível. O mesmo se aplica à escrita. Escrever com letra que possamos entender quando tivermos mais dez anos. Parece óbvio, mas quem, como eu, escreve à mão, sabe muito bem que é bom ter esse lembrete.

    Sim, é pessoal, mas mais do que um manual – que não o é –, Como escrever é um apelo de MEC a que todos nós nos sentemos a escrever sobre nós próprios, não apenas porque é sobre nós que mais sabemos, sobretudo, por ser a escrever que nos ficamos a conhecer melhor.

    Com efeito, para mim, este é o maior motivo para se ler este livro. Se estou aqui, neste momento é por ter imensa vontade de escrever sobre a minha leitura. E aqui ficaria por muitas mais linhas, mas creio que por ora o importante é, realmente, enaltecer MEC pela forma como me impeliu a escrever mais, e sem freios, e sem pudor sobre o que me apetece.

    Depois logo se vê o que fazer com o que resultar dessa escrita desenfreada. O que importa é escrever, o como e para quem é secundário. Porque escrever é libertador. É a possibilidade, muito esquecida, de falar sem ser interrompido e de dizer ao outro tudo o que não temos coragem de lhe dizer na cara. Melhor ainda, podemos editar o que dizemos e, depois, enviar uma carta sem erros de interpretação, tão-só dissemos exactamente o que queríamos ter dito.

    Só por isso, vale a pena ler, rabiscar e comentar este Como escrever de MEC, a quem aproveito a oportunidade para agradecer a generosidade de partilhar o que lhe apeteceu escrever sobre como escrever.

  • Até para nascer é preciso sorte

    Até para nascer é preciso sorte

    Título

    Uma educação

    Autora

    TARA WESTOVER 

    Editora (Edição)

    Bertrand (Setembro de 2018)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Tara Westover é uma ensaísta e historiadora norte-americana. Em 2019 foi considerada pela revista Time uma das 100 pessoas mais influentes do ano. Licenciou-se em Cambridge, em 2009, e no ano seguinte foi professora convidada da Universidade de Harvard. Mais tarde, regressou a Cambridge onde, em 2014, se doutorou em História com a tese “The Family, Morality and Social Science in Anglo-American Cooperative Thought, 1813–1890”.

    Uma educação, estreou em 1.º lugar na lista de best-sellers do The New York Times e foi finalista de vários prémios, incluindo o LA Times Book Prize, o PEN America’s Jean Stein Book Award e dois National Book Prêmio Círculo de Críticos. O New York Times classificou este livro como um dos 10 melhores de 2018.

    Talvez isso se justifique por ser-nos revelado, neste livro, as suas experiências dramáticas e perturbadoras.

    Tara é a mais nova de sete filhos de uma família mórmon, no estado do Idaho, nos Estados Unidos. A família fazia uma interpretação fundamentalista do mormonismo e estabelecia regras sobre todos os aspectos da vida de Tara, como seja o que poderia vestir, que hobbies e que contactos poderia ter com o mundo exterior. 

    Nasceu em casa, porque os pais desconfiavam de médicos, hospitais e medicamentos. Não foi registrada até aos nove anos de idade, e quando chegou a altura de o fazer ninguém sabia muito bem em que dia ou mês ela tinha nascido. Os pais também não acreditavam na Educação ministrada na Escola Pública, de forma que nenhum dos irmãos a frequentava.

    Foram educados pela mãe, e um dos irmãos mais velhos ensinaou Tara a ler, usando as escrituras da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos DiasApesar de estar no ensino doméstico, nunca prestaram provas, nem sequer fizeram uma redacção ou participaram em qualquer outra actividade de educação formal. A família via as escolas como parte de um exercício de lavagem cerebral, por parte do Governo. O seu pai, obviamente, e obrigando a família a ajudá-lo, armazenava armas e mantimentos, preparando-se para o fim do Mundo e para se proteger de qualquer tentativa do Estado em imiscuir-se na vida da família.

    “A minha família passava sempre os meses quentes a cozer e a enfrascar fruta para armazenar, pois o meu pai dizia que precisaríamos dela na Abominação da Desolação (…) Passamos o dia seguinte a descascar e cozer pêssegos. Ao entardecer tínhamos enchido dezenas de frascos, que foram preparados em filas perfeitas, acabadinhos de sair da panela de pressão”.

    Esta paranóia manteve-se mesmo em casos de emergência, como, por exemplo, quando a família se feriu gravemente num acidente de viação e recusou a ajuda médica por considerarem os hospitais e os médicos como agentes de um Estado maligno.

    Mesmo quando gravemente feridas, as crianças eram tratadas apenas pela mãe, uma curiosa do herbalismo e de outros métodos alternativos de cura, para além de praticar como parteira de uma forma clandestina. “O trabalho de parteira mudou a minha mãe. Era uma mulher adulta, mãe de sete filhos, mas pela primeira vez na vida era ela quem mandava. Cobrava cerca de quinhentos dólares por parto e esta foi a outra coisa que o trabalho de parteira mudou nela: de repente tinha dinheiro”.

    E, depois, havia a sucata. A sucata era o local de trabalho do pai e dos irmãos mais velhos, até que um dia passou a ser também o de Tara. Era um local onde se desenvolvia um trabalho de extrema violência e onde era necessária muita força física, algo que uma rapariguinha não tinha. Passou uma infância obrigada a trabalhar entre máquinas, sempre à beira de ser triturada pela maquinaria e sem que o pai demonstrasse um mínimo de preocupação.

    Quando crescesse, Tara sabia bem o que lhe estava destinado: aos 18 ou 19 anos “casava-me”; “o pai dava-me uma quinta” e “o marido fazia ali a casa”; a “mãe” ensinar-lhe-ia a ser parteira e “a usar ervas medicinais”. Os CDs de música clássica do irmão Tyler procuraram fazer a diferença na sua vida. Ouviu-os vezes sem conta. A música e a dança marcaram a sua adolescência – ainda que, mesmo aí, com mil cuidados, não pudesse usar roupa um tudo ou nada mais colada ao corpo. O pai chamava prostitutas às mulheres que o faziam. 

    Na primeira vez que usou batom, o irmão Shawn chamou-lhe galdéria – ela que, aos 15 anos, nada sabia sobre concepção, nunca beijara um rapaz, mas chegara a julgar poder estar grávida. Tyler, o irmão que gostava também de aprender com os livros, e se fechava no quarto a estudar contra a vontade paterna – “um homem não pode ganhar a vida com livros e folhas de papel”, “os doutorados eram Filhos da perdição” –, ajudou-a a dar o salto e a preparar o exame final dos estudos secundários que completou com sucesso.

    Depois disso, foi sempre em crescendo até entrar para uma das mais prestigiadas universidades do Mundo. No entanto, o trauma, as gravações dramáticas e a família neurótica, de quem se foi afastando, marcou-lhe a vida e, ainda hoje, embora ausentes da sua vida, continuam a assombrar-lhe os sonos.

  • A maldade está no meio de nós

    A maldade está no meio de nós

    Título

    O diabo

    Autor

    GONÇALO M. TAVARES

    Editora (Edição)

    Bertrand Editora (Setembro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Aos 52 anos, Gonçalo M. Tavares é porventura o mais prolífico escritor da sua geração – e não só –, com uma vasta obra que conta, desde o início deste século, com cerca de meia centena de títulos. Multifacetado, multipremiado e multitraduzido, a sua produção literária criterisamente “catalogada” por si próprio, causa pasmo pela meticulosidade, harmonia e coerência..

    Nos últimos anos, surpreendente, talvez, seja “apenas” uma certa desaceleração na sua cadência produtiva: no último quinquénio “apenas” publicou seis obras, o que parece pouco quando, por exemplo, entre 2003 e 2017 foram editadas 17 obras da sua autoria.

    A estatística é, porém, um pormenor. A qualidade mantém-se bastante elevada, mesmo quando se aguarda um estilo similar, já conhecido. Gonçalo M. Tavares continua a (saber) criar, com as suas narrativas – chamemos-lhe assim, por simplificação –, estranhos e desafiantes universos, por vezes irritantemente simples, outras vezes desconsertantemente complexos. Tem sido justamente comparado com Kafka, e em certa medida alguma da sua obra assim assemelha- se ao escritor checo, sobretudo quando, como sucede com este O diabo, se debruça sobre a humanidade e sobretudo a maldade, e a incapacidade e impotência de a subverter (à maldade).

    Integrado na série Mitologias – que conta também como A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado (2017) e Cinco meninos, cinco ratos, ambos também editados pela Bertrand –, O diabo acaba por ser, dependendo da perspectiva (ou da interpretação), um conjunto de narrativas que, tendo presente um belzebu físico, omnipresente e regendo os humanos, se espraia a maldade humana, não apenas a inata mas em especial a apreendida, a aplicada e a obedecida.

    Sabe-se que o diabo está nos pormenores, mas por este livro de Gonçalo M. Tavares está afinal por todo o lado, mas na prática sem sequer se impor aos humanos, pelo medo ou pelo temor. Quase se pode dizer que o diabo é obedecido, e ponto.

    Alexandre Palas-de-Cavalo, uma das personagens centrais deste livro, mostra de forma muito particular, de uma forma demasiado crua, como a maldade se pode aplicar sem qualquer noção moral, apenas porque “tem de ser”. E “tudo tem (mesmo) de ser”, quanto mais chocante e perverso se afiguram as cenas e efeitos do mal.

    Gonçalo M. Tavares explora assim não apenas o mal, mas a banalização do mal, a aplicação de regras sem nexo, mas surgindo com tal naturalidade que aparentam ser a coisa mais normal e, por isso, necessariamente aceitável.

    Embora algumas partes do livro sejam, aqui e ali, cansativas por um certo exagero na criação de personagens fantásticas – entre Kafka e Italo Calvino (nas três novelas de Os nossos antepassados) –, aconselha-se que este livro de Gonaçlo M. Tavares seja de leitura lenta e talvez repetida, para desvendar as metáforas que encerram.

    E tal como sucede com muitos outros escritores, as interpretações de cada leitor podem não ser exactamente aquelas pensadas pelo autor – e se assim for, é aí mesmo que está a magia da Literatura.

    Para finalizar, havendo imensas passagens marcantes, e muito visuais, neste livro de Gonçalo M. Tavares, que merecem ser anotadas (e discutidas), escolherei uma que, para mim, melhor representa o mundo como ele infelizmente é (maléfico), ou seja, como o poder de certos homens se exerce sobre os demais.   

    Há um buraco no Grande Armazém – está no chão, num dos cantos –, um poço que acaba não se sabe onde, mas ninguém se atreve a fugir por ali porque cheira terrivelmente mal, e nunca o cheiro foi assim tão eficaz – impede a fuga, eis o cheiro a fazer o que não conseguiria um exército bem armado – e, sim, é para esse buraco que vão as fezes que o Povo-Armazenado produz. Tudo organizado: a comida vem de cima e o animal doméstico, o Povo-Armazenado, levanta a cabeça, como se fossem pequenos animais a receber comida da mãe, e depois baixa-se, próximo do Grande-Buraco, e para ali envia os dejectos. Assim se mantém o Grande-Armazém com o estômago cheio e não demasiado sujo.

    (…)

    Mas é armazenado para quê, esse povo? Eis a questão. Porque não o eliminam de uma vez? E é essa a pergunta que fazem ao capitão Mau-Mau. Gastamos comida e gasolina nos Helicópteros-Bons – não se percebe o sentido de armazenar um povo inteiro –, esta é a questão que inquieta. O capitão Mau-Mau responde que o Povo-Armazenado pode vir a ser útil no século seguinte. Quem sabe se daqui a cem anos, no início do próximo século, não precisaremos de novo deste povo que agora armazenamos. Sim, são estes os planos do capitão Mau-Mau – nada se pode desperdiçar, odeia tal gesto, o de deitar fora algo, e por isso é um dever armazenar este povo guardá-lo para o futuro. Quem sabe se este Povo-Armazenado não se transformará numa coisa útil, verdadeira, justa e bela. (pp. 63-64)