Originalmente distribuída pela rede de canais televisivos Showtime, em 2019, City on the hill é uma série norte-americana desenvolvida por Chuck Maclean, baseada numa história criada pelo famoso actor Ben Affleck, que, a par de Matt Damon, também a produz. Recordemos que esta dupla ganhou o Óscar Melhor Argumento em 1997 por O bom rebelde (Good will hunting), onde também se destacava o malogrado Robin Williams.
City on the hill é um drama protagonizado por Kevin Bacon e Aldis Hodge, tendo como cenários os anos 90 na cidade de Boston, com a premissa de uma cooperação em constante conflito entre o agente do FBI Jackie Rohr (Bacon) e o Procurador-Geral Adjunto Decourcy Ward (Hodge). Conta ainda, em destaque, com a participação de Jill Hennessy, no papel de Jenny Rohr, mulher de Jackie.
Bacon representa um agente veterano em final de carreira, cuja aprendizagem tem tudo de old school. Corrupção, abuso de drogas e maneirismos fazem de Jackie Rohr um polícia tão desprezível quanto necessário para a trama, onde a fronteira entre anti-herói e vilão se esvanece muitas vezes e só de quando em vez a moralidade aparece.
Já Hedge é o oposto: ainda jovem, é um idealista, incorruptível, mas ambicioso, havendo linhas que não cruza, embora sabendo que , por vezes, há que “fechar os olhos” para apanhar criminosos e trazê-los à justiça.
City on the hill não é, em todo o caso, uma história de detectives, nem um clichê típico de series de advogados. Junta sim dois aspectos conhecidos para criar um enredo bastante mais original e interessante, onde se explora a pobreza, o crime e até o racismo institucionalizado numa cidade como Boston.
Não é propriamente surpreendente que a acção seja passada em Boston, porque tanto Maclean como Affleck e Damon foram criados nesta cidade do Estado de Massachussetts – e o Óscar que arrecadaram com O bom rebelde também tem aí o seu cenário.
Disponível na plataforma HBO Max, City on the hill conta com três temporadas num tempo médio de 55 minutos por cada um dos seus 26 episódios. E se outros motivos não houvesse, aproveitem para assistir à brilhante representação da “decadência” de Kevin Bacon.
Olga Kurylenko; Oona Chaplin; Ciarán Hinds; Charlie Cox; Tracy Ifeachor; Danila Kozlovsky; Samuel Leakey; Beau Gadsdon; Simon Lenagan; Alex Kingston; Avital Lvova; e Adam James
Nota
4/10
Recensão
Estreou no final de Dezembro, a minissérie Treason, na plataforma Netflix. Criada pela mão de Matt Charman, escritor de êxitos como Bridge of Spies (2016) ou de series menos conhecidas do grande público como o policial Black Work (2015), Treason é uma trama de acção e espionagem contada em cinco episódios.
É uma aposta interna da Netflix, por ser realizada por Louise Hooper e Sarah O’Gorman, que já tinham dirigido as séries The Witcher (2021), The Last Kingdom (2020) e, mais recentemente, The Sandman (2022), produzidas por esta plataforma.
Nos principais papéis conta com um elenco de actores famosos como Charlie Cox – mais conhecido por ser o protagonista de Daredevil, uma outra série da Netflix – e o veterano irlandês Ciarán Hinds, actor com mais de quatro décadas de carreira, em que se destacam as participações no filme TheSum of All Fears (2002) e nas series Game of Thrones (2013-2015). Ainda podemos ver nesta série Oona Chaplin, neta do grande Charlie Chaplin, e a actriz ucraniana Olga Kurylenko.
Treason é uma história de espionagem em torno de Adam Lawrence (Charlie Cox), subchefe do MI6 (serviços secretos britânicos), o chefe máximo Sir Martin Angelis (Ciarán Hinds) – a quem é dada o nome de código C – e a interferência de Kara (Olga Kurylenko), ex-espiã do SVR, serviços secretos russos.
O jogo entre estas personagens faz com que que tomem atitudes e decisões que inexoravelmente as levarão a colidir até ao último momento. Para isso aparecem, ao longo dos episódios, personagens mais secundárias, mas ainda assim indispensáveis, que, por um lado, facilitam, e por outro obrigam a constantes adaptações dos jogadores principais.
As linhas entre os heróis e vilões cruzam-se entrecruzam-se: Adam é perseguido pelo MI6 e CIA, à mistura, Kara ora é antagonista ora é assistente oficiosa de Adam, e Sir Martin parece saber e “C”ontrolar tudo o que se passa.
Como habitualmente em séries deste género, e também como o seu nome indica, o enredo de Treason encontra-se cheio de traições e desconfianças, onde ninguém é o que parece ser. E até aqui tudo bem – até porque o carisma e profissionalismo dos actores consegue, numa primeira fase, disfarçar os lugares-comuns.
No entanto, e devido ao formato que este serviço de streaming resolveu apostar – em que o complô é compactado –, o storytelling e arco das personagens é demasiado rápido. E assim os clichês sobrepõem-se ao elenco, os diálogos são pouco ou mesmo nada originais, e as reviravoltas nada têm de surpreendente. É tudo feito à pressa e, por isso, pouco mais há a acrescentar.
Como exemplo máximo de cliché, e sem querer entrar em spoilers, destaca-se o papel da candidata a primeira-ministra Audrey Gratz (Alex Kingston) que, por ser uma mulher com possibilidade de poder, é lésbica. Um pormenor sem interesse para a história, mas ainda assim um enquadramento evitável.
Em suma, Treason é de degustação tão rápida que, para quem é adepto deste tipo de dramas, poderá levar à regurgitação pela traição de uma série que tinha tudo para ser boa – com um autor de sucesso, realizadoras com créditos firmados e actores famosos com trabalhos anteriores bastante bons.
Aquilo que se salva é mesmo o papel de Ciarán Hinds que, apesar deste tipo de pipoca fácil, consegue a espaços trazer alguma substância e profundidade à mimética entre o guardião da segurança nacional e o mal de todos os males.
Olga Kurylenko; Oona Chaplin; Ciarán Hinds; Charlie Cox; Tracy Ifeachor; Danila Kozlovsky; Samuel Leakey; Beau Gadsdon; Simon Lenagan; Alex Kingston; Avital Lvova; e Adam James
Nota
4/10
Recensão
Estreou no final de Dezembro, a minissérie Treason, na plataforma Netflix. Criada pela mão de Matt Charman, escritor de êxitos como Bridge of Spies (2016) ou de series menos conhecidas do grande público como o policial Black Work (2015), Treason é uma trama de acção e espionagem contada em cinco episódios.
É uma aposta interna da Netflix, por ser realizada por Louise Hooper e Sarah O’Gorman, que já tinham dirigido as séries The Witcher (2021), The Last Kingdom (2020) e, mais recentemente, The Sandman (2022), produzidas por esta plataforma.
Nos principais papéis conta com um elenco de actores famosos como Charlie Cox – mais conhecido por ser o protagonista de Daredevil, uma outra série da Netflix – e o veterano irlandês Ciarán Hinds, actor com mais de quatro décadas de carreira, em que se destacam as participações no filme TheSum of All Fears (2002) e nas series Game of Thrones (2013-2015). Ainda podemos ver nesta série Oona Chaplin, neta do grande Charlie Chaplin, e a actriz ucraniana Olga Kurylenko.
Treason é uma história de espionagem em torno de Adam Lawrence (Charlie Cox), subchefe do MI6 (serviços secretos britânicos), o chefe máximo Sir Martin Angelis (Ciarán Hinds) – a quem é dada o nome de código C – e a interferência de Kara (Olga Kurylenko), ex-espiã do SVR, serviços secretos russos.
O jogo entre estas personagens faz com que que tomem atitudes e decisões que inexoravelmente as levarão a colidir até ao último momento. Para isso aparecem, ao longo dos episódios, personagens mais secundárias, mas ainda assim indispensáveis, que, por um lado, facilitam, e por outro obrigam a constantes adaptações dos jogadores principais.
As linhas entre os heróis e vilões cruzam-se entrecruzam-se: Adam é perseguido pelo MI6 e CIA, à mistura, Kara ora é antagonista ora é assistente oficiosa de Adam, e Sir Martin parece saber e “C”ontrolar tudo o que se passa.
Como habitualmente em séries deste género, e também como o seu nome indica, o enredo de Treason encontra-se cheio de traições e desconfianças, onde ninguém é o que parece ser. E até aqui tudo bem – até porque o carisma e profissionalismo dos actores consegue, numa primeira fase, disfarçar os lugares-comuns.
No entanto, e devido ao formato que este serviço de streaming resolveu apostar – em que o complô é compactado –, o storytelling e arco das personagens é demasiado rápido. E assim os clichês sobrepõem-se ao elenco, os diálogos são pouco ou mesmo nada originais, e as reviravoltas nada têm de surpreendente. É tudo feito à pressa e, por isso, pouco mais há a acrescentar.
Como exemplo máximo de cliché, e sem querer entrar em spoilers, destaca-se o papel da candidata a primeira-ministra Audrey Gratz (Alex Kingston) que, por ser uma mulher com possibilidade de poder, é lésbica. Um pormenor sem interesse para a história, mas ainda assim um enquadramento evitável.
Em suma, Treason é de degustação tão rápida que, para quem é adepto deste tipo de dramas, poderá levar à regurgitação pela traição de uma série que tinha tudo para ser boa – com um autor de sucesso, realizadoras com créditos firmados e actores famosos com trabalhos anteriores bastante bons.
Aquilo que se salva é mesmo o papel de Ciarán Hinds que, apesar deste tipo de pipoca fácil, consegue a espaços trazer alguma substância e profundidade à mimética entre o guardião da segurança nacional e o mal de todos os males.
“Não há conspirações que mudaram o mundo quando o mundo é já ele todo uma conspiração em andamento perpétuo.”
Vivemos num mundo entre mundos. Por um lado, temos a ilusão da simplicidade entre os bons e os maus e a segurança de ignorarmos quem é quem. Do outro lado desta trincheira existe a real politique, o tentáculo do poder, o nepotismo e a complexidade gerada por jogadores da alta roda do Poder.
É este o tema de fundo deste As conspirações que mudaram o Mundo, numa edição da Oficina do Livro. As conspirações de outrora e de agora e como é feito o jogo de todos os jogos.
Natural da cidade do Porto, Frederico Duarte Carvalho é um jornalista com uma longa carreira, que passou pelas redacções de jornais como o Tal & Qual e o 24 horas, iniciando o seu percurso no diário O Primeiro de Janeiro ainda antes de finalizar os estudos na Escola Superior de Jornalismo na cidade invicta. Tem feito também colaborações pontuais no PÁGINA UM, sobretudo em temáticas históricas.
Neste seu (já) sétimo livro sob a forma de ensaio, regressa ao tema das conspirações ou mistérios, depois de Eu sei que você sabe: manual de instruções para teorias de conspiração (2003), Oswald Le Winter: poeta & espião (2005), Estado de segredos (2010), Camarate: Sá Carneiro e as armas para o Irão (2012), O Governo Bilderberg (2016) e O último segredo de Fátima (2019).
Este livro é, contudo, uma espécie de obra autobiográfica, que celebra 30 anos de investigação, e onde o autor aproveita para revelar as raízes da sua curiosidade por estas temáticas, entre as piadas do irmão mais velho, os acontecimentos que a televisão mostrava e também uma assinatura de seis meses da revista Time oferecida pelo pai.
Num estilo muito peculiar, Frederico Duarte Carvalho vai também desfiando, ao longo das páginas, as ligações entre acontecimentos e pessoas que à superfície aparentavam ser desconexas, como os casos de Camarate (morte de Sá Carneiro) e o do Irangate.
Através de testemunhos e conversas que foi colecionando, Frederico Duarte Carvalho oferece-nos assim a possibilidade de cruzar a fronteira entre a conversa ignorante de café e os desconfiados crónicos.
Apesar de um estilo de escrita de fácil assimilação, para a leitura e compreensão de algumas temáticas, convém ter-se algum conhecimento prévio sobre determinados assuntos, como o Clube Bilderberg e as suas mãos cada vez mais visíveis. Neste aspecto, nota-se que Frederico Duarte Carvalho é um expert face ao detalhe da informação recolhida.
Estamos, porém, paradoxalmente, perante um livro mordaz, bastante útil até para quem não quer pôr em causa o seu sistema de crenças ou a forma como olha para o mundo.
Como diz o próprio, “qualquer que seja o ano haverá sempre uma conspiração”, porque “este é o mundo onde vivemos, onde a ignorância e secretismo fazem a delícia dos eleitos e poderosos.”
Enfim, As conspirações que mudaram o Mundo é um bom livro, mas não é um livro bom; é difícil manter-se indiferente depois de o ler.
Em Setembro, a Europa democrática viu-se confrontada com duas eleições com resultados aparentemente inesperados.
Na Suécia, a coligação de centro e extrema-direita conseguiu 176 lugares no Parlamento, 73 destes preenchidos pelo SD (partido de extrema-direita) que convenceu 20% do eleitorado, tornando-se assim na segunda força política do país. É uma eleição histórica uma vez que nunca um Governo sueco foi composto por partidos desta natureza.
Em Itália as ideologias extremistas foram ainda mais longe, e o partido Irmãos de Itália (FDI) elegeu uma primeira-ministra, em coligação com Salvini e Berlusconi. Dos 50 milhões de votantes, esta “geringonça” obteve 43% dos votos, com cerca de 26% para Meloni e o restante dividido entre os dois outros partidos. Ainda assim a ascensão de Meloni é também o declínio de Salvini, o que indica que nem tudo são rosas no seio do eleitorado extremista.
Se os casos acima mencionados são os mais gritantes, por serem os que já chegaram ao poder, importa ainda lembrar a subida do partido de Le Pen, na França, que chegou à marca dos 41%, e até no caso português. Apesar de números ainda escassos, o Chega é já a terceira força política portuguesa com 7% do eleitorado.
Importa entender o motivo do avanço destas ideias dentro de um espaço comunitário, inclusivo, humanista e colaboracionista como a Europa pretende ser. Em primeiro lugar, destaque-se que os programas eleitorais e os manifestos destes partidos são, grosso modo, bastante idênticos. Se, por um lado, apelam a elementos de coesão social como os valores de Deus, pátria, e família, fazem-no através dos pânicos morais exacerbados que surgem em forma de ameaça a um pretenso bem-estar. Estes medos, que na era das redes sociais ganham uma carga viral, contêm uma mensagem simples e com setas apontadas.
Giorgia Meloni
Para eles, a culpa é dos estrangeiros, dos homossexuais, dos políticos corruptos – e estes partidos vendem-se como diferentes. Apregoam frases e entoações cuja digestão é bem recebida e, como no caso de Donald Trump, conseguem manipular a opinião de algum público ao ponto de conseguirem fazer-se passar por homens e mulheres do povo contra as elites.
Mais perto, dentro da realidade portuguesa, essa dicotomia das elites versus o povo é um grito utilizado por André Ventura que ironicamente (ou não) é apoiado e financiado por, imagine-se… as elites.
Qual é então o falhanço dos valores europeus que têm vindo a dar lugar a plataformas radicais e populistas?
No caso da Suécia e Itália – e, por mais simples que possa parecer –, a subida do eleitorado extremista estará ligado à crise migratória de 2015. Estes dois países abriram as suas fronteiras a refugiados sem gestão da narrativa moderada e inclusiva.
Marine Le Pen
Não é de estranhar o aproveitamento dos extremistas perante um vazio de mensagem humanista. E é fácil, razoável até, mais ainda no caso da Itália – cuja Economia é bastante mais fraca do que a sueca –, perguntar onde estava o apoio financeiro e logístico da Europa às constantes ondas de refugiados a entrar nos seus portos. A consequência disso leva inevitavelmente à pergunta mais simples e também perigosa, que é: e nós?
A proliferação do sentimento anti-europeu torna-se num comboio a alta velocidade e, perante a falha dos moderados e a demora de implementações práticas perdidas nas burocracias do Parlamento Europeu, cria-se o sentimento que nada é feito. Um básico, “Falam, falam, mas não fazem nada”.
É assim que se criam e recriam estes movimentos. Eles não são novos, mas adaptam-se aos tempos. Veja-se o caso das lideranças. Meloni, Le Pen e a alemã Alice Weidel são mulheres. Talvez a líder francesa seja menos surpreendente, porque vem de uma família política e tem já essa tradição.
No entanto, a futura primeira-ministra italiana e líder extremista alemã são já um apelo ao voto feminino que, normalmente, não vota em partidos vistos como patriarcais e conservadores.
André Ventura
Curiosamente, estas políticas de carreira são consequência das lutas progressistas de esquerda pela igualdade de acesso a posições de liderança, que agora são aproveitadas pela extrema-direita para se capitalizar e captar eleitorado.
O espaço das ideias extremistas está conquistado e não irá diminuir enquanto for subestimado ou insultado. Ele só pode ser derrotado em sede de ideias. A estas ideias tem de lhes ser emprestado um novo léxico, uma forma de desmascarar o extremismo pelo que ele é. A manipulação da carga emocional de pequenos e grandes grupos e o vazio de soluções.
E será (extremamente) necessário que esse combate seja feito com a apresentação de soluções humanistas, sustentáveis, mas de rápida aplicação.
Como diz Marcelo Rebelo de Sousa, o povo tem sempre razão.
A democracia é, entre outras coisas, a possibilidade. A de mudar os governos e as suas ideologias, dialogar pela mudança, fazer oposição ao dominante do momento e aceitar este enquanto vigora.
A diferença de opiniões e, portanto, o pluralismo, é essencial para o escrutínio e para uma eficácia que se traduza na aplicação de uma determinada lei, preceito ou regra, e que estas, quando aplicadas, realmente produzam efeitos positivos nos representados e/ou eleitores.
Na ordem dos últimos tempos, está a ascensão de um partido cuja ideologia e programa é constantemente apelidada de antidemocrática, exclusiva – aqui assumindo o significado de ser o oposto à percepção do que é ser inclusivo –, racista, populista, xenófoba e extremista.
Uma vez que vivemos na era dos exageros, de uma intolerância atroz e perseguição a quem não caia no politicamente correto e, portanto, no discurso dominante, é de bom tom (para não dizer, útil) que se procure no conteúdo programático do Chega, sinais claros e inequívocos que possam consubstanciar todo este aparato e indignação.
André Ventura, presidente do Chega
O programa do Chega divide-se em 13 pontos que se distribuem em diversas áreas, desde a definição de um modelo familiar, ao papel do Estado e mudanças do atual sistema social, económico e até militar. Importa fazer um apanhado desses pontos na tentativa de verificar a correspondência entre as catalogações, acima mencionadas, e o conteúdo programático.
Não se terá em conta as ideias eficazes, não porque não terão mérito, mas porque a boa ideia política não precisa de prémio – ela é o que todas as outras devem ser.
O foco deste artigo é, assim, fazer uma observação às medidas deste partido através da lente dos soundbites julgadores, e se fazem sentido as críticas de que é alvo.
Ponto Um
Focando logo no primeiro ponto do programa do Chega, aparece desde logo uma enorme ênfase à família, para depois mencionar a criação de um Ministério dedicado ao tema, e aplica ainda o termo conservador no que toca à ideia de que a família natural é entre um homem e uma mulher.
Quanto à ideia da inclusividade, pouco haverá a dizer, uma vez que parece evidente o que esta ideia deixa de fora, ou seja, todo o modelo familiar que o transgrida, desde a família monoparental à homossexual.
Importa ainda falar do conceito de família e como está relacionada, nos meandros conservadores, com o modelo pós-guerra americano, cujas forças disseminadoras tanto têm de marketing político (como o kitchen debate, em que à família lhe era dita quais os papeis a desempenhar e, portanto, o lugar de cada um na sociedade), como de construção social.
Não é, portanto, um modelo imutável nem verdadeiro. É um hábito, e apenas isso; e, em nome desse hábito, criou-se a heteronomia e a dominância desse modelo. Essa é a grande confusão das tradições e a resistência aos zeitgeists.
Ainda há que realçar que uma relação íntima é, por definição, uma aproximação entre pessoas, e que só a essas pessoas diz respeito, pelo que afirmar que a intimidade entre heterossexuais tem um valor mais intrínseco, ou superior, não faz qualquer sentido objetivo. Em nada é eficaz, a não ser na “desdemocratização” da escolha.
Ponto Dois
Neste ponto, o Chega submete a desresponsabilização individual ao socialismo falando numa espécie de hiper-solidariedade que levou à corrupção, falhanço moral e toda uma série de impropérios que esconde o liberalismo que este partido parece defender (por exclusão de partes). E, embora não caia diretamente na análise deste artigo, também carece de explicação objetiva para esta ligação entre desresponsabilização e alguma qualquer ideologia política.
Ponto Três
Este ponto apela ao orgulho nacional com expressões como o território ancestral, o direito inalienável de se defender a dignidade, a história secular e a busca pela verdade.
Aqui o que se deduz é um puro-nada. Se o orgulho em ser português é exaltado a despeito de outras comunidades ou minorias – e em busca de uma verdade que não é explicada –, entramos num completo vazio que, em nome de um simbolismo romântico, nada faz mais do que perseguir e classificar o outro, criando um clima de divisão, que aí sim, é antidemocrático, exclusivo e convida a xenofobia e o preconceito.
Importa ainda dizer que o espírito aventureiro português, que nos trouxe os Descobrimentos e a Diáspora, foi possível devido a outras enormes características do português: a adaptabilidade e a flexibilidade de inserção em outras culturas, o que parece indicar uma abertura à inclusividade, multiculturalismo e jogo de cintura. São características que chocam com o rigor (mortis) do conservadorismo e tradição.
Ponto Quatro
Este ponto é o liberalismo em sede populista, como uma espécie de publicidade apelativa ao que é obvio, ao mesmo tempo que enumera iniciativas sem dizer como as vai fazer. É, em suma, pouco sumo.
É de notar a colagem entre o Governo e a família, isto depois de designar o carácter afunilado e normativo do que isso deve ser. Já o argumento da prioridade quer às crianças quer aos idosos não tem qualquer imputação negativa, embora careça da forma como se a implementa, algo que parece ser transversal a este programa. É também transversal, neste caso, à ideologia, o cumprimento de prazos e contratos. Essa exaltação aparenta ser exclusiva ao programa do Chega, mas é, na realidade, elementar.
A alínea mais demagógica, mas de especial apreciação liberal, é sobre a redução de impostos. Apenas menciona que os vai reduzir, sem explicar quais, quantos e onde irá buscar receita para pagar as contas reminiscentes do Estado.
Ponto Cinco
Este ponto discorre sobre um dos calcanhares de Aquiles dos sucessivos governos portugueses: a justiça que é, no mínimo, morosa e, muitas vezes, impopular.
Ainda assim, apesar de fáceis concórdias, quer no que toca às molduras penais quer no poder dissuasor que penas altas possam ter, convém informar que o princípio de inocência deve ser soberano – e que um suspeito não é nem um acusado nem um arguido e muito menos um culpado. Junta-se ainda a ideia do princípio reabilitador que a prisão e a justiça possuem. Será um debate a ter as possíveis exceções que possam ocorrer.
Ponto Seis
Se Aquiles tivesse outro calcanhar frágil, a Saúde (ou falta dela) estaria nomeada para ocupar esse lugar. A par da Justiça, a percepção que existe sobre a Saúde em Portugal é que não funciona e o privado é melhor. Pelo menos até vir a conta no fim.
Por essa percepção é também fácil concordar com a melhoria do sistema de saúde, critérios de transparência, observância rigorosa e tudo que soa bem a quem quer uma melhoria substancial do sistema. A questão aqui não é o mau funcionamento da saúde, é de que ela funciona mal, porque o governo é de esquerda. E aí, entra-se outra vez na propaganda, no apelo emotivo.
Ponto Sete
Neste ponto, o Chega enumera várias alíneas, depois de colar o insucesso de qualidade de ensino ao multiculturalismo e ideologia de género, classificando estes de fundamentalismo progressista. Diz ainda que o ensino controlado pela esquerda é inimigo do conhecimento, respeito e boa educação.
Quanto à contradição entre o respeito e a ideologia do género ou multiculturalismo, ficará para uma reflexão maior. Importa aqui mencionar que o atentado à liberdade é a redução da escolha e a uniformização normativa do que devemos ou não ser.
Em primeiro lugar, não existe relação nenhuma entre a falta de qualidade do ensino em Portugal e um qualquer fundamentalismo de esquerda. É, alias, de salientar que o abandono escolar tem vindo a descer, e que os quadros profissionais são de alta qualidade, e são solicitados um pouco por toda a parte.
Quanto às alíneas, é inegável o trabalho árduo de um formador e a discrepância entre os esforços, que muitas vezes implicam deslocações longas para escolas distantes das suas áreas de residência – quanto a isso, pouco haverá a dizer e muito a melhorar.
Na alínea seguinte, desde logo seria preciso divulgar os números da suposta violência nas escolas para que esta ideia dos fenómenos crescentes tivesse algum valor. A indisciplina combate-se com diálogo e estudo sobre as causas. A transição, essa sim, deve subentender o mérito e demonstração de conhecimentos adquiridos. Também não existe ligação entre o exame nacional e a sua deslegitimação por Governos de esquerda.
Ponto Oito
Ao contrário do que o Chega pretende veicular, Portugal não tem um problema com o fluxo migratório de estrangeiros a entrar. Terá mais depressa com os emigrantes a sair. Existe, de facto, exploração de mão-de-obra barata, que ainda recentemente esteve na ribalta da imprensa. Daí à generalização vai toda uma demagogia que este partido tanto usa. Não há custos identitários, nem nefastas ambições globalistas. Há apenas uma ênfase ao jeito de uma narrativa que pega em possíveis casos pontuais para construir um generalismo.
Outro aspeto deste oitavo ponto é a ineficácia da imigração regulada assente nas qualificações. Veja-se o paradigma britânico que tem nesta altura um enorme défice de mão-de-obra, e para reter o seu próprio talento tem de aumentar brutalmente os ordenados praticados nos cargos mais qualificados.
Ponto Nove
O Chega afirma que irá praticar uma cultura de respeito pelas forças de autoridade. Diz também que existe uma contracultura de mentes esquerdistas que viciam e instigam a sentimentos que causam desordem, violência e guetização social.
Portugal é um dos países mais seguros do Mundo. É um país onde a maioria dos crimes são passionais, com especial incidência na violência doméstica. Não existe, portanto, nenhuma estatística que apoie este ponto do conteúdo programático. É, mais uma vez, vazio e propagandístico.
Ponto Dez
O combate ao desequilíbrio entre o mundo rural e urbano deve ser travado, e quanto a isso nada haverá a dizer. Os incentivos à aquisição de produtos nacionais é também uma iniciativa louvável, tal como o desenvolvimento das energias alternativas onde Portugal já é pioneiro, e com Governos de esquerda. Fica aqui a ideia de que as iniciativas só são “boas” se forem da direita, o que é no mínimo, falso.
Ainda um breve comentário às atividades tradicionais relevantes. Em primeiro lugar, não são relevantes por serem tradicionais. A tradição não pode ser a razão para se manter seja o que for. As atividades sofrem, e sofrerão sempre, os efeitos da passagem do tempo e das vontades.
Existe atualmente um espectro na sociedade que afirma ser contra a tauromaquia. E isso é a democracia em funcionamento, a possibilidade de haver grupos que opinam de acordo com os seus princípios. Não existem a proibição destas atividades e, portanto, não há imposição proibicionista nenhuma. Existem vozes que se fazem ouvir e se algum dia houve uma maioria a favor de mudança, ela irá aparecer. Só pode aparecer se puder ter voz. Isto é valido para atividades tradicionais, progressivas e tudo o mais.
Ponto Onze
Este ponto é um incentivo ao voto jovem e ao pensionista, prometendo melhorias ao sistema contributivo, fim dos cortes às pensões e a liberdade de escolha entre o sistema público e o privado. Menciona, mais uma vez, o peso do Estado na Economia, e faz um apelo ao liberalismo através do “dinamismo económico.” Só não diz como o vai fazer nem quanto muda a vida dos visados. Alude também aos PPRs, que já existem. Há aqui um claro populismo de voz alta, sem nada que o sustente.
Ponto Doze
A galvanização e apelo à credibilidade das Forças Armadas é o mote deste ponto. Não se encontra verdadeiramente nenhuma crítica ao regime em vigor, nem menciona a atual perceção e prestígio que as Forças Armadas já possuem, nomeadamente no ramo dos Grupos de Operações Especiais (GOE), ramo que é reconhecido internacionalmente desde há muito.
Conclui-se mais uma vez a veia populista deste conteúdo programático na tentativa de ir buscar eleitores que se identifiquem com este tipo de galvanização.
Ponto Treze
Neste último ponto, o Chega demonstra, de uma forma aberta, o seu conservadorismo amarrado (mais uma e outra vez) a uma narrativa de ataque à esquerda, através de um léxico vazio. A herança intelectual secular da cultura portuguesa, afinidade ao património português, não tem significado objetivo que justifique um retorno a uma educação tradicional.
Alias seria de incluir, em nome da verdade dos acontecimentos históricos, o papel de Portugal na criação de uma rede de escravos e até as desastrosas políticas do colonialismo.
Porém, o verdadeiro engodo deste ponto é o “uniculturalismo” que o Chega quer implementar, e que efetivamente terá, como consequência, a ignorância, a informação inquinada e a obsolescência conceptual, num mundo que, entretanto, avança na direção oposta.
Conclusão
Facilmente se conclui o que este conteúdo programático demonstra e tenta ocultar.
Por um lado, o programa do Chega pretende um retorno a valores sem substância, que se apoia num romantismo patriótico que quer ir muito além do orgulho de ser português. Pretende, através desse romantismo, ignorar os efeitos nefastos da rigidez de identidade, como foram os papeis atribuídos aos membros de uma qualquer unidade familiar no passado.
Oculta também a possibilidade da autoafirmação de indivíduos ou grupos que não se identifiquem nessa rigidez, como sejam os segregados – como os homossexuais, no passado, e os não-binários, no presente –, cujas identificações pós-modernistas, e fragmentadas, não constituem nenhuma ameaça, apenas a possibilidade de serem quem desejam ser, sem interferência de um Estado conservador, que lhes informe sobre quem devem ser.
O Chega utiliza ainda os chamados temas fraturantes, como sejam o “majorar” de minorias étnicas ou estrangeiras, com o objetivo de fim de criar um pânico moral que se baseia em nada mais do que o medo da diferença ou perda de costumes.
Alude às forças militares como se estas não tivessem já o reconhecimento que lhes é devido. E guarda para último o resquício das narrativas do Estado Novo, como sejam a galvanização do Portugal de outrora, o respeito pela autoridade dos pais, formadores e autoridades, num país onde maioritariamente ele já existe.
Não sendo um conteúdo abertamente fascista, o programa do Chega é populista, na medida em que as forças por detrás de vários dos pontos apelam à irracionalidade e aceitação de valores e princípios unilaterais.
Na vertente económica é claramente liberal, e apoia a iniciativa privada, mas de uma forma utópica, já que não apresenta nenhuma forma de implementação de medidas. Apela assim o voto ao eleitor desinteressado e insatisfeito, aquele que não se revê no diálogo político e não procura informar-se no quê ou em quem está a votar.
Em última nota, não deixa de se notar alguma ironia na assunção ética que o partido faz de si mesmo.
Licenciado em Jornalismo (London Metropolitan University)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.