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  • Receitas apetitosas como poemas

    Receitas apetitosas como poemas

    Título

    A cozinha inglesa de Miss Eliza

    Autora

    ANNABEL ABBS (tradução: Elsa T. S. Vieira)

    Editora (Edição)

    Edições ASA (Abril de 2022)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    A todos aqueles que costumam cozinhar com frequência já sucedeu encontrar uma ou outra receita a que, seguramente, faltava certo ingrediente ou alguma etapa na confecção, quando não uma formulação atabalhoada.

    Foi também o que constatou Eliza Acton (1799-1859) nos manuais de cozinha britânicos do início de oitocentos. Em face de tais discrepâncias decidiu escrever um manual de cozinha intitulado Modern Cookery (1845), e é essa aventura que Annabel Abbs nos narra neste romance.

    Logo no Prefácio somos alertados de que esta se trata de “uma obra de ficção baseada nos poucos factos conhecidos sobre a vida de Eliza Acton, autora de poesia e pioneira da escrita culinária, e da sua assistente, Ann Kirby”.

    Escrito ao longo de dez anos, entre 1835 e 1845, o manual que Eliza escreveu é, ainda hoje, considerado como um dos melhores livros de culinária britânicos e um bestseller no seu tempo, com inúmeras edições ao longo dos anos. O que é obra, pois a jovem Eliza Acton, então com 36 anos, antes de embarcar nesta culinária odisseia, não sabia cozinhar rigorosamente nada.

    Tudo começa depois de Eliza publicar um livro de poemas. O editor diz-lhe que “a poesia não é coisa para senhoras”, propondo-lhe antes que escrevesse novelas, pois “são muito populares junto das jovens”, ou um livro de culinária. “Se sabe escrever poemas, também sabe escrever receitas.” E lança-lhe um desafio: “Traga-me um livro de culinária tão bonito e elegante como os seus poemas.”

    Rapidamente, Eliza constata que os manuais de culinária existentes apresentavam “uma prosa desastrada e estrangulada”, com uma gramática fraca, receitas pouco apetitosas, textos flácidos, entre outros desastres. “Alguns autores mal sabem escrever. As medidas são imprecisas, o fraseado é deselegante. Falta-lhes clareza e as próprias receitas não são nada apetitosas.”

    Perante todo este cenário, Eliza decide escrever um manual de cozinha com requinte literário, comparando o processo de seguir uma receita com o de escrever um poema. “Porque não hão de as artes culinárias incluir poesia? Porque é que um livro de receitas não pode ser uma coisa bela?”, questiona-se a novel cozinheira. “Tal como um poema, uma receita deve ser clara, precisa e ordenada.”

    E é assim, com este desígnio em mente, que Eliza vai descobrindo as maravilhas da culinária, acolitada por Ann Kirby, a jovem criada, que lhe serve de fonte de inspiração por possuir “um palato capaz de distinguir os mais subtis dos sabores”.

    Ao longo do processo de composição do manual de cozinha, os leitores vão mergulhando igualmente nos mundos atribulados e trágicos das personagens, com todos os seus dramas e, principalmente, os seus segredos. Tanto Eliza como Ann escondem algo uma da outra e que aos poucos, conforme a sua amizade se vai reforçando,  vão sendo revelados.

    Todos os capítulos têm como título uma referência gastronómica e há uma grande dose de sensualidade e deleite em algumas das descrições culinárias feitas pelas personagens, principalmente Eliza, e nas sensações que certas iguarias provocam no palato e no corpo.

    No capítulo XIX, por exemplo, encontramos Arroz Doce no título. Consultando a edição original do Modern Cuisine nele encontramos uma receita de Arroz Doce à Portuguesa (p. 496): “This is quite the best sweet preparation of rice that we have ever eaten, and it is a very favourite dish in Portugal, whence the receipt was derived.

    Ao longo da narrativa, encontram-se várias outras referências a produtos de origem portuguesa, como um Bolo de Madeira, confeccionado com vinho da Madeira, ou bastas alusões ao vinho do Porto, seja como bebida seja como ingrediente para inúmeras confecções culinárias, demonstrando a importância que os vinhos licorosos portugueses possuíam em terras de Sua Majestade.

    Por fim, nota para um ponto menos positivo.

    Embora a história seja contada por duas vozes distintas, a de Eliza e a de Ann, ambas parecem ter o mesmo tom. Annabel Abbs não soube dar dimensões diferentes à voz que conta o seu ponto de vista, tanto mais que as duas personagens são provenientes de estratos sociais diferentes e com níveis de educação bem díspares. Pormenor que esturrica um pouco este romance curioso e bem disposto que, tal como uma boa iguaria, proporciona bons momentos de leitura.

  • Da Índia, com muita cor e outros sentidos

    Da Índia, com muita cor e outros sentidos

    Título

    A tatuadora de Jaipur

    Autora

    ALKA JOSHI (tradução: Raquel Dutra Lopes)

    Editora (Edição)

    Edições ASA (Fevereiro de 2022)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Nascida no Estado indiano do Rajastão, Alka Joshi vive nos Estados Unidos desde os nove anos de idade. Criou e dirigiu a sua própria empresa de publicidade, durante mais de 30 anos. Já com o bacharelato na Universidade de Stanford, Alka decidiu realizar então um mestrado em Belas Artes na Universidade da Califórnia, em escrita criativa, aos 51 anos. O incentivo dos professores encorajou-a então a ir além dos anúncios publicitários.

    E foi aos 62 anos que se sentiu autora a sério, ao lançar o seu romance de estreia, A tatuadora de Jaipur, que rapidamente se tornou num campeão de vendas nas listas do New York Times. Integrou também a lista do Reese Witherspoon Book Club e foi ainda seleccionado pelo The Center for Fiction para o prémio Primeiro Romance. Neste momento, o romance está a ser adaptado para uma série de televisão.

    Está já disponível o segundo volume – intitulado The secret keeper of Jaipur, publicado originalmente no ano passado – numa obra que constituirá uma trilogia, porque a autora anunciou, entretanto, que vem a caminho um terceiro volume. Excelentes notícias para quem já leu e apreciou A tatuadora de Jaipur.

    Foi o meu caso. Para quem aprecia ficção, este romance é o tipo de obra que se começa e, simplesmente, não se consegue parar até chegar à última página – a hesitação está apenas na vontade em adiar o fim.

    A história da personagem principal, Lakshmi, é baseada na vida da mãe da autora, uma forma de homenagem a tantas mulheres que continuam a viver condicionadas pela tradição dos casamentos combinados. E também limitadas à sua casta de origem.

    Alka Joshi enleva o leitor numa viagem: a vida de Lakshmi, uma jovem de 17 anos que fugiu de um casamento forçado, da pobreza miserável e da tradição arreigada, cuja inevitabilidade só com muito trabalho, coragem e mesmo sofrimento, e até humilhações, se quebrou.

    A fuga é, então, à violência doméstica e à falta de futuro. Recorrendo aos ensinamentos da sogra, da arte herbal, Lakshmi alia o seu talento para a pintura: aprende a arte da tatuagem de henna, para assim sobreviver à pobreza a que milhões de indianos estão subjugados.

    A descrição dos cheiros, sabores, cores e texturas é de tal modo vívida que o leitor quase sente a pele das senhoras que Lakshmi tatua. Das cortesãs, Lakshmi dá um salto e consegue alcançar as senhoras da elite, e palacianas, a quem faz as pinturas de henna, seja para chamar a boa sorte, seja para seduzir os maridos, seja para uma qualquer cerimónia ou festa das castas mais altas.

    Foi através desta arte, e do respetivo trabalho árduo em agradar às senhoras que tatua, que a personagem conseguiu poupar o suficiente para, também ela, conseguir construir a sua casa – à base de materiais quase tão ricos quanto os das suas clientes. Mas o passado está ao virar da esquina. A chegada do ex-marido, e a descoberta de uma irmã mais nova, põe um travão à sua ambição e colocam em causa treze anos de trabalho duro.

    A história de Lakshmi cativa-nos imensamente, não apenas pelo enredo, mas sobretudo pelo contexto sócio-histórico que a autora tão bem descreve. Estamos na Índia da pós-independência da coroa britânica, na década de 1950, onde a luta dos mais pobres é a da sobrevivência, enquanto a dos mais ricos é a do aumento do poder.

    A luta é, e continua a ser (ainda hoje), a das mulheres. Em muitos casos, a sua independência ainda tem como resultado a ostracização. Na procura da liberdade, assistimos ao dilema em escolher entre a tradição e a modernidade – quase sempre incompatíveis. Este romance é, em certa medida, um retrato fascinante dessas lutas, contradições num cenário tão exótico quanto cruel.

    Num ou noutro momento pressentimos uma escritora ingénua, que sente necessidade de justificar opções e comportamentos das personagens. Mas à medida que avançamos na história, esquecemos esse pormenor. E, no final, já só ansiamos pela tradução do segundo volume e pela publicação do terceiro desta trilogia, que tem tudo para se tornar num fenómeno global.

  • Terá a vida mais sabor com pasta de feijão doce?

    Terá a vida mais sabor com pasta de feijão doce?

    Título

    Doce Tóquio

    Autor

    DURIAN SKEGAWA (tradução: Isabel Veríssimo)

    Editora (Edição)

    Edições ASA (Março de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    “Qual é o sentido da vida?” eis a pergunta que Durian Sukegawa (n. 1962) colocou antes de começar a escrever este romance. “Tem de haver uma razão para nascermos independentemente das circunstâncias individuais” (p. 190), explica no final do livro, numa Nota do Autor.

    Foi com base nessa premissa, a que não é indiferente o facto de Sukegawa ter sido um antigo estudante de filosofia oriental, que tomou uma decisão: “Escreveria sobre o significado da vida com uma nova perspetiva, no contexto da doença de Hansen” (p. 190).

    O romance conta a história de Sentarô Tsujii, ex-presidiário, bastante desiludido com a sua vida e longe de realizar o seu desejo: ser escritor. Nos últimos anos, passara todos os dias no interior de uma pastelaria, na Rua das Cerejeiras, numa zona desertificada de Tóquio, diante de uma chapa quente a confeccionar panquecas para fazer dorayaki. “Nunca se imaginara a fazer tal coisa” (p.14).

    Trabalha para pagar dívidas à mulher do antigo patrão, proprietária da pastelaria. Sente-se preso e um inútil, com a vida a escapar-lhe por entre os dedos. Certo dia, porém, Tokue Yoshii, uma “senhora idosa com um chapéu branco na cabeça”, que observava as cerejeiras em flor, entra na pastelaria para responder ao um anúncio de que pretendiam um empregado.

    Por causa da qualidade duvidosa da pasta de feijão doce que recheava as panquecas de Sentarô, Tokue confessa que não aprecia os seus dorayaki, pois não consegue “perceber quais eram as emoções da pessoa que a fez” (p. 11). Sentarô limitava-se a usar a mesma pasta de feijão doce pronta a usar que o falecido patrão utilizava. Então a senhora idosa dá uma caixa a Sentarô com pasta de feijão doce confeccionada por si, especialidade que ela praticava há cinquenta anos.

    Ao princípio, Sentarô não queria provar aquilo, mas depois decidiu provar um pouco: “aquela colherada fê-lo soltar uma exclamação de espanto” (p. 13). “Nunca provara nada como a pasta de feijão de Tokue” (p. 13). Para Tokue, a pasta de feijão era a alma dos dorayaki, pois “em pastelaria, o que importa são os pormenores” (p. 31).

    Quando Sentarô prova um dorayaki confeccionado por Tokue compreende as diferenças e subtilezas que existem entre o dela e o seu: “O aroma pareceu saltar, como se estivesse vivo, e correu pelo nariz até à parte de trás da cabeça. Ao contrário da pasta pronta a usar, cheirava a feijões frescos e vivos. Tinha intensidade. Tinha vida. Um sabor doce, rico e aveludado encheu-lhe a boca” (p. 33).

    O pasteleiro pede que a idosa o ensine a confeccionar a sua pasta de feijão doce e entre os dois desenvolve-se uma relação de profunda amizade, tendo as cerejeiras em pano de fundo, permanentemente, nos seus vários estágios, como testemunhas do desenrolar de toda a trama. Por ter padecido da doença de Hansen, também conhecida como lepra, Tokue fora encerrada num sanatório aos catorze anos, vendo-se assim privada de liberdade e de realizar o seu sonho de ser professora.

    Uma escrita subtil, plena de emoções, que nos guia pela narrativa com a leveza de uma flor de cerejeira na Primavera. Uma apologia da vida, da alegria de viver, da esperança, da culinária e, acima de tudo, da maneira como devemos escutar o mundo e tudo aquilo que nos rodeia. “Todos nascemos para ver e escutar o mundo”, escreveu Tokue Yoshii a Sentarô, e isso “é uma poderosa noção, com potencial para dar uma nova forma à nossa visão de tudo”, acrescenta Durian Sukegawa.

  • Uma arca de vidas sem chão

    Uma arca de vidas sem chão

    Título

    A arca

    Autora

    MONICA WOOD (tradução de Maria Dias Correia)

    Editora (Edição)

    Edições ASA (Fevereiro de 2022)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    A norte-americana Monica Wood já recebeu vários prémios, entre os quais dois pela sua contribuição para as humanidades e artes literárias: o Maine Writers & Publishers Alliance
    Distinguished Achievement Award (2018) e o Maine Humanities Council Carlson Prize (2019), respectivamente.

    Das suas muitas obras – apenas uma tinha sido antes publicada em Portugal, Um rapaz muito especial (2016),pela TopSeller – , esta é a sua favorita, de tal modo que se rendeu à republicação do original de 2002, com a integração de mais um capítulo em 2020: Não chores bebé, que constitui uma das nove histórias brilhantemente entretecidas desta edição melhorada.

    O pano de fundo deste romance é uma greve laboral de vários meses numa fábrica de papel da localidade de Abbout Falls, no Estado do Maine.

    Ao longo de 200 páginas, escutamos várias vozes sobre a greve, e outras histórias e vidas, todas interligadas de uma ou outra forma. Em cada personagem, a sua história, com maior ou menor (ou pouco) ênfase na greve, mas quase todas com alguma repercussão na sua vida decorrente dessa greve na fábrica de papel.

    O ponto de partida é a construção de uma arca como um projecto de arte, e cujo objectivo é dar mais vida a uma vida que está no fim e mais sentido a outra que perde o seu propósito.

    Em cada capítulo, um sofrimento, uma mágoa distinta, uma tentativa para encontrar uma qualquer espécie de felicidade, de preferência com o sentimento de se ser útil ou, pelo menos, importante para alguém. Várias são as histórias de vida de trabalho sem salários, casamento, divórcios, fugas e ausências.

    Este é, assim, um romance que convida à reflexão sobre os laços familiares que se perderam, que se querem recuperar ou sem esperança de serem reatados. O termo de comparação para algumas personagens é o casamento dos progenitores, sendo esta filiação uma rede sem chão, sem o apoio que se esperaria dos pais.

    Em cada personagem, em cada vida, uma perspectiva sobre o acontecimento que perpassa as vidas de todos: a greve na fábrica que é a vida de quase todos os residentes de Abbout Falls, no Maine.

    O romance aborda as condições de trabalho, o papel dos sindicatos, o trabalho enquanto condição (nem sempre) humana e a família. Uma outra versão de uma pastoral americana, sem o esplendor do sonho que deixou há muito de ser concretizado pela maioria.

    Além dos valores da família e do trabalho, o da solidariedade, que, a propósito da greve, se percebe que afinal “não é um chão, é uma escada. E as pessoas acabam em degraus diferentes”.

    Sem dúvida, uma leitura a não perder, para quem aprecia uma escrita envolvente e cativante sobre as vidas de personagens (quase) reais, com receios e angústias autênticos, em que o leitor se sentirá impelido a continuar até à última página.