Está previsto que o antigo secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, venha a Lisboa por ocasião do encontro do Grupo Bilderberg, que terá lugar poucos dias antes de cumprir os 100 anos de vida. Faça-se então uma reflexão para os próximos 100 anos da nossa vida. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.
Este é o Mundo dele. Henry Kissinger, antigo Secretário de Estado norte-americano – o equivalente a ministro dos Negócios Estrangeiros –, vai cumprir 100 anos de vida no dia 27 de Maio. E está previsto que, uma semana antes, esteja em Lisboa para participar na reunião do Grupo Bilderberg – que deverá ocorrer entre os dias 17 e 20 de Maio.
Quando digo que este é o mundo dele é apenas porque é impossível dissociar a sua figura dos maiores eventos que moldaram a sociedade nas últimas dez décadas. É claro que não podemos colocar Kissinger no centro do Universo desde 1923, pois só começou a ter influência vários anos depois. Mas o próprio, como produto de uma certa época, acabou por ser o reflexo do muito que acontece nos dias de hoje.
Henry Kissinger
Nascido como Heinz Alfred Kissinger, em Furth, na Baviera, os pais fugiram da perseguição aos judeus, em 1938, e Kissinger, depois de se ter tornado cidadão americano em 1943, com 20 anos, serve no Exército norte-americano. Tendo-se valido bem da sua capacidade de falar alemão – uma língua que ainda hoje se nota no seu característico tom de voz metálico – foi na inteligência militar que iniciou a carreira, que, digamos, nunca mais deixou de exercer.
Formou-se na Universidade de Harvard e cedo deu nas vistas, sobretudo quando, em 1957, publicou o livroNuclear weapons and foreign policy (Armas nucleares e política estrangeira), uma edição com o apoio do Council on Foreign Relations (CFR), a organização privada que, basicamente, pensa e forma os futuros líderes da América no que diz respeito à política exterior. E, como se sabe, para controlar a política exterior, é preciso primeiro garantir a interior.
Data também desse ano de 1957 a sua primeira participação numa reunião do Grupo Bilderberg, a organização não eleita que, desde 1954, reúne os principais políticos e empresários da Europa e Estados Unidos em encontros anuais, sem direito a escrutínio público, onde fazem o seu networking.
Presidente norte-americano Gerald Ford e Henry Kissinger
Discutem entre si, sem ser necessário tomarem decisões, pois todos eles acham que são os melhores do mundo e sabem melhor do que ninguém o que deve ser bom para todos nós. Os órgãos de Comunicação Social por si controlados, bem como os meios de propaganda das suas democracias, encarregar-se-ão depois de formarem o consenso necessário à aceitação pública das suas ideias pelas grandes massas. Algo há muito estudado.
O homem que vai chegar a Lisboa no ano do seu centésimo aniversário, trabalhava ainda com os irmãos Rockefeller no tempo do presidente Dwight Eisenhower, aquele que quando deixou a Casa Branca, em 1960, avisou contra o “complexo militar-industrial” que controla a política dos Estados Unidos. Após a morte de Kennedy e os anos de Johnson, eis que Kissinger chega a Washington com o novo presidente, Richard Nixon.
É então o tempo em que Kissinger impõe ao mundo a posição mais perversa que a política internacional criou e da qual nunca soube como sair: a “Realpolitik”. Com ela não há ideologias honestas, não há políticas sociais humanas, não há solidariedade internacional verdadeira, não há relações comerciais sustentáveis, não existem trocas de experiências culturais genuínas. Há apenas o poder dos poderosos e o que é prático e imediato para garantir a sua sobrevivência.
Henry Kissinger e Vladimir Putin em 2005.
É claro que foi Kissinger que conseguiu estabelecer as boas relações com a China comunista de Mao, mas isso também é parte de um outro termo político, que é a “Détente” – palavra francesa que remonta ao período de paz precária entre a França e a Alemanha, antes da I Guerra Mundial. Chama-se, em bom português, “a paz podre”.
Não preciso mencionar aqui todas as polémicas internacionais, os apoios a ditadores e golpes de Estado onde o nome de Kissinger parece estar sempre associado. Prefiro, nesta hora de soprar as 100 velinhas, pensar nos efeitos da sua passagem pela Terra e naquilo que ainda podemos salvar para o nosso futuro, quando ele deixar de estar fisicamente presente entre nós.
Poderemos dizer, olhando para os argumentos belicistas que temos assistido ao longo do último ano, com a guerra na Ucrânia, a uma ausência de equilíbrio entre os poderes das principais potências nucleares. O mundo poderia viver a Paz da Guerra Fria.
Henry Kissinger cumprimentando Mao Tse Tung em finais de 1975, sob o olhar do Presidente norte-americano Gerald R. Ford e sua filha Susan Ford
Poderíamos ainda dizer que fazem falta mais homens com a visão pragmática de Henry Kissinger: frios e calculistas. Despidos de empatia na hora de fazer diplomacia. Mas também estou convencido que foi essa mesma política que nos conduziu a nomes que surgiram como falsos salvadores de uma certa comunidade de descontentes e de pólos políticos extremistas, como Donald Trump e Vladimir Putin.
Não foram 100 anos de solidão, como no romance. São 100 anos da vida de um homem que vai demorar mais de 100 anos a corrigir a sua visão e os efeitos nefastos da mesma. Mas o positivo, se o quisermos tornar possível, é que deveríamos começar já a pensar, finalmente, num novo mundo, sem Kissinger, a partir de Maio. Devemos isso para os próximos 100 anos.
Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Como referência à morte do antigo ministro das Finanças, João Salgueiro, relembramos o mito da eleição de Cavaco Silva em 1985, frente ao falecido ex-ministro, no congresso do PSD da Figueira da Foz. Antes que os mitos de Cavaco se tornem na verdade histórica. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.
A notícia do falecimento do economista e antigo ministro das Finanças social-democrata, João Salgueiro, no passado dia 17, lembrou um mito esquecido na política portuguesa e que remonta ao congresso do PSD em 1985 e à eleição “inesperada” de Cavaco Silva.
Antes disso, lembre-se que João Salgueiro era uma personalidade que não surgira na política portuguesa pós-25 de Abril de 1974 propriamente do nada, pois tinha a experiência governamental do tempo do Estado Novo, onde trabalhou directamente com o ditador Marcello Caetano, como subsecretário de Estado do Planeamento Económico. João Salgueiro também não era aquilo que podemos qualificar como um “homem do regime”, pois até esteve na fundação da associação cívica SEDES.
João Salgueiro (1934-2023)
Tendo sido vice-governador do Banco de Portugal, aderiu ao PSD após a morte do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro, em Dezembro de 1980. Uma decisão emotiva. Naquela altura, o sucessor do primeiro-ministro morto no alegado atentado de Camarate foi Francisco Pinto Balsemão, que não contou com o então ministro das Finanças, Aníbal Cavaco Silva, para continuar no governo.
João Salgueiro era vizinho de Balsemão, na Rua Ribeiro Sanches, à Lapa, e o novo primeiro-ministro queria-o para o seu executivo. Só que o economista rejeitou o convite por razões pessoais e, considerando ainda a recente adesão ao partido, que o vissem como um oportunista. Balsemão teve de se contentar com o centrista João Morais Leitão para o cargo anteriormente ocupado por Cavaco. Mas, em Setembro de 1981, após a resolução de uma crise governamental, Balsemão formou novo governo e, finalmente, levou o vizinho João Salgueiro para as Finanças, cargo que o economista conduziu até Junho de 1983.
A marca imprimida por João Salgueiro levou-o depois a ser considerado como o principal candidato à liderança do PSD após a morte de Mota Pinto, em 1985. E é aqui que entra um mito da política portuguesa: João Salgueiro foi derrotado no congresso social-democrata da Figueira da Foz, em Maio de 1985, pelo antigo ministro das Finanças do governo de Sá Carneiro, Cavaco Silva, que só estava presente no congresso porque tinha ido fazer a rodagem do seu novo carro e saiu vencedor de forma “inesperada”.
João Salgueiro, em entrevista na RTP em 1990.
A margem eleitoral entre Cavaco e Salgueiro foram 57 votos e, depois do que aconteceu na Figueira da Foz, já se sabe: Cavaco tornou-se primeiro-ministro até 1995 e ainda chegou a ser Presidente da República. Fica sempre, para o reino da ficção alternativa, como seria Portugal caso João Salgueiro tivesse chegado a ser ele o primeiro-ministro em vez de Cavaco Silva.
Ao ver as notícias da morte de João Salgueiro percebe-se como o mito inventado por Cavaco Silva está hoje bem enraizado na história recente da política portuguesa e, como estes textos estão escritos debaixo da designação “Histórias que eu sei”, sou levado a ter de recordar, nesta hora em que desaparece um homem que fez parte desta história, aquilo que sei.
Sei que Cavaco Silva, que sempre disse ser um economista e que nunca se assumiu como político profissional, é o melhor político que este país conheceu. E se há muita gente que não gosta dos políticos portugueses, então é a Cavaco que o devem, pois o melhor político é aquele que nem sequer pode ser acusado de ser político. E Cavaco conseguiu criar esse mito à sua volta.
O primeiro mito de Cavaco é ter-nos feito acreditar que, após a morte de Sá Carneiro, não tinha hipóteses de se manter no governo. Que até estava cansado e queria sair após um ano em funções, entre Janeiro de 1980 e Janeiro de 1981, altura em que Balsemão se preparava para se sentar na cadeira de S. Bento.
Notícia do jornal Tempo de Julho de 1982.
É falso: logo após a morte de Sá Carneiro, a 13 de Dezembro, o semanário Expresso, propriedade de Pinto Balsemão e dirigido interinamente pelo actual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, dizia em primeira página que o nome de Cavaco Silva estava a ser ponderado dentro do PSD como “hipótese forte” para ficar à frente do executivo, enquanto Balsemão ocuparia o cargo de presidente dos sociais-democratas.
Será modéstia de Cavaco não reconhecer que o seu nome era o mais forte para suceder a Sá Carneiro em 1980?
Ou será que foram as condições por si impostas a Balsemão que não agradaram ao único dos três fundadores originais do PSD que ainda estava vivo e filiado no partido? Talvez ajude relembrar aqui as declarações de Balsemão ao Diário de Notícias de 1 de Janeiro de 1981 que, a propósito do projecto de Cavaco Silva, afirmou: “Estou convencido de que nunca vingarão em Portugal projectos de poder pessoal, porque o povo português ao escolher quem quer para governar escolhe um conjunto de medidas, um modelo de sociedade, e não o cidadão A ou B”, tendo acrescentado esta frase fatal: “Santa Comba Dão em 1980, em Portugal, não é concebível”.
Sim, Balsemão comparou directamente Cavaco Silva ao ditador Salazar. E isto, seis anos após o 25 de Abril, era visto como um enorme insulto político. Hoje, alguns diriam ser uma medalha, mas foi também no tempo em que Balsemão ainda não participava nas reuniões internacionais do Grupo Bilderberg e acreditava-se que Camarate tinha sido um acidente.
O segundo mito de Cavaco é o de que se manteve de fora da política activa até à altura em que chegou a líder do PSD. Afinal, recusou ser deputado e só falava publicamente quando lhe pediam a opinião.
Falso: Cavaco encabeçou uma lista para o Conselho Nacional do PSD no primeiro congresso do partido após a morte de Sá Carneiro, no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa – actual Pavilhão Carlos Lopes –, em Fevereiro de 1981, tendo feito aí o seu primeiro discurso em congressos. Estava na política activa. E pior: era activamente contra o líder do seu partido e primeiro-ministro, Pinto Balsemão.
Uma pessoa que topou bem essa nova esperança no futuro do PSD foi então um jovem jornalista do semanário Tempo, chamado Paulo Portas, que assinou uma entrevista com Cavaco Silva a 4 de Junho de 1981. Portas perguntou a Cavaco se, ao estar activo dentro do partido, não estaria a fazer um “tirocínio partidário” e se não colocava de lado a hipótese de poder ser chamado a funções mais elevadas. A resposta do economista Cavaco foi a resposta de qualquer político: “O PSD precisa de todos”.
Um ano depois, Cavaco assinava, com Eurico de Melo, uma carta aberta contra Balsemão. Aquilo não caiu bem, tanto mais que havia eleições autárquicas em Dezembro e, viu-se, o mau resultado do PSD – coligado desde 1980 com CDS e PPM, na AD –, levou à demissão de Balsemão.
Notícia do jornal Tempo de Maio de 1985.
No discurso de despedida da liderança do PSD, em Março de 1983, em Montechoro, Balsemão deixa um recado ao interior do partido dizendo que não se poderia aceitar que viessem a ser recompensados aqueles que “nos últimos dois anos, só se distinguiram por se colocarem fora do sistema, por desrespeitarem as resoluções dos órgãos próprios do partido, por se refugiarem calmamente em sua casa ou no seu escritório e se limitarem a falar de quando em quando para os jornais ou a escrever cartas abertas publicadas nas piores ocasiões”. Está-se mesmo a ver quem era o alvo: o maior dos políticos.
O terceiro mito de Cavaco e o maior de todos, é aquele em que ele diz que foi “inesperadamente” eleito líder do PSD no congresso da Figueira da Foz, em 1985, vencendo João Salgueiro, candidato apoiado por Pinto Balsemão. É certo que teve uma diferença de 57 votos, mas não se pode dizer que Cavaco Silva só foi ao congresso para fazer a rodagem do carro e dizer o que tinha a dizer e, depois, vir embora.
A falsidade do argumento é desmentida, primeiro, pela manchete do Expresso a 11 de Maio de 1985, uma semana antes do congresso, que se realizaria entre os dias 17 e 19 de Maio: “Distritais avançam nome de Cavaco Silva”. Eram as letras gordas da primeira página do Expresso, acompanhadas de um ante-título, com letras mais pequenas, a dizer: “Com candidatura de Salgueiro quase certa no PSD”.
João Salgueiro em 2010, sendo recebido por Cavaco Silva, então Presidente da República. Imagem RTP Arquivos.
Outro semanário bem informado sobre os passos de Cavaco na preparação para o congresso, era o Tempo – uma escola para o futuro director do Independente, Paulo Portas. A manchete de sexta-feira, dia 17 de Maio, à abertura do congresso, tinha a foto de um sorridente Cavaco e, em letras gordas: “Discurso de Cavaco vai ser decisivo”. E com isto, ainda nos querem fazer acreditar na rodagem do carro? E no “inesperado”?
Cavaco conseguiu ser eleito e João Salgueiro nunca mais exerceu qualquer outro cargo político, e este é agora o País que temos. Não sei se seríamos diferentes caso o resultado do congresso de 1985 tivesse sido favorável a João Salgueiro, mas uma coisa tenho a certeza que nunca haveria: os factos omitidos para a criação do mito de Cavaco Silva.
Que a morte de João Salgueiro nos permita desfazer um pouco disto antes que se tornem para sempre na verdade em que todos acreditarão.
Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
A Guerra na Ucrânia vai entrar no seu segundo ano e é cada vez mais notória a luta da propaganda versus jornalismo. A recente reportagem do jornalista veterano norte-americano Seymour Hersh sobre a sabotagem do gasoduto Nord Stream 1 e 2 pelos militares dos Estados Unidos, que foi classificada de “ficção”, é um exemplo do que está em causa. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.
Tenho aqui à minha frente um livro que comprei em 2018. É a autobiografia do jornalista norte-americano Seymour Hersh. O título diz tudo sobre quem é esta pessoa: “Repórter”. Apenas isso. E já é muito. Na capa, o repórter está ao telefone (com fios) e tem uma máquina de escrever à sua frente. A foto foi captada em 1972 na redacção do “The New York Times”.
Seymour Hersh é um nome assaz conhecido – e reconhecido – nos Estados Unidos. A sua primeira grande reportagem data de 1969, quando denunciou o massacre de My Lai, no sul do Vietname, onde soldados norte-americanos mataram mais de 300 civis. Ao serviço do The New York Times, Hersh investigou depois o Watergate e muitas das suas reportagens fazem parte da história que, em Agosto de 1974, levou à demissão do Presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon.
Com boas fontes juntos dos militares e serviços secretos norte-americanos, denunciou depois, em Março de 1975, um plano da CIA para recuperar um submarino soviético afundado no Oceano Pacífico desde 1968. Conhecido como “Project Azorian”, o plano envolveu a construção de um navio capaz de transportar poderosas gruas que iriam trazer o submarino à tona, permitindo assim aos Estados Unidos terem acesso aos segredos nucleares dos soviéticos. A construção do navio custou, em números dos dias de hoje, o equivalente a 4 mil milhões de dólares. E contou com o apoio do milionário Howard Hughes como fachada para a operação secreta.
Dois meses depois daquela história, Seymour Hersh assinou uma segunda reportagem onde denunciava operações navais de espionagem com submarinos norte-americanos em águas territoriais da União Soviética. Uma operação que levantava muitas críticas dentro dos meios militares dos EUA por colocar em causa a détente da Guerra Fria.
Não foram histórias de “ficção”, mas pareciam. Bem mais recente, lembremo-nos de que, em 2004, Seymour Hersh, ao escrever então para a revista The New Yorker, foi ainda o jornalista que revelou ao mundo como eram os processos de tortura norte-americana na prisão iraquiana de Abu Ghraib.
Imagens chocantes de maus tratos em prisioneiros em Abu Ghraib
Por isso, quando, aos 85 anos, este repórter escreve num site da Internet dedicado a artigos que não conseguem ter lugar na Imprensa generalista, que os militares dos Estados Unidos levaram a cabo uma missão secreta para destruírem o gasoduto russo Nord Stream 1 e 2, através de uma explosão que se registou a 26 de Setembro, na zona próxima à Noruega, então temos de ter em consideração que não estamos propriamente face a um qualquer jornalista.
Por muito que a Casa Branca venha desmentir e dizer que a história de Hersh é “completamente falsa” e que mais parece saída de uma “ficção”, sabemos que não podemos simplesmente descartar aquela sabotagem que, no fundo, tem uma grande importância estratégica para o conflito na Ucrânia, que entra agora no seu segundo ano.
No prefácio da sua autobiografia, Seymour Hersh explica que ele é “um sobrevivente da época dourada do jornalismo, quando os repórteres dos jornais diários não precisavam de competir com o ciclo noticioso de 24 horas da televisão por cabo, quando os jornais tinham dinheiro da publicidade e dos anúncios de procura de emprego”. Uma época em que ele tinha a possibilidade de “viajar para qualquer lugar, a qualquer hora, por qualquer motivo, com cartões de crédito da empresa”.
Imagem da zona da explosão do pipeline do Nord Stream em Setembro de ano passado. Fonte: Autoridade Marítima da Dinamarca.
Havia tempo para relatar uma notícia de última hora sem ter de depender do que estava constantemente a aparecer na página de Internet do jornal. Mas o que não havia mesmo no tempo de Seymour Hersh, segundo ele, eram os “especialistas” e jornalistas de TV por cabo “que começam as respostas a todas as perguntas com as duas palavras mais mortais do mundo dos média: ‘Eu acho’”.
O jornalismo actual, acrescenta Hersh, é composto, essencialmente, por coisas como “pouco mais do que dicas ou indícios de algo tóxico ou criminoso”. A falta de tempo, dinheiro ou equipas qualificadas, desembocam em “histórias do tipo ‘disse ele, disse ela’, nas quais o repórter é pouco mais do que um papagaio”.
Aponta ainda este norte-americano: “Sempre considerei que a missão do jornalista era a procura da verdade e não a mera notícia do conflito. Houve um crime de guerra? Os jornais ficam agora dependentes de um relatório negociado nas Nações Unidas que surge, na melhor das hipóteses, meses depois dos factos. E os média fizeram algum esforço significativo para explicar por que um relatório da ONU não deve ser considerado por muitos, à volta do mundo, como sendo a última palavra? Existem sequer relatórios críticos sobre a ONU?”.
As perguntas de Hersh deviam ser as perguntas de todos os jornalistas que dizem fazer jornalismo. E, de forma lapidar, afirma este repórter: “Toda a minha carreira tem sido sobre a importância de contar verdades importantes e indesejadas e tornar a América num lugar mais informado. Talvez seja por isso que é muito doloroso pensar que nunca teria conseguido fazer o que fiz se estivesse a trabalhar no mundo caótico e desestruturado do jornalismo de hoje. Claro que ainda estou a tentar”.
A tentar.
E essa tentativa viu-se agora com o descrédito votado à sua reportagem sobre a destruição do gasoduto russo que fornecia gás à Alemanha e que, na prática, veio ajudar ao aumento dos gastos da produção de energia na Europa e todas as consequências que vemos com os aumentos dos produtos nos supermercados e nas taxas de juros do crédito à habitação. No fundo, a inflação.
A guerra é uma coisa terrível. Não há honra, não há regras – apesar das convenções de Genebra que quiserem inventar. O pior do ser humano é revelado, embora também existam histórias de heroísmo de um e outro lado.
Portugal, como membro da NATO – aliás, membro fundador da NATO ainda no tempo da ditadura de Salazar –, está do lado da Ucrânia. Logo, qualquer notícia que seja suspeita de agradar aos russos, deve ser ponderada com critérios mais apertados do que qualquer outra que seja bem mais simpática ao “nosso lado”.
A isso não se chama jornalismo, mas sim propaganda.
Um ano volvido sobre o início da Guerra na Ucrânia, esta já levou muitos jornalistas a irem visitar o terreno em aventuras controladas nos cenários de guerra, de onde saíram vivos para contarem histórias idênticas a muitas outras desde que o homem inventou a barbárie dos conflitos armados modernos.
Fugas em massa, pais separados de filhos, despedidas comoventes, reencontros emocionantes, mortes de inocentes, exemplos de bravura e resistência, relatos de massacres inimagináveis, crimes de guerra, avanços e recuos de tropas, armas inteligentes e humanos cada vez mais estúpidos. Há de tudo para que se escrevam belos discursos, poemas, textos emotivos, artigos importantes, livros de crónicas que engrandecem currículos de jornalistas ditos “de guerra”.
Entretanto, na retaguarda, enquanto uns vão jantar fora à sexta-feira, há ainda jornalistas como Seymour Hersh que arriscam a vida e reputação ao revelarem o que alimenta de verdade esta guerra. São esses quantos, que insistem em tentar fazer jornalismo, mesmo correndo o risco de serem acusados de criar ficções, que ainda mantém a chama do jornalismo acesa.
Só que, para eles, soldados da pena jornalística, não haverá medalhas nem sequer uma chama eterna como num monumento ao soldado caído.
Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Jantar fora à sexta-feira é um sinal de que, afinal, nem tudo está mal na economia dos dias de hoje? Como é que se baixou a fasquia daquilo que deveria ser o normal indicador económico? E ainda se lembram quando se apelava a não fazermos férias no estrangeiro porque isso seriam “importações”?
Causou comoção nacional, com laivos de escândalo, uma declaração do presidente executivo do Santander Totta, Pedro Castro e Almeida. Disse ele que, apesar da crise, os portugueses continuam com “padrões de consumo relativamente elevados”. Este é o índice económico apresentado por este alto responsável da banca, que vê quando se circula pelas ruas de Lisboa, com pessoas a jantar fora à sexta-feira. Ou ao sábado de manhã.
Imediatamente se rasgaram vestes, produziram-se textos e discursos contra os predadores da grande banca, que se acham donos disto tudo. Com que direito vem este banqueiro julgar quem opta por ir jantar fora à sexta-feira? Quer ele insinuar que jantar fora à sexta-feira, no meio da crise financeira, é condenável e devíamos estar em casa a poupar?
Houve depois quem viesse avisar que as palavras tinham sido mal observadas no seu sentido profundo. O presidente do Santander, afinal, não quisera condenar quem anda a gastar de forma irresponsável o pouco que tem. Nada disso. Ele até estava a dizer que, pelo contrário, é bom, muito positivo até, poder ver gente que poupou durante a pandemia e que agora anda a jantar fora à sexta-feira. Isso significa que as pessoas têm dinheiro no bolso. Andam felizes e com confiança no futuro. Têm poder de compra. É, portanto, um indicador financeiro positivo, sinal de que as coisas não estão assim tão mal como andam para aí a pintar.
É este último pensamento – o do jantar fora à sexta-feira ser uma coisa boa –, que importa abordar, pois há um detalhe que parece ter passado ao lado de muitos jornalistas de Economia – sempre bons cumpridores de ordens e excelentes escribas de relatórios citados com aspas –, mas, por deformação profissional, fracos observadores.
No meio das discussões e até de algumas reacções de pessoas que foram jantar fora na sexta-feira imediatamente a seguir – as declarações foram feitas numa quinta-feira –, ninguém disse o óbvio: a fasquia do indicador económico está visivelmente em baixo. E essa é a discussão que devíamos estar a ter.
Pedro Castro Almeida, CEO do Santander Totta
O que é feito daqueles termos tão caros aos economistas como o célebre “índice de produção na indústria transformadora”, o saudoso “índice de volume de vendas do comércio a retalho”, o tradicional “consumo de combustíveis (gasolina e gasóleo)”, o sempre revelador “consumo de energia eléctrica”, as enigmáticas “vendas de cimento para o mercado interno”, culminando nas análises dos números de “ofertas de emprego” e o sempre presente “procura de emprego por parte dos desempregados”, sem descurar, obviamente, o maior indicador de todos: “vendas de automóveis ligeiros de passageiros” e ainda de “vendas de veículos comerciais (ligeiros e pesados)” e, por fim, as “dormidas na hotelaria”?
O jantar de sexta-feira à noite nunca foi propriamente uma questão recorrente, sequer concorrente, nos indicadores quantitativos de consumo privado, onde eram contabilizados os bens para o lar, como computadores, equipamentos de telecomunicações e livros.
Nem sequer se questionava o ir jantar fora ao mesmo nível do consumo dos bens alimentares adquiridos nos supermercados, dos bens não alimentares, como têxteis, vestuário, calçado e artigos de couro, passando ainda pelos produtos farmacêuticos, médicos, cosméticos e de higiene.
Quando queremos analisar a saúde financeira de um país, não andamos propriamente por aí, a espreitar pela janela dos restaurantes, para ver quem anda ou não a jantar fora – um dono da banca também não faz isso, pois basta-lhe ver os movimentos dos cartões de débito e crédito dos clientes para conhecer em detalhe toda a nossa vidinha e fazer os julgamentos para as decisões que bem entender.
O verdadeiro economista vai analisar, por exemplo, o indicador de investimento, onde se vê o que gastamos, como país, em máquinas e equipamentos. Há coisas como o “volume de vendas”, “actividade corrente”, “perspectivas de atividade” e “perpectivas de encomendas a fornecedores”. Há factores como vendas de veículos ligeiros de passageiros para empresas de rent-a-car e táxis, os serviços e a construção e obras públicas. Jantar fora à sexta-feira nunca foi uma questão premente e reveladora. Até agora.
Devemos então perguntar-nos como chegamos aqui? Como é que o jantar fora numa sexta-feira à noite chegou a ser um indicador da boa ou má saúde económica em detrimento de todos os outros? Como é que todos aqueles indicadores parecem estar em segundo lugar?
Talvez seja bom recordar então – e isto é um mero exemplo – de uma frase dita em Junho de 2010 por uma pessoa que percebe muito de Economia. Um senhor que, além de muitas outras coisas, até foi ministro das Finanças, e que, há mais de 12 anos, em Junho de 2010, disse isto: “férias passadas no estrangeiro são importações e aumentam a dívida externa portuguesa”.
Extraordinário, não? Alguém ainda se lembrava desta análise tão profunda sobre os hábitos dos portugueses? Alguém ainda se recorda de quando poder-se ir de férias no estrangeiro valia mais do que os jantares fora à sexta-feira?
E sabem quem foi o antigo ministro das Finanças, além de outras coisas mais tarde, que disse aquela verdade de tão elevado valor analítico? Pois. Foi o então Presidente da República, o Dr. Aníbal Cavaco Silva, doutorado em Economia Pública pela Universidade inglesa de York, e que serviu como ministro das Finanças do Governo de Francisco Sá Carneiro, entre 2 de Janeiro de 1980 e 10 de Janeiro de 1981.
Quando Cavaco disse aquilo, o socialista José Sócrates era o primeiro-ministro e havia um programa de incentivo económico para que os portugueses, no sentido de ajudarem ao estímulo da Economia nacional, fizessem férias “cá dentro”.
Que saudades do “vá para fora cá dentro”, quando ainda se podia, de todo, fazer férias, mesmo cá dentro. Quando ir jantar fora, “cá dentro”, era tão banal que nem chegava a tema de discussão. Bons tempos…
O mesmo Cavaco Silva, agora já ex-Presidente da República, escreveu em Abril do ano passado, no diário Público, que sem umas quantas reformas (que ele lá sabe) “continuaremos a ser um país de salários mínimos, de emigração dos jovens mais qualificados com ambição de subir na vida, uma classe média empobrecida, pensões de reforma que não permitem uma vida digna, elevado risco de pobreza e exclusão social e serviços públicos de baixa qualidade. Será assim, independentemente das promessas e ilusões criadas pelos governos e partidos políticos. A retórica e a mentira não produzem riqueza”.
Grande frase esta: “a retórica e a mentira não produzem riqueza”.
Para muitos portugueses, colocar jantar na mesa todos os dias – não apenas à sexta-feira – é cada vez mais difícil. E se há uns que ainda vão jantar fora, esses que aproveitem bem, pois se não pensarem nos pobres, os pobres irão pensar neles.
Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
A discussão sobre os custos do altar para o Papa Francisco, para as Jornadas Mundiais da Juventude, levou-me a fazer uma consulta no livro sagrado dos católicos, a Bíblia. Fui à procura de respostas e, sobretudo, do que nos diz sobre a relação entre a Religião e a Economia. Foi um trabalho edificante.
Não sou nenhum especialista em Teologia, mas também não me sinto diminuído na minha relação com a religião. Chamem-me espiritualista ou agnóstico, se precisarem de rótulos ou de minimizar a discussão.
Factualmente, saiba-se que publiquei, em 2013, o livro de ficção “O Terceiro Bispo”, cujas bases se alicerçam no momento em que o Papa Bento XVI anunciou a sua resignação, em Fevereiro de 2013. Percebi depois o caminho que uma história sobre o tema poderia levar quando, a 13 de Março, o Papa Francisco apareceu à varanda do Vaticano a dizer que o foram buscar “quase ao fim do mundo”.
Era uma frase perfeita para registar numa obra que iria versar sobre o Terceiro Segredo de Fátima e as profecias de São Malaquias, onde é dito que este Papa Francisco é o último das profecias, o responsável pela destruição da Igreja.
Durante os seis meses seguintes – entre Abril e Setembro –, dediquei-me à investigação e escrita do livro, tendo sido depois revisto e paginado durante o mês de Outubro para, finalmente, chegar às livrarias no início de Novembro.
Terá sido, quase de certeza, a primeira obra de ficção a nível mundial a abordar a eleição do Papa Francisco – aliás, é por saber quanto demora a escrever diariamente, um livro de 300 páginas com investigação, método e disciplina, que me espanta haver quem, com uma profissão principal que o obriga a cumprir horários de trabalho, ainda assim consiga, apenas nos tempos livres, “produzir” anualmente uma obra que, em média, tem 600 páginas.
Recordo-me bem de alguns dos passos do novo Papa. Sobretudo a visita à casa “Dom de Maria”, das Missionárias da Caridade, a 21 de Maio de 2013. Esta casa, no Vaticano, perto do edifício da Congregação para a Doutrina da Fé, costuma acolher pobres e sem-abrigo. Foi aí que Francisco disse estas palavras que, pela sua importância, incluí no livro: “Um capitalismo selvagem tem ensinado a lógica do lucro a qualquer custo, do dar para obter, da exploração sem considerar as pessoas… e podemos ver os resultados na crise que estamos a viver!”.
Era um Papa que atacava o “capitalismo selvagem” e pregava contra os maus exemplos do luxo. Ficou famoso o seu gesto de mandar fazer uma cadeira de madeira em vez de usar o tradicional “trono de ouro”. Isso caiu muito bem em certas pessoas. Também achei bem, confesso.
Até que o meu amigo Luís Miguel Rocha – autor de várias obras sobre o Vaticano e precocemente desaparecido do nosso convívio terrestre em 2015 –, na apresentação do meu livro, no Porto, apontou para um detalhe: o “trono de ouro” há muito que estava pago. Nem era um luxo, pois é uma obra de arte do escultor do século XVII, Gian Lorenzo Bernini, feito em madeira e banhado com bronze dourado.
Mas a nova cadeira de Francisco, essa, custou dinheiro – foi pouco, mas ainda assim um gasto desnecessário. Um gasto supérfluo para que o Papa pudesse mostrar uma nova imagem e parecer “pobre”.
A recente polémica do altar de quatro milhões para as Jornadas Mundiais da Juventude, que vão ter lugar em Lisboa durante a primeira semana de Agosto, levou-me a ir procurar na Bíblia algumas respostas sobre como a Igreja encara a relação com o dinheiro.
Não fiz um levantamento exaustivo, mas deambulei pelo livro sagrado dos católicos com a curiosidade de alguém que quer perceber a visão milenar dos católicos em relação à Economia e como isso se adapta aos tempos modernos.
(Nota: para esta busca usei a versão de “a Bíblia para todos: Edição Interconfessional”, edição LBE-Loja da Bíblia Editorial e tradução Sociedade Bíblica de Portugal).
Há palavras interessantes, sobretudo nos Provérbios. Em 22:1 avisa-se que “mais vale ter bom nome do que grandes riquezas; ter a estima dos outros é melhor que ouro e prata”. Claro que isto não ajuda a pagar contas na mercearia, por muito boa fama que se tenha no bairro.
Logo a seguir, em 22:2, regista-se: “O rico e o pobre têm algo em comum: ambos foram criados pelo Senhor”. Estas últimas palavras, em vez de me tranquilizarem, preocuparam-me. Mostram que o “Senhor” não criou homens iguais, e há no provérbio bíblico uma clara distinção entre “o rico” e “o pobre”. Como se isso fosse uma inevitabilidade.
Em Provérbios 22:7, a Bíblia explica mesmo que “o rico domina sobre os pobres; o que pede emprestado fica escravo do credor”, o que confirma muito do que digo aos meus amigos pobres: pedes emprestado ao banco, ficas escravo do banco.
Será então em 22:9 que leio uma frase esclarecedora sobre a distinção entre ricos e pobres: “Aquele que é generoso será abençoado, porque reparte o seu alimento com os pobres”. Agora percebo a tal inevitabilidade de haver ricos e pobres: é para permitir aos ricos serem abençoados caso decidam serem generosos.
Será ainda em 22:16 que se avisa: “Oprimir o pobre para se engrandecer, ou dar ao rico, conduz à pobreza”. Isso é uma verdade tão óbvia que deveria fazer pensar católicos e não católicos: para quê dar dinheiro a ricos que se engrandecem à custa da opressão dos pobres? Gastar em supermercados que, a pretexto de guerras, aumentam preços ao mesmo tempo que anunciam aumentos de lucros? Pagar mais do que se pode de prestação da casa, via Euribor, enquanto o governo se regozija com o aumento do PIB? Afinal, são essas as coisas que conduzem à pobreza.
Não sei se a leitura da Bíblia faz parte dos cursos do ISEG – Instituto Superior de Economia e Gestão de Lisboa – ou da Nova SBE – Nova School of Business and Economics –; mas devia.
Nem deveria citar a mais famosa parábola de todas – precisamente porque é a mais famosa – que alude ao facto de ser mais fácil um camelo (que, neste caso, é uma corda grossa para prender barcos, e não o animal) passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus. Mas gostaria de citar um outro provérbio, o 28:22, que anuncia: “O homem ganancioso tem pressa de ser rico, mas não sabe que vai cair sobre ele a pobreza”. Isso poderia estar gravado em moto – em letras de madeira banhadas a bronze dourado – nas entradas principais daquelas instituições. Estilo “Inferno”, de Dante: “Vós que entrais, abandonai toda a Esperança”.
Há ainda duas parábolas que retenho.
A primeira, conta Mateus, em 20:1-16, é a de um proprietário que, de manhã cedo, saiu para contratar trabalhadores para a sua vinha. E combinou com eles que pagava uma moeda de prata por dia. Mas às nove da manhã foi de novo à praça e chamou mais trabalhadores e disse-lhes apenas que pagaria o que achasse “justo”. Fez o mesmo ao meio-dia, às três da tarde e ainda, mais uma vez, pelas cinco da tarde. Ao cair da noite, deu ordens ao feitor para pagar aos trabalhadores, começando pelos que começaram pelas cinco da tarde e acabando nos que começaram de manhã cedo.
Quando se fez o pagamento, aqueles que trabalharam menos, os que entraram apenas às cinco da tarde, receberam uma moeda de prata. Os que começaram de manhã e trabalharam todo o dia, ao verem aquilo, esperavam receber bem mais. Mas só receberam a mesma moeda de prata, apesar de terem trabalhado mais tempo. Claro que começaram a estrebuchar: “Então estes últimos só trabalharam uma hora e estás a pagar-lhes tanto como a nós que aguentámos o dia inteiro a trabalhar debaixo de sol!”.
É nesse momento que o proprietário diz algo que deveria estar nos manuais de Economia grafado em letras grossas: “Olha amigo, não estou a ser injusto contigo. O salário que combinámos não foi uma moeda de prata? Toma lá o que é teu e vai-te embora, pois eu quero dar a este último tanto como a ti. Não tenho eu o direito de fazer o que quero com o que é meu? Ou tu vês com inveja o facto de eu estar a ser generoso?”.
Claro que Karl Marx depois elevou esta questão a outro nível, mas Jesus concluiria isto com a célebre frase: “Deste modo, os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos”.
A segunda história é a parábola dos talentos. Um homem foi fazer uma viagem e deixou dinheiro com três criados. Deu 500 moedas a um, 200 a outro e 100 ao terceiro. Quando regressou, o que tinha recebido 500, devolveu-lhe as 500 e ainda acrescentou mais 500 que, entretanto, conseguira ganhar em negócios feitos com o dinheiro. O que recebeu 200, também devolveu 200 e ainda a acrescentou mais 200. O terceiro, disse que teve medo de perder o dinheiro e guardou-o num buraco, para o devolver na totalidade.
O homem recompensou os dois primeiros e mandou o terceiro dar as 100 moedas ao que recebera 500 e disse esta máxima da Economia moderna: “Pois, a todo aquele que tem, mais se lhe há-de dar e terá de sobra, mas àquele que não tem, até o pouco lhe será tirado” (Mateus 25:29). Em Lucas, 19:26, a resposta é ainda mais cruel na sua verdade lapidar: “Pois eu digo-vos que ao que tem dá-se-lhe mais, mas ao que não tem tira-se-lhe até o que possui”.
Feita esta abordagem por entre provérbios e parábolas – e muitos mais haveria para citar aqui! – fui procurar respostas específicas a duas perguntas concretas que se colocaram com a polémica do altar do Papa.
Quando se questiona se o Papa Francisco, depois desta confusão, deveria vir ou não a Lisboa, recorro a Marcos 2:15, onde se fala de um momento em que Jesus estava sentado à mesa com pecadores e… cobradores de impostos! Perguntaram então a Jesus como podia ele comer na companhia de semelhante gente, ao que ele respondeu: “Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Ora eu não vim chamar os justos, mas os pecadores”. Portanto, Francisco que venha a Lisboa, onde há muitos pecadores à sua espera para o convívio.
Finalmente, a questão mais propagandeada prende-se com o valor do palco, os quatro milhões de euros. Pergunta-se: “Mas que desperdício! Esse dinheiro não deveria ser dado aos pobres? Ora, a Bíblia tem uma resposta para esta pergunta em específico. Não é uma pergunta nova. Podemos encontrar tanto em Mateus 26:6, Marcos 14:3 e João 12:1-8.
Coligindo as três versões, a história conta-se assim: está Jesus em Betânia, antes do momento da traição de Judas. Ele já sabe que vai morrer. João diz-nos que estavam em casa de Lázaro, o ressuscitado, embora os outros dois, Mateus e Marcos, falem de Simão, “o leproso”. Não importa. O importante é que, nesse momento, surge uma mulher com um vaso de alabastro contendo um “perfume muito caro”. Feito das melhores plantas de nardo. Aquilo era coisa para custar 300 moedas. À cotação da época, daria bem para comprar um escravo.
A mulher deitou o perfume caro pelos pés de Jesus e “depois secou-os com os seus cabelos” – Mateus e Marcos dizem apenas que o deitou pela cabeça de Jesus abaixo, mas isso também não importa. O importante foi a reação dos discípulos que, note-se, até eram amigos de Jesus.
Eles foram os primeiros a condenar a cena e, indignados, disseram exactamente aquilo que, dois mil anos depois, ainda anda por aí muita boa gente a perguntar e, sobretudo, agora com a questão do altar: “Para que foi este desperdício? Este perfume podia vender-se por uma grande quantia e dava-se o dinheiro aos pobres!” (Mateus). “Para quê desperdiçar todo este perfume? Pois podia vender-se por mais de 300 moedas que se davam aos pobres” (Marcos).
No Evangelho de São João é até explicitado que quem fez a pergunta foi Judas Iscariotes, esse mesmo, o discípulo que haveria de trair Jesus. Ele perguntou: “Por que não se vendeu este perfume por 300 moedas para distribuir pelos pobres?”. João acrescenta que, quando Judas fez aquela pergunta, “não disse aquilo por ter amor aos pobres, mas porque era ladrão, pois era ele que tinha a bolsa do dinheiro e roubava do que lá se metia”. Tão actual. Em dois mil anos, não se avançou muito, realmente.
Então, e qual foi a resposta de Jesus a esta questão moral?
Escolho a versão de Marcos, por achar ser esta a mais completa e límpida de todas: “Deixem a mulher em paz e não a incomodem. Ela praticou uma bela acção para comigo. Pobres irão ter sempre convosco e poderão fazer-lhes o bem que quiserem. Mas a mim é que não me poderão ter sempre. Ela fez o que pôde, perfumou o meu corpo para a sepultura. E garanto-vos que em qualquer parte do mundo, onde for pregada a boa nova, será contado o que esta mulher acaba de fazer e assim ela será recordada”.
Sim, Senhor: recordaremos o perfume de nardo quando estiverdes em Lisboa…
Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.
O músico Dino Santiago usou um evento do semanário Expresso para colocar em causa a letra do hino nacional. Fomos ler o que disse o semanário Expresso quando, em 1997, Alçada Baptista fez a mesma proposta no seu discurso de 10 de Junho.
“Não tem nenhum eco no coração da juventude evocar a vitalidade da pátria gritando ‘às armas’ e propondo-nos ‘marchar contra os canhões’”. Quem disse isto? Se pensou no nome de Dino Santiago, o músico que, no passado dia 6 de janeiro, durante a conferência comemorativa dos 50 anos do semanário Expresso, propôs a alteração do hino nacional, então está errado.
Dino disse algo parecido. Mais precisamente: “A nossa geração, este nosso tempo, já é um tempo de termos um hino menos bélico, que incentive menos às guerras. Não gritemos mais ‘às armas, às armas’ e não marchemos mais ‘contra os canhões’. Os nossos filhos não precisam disso e a nova emancipação não pode ser territorial. Que seja mental, espiritual, com amor”.
Então, quem disse a frase inicial e quando? Aquelas foram palavras de António Alçada Baptista (1927-2008), advogado, romancista e editor que, entre 1988 e 1997, foi o presidente da Comissão Organizadora do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Seria no 10 de Junho de 1997, na cidade de Chaves, que Alçada Baptista, como orador oficial, questionou o hino nacional perante o Presidente Jorge Sampaio e o primeiro-ministro António Guterres.
É preciso, primeiro, contextualizar a altura em que Alçada Baptista disse aquelas palavras. Em 1997, Portugal vivia o segundo ano do governo socialista de António Guterres. Era uma nova política, após os dez anos de Cavaco Silva à frente do governo. Guterres não tinha uma maioria parlamentar, mas vencera as eleições e geria o cargo em maioria relativa, sem qualquer acordo parlamentar assinado à esquerda. O actual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, era então o líder do PSD desde que vencera o congresso de Santa Maria da Feira no ano anterior.
O país ainda não tinha entrado na crise económica do “pântano” ou da “tanga”, mas discutia-se uma das mais importantes decisões que afectariam a soberania de Portugal: a adesão ao euro e o fim da nossa moeda, o escudo. É nesse ambiente que Alçada Baptista lança o repto em relação à discussão do hino.
Três dias depois, no semanário Expresso – o mesmo que no dia 6 deste mês deu palco ao músico Dino Santiago para ir avante com a sua proposta – o subdirector Fernando Madrinha, no espaço de crónica com a designação “Página Dois”, por ocupar a segunda página do semanário, assinou um texto intitulado “E a seguir ao Hino?”. Alertava que “a falta de assunto” levou a que Alçada Baptista fizesse uma proposta reveladora “de uma certa atitude que contribui para nos desarmarmos ainda mais enquanto Nação”.
Madrinha contou que o primeiro-ministro da altura – e actual secretário-geral da ONU, António Guterres –, comentou que todos os hinos estão “desfasados” e não seria suposto serem tomados à letra. Sendo um canto de exaltação, “não se espera dele que faça apelo à razão dos comportamentos ou que seja fiável quanto ao rigor dos factos históricos; espera-se bem pelo contrário, que faça apelo às emoções e mobilize a vontade daqueles a quem se dirige”, escreveu o subdirector do Expresso.
António Guterres, antigo primeiro-ministro e actual secretário-geral da Organização das Nações Unidas.
Frisou Madrinha que a questão aparecia “justamente num tempo histórico em que bem precisados estamos de reforçar essa noção de Pátria, que a alguns – poucos, felizmente – parece repugnar. Se a proposta de mudar o hino tivesse seguimento, que sentido faria manter a bandeira, visto que alguns dos seus símbolos também perderam actualidade?”.
Pois é. A seguir ao hino, será a bandeira a ser colocada em causa?
“E já que as fronteiras se diluíram e a moeda está em vias de desaparecer, por que não eliminar todos os sinais que contribuem para a nossa identificação nacional?”, perguntava ainda, em tom de provocação, o subdirector do jornal fundado em 1973 por Francisco Pinto Balsemão, que foi primeiro-ministro de Portugal entre 1981 e 1983.
António Alçada Baptista
Mas as frases mais provocadoras do subdirector do Expresso estavam reservadas para o fim da crónica que, lida com os olhos higiénicos do novo pensamento de contra-cultura dos dias de hoje, seria facilmente conotada com posições “extremistas”, pois Fernando Madrinha registou que a proposta de Alçada Baptista caiu em “saco roto e não comprometeu mais ninguém senão o próprio autor da inusitada proposta. Se outros lhe tivessem dado ouvidos, ao nível da representação política, isso seria um grave sinal de que estávamos muito perto de nos transformarmos de vez num povo sem memória, num Estado sem raízes, numa Nação sem uma ponta de respeito pelo seu passado”.
Pimba!
Madrinha ainda dedicou umas palavras ao Presidente da República, Jorge Sampaio, dizendo que esperava que deixasse de haver a figura do orador oficial “ou que, pelo menos, evitem o absurdo de algum futuro orador oficial se achar no direito de usar a tribuna do Dia de Portugal para apoucar os símbolos nacionais”. E não acabou por aqui. Ainda teve mais: “E espera-se também que Jorge Sampaio arranje iniciativa e criatividade bastantes para interessar o país inteiro por essas celebrações. A fim de que 10 de Junho continue a ser identificado como o dia de Portugal e não seja cada vez mais o dia em que se joga a final da taça no Estádio Nacional”.
Pumba!
Vinte cinco anos se passaram desde aquela altura. A moeda única, aprovada em 1998, surgiu fisicamente em 2002. O Hino de Portugal foi bastante cantado durante a carreira da selecção de futebol no Euro2004. Os primeiros sinais da crise financeira internacional começaram em 2008 e atingiu-nos em força em 2011. Hoje, nem mesmo o hino e a bandeira parecem ter força suficiente para nos exaltar como povo. A não ser, talvez, nos jogos da selecção.
Nota histórica:
A Portuguesa é o nome do hino de Portugal e, originalmente, a parte que fala de marchar contra os canhões era contra os “bretões”, os britânicos. Começou por ser uma canção de protesto contra a imposição da chamada questão do ultimato britânico do “Mapa Cor-de-Rosa” de 1890, em que se exigia que as tropas portuguesas abandonassem o território compreendido entre Moçambique e Angola.
A letra é de Henrique Lopes de Mendonça e a música de Alfredo Keil. O sucesso popular e o facto de ser uma bandeira contra uma monarquia refém dos ingleses, elevou a canção a hino nacional no ano seguinte à revolução republicana do 5 de Outubro, em 1911, tendo substituído o “Hino da Carta” que vigorava desde Maio de 1834.
Desde então, houve novas oportunidades revolucionárias para mudar o hino. Poderia ter sido feito, por exemplo, aquando do golpe do 28 de Maio de 1926. Também o ditador Salazar poderia ter mudado o hino na altura em que teve uma nova constituição, em 1933. Criou o Estado Novo, mas não aproveitou para fazer o “Hino Novo”.
Aliás, a 16 de Julho de 1957, o Conselho de Ministros, presidido por Salazar, fixou a letra e arranjo musical, tendo sido publicada a versão oficial da partitura no Diário do Governo de 4 de Setembro de 1957.
Com o 25 de Abril de 1974, marcando o fim da ditadura e início da actual democracia, também não se mudou o hino – pelo que o “Grândola, Vila Morena” a canção de Zeca Afonso que serviu de senha para a revolução, perdeu assim uma bela oportunidade de substituir “A Portuguesa”. Sobra-nos, ao menos, o consolo de ter um hino com nome feminino que, pelos vistos, sempre poderá contar como algo a seu favor nos tempos que correm.
Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.
Não nos conhecemos pessoalmente, nunca falámos sequer profissionalmente, pelo que, na realidade, deveria tratar-te por Cristiano ou Ronaldo ou, de uma maneira mais formal, Senhor Aveiro. Mas como sei ser assim que te tratam na Selecção, uso o mesmo tratamento por “tu”. Espero que não faça diferença para aquilo que sinto ter para te dizer.
Poderás perguntar: mas quem é este “Carvalho” que vem procurar protagonismo à minha custa? É verdade, podes pensar isso e, acredita, haverá por aí muita boa gente que vai fazer o mesmo tipo de pergunta.
Explico então: sou jornalista da área da política nacional e internacional. Entre obras de ficção e de investigação jornalística tenho já quase vinte livros publicados. Escrevi sobre temas complicados e polémicos, como a morte do primeiro-ministro Sá Carneiro e os encontros internacionais dos ditos “Donos do Mundo” – Grupo Bilderberg. Não há nada que me ligue ao desporto, excepto… bem, Cris, talvez até poucos o saibam, mas o meu primeiro livro de todos, publicado no Verão de 1999, foi sobre um jogador de futebol.
Um jogador de futebol chamado Vítor Baptista, dito “O Maior” – era esse, aliás, o título do livro. No início deste mês, no dia 1 de Janeiro de 2023, cumpriram-se exactamente 24 anos desde o seu falecimento. Tinha 50 anos e morreu na cama da casa da sua mãe. Estava doente, pobre e abandonado pelos amigos. Tinha ele então a mesma idade que tenho eu hoje. Talvez, por isso, com estas emoções todas, me tenha lembrado de escrever-te esta carta.
Nasci no mesmo ano – 1972 – em que, por exemplo, também nasceu um jogador que conheces bem: Luís Figo. Somos, eu e ele, da mesma geração. Crescemos sem termos visto jogar o Pelé e Eusébio, mas conhecíamos os seus feitos graças a gravações de jogos às memórias dos mais velhos.
Sou assim da geração que tinha 6 anos quando apareceu a “Tango”, a bola do Mundial de 1978 na Argentina, a mais linda que alguma vez se fez e que apareceu pela primeira vez no Mundial de 1978. Aos 10 anos chorei quando uma das melhores equipas do Brasil – com Sócrates, Zico e Falcão – foi eliminada pelos três golos do Paolo Rossi, em Barcelona. Nunca ninguém tinha feito um hat-trick ao Brasil e nunca mais ninguém fez depois. Foi o único até hoje. Nem quando perderam 7-1, em 2014, frente à Alemanha.
Cris, sim, também eu quis ser jogador de futebol e driblar como Futre ou Maradona, fazer a “chilena” do Hugo Sanchéz ou marcar com o calcanhar como o Madjer na final de Viena de 1987. Joguei nos iniciados do Francos, o clube do meu bairro no Porto, ao lado do Estádio do Bessa – sou boavisteiro, se quiseres saber – até que descobri que o futebol não é para todos.
Era preciso estudar e lembro-me de, a caminho de um jogo no Bessa, chamarem-me a atenção para um jogador do Benfica, que fora um dos melhores e, por não ter instrução, caíra na droga e vivia então dentro de um carro. Ainda não o sabia, mas esse era o Vítor Baptista que eu viria a conhecer mais tarde. As esperanças de uma carreira no futebol terminaram quando acompanhei o Sá Pinto a um treino do Salgueiros para os lados de Campanhã – frequentávamos a mesma escola secundária. Ele ficou e eu vim embora porque o plantel já estava cheio. Não tinha talento suficiente para os convencer a deixarem-me ficar. Dediquei-me ao jornalismo, que requer bem menos talento e, como deves calcular, também paga menos.
No Verão de 1997, após os estudos no Porto e o início da profissão no diário portuense “O Primeiro de Janeiro” cheguei a Lisboa para trabalhar no “Tal&Qual”. Foi a “contratação milionária” de um jornalista do Porto para a equipa da capital. Acabei por ir inaugurar as instalações do jornal no edifício na Praça Marquês de Pombal, onde passaria ainda a funcionar a revista “Visão” e um novo jornal diário, o “24 Horas”.
É engraçado, mas ao ver o teu percurso de vida, verifico que foi nessa mesma altura – época 1997/ 1998 –, que deixaste a tua ilha da Madeira e, com apenas 12 anos, também vieste para Lisboa. Não sei se foste logo viver para a pensão residencial D. José, no número 79 da Avenida Duque de Loulé, próxima do edifício onde estavam os jornais, no número 13 da Praça Marquês de Pombal.
Foi aí, nesse edifício, num fim-de-semana em que estava tudo vazio que, na Páscoa de 1998, fiz a última entrevista ao Vítor Baptista. Conhecera-o uns meses antes, quando me mandaram ir entrevistá-lo a Setúbal. Sabes o que é que ele fazia nessa altura? Estava a trabalhar como coveiro. Um emprego que a Câmara Municipal lhe arranjara para tentar resgatá-lo do mundo da droga. E foi ao vê-lo, ainda com pose de atleta, com sachola na mão para abrir as covas, a arrancar ervas daninhas saindo entre as pedras da calçada com pequenos toques de pé encurvado – os mesmos pés que, anos antes, em outros relvados, faziam levantar multidões –, percebi que tinha de escrever um livro sobre ele.
Ele, que fora o maior da sua geração, que tivera tudo, perdera tudo…
Não sei, Cris, se conheces o percurso desportivo do Vítor, mas ele, tal como tu, era de uma família pobre – os pais trabalhavam na indústria da conserva em Setúbal. O Vítor perdeu o pai aos 12 anos e começou a trabalhar como electricista e canalizador ao mesmo tempo que jogava nas escolas do Vitória de Setúbal. Aos 18 anos, o treinador Fernando Vaz chamou-o para a equipa principal e teve a estreia no jogo contra o Leixões, na segunda mão da eliminatória da Taça de Portugal, a 18 de Junho de 1967, no Estádio do Mar, em Matosinhos. Vítor fez a assistência para o primeiro golo na vitória de 3-0.
Esteve depois na eliminatória contra o FC Porto e foi jogar a final da Taça de Portugal de 1967, no Estádio Nacional, contra a Académica de Coimbra, onde ganhou o seu primeiro título: “Acho que não há nenhum jogador de futebol no mundo que tenha ganho a taça do seu país aos 18 anos. Eu devo ser o único”, disse-me ele na entrevista. Na altura não verifiquei, mas registei que era essa uma das memórias de vida que nunca lhe tinham tirado. Há outros, mas ele está lá também.
As duas épocas seguintes não tiveram grande história e Vítor jogou apenas como jogador de meio-campo. Nunca marcou golos. Mas o destino mudou quando o treinador do FC Porto, José Maria Pedroto, incompatibilizou-se com a direcção portista e, em Abril de 1969, assinou contrato com o Vitória de Setúbal. Fernando Vaz foi para o Sporting. O “teu” Sporting, Cris. Quando chegou ao Bonfim, Pedroto percebeu como deveria lidar com Vítor Batista e fez dele o goleador que precisava. E sabes contra quem foi o primeiro golo do Vítor: foi no Bonfim contra o antigo clube do seu novo treinador, o FC Porto!
Fiquei emocionado durante aqueles primeiros meses de 1998, o ano da Expo, quando ocupava os meus tempos livres a ler os arquivos dos jornais desportivos na Hemeroteca de Lisboa, ao Bairro Alto, a consultar a carreira do Vítor, que começara anos antes de eu ter nascido. A 9 de Novembro de 1969, Vítor entrou em campo aos 78 minutos, quando o jogo estava já com 4-0, mas ainda fez o quinto tento da partida – se fores verificar, o golo aos 88 minutos está atribuído a um jogador do FC Porto, Valdemar, como tendo sido na própria baliza. Mas foi porque estava a tentar parar o remate do sadino. O golo foi mesmo dele.
Na segunda volta, a 1 de Março de 1970, nas Antas, sabes quantos golos o Vítor marcou ao FC Porto? Dois. E sabes porquê? Porque à entrada do túnel, viu o Pedroto a acender um cigarro com um isqueiro de ouro “Dupont” e gabou-lhe o gosto. O treinador virou-se para ele e disse, à frente dos companheiros, que o isqueiro era dele se marcasse dois golos. Quando marcou o segundo, foi a correr para o banco a bater no peito e a gritar “O isqueiro é meu! O isqueiro é meu!”. Perdeu-o mais tarde numa camioneta para Setúbal.
Não foi só o isqueiro que ele perdeu durante a vida. Mais famosa é a história do brinco que perdeu após ter marcado um golo ao Sporting e parando por momentos o jogo para o procurar. Nunca o encontrou. Dessa história, quase de certeza, já ouviste falar.
Vítor Baptista e Frederico Duarte Carvalho nos anos 90.
Na segunda época de Pedroto à frente do Vitória de Setúbal, a de 1970/ 71, o Vítor só não foi o melhor marcador do campeonato porque, na última jornada, tinha 22 golos, o mesmo número de tentos de Artur Jorge, que jogava no Benfica. E o Artur Jorge conseguiu marcar dois golos contra a sua anterior equipa, a Académica de Coimbra.
Em 1998, o Vítor ainda não tinha digerido isso. Queixou-se a mim que os dois golos da última jornada, a 2 de Maio de 1971, tinham sido “gamados” e explicou: “Uma coisa que o Artur Jorge nunca soube fazer na sua vida foi fintar todos em campo. O homem atrapalha-se, pois só sabe jogar bem dentro da área. Então como é que ele dribla todos os jogadores da académica que caem de cu?” – já agora, para que vejas como são as coisas do futebol (e eu sei que sabes melhor do que ninguém), os golos que deram o título de melhor marcador ao jogador do Benfica foram marcados ao cair do pano, aos 79 e 88 minutos, quando os encarnados já venciam a Académica por uns confortáveis 3-1. Vítor, a jogar no campo pelado em Faro, e fortemente controlado, não conseguiu fazer a sua parte. Mas nunca esqueceu.
É claro que, com aquelas exibições, surgiu o interesse de outros clubes. E sabes, Cris, o Vítor até queria ir jogar para o “teu” Sporting. Pagavam-lhe mais. O Sporting oferecia-lhe 1800 contos por três anos, fora as luvas. O Benfica dava 1200 pelos mesmos três anos. Mas a decisão estava nas mãos do Setúbal e no seu direito de opção. E como o Benfica ofereceu – com salários pagos pelo clube da Luz – o “bom gigante” Torres, um dos heróis da selecção de 1966, mais uma promessa chamada Matine e ainda 3 mil contos (que serviu para construir uma bancada no Bonfim), Vítor lá teve de se contentar com a ida para o Benfica. E com o dinheiro da assinatura do contrato, comprou uma vivenda em Setúbal.
Vítor Baptista trabalhou como coveiro em Setúbal nos últimos anos de vida.
O resto, como se costuma dizer, é história. Foi campeão nacional pelo Benfica cinco vezes (mais uma Taça de Portugal), onde criou a fama de indisciplinado e arrogante – hoje diriam “dotado de personalidade própria” e “excêntrico”. Seriam muitas mais as histórias sobre a sua vida dentro e fora dos relvados numa carreira desportiva que, depois de ter saído do Benfica, em 1978, levou-o a saltitar entre vários clubes – Vitória de Setúbal, Boavista, San Jose Earthquakes (nos EUA, onde esteve 15 dias), Amora, Montijo, União de Tomar, Monte da Caparica e Estrelas do Faralhão. Deixou de jogar em 1986, tinhas tu um ano de vida.
Cris, quero que saibas que o Vítor nunca deixou de ser aquele menino pobre que tinha a alegria de jogar à bola e era mesmo o melhor de todos. Estava à frente do seu tempo. Um tempo que ele abriu para ti, para que os melhores possam ser hoje quem são sem se preocuparem com o que digam sobre si.
O problema do Vítor foi que tinha 25 anos quando a liberdade do 25 de Abril chegou e começou a experimentar drogas. Também não tinha responsabilidades com filhos – confidenciou-me uma história trágica de como, numa discussão com uma mulher que dizia estar grávida de uma menina, sua filha, bateu-lhe (ela estava com uma caçadeira, não perguntes) e, alegadamente, acabou por provocar a morte da criança.
As más decisões da vida, o facto de ter crescido a jogar à bola como um menino que nunca deixou de ser, não o preparou para um mundo cruel depois do futebol.
É isto que quero dizer-te, Cris: és o melhor do mundo, “O Maior” da tua geração e acho que vais jogar até aos 40 anos ou mais – tens corpo para isso e só precisas de organizar o espírito. Mas até lá, lembra-te daquilo que aprendi com o Vítor: a tua vida a sério só vai começar quando o menino que eras aos 12 anos, o menino pobre da ilha da Madeira, que foi viver para a pensão da Duque de Loulé e comprou depois um apartamento de 8 milhões ali perto, no alto do Parque Eduardo VII para mostrar a todos que venceu na vida, esse menino, Cris, vai ter de saber sobreviver num mundo diferente quando tiver de deixar de jogar à bola.
Não vais ter amigos se perderes o dinheiro – é muito, eu sei, e deve demorar séculos a ser gasto, mas acredita há muita gente disposta a ajudar-te a gastá-lo rapidamente. Sabes qual é a frase que guardo do Vítor? É uma que ele me disse quase no fim da entrevista, com a voz gasta da droga: “Eu nasci nu e agora olha para mim, já tenho uma roupinha, estou a ganhar! Portanto, saio desta vida com mais do que trouxe, sempre é alguma coisinha e agora está a dizer que sou um teso? Eu sou rico, tenho mais roupa do que quando nasci!”.
Sei que sabes estas coisas todas e estás mais do que avisado. Estás avisado porque, se calhar, já conhecias esta ou outras histórias parecidas. Se calhar, naquela Páscoa de 1998, mesmo sem o saberes, pode ser que te tenhas cruzado com o Vítor por Lisboa. Ele, quase a fazer 50 anos, doente, sabendo que iria morrer dali a uns meses – disse-me e não se enganou – e tu, criança, a sonhar com vitórias e glórias.
A tua verdadeira vitória virá com aquilo que vais fazer depois de deixares de jogar à bola.
Lembra-te disso, Cris.
Abraço.
Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.
Dia 4 de Dezembro. Mais um ano de Camarate. Já lá vão 42.
E as memórias começam a ficar mais turvas, como a neblina desta manhã. As notícias são escritas por jornalistas sem memória, com pouca capacidade para descobrir a mentira nos detalhes.
Carrego comigo uma herança: desde que há três anos faleceu Augusto Cid, devo ser o jornalista que mais sabe sobre Camarate – pelo menos aquele que ainda fala disso em público e escreve sobre o assunto. Por isso, tenho esta estúpida e inglória obrigação de estar constantemente a chamar a atenção dos outros jornalistas para os factos errados.
Francisco Sá Carneiro (1934-1980)
Friso que não são factos que possam ser discutidos de forma subjectiva, com testemunhos contraditórios ou conclusões científicas de leituras dúbias. Não. São os factos reais e históricos que nunca poderão ser alterados. Não podem? É pena verificar que podem. Pequenos detalhes que alteram toda a história, como este que vi ao ler uma notícia nesta manhã. Está no Diário de Notícias, e intitula-se “PSD e CDS lembram Sá Carneiro e Amaro da Costa“.
Acredito que quem a escreveu não o fez por mal, mas está a mudar a história e a esconder as verdadeiras circunstâncias da morte de Sá Carneiro e demais ocupantes do avião. Diz o texto jornalístico, não assinado:
“Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa dirigiam-se à cidade do Porto para apoiar o general António Soares Carneiro, candidato da Aliança Democrática (AD) às eleições presidenciais, no que seria o comício de encerramento da campanha“.
Imagens de arquivo da RTP dos destroços do Cessna em Camarate num directo da noite de 4 de Dezembro de 1980.
Não. Não era “o comício de encerramento da campanha”.
Dirão alguns que é um detalhe sem importância e que não muda em nada a opinião que têm sobre o que aconteceu. Mas muda. E muda muito.
Muda porque, tal como num livro policial, este é o detalhe que revela o assassino. Está ali, na verdade que o DN revela neste engano – porque não acredito na inteligência de uma cobertura propositada, mas sim no equívoco de memória de quem elabora o texto sem saber a gravidade do que informa – que se encontra a chave para entender o atentado: como se organizou a morte de Sá Carneiro.
Vamos então aos tais factos históricos que ninguém pode negar, nem o DN.
Augusto Cid (à direita) na Assembleia da República em 1991, com José Luís Ramos (à esquerda), deputado e relator de uma comissão de inquérito sobre Camarate, que concluiu ter a queda do Cessna sido um atentado.
Os factos dizem que, no dia 3 de Dezembro, uma quarta-feira, houve um comício no Porto com a presença do candidato Soares Carneiro. E com a presença de Adelino Amaro da Costa. Regressaram todos no Cessna fatídico, após esse comício. E, no dia em questão, dia 4, estava marcado um comício EXTRA na cidade do Porto. A cidade natal do então primeiro-ministro Sá Carneiro.
Só que o comício com Soares Carneiro, há muito marcado para esse mesmo dia na cidade de Setúbal, também previa a presença de Sá Carneiro. Faça-se notar ainda que o primeiro-ministro decidira que não iria a comícios fora da área de Lisboa em dias da semana, pois isso seria descurar a sua responsabilidade principal como governante a favor de um papel de líder político numa campanha presidencial. Assim, só iria ao Porto e outros locais fora de Lisboa aos fins-de-semana ou dias feriados.
Notícias sobre a morte de Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa.
Por isso, esteve ele em Évora no feriado do 1 de Dezembro. Por isso, nunca ele deveria ir ao Porto na quarta-feira dia 3. Mas foi no dia 4. A um comício EXTRA e especialmente preparado para ele. Onde era inevitável ter de ir de avião. Naquele avião.
E é aqui que o plano se torna mais detalhado e onde, ainda hoje, é perigoso fazer estas perguntas. E entendo que ninguém as queira fazer. Por isso é que eu não me importo de ser o único a ter de as fazer: está na minha natureza de homem liberto.
O avião que deveria levar Sá Carneiro ao comício EXTRA, combinado especialmente para ele, era o único aparelho disponível no normal mercado de aluguer dos aviões-táxi. E porquê? Porque os outros aparelhos tinham sido apreendidos uma semana antes no aeródromo de Tires pela Guarda Fiscal a pretexto de irregularidades burocráticas com licenças de utilização.
Capa do relatório integral da Comissão Multidisciplinar de Peritos da VIII Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar à Tragédia de Camarate. Houve 10 comissões.
Quem mandou a Guarda Fiscal (ou a autorizou) a levar a cabo aquela operação num momento em que o país estava a ter uma campanha eleitoral e correndo o risco de ser acusada de instrumentalização política? Essa questão nunca se colocou na altura, apesar do candidato mais prejudicado ser aquele apoiado pelo Governo.
O único avião que não foi apreendido era o que estava em piores condições. E foi aquele que estava ao serviço do rival, Ramalho Eanes. Seria esse que viria, precisamente, a cair em Camarate quando seguia para o comício EXTRA no Porto. Esse avião fora sub-alugado pelos donos dos aviões apreendidos em Tires e que precisavam de cumprir o contrato de aluguer com a campanha de Soares Carneiro.
Todos estes factos demonstram como Sá Carneiro foi conduzido para aquele avião em específico, com o pretexto de ir a um comício EXTRA no Porto. Um comício que não era de “encerramento de campanha”, mas sim especialmente preparado para a sua presença, aproveitando-se o facto de ser natural do Porto, pelo que ele dificilmente poderia dizer não à sua presença. Sobretudo havendo um avião para o levar ao fim do dia de trabalho de Lisboa ao Porto e trazê-lo de volta, logo após o comício, de modo a estar de manhã a trabalhar em Lisboa. E tudo isto foi organizado dentro do círculo interior da campanha eleitoral.
Os nomes, do director de campanha que marcou o comício EXTRA e do ministro das Finanças que tinha a tutela da Guarda Fiscal que mandou apreender os aviões em Tires são públicos. O nome da pessoa que, no dia 3, esteve no Porto e pediu ao empresário João Macedo e Silva, dono da RAR, que emprestasse um outro avião Cessna – idêntico ao de Camarate, mas mais seguro, para transportar Sá Carneiro de Lisboa ao Porto e, após o comício, de volta para Lisboa, mas que nunca chegou a ser usado – também há muito que é conhecido.
Sabe-se tudo sobre Camarate. Não há hoje qualquer segredo. Mas os jornalistas insistem no nevoeiro da falta de memória e, com isso, sem o saberem, estão a condenar toda uma sociedade às trevas, à exploração, à mentira, miséria, fome, subjugação e tragédia.
Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor
N.D. Frederico Duarte Carvalho participou, na qualidade de autor do livro Camarate: Sá Carneiro e as armas para o Irão, na X Comissão Parlamentar de Inquérito à Tragédia de Camarate em 2013. O seu depoimento está AQUI na íntegra. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.