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  • The Times, Expresso & SIC: ‘Boa Cama Boa Merda’

    The Times, Expresso & SIC: ‘Boa Cama Boa Merda’


    Há coisas que nem um gato com nove vidas entende, e olhem que eu já vi de tudo — desde a queda do Lehman Brothers até à ascensão da CMTV. Pois bem, os senhores da SIC e do Expresso decidiram fazer notícia de uma suposta notícia da The Times, como se fosse a descoberta da Atlântida. Mas a The Times, essa velha senhora inglesa que já foi bíblia do jornalismo, anda hoje metida em turismo de pacote, E decidiu vender Portugal aos pedaços: hoje é o Algarve Selvagem com sete noites e transporte de bagagens incluído, amanhã é o Porto, com hotéis reluzentes – e até que deu em descobrir a “the underrated Portuguese town” onde se pode passar uma semana inteira por menos de £350. Só nos últimos dois meses são mais de uma dezena de supostas reportagens com ligações comerciais descaradas a hotéis, restaurante e o mais que houver.

    Mas, perguntam bem, e que cidade portuguesa é essa, subestimada e a merecer visita recomendada pela The Times? Eu ajudo, porque não aprecio suspense: Estarreja!

    Sim, Estarreja! Aquela terra cuja glória não são praias nem azulejos, mas a produção épica de resinas de PVC, clorobenzeno e poliestireno extrudido — um verdadeiro paraíso aromático onde o gás fosgénio é o perfume da manhã e o metileno difenil diisocianato o incenso do progresso.

    Quando o vento é generoso, ainda traz o aroma da celulose de Cacia, como um toque de assinatura olfactiva do Baixo Vouga. Mas a The Times não quis saber. Enfiou uma foto da ria de Aveiro — que não é Estarreja, mas lá para os lados do Tamisa deve ser tudo a mesma coisa — e escreveu o seguinte, que cito, traduzindo, porque o delírio merece:

    “Sete noites de hospedagem no Tulip Inn Estarreja Hotel & Spa, incluindo voos de Stansted com a Ryanair, custam £323 por pessoa. Uma pequena mala para colocar debaixo do assento está incluída no preço, e você pode despachar uma mala de 20 kg por um adicional de £56 (ida e volta). O hotel fica a 45 minutos de carro ao sul do aeroporto do Porto e os táxis custam cerca de £58 (ida e volta) (city-airport-taxis.com). Alugar um carro pode ser mais barato e facilita passar a semana explorando a cidade (a partir de cerca de £60 por semana).”

    Notável, não é? Temos agora jornalismo de viagens com preços de avião, de táxis, de extras de bagagem, de alojamento, de refeições – de tudo menos do que verdadeiramente interessa numa viagem. Isto não é reportagem: é folheto turístico com assinatura jornalística. E nem sequer é particularmente bom: qualquer rato do campo sabe que, com £60, mais vale alugar um burro e ir de Estarreja a Aveiro pela linha férrea — pelo menos tem vistas pitorescas e emoção ferroviária.

    Mas ainda mais impressionante, sim, é ver o grupo Impresa a dar cobertura a isto como se fosse notícia. Referindo a ‘descoberta da The Times, o Expresso titula “Cidade portuguesa ‘subestimada’ ganha destaque internacional como ‘destino ideal’” e a SIC quase repete o título com um ar de quem descobriu o petróleo no Baixo Vouga.

    Para completar a farsa, o Expresso ilustra a peça com uma fotografia falsa: a imagem é a da maquete de um projecto de reabilitação urbana apresentado em 2023 — ou seja, nada melhor do que mostrar aos leitores portugueses uma cidade que ainda nem existe, apenas sonhada em powerpoints camarários.

    O Expresso usou uma imagem de Estarreja…

    Querem saber o que eu acho que virá a seguir? Talvez um suplemento turístico sobre Paio Pires, com uma visita guiada ao parque siderúrgico. Ou uma escapadinha de fim-de-semana ao Barreiro, com brinde de passeio pelos estaleiros desactivados. Quem sabe, uma edição especial “Urgeiriça Experience”, com rota pelo passivo radioactivo. Panasqueira também merece, porque minas de volfrâmio são património, e podiam incluir um tour pelas serranias de Arganil e arredores, porque sempre há agora uma superfície de 65 mil hectares fresquinhos dizimados pelas chamas de Agosto, para assim se terminar com “vista deslumbrante sobre o renascer da Natureza”.

    Por fim, para os mais sofisticados, tudo isto será incluído numa edição premium Boa Cama Boa Merda”, integrando ainda uma passagem pelo pólo industrial de  Sines, com aromas incluídos, pela Setúbal industrial e uma selfie junto a um qualquer parque de contentores.

    Enfim, tudo tresanda (literalmente) a jornalismo de secretária. Ninguém foi a Estarreja confirmar se a “incrível cena artística” existe — talvez exista, mas nem a The Times, nem a SIC, nem o Expresso dizem qual, onde e quando.

    … que existe apenas no papel, sob a forma de ‘estudo prévio da reabilitação do centro da cidade de Estarreja”

    Limitaram-se a fazer copy-paste da The Times, que por sua vez fez copy-paste do press release do hotel. Isto é uma cadeia alimentar perfeita: o turismo vende ao jornal inglês, o jornal inglês vende ao bife papalvo e ao jornal português, o jornal português vende ao leitor português. No fim, alguém vende um pacote de sete noites com voo da Ryanair, e todos ficam felizes.

    Só que isto não é jornalismo, e a minha cauda arrepia-se. Isto é publicidade descarada e mal disfarçada – e publicidade feita notícia é ultraje. Pior: engano com selo de qualidade SIC/Expresso, que ainda se dizem os paladinos da informação. No dia em que Estarreja for o oásis turístico de Inglaterra, prometo atirar-me da Estátua da Liberdade sem pára-quedas.

    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

  • Do facto ao facão: breviário da causalidade absurda no Correio da Manhã

    Do facto ao facão: breviário da causalidade absurda no Correio da Manhã


    Há, na vida humana, uma tendência muito particular para provocar mal-entendidos, que seão amiúde o motor das tragédias. Não falo aqui do mal-entendido ontológico entre o Ser e o Parecer, como dissertaria um qualquer existencialista entediado, mas sim do tropeço literal — aquele gesto desastrado, involuntário, quase sempre insignificante — que, por obra de uma cadeia de reacções desgovernadas, culmina em facas voadoras, em pontapés desgvernados, em mísseis teleguiados e em notícias com títulos que desafiam as leis da narrativa e da prudência.

    Veja-se o exemplo concreto que me trouxe hoje à escrita, numa terça-feira de contemplação sobre o parapeito da janela: Mulher tropeça ao sair de viatura e irmão atinge homem à facada em Torres Vedras. Um título que poderia ter sido criado por um papagaio com acesso a uma base de dados criminal e uma roleta sintáctica. O Correio da Manhã, com o seu habitual talento para a síntese do absurdo, não explicou de início: apenas enunciou, embora depois até tenha mudado o título, mantendo a hiperligação original. E ao enunciar, faz com que o mundo aceite. O leitor lê, encolhe os ombros e pensa: “Sim, claro, porque é sábado à noite em Torres Vedras.”

    Mas eis que lendo a notícia original na íntegra e se percebe que, afinal, o tropeção acidental foi interpretado pelo irmão como um acto de agressão de outrém, o que o levou, num gesto medieval e prestativo, a atirar uma faca de cozinha — que trouxera de casa, como quem leva um tupperware — contra o alegado (e não confirmado) atacante da irmã. Afinal, há lógica, sim: é a lógica do desentendimento elevado à categoria de defesa da honra instantânea. Mas essa lógica, ao ser revelada, não resolve o absurdo — apenas o estrutura melhor.

    Enfim, vou passará frente da actualização da notícia… ou é melhor não. Porque afinal, houve uma nova versão dos factos, “por [novas] testemunhas ao CM”, a saber: “não é a mesma. “Segundo as mesmas, um motociclo com três ocupantes embateu num veículo que estava estacionado junto a um café, na aldeia de Paúl, concelho de Torres Vedras. O dono do carro reparou que a mota provocou um risco nessa mesma viatura. Os ocupantes da mota negaram terem feito os danos ao carro. Entretanto, gerou-se uma grande confusão no local, após uma mulher ter desferido um soco ao proprietário do carro. Pouco depois, o motociclista abandonou o local e regressou com um outro homem que ameaçou várias pessoas com duas armas brancas. O CM sabe uma das facas tinha uma lâmina de 20 centímetros e que a outra era de menores dimensões. A dada altura, um dos suspeitos desferiu um golpe ao filho do dono do carro danificado.” 

    a yellow and black sign sitting on the side of a road

    Confesso-vos que não me consigo decidir sobre qual a melhor das versões — tal como nunca soube se prefiro mais peru ou fiambre.

    Ora, independentemente disto, não sendo eu um gato facilmente impressionável, confesso que estas pequenas catástrofes com ar de anedota me intrigam. Porque, no fundo, dizem muito sobre o modo como a realidade dos humanos se organiza e decorre: através de equívocos, extrapolações e reacções fora de escala.

    Fascinante se apresenta aqui o velho conceito do non sequitur, essa elegante expressão latina que significa, literalmente, “não se segue”. No mundo lógico, designa uma conclusão que não decorre das premissas. Mas no mundo real — sobretudo no mundo português — o non sequitur tornou-se método, estilo de vida e critério jornalístico. Tudo parece ser consequência de algo, mesmo que esse algo seja apenas um tropeção, uma piada mal interpretada, ou um espirro num contexto simbólico.

    É por isso que me dediquei, com o zelo de um bibliotecário do disparate, a recolher hipotéticos casos do absurdo causal com aparência de lógica. Eis aqui uma dezena:


    Mulher entorna café em pastelaria e padre de Borba cancela baptismos por tempo indeterminado
    Após o incidente com o café, a dona do estabelecimento comentou nas redes sociais que “a vida é um líquido imprevisível”. O padre interpretou a frase como ataque espiritual e decidiu suspender os sacramentos por discernimento teológico.

    Rapaz troca cromo repetido e INEM é chamado para socorrer três turistas escoceses em Albufeira
    A troca deu-se num quiosque ao lado de um bar onde se discutia futebol. O cromo trocado envolvia um jogador escocês que, acaso e coincidência, entrou em polémica com os turistas. Os ânimos exaltaram-se.

    Criança engole berlinde por engano e autarquia de Vila do Conde aprova isenção de IMI para ginásios
    Durante uma sessão da assembleia municipal, o pai da criança relatou o caso como metáfora para a “confusão dos contribuintes com a burocracia”. A analogia convenceu vários eleitos a votar a favor da isenção.

    Turista belga pede direcções para a Sé de Braga e GNR apreende jiboia em carro estacionado em Loulé
    A pergunta feita num posto de turismo foi mal traduzida por um software automático. Um subsequente alerta infundado enviado à GNR de Loulé activou uma operação equivocada, mas que culminou com a descoberta fortuita da gigantesca serpente num Renault Clio.

    Idosa abre guarda-chuva dentro de casa e trovoada encerra festival gótico em Vilar das Perdizes
    O neto publicou o acto supersticioso nas redes sociais. Milhares de seguidores interpretaram como mau presságio e, quando se ouviram os primeiros trovões, a organização suspendeu o concerto por precaução e mística ancestral.

    Mulher compra fiambre em promoção e governo angolano suspende exportações de banana para Portugal
    A compra foi referida num blogue alimentar com ligações lusófonas. Uma passageira angolana comentou que “o fiambre europeu sabe a sabão”. O comentário viralizou e causou uma crise diplomática.

    Menina faz castelo de areia na praia da Nazaré e queda de servidor informático paralisa hospital de Leiria
    O pai, engenheiro informático, viu-se obrigado a usar o telemóvel como hotspot para enviar fotos do castelo à avó. Esqueceu-se que isso interromperia a gestão remota aos servidores hospitalares.

    Mulher despe-se em parque de estacionamento e quatro jarros de compota explodem em fábrica da Golegã
    A senhora terá feito uma “performance” artística junto a um Lidl. O vídeo viralizou, e um funcionário da fábrica vizinha, ao rir-se descontroladamente, deixou cair uma caixa sobre a linha de esterilização.

    Jovem tira selfie com cisne em Aveiro e Conselho de Ministros altera lei das rendas
    A fotografia foi acidentalmente usada como imagem de capa num relatório do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana. Um ministro, ao ver o documento, interpretou o cisne como símbolo de “resiliência urbana” e decidiu propor uma reformulação da lei para “acompanhar os sinais do território”.

    Reformado derruba embalagem de arroz integral numa mercearia biológica e festival internacional de teatro em Almada altera repertório
    A queda provocou uma cascata sonora captada por um artista sonoplasta presente. O som, amplificado e reinterpretado, foi considerado mais “existencialmente cru” do que um texto previsto de Beckett. A direcção artística, inspirada pelo acidente, substituiu À Espera de Godot por uma performance sonora com grãos ao vivo.

    E agora, se me permitem, vou perseguir uma borboleta imaginária com ar de secretário de Estado. Nunca se sabe o que ela vai assinar.

    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

  • A piromania política do Chega e a esquizofrenia do Folha Nacional

    A piromania política do Chega e a esquizofrenia do Folha Nacional


    Dizem que o Chega é de extrema-direita, fascista e o Diabo a quatro. Eu cá acho que é mais um Gato das Botas da política portuguesa — aquele personagem de olhos grandes, voz sedutora e botas polidas, que encanta os incautos com promessas de justiça infalível enquanto salta de telhado em telhado à procura do ângulo ideal para cair de pé no poleiro do poder.

    Não lhe nego o talento cénico: o seu chefe, Ventura, sabe onde pôr as vírgulas, onde subir o tom e, mais recentemente, o seu partido até sabe fingir que faz jornalismo. Falo, claro, do Folha Nacional, convenientemente registada como órgão de comunicação social doutrinário na Entidade Reguladora para a Comunicação Social — que, aliás, lhe concede um tratamento de favor —, embora funcione, na prática, como panfleto partidário com QR Code.

    Ora, o Folha Nacional — tal como a Acção Socialista do PS, o Povo Livre do PSD, o Avante! do PCP e o Esquerda.net do BE — é, na verdade, uma folha domesticada que abana o rabo ao dono como se fosse um jornal, mas que mais não é do que um espelho onde o partido se admira a si próprio.

    Uma prosa recente — sobre os incêndios florestais — é um exemplo tão nítido dessa arte de fingir que quase merece aplauso. Não pela lucidez, que não tem, mas pela coerência felina com que se treina, passo a passo, um discurso de poder envolto em indignação moral, números criativos e uma retórica que mistura o justiceiro com o justiceiro em fúria.

    Li com um olho aberto e outro semicerrado — típico de gato céptico — essa peça relevante de um país que arde quando faz calor, sobretudo depois de uns anos em que arde pouco porque já tinha ardido muito antes. A ladainha é cíclica. Começa o Folha Nacional, sempre sem nome de redactor, com uma daquelas frases dramáticas de cartaz político: “Portugal arde mais do que todos os outros países da Europa.” E como se não bastasse essa liderança incendiária, somos também os que mais perdoamos. Vai daí, o tom acelera: “85% dos incêndios são criminosos”, dizem eles — embora o número surja do ar ou, mais apropriadamente, da cartola onde se guardam as estatísticas que servem ao argumento.

    O leitor é empurrado para a conclusão inevitável: o país precisa de punir com mais força. Prisão obrigatória para todos. Prisão perpétua para alguns. E, se possível, trabalho comunitário forçado para replantar a floresta enquanto se cumpre pena. No limite, o incendiário vira terrorista e o debate político transforma-se em argumento de série policial da Netflix.

    Mas o mais hilariante, confesso, está no estilo do texto. O Folha Nacional escreve como se estivesse a investigar pela calada… o próprio Chega. Há ali pérolas como “o Folha Nacional sabe que o partido defende também…”, como se os redactores tivessem espreitado por acaso um caderno de Ventura esquecido num banco do Parlamento. É uma encenação deliciosa. Imaginem se eu dissesse: “O Serafim sabe que o Serafim prefere frango a atum.” Revelação espantosa. Assim se faz jornalismo partidário com pose de isenção — como um espelho que finge ser janela.

    E há ainda situações nesta notícia em que o Folha Nacional recorre a fontes indirectas — como o Observador ou a SIC — para citar o próprio André Ventura, como se não lhe bastasse bater à porta ao lado para ouvir directamente o chefe. Imaginem, portanto, eu a escrever: “O Serafim apurou que o Batty [o meu jovem e irrequieto companheiro de casa] tem conhecimento de que o Serafim aprecia lamber pratos com molho de frango assado com limão e alho.” Uma revelação de alto jornalismo doméstico.

    Gato das Botas em versão bombeiro…

    Enfim, tudo misturado, aparecem então as propostas legislativas, todas com aquele aroma de urgência moral que pede punição antes de reflexão. Querem queimar os pirómanos com as chamas que causaram, mas sem pensar se as leis actuais falham na aplicação ou na concepção. Para eles, tudo é simples: se há fogos, é porque há criminosos impunes. E se há criminosos impunes, é porque o sistema é mole. E se o sistema é mole, mudem-se as leis. E, se possível, endureçam-se até ao osso — mesmo que se misturem os negligentes com os incendiários reincidentes, ou os distraídos com os sociopatas. O que interessa é mostrar força, mesmo que se legisle a partir da raiva e não da razão.

    O mais curioso é que esta peça parece menos preocupada com os incêndios do que com a própria construção de um discurso de governo. É um ensaio disfarçado de notícia, um treino de como apresentar uma ideia extrema como se fosse razoável. Como repetir uma indignação até ela parecer óbvia. Como manipular a linguagem para transformar crimes em cruzadas morais. E, claro, como vestir tudo isto com o manto da informação, para que ninguém diga que se está a fazer propaganda.

    Ora, eu conheço bem esse jogo. Já vi muitos a prometer justiça inflexível e a acabarem enredados na teia das suas próprias exigências. Porque o populismo punitivo tem um problema: uma vez aceso, não apaga fácil. Precisa sempre de mais lenha, mais culpados, mais escândalos. Hoje são os incendiários. Amanhã talvez os juízes que lhes aplicaram penas leves. Depois os jornalistas que escreveram contra as novas leis. É um caminho que não conhece retorno.

    … e versão justiceiro.

    E se há coisa que um gato sabe é que nem todas as árvores servem para subir — e algumas têm demasiada resina para quem promete justiça com as mãos sujas de urgência.

    No fundo, o Chega — com a sua Folha Nacional em riste — está a construir uma espécie de estufa legislativa: aquece os temas até eles se inflamarem, rega-os com frases sonoras, e depois colhe os frutos políticos no mercado da indignação, onde até o fumo é fogo.

    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

  • 12 piscinas: o esgoto da Lusa vai para a torneira da imprensa

    12 piscinas: o esgoto da Lusa vai para a torneira da imprensa


    Há uma tendência ancestral e teimosamente persistente entre os humanos: a de atribuírem aos animais características que, com espantosa frequência, revelam mais sobre a natureza dos próprios humanos do que sobre as ditas criaturas.

    O porco, por exemplo, é acusado de sujidade — como se não fosse o humano a largar beatas na praia e microplásticos no oceano. O cão, pobre besta devotada, é elevado como símbolo de lealdade, mas também diminuído como exemplo de subserviência. A ovelha, coitada, é tida como seguidora acéfala, mesmo quando os rebanhos humanos seguem qualquer influencer ou político para o precipício. A toupeira é sinónimo de cegueira, o burro de pouca inteligência. Felizmente, jamais se atreveram a colar aos gatos algum defeito essencial: continuamos altivos, discretos, elegantes, independentes e, quando necessário, sabemos arranhar com propriedade.

    E porque arranhar é também a arte da lucidez, aqui me dou ao trabalho — com toda a paciência felina que a idade me concedeu — de corrigir os disparates que certos humanos jornalistas andam a espalhar aos sete ventos, com a confiança típica de quem se julga acima da tabuada. Refiro-me, claro, a uma notícia que se esvaiu pela imprensa portuguesa, produzida sob o inefável selo da Lusa, que cada vez mais se parece menos com uma agência de media, e mais com uma agência de medíocres.

    Comecemos pelo dado central da peça noticiosa: a afirmação de que “Portugal continental tem perdas de água anuais que dariam para abastecer o país por três meses, cerca de 180 milhões de metros cúbicos, o que equivale a desperdiçar 12 piscinas olímpicas por hora.”

    A informação foi repetida, por agora, e sem pestanejar, pela RTP, pela SIC, pelo Correio da Manhã, pelo Público, pelo Jornal de Notícias, pelo Observador, pela TSF, pelo Jornal Económico, pelo Eco, pelo Notícias ao Minuto – e imaginem o que vai por aí fora se até o Diário do Minho e o Notícias do Sorraia serviram de torneira do ‘take’ da Lusa.

    water falling from faucet in grayscale photography

    Façamos agora as contas para perceber a aselhice e acefalia do jornalismo lusitano que serve de caixa de ressonância da Lusa como quem diz: “já tenho mais uma notícia para alimentar papalvos”. E vou fazer as contas com método, como me ensinou um velhíssimo livro de aritmética da quarta classe que desencantei da biblioteca do meu dono.

    Portanto, a perda anual de água, segundo os dados, é de 180 milhões de metros cúbicos por ano. Sabemos que o ano tem 365 dias, 24 horas por dia, o que perfaz:

    365 dias × 24 horas = 8.760 horas/ano

    Dividindo os 180 milhões de metros cúbicos por esse total de horas, obtemos:

    180.000.000 m³ / 8.760 h = 20.548 m³/hora

    Agora, tomemos a medida de uma piscina olímpica com as dimensões regulmantares de 50 metros de comprimento, 25 metros de largura e 2 metros de profundidade — o que dá:

    50 × 25 × 2 = 2.500 m³

    Muito bem. Portanto, o número de piscinas por hora é:

    20.548 m³/h ÷ 2.500 m³ = 8,22 piscinas olímpicas por hora

    E não 12. Não 11. Nem sequer 9. São 8,22 — redondamente. Qualquer aluno mediano do primeiro ciclo – embora a mediana no que diz respeito aos conhecimentos matemáticos no Jornalismo português me pareça medíocre – teria feito esta conta num papel de embrulho. Mas não o jornalista da Lusa, que ignora as regras básicas da divisão e, por tabela, condena à ignorância toda uma cadeia de replicadores mediáticos. E condena porque os replicadores mediáticos na restante imprensa bebem tudo mesmo que seja esgoto.

    Eis a gravidade do erro: ao dizer que se perdem 12 piscinas por hora, em vez de 8,22, estão a inflacionar o desperdício em 46%. Sim, quarenta e seis por cento. Não é uma margem de erro, é um erro com margem. Se aceitássemos a conta errada como verdadeira, então o total de desperdício anual seria de:

    12 piscinas/hora × 2.500 m³/piscina × 8.760 h/ano = 262.800.000 m³

    Ou seja, em vez de 180 milhões, estaríamos a falar de quase 263 milhões de metros cúbicos — mais 83 milhões de m³. É como dizer que alguém pesa 60 quilos quando, afinal, pesa quase 88 — é a diferença entre estar magro como um galgo e estar gordo que nem um texugo… Caramba, estou aqui a discriminar os galgos e os texugos…

    swimming pool jumper

    Há quem diga: “É apenas um número, o importante é sensibilizar para o desperdício”. Pois digo-vos, com os meus bigodes bem aprumados: quando se abdica da verdade num número, é-se capaz de a trair em tudo o resto. O problema não é apenas matemático, é jornalístico.

    O mais preocupante neste episódio não é a incompetência da Lusa — essa já vem com a casa —, mas sim a repetição acrítica pelas redacções que se dizem “de referência”. O Público, outrora orgulhoso da sua suposta sofisticação editorial, publica sem pestanejar a mesma tontice. A TSF, sempre pronta a ler o que lhe metem à frente, propaga a piscina errada. E o Correio da Manhã, claro, usa a imagem para compor o alarmismo do costume. A RTP repete o que a irmã de escrita vomita. Entre todos, não houve um a verificar. Nenhum pensou. Nenhum dividiu. Nenhum acertou.

    Este tipo de jornalismo — ou melhor, churnalism, como tão bem já dissertou a minha estimada Elisabete (que me cuida com denodo e me leva às minhas consultas geriátricas) nas suas lúcidas e arranhantes crónicas — é hoje dominante. Não se escreve para informar, escreve-se para preencher, para servir os fluxos, os deadlines, os motores de indexação e os títulos sonantes. Já ninguém confirma, nem faz revisão, ninguém edita. Publica-se o que vem da torneira da Lusa e pronto. É jornalismo de pipeline, ou talvez mesmo de esgoto.

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    E o pior é que não aprendem. Nem quando são corrigidos. Porque uma correcção implica reconhecer o erro, e para isso seria preciso ter vergonha — ou um pingo de amor-próprio editorial. Mas a vergonha, como a Matemática, parece estar ausente da maior parte das redacções lusitanas. São burros por natureza.

    Termino com uma nota felinamente esperançosa: se algum dia alguém escrever que “o gato Serafim gastou em leite o equivalente a 30 tigelas por hora”, não deixarei de vir explicar que, se bebo 200 ml por hora, isso dá apenas 1 tigela — e as outras 29 são invenção de quem nunca conviveu com um gato nem com a aritmética. Até lá, continuo a lamber as patas com a tranquilidade de quem sabe dividir, com garras.

    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

  • Eis o Filipe Santos Costa: de assalariado socialista até jornalista performativo

    Eis o Filipe Santos Costa: de assalariado socialista até jornalista performativo


    Há quem diga que o jornalismo moderno se confunde com entretenimento. E não sem razão: há por aí jornalistas que, julgando-se oradores de salão, consideram um desperdício não competir com o João Baião, o Goucha, a Cristina Ferreira — ou mesmo o Ricardo Araújo Pereira.

    Podem enganar os incautos, mas a mim, gato velho, de bigode sisudo e memória de quinze vidas, não me iludem: são como aquele rato que se disfarçava de filósofo para dar sermões, não para caçar verdades. Agora caça-se protagonismo.

    E como sou caçador por natureza, hoje apanhei um belo exemplar: Filipe Santos Costa — ou, se preferirem, o Filipe das Crónicas em 3 Minutos, que inaugurou um novo género: o jornalismo-palhaçada.

    Filipe apresenta-se nas redes com um ar híbrido entre hipster do Chiado e professor universitário reformado de Tóquio. O seu perfil é tão performativo quanto os vídeos que agora produz, onde se despe e veste entre takes — literal e metaforicamente. Ali vende-se pose. E que pose! Uma pose destilada com esmero, como se tivesse sido ensaiada diante de um espelho com moldura de ironia. Camisa branca aberta ao peito — talvez para arejar os princípios —, óculos de intelectual pós-moderno comprados em saldos de boutique ideológica, e aquela voz… aquela voz de moralista risonho, meio catequista de sarcasmos, meio apresentador de talk-show para gente que se acha acima do povo, mas ainda assim pede um café sem açúcar no quiosque da esquina.

    Tudo servido sobre um palco virtual que mais parece um púlpito de stand-up teológico onde, em vez de evangelizar, se zurzem políticos com indignação gourmet. Não se trata de opinião: trata-se de encenação. Cada frase de Filipe Santos Costa vem com gesto, cada pausa com coreografia facial, cada olhar com ponto de exclamação. É teatro moral em três minutos — com figurino próprio e, quem sabe, patrocínio à medida. Jornalismo? Deixo à vossa imaginação.

    Rábula de Filipe Santos Costa sobre Carlos Moedas.

    Na semana passada, foi-se ao Sócrates — bode expiatório de estimação —, a quem chamou T Rex, numa apresentação de piadas estafadas onde se misturou, de forma desconcertante, La Féria e Eça de Queirós. Ontem, foi-se ao Carlos Moedas, esse homem das câmaras e dos casacos bem passados, que vive em eterno estado de inauguração — mesmo quando a obra não é sua.

    E até aqui, confesso, o Filipe até acerta. Sócrates, politicamente estendido no chão, está à mercê de todas as botas; e Moedas é um galo vaidoso, que canta no poleiro alheio e sorri para as câmaras como se protagonizasse um anúncio de pasta dentífrica. Está sempre em obra, mesmo que alheia. Está sempre a comunicar, mesmo quando nada tem a dizer. A crítica de Filipe tem mérito — reconheça-se —: Sócrates é um poderoso em desgraça perpétua; Moedas é show-off com flash incluído.

    Mas o que me faz eriçar os bigodes nem sequer é o conteúdo dos vídeos — nem sequer a linguagem jocosa. É o autor. Porque o Filipe, antes de se reinventar como justiceiro em vídeos verticais, andava entretido noutras produções. Mais discretas, mas bem mais comprometidas.

    Rábula de Filipe Santos Costa sobre José Sócrates.

    E como sou gato de memória fina, não esqueço: há poucos anos, o mesmo Filipe que hoje zurze políticos com empáfia, fazia podcasts pagos pelo Partido Socialista — sim, pagos, sim, pelo PS. Não para os criticar, mas para os embalar com perguntas respeitosas e voz serena.

    Com microfone à frente e cenário rubro, serviu de pedaleira mediática a um rol de socialistas ilustres, entre os quais se contaram (respiro felino): Manuel Alegre, Eduardo Ferro Rodrigues, Augusto Santos Silva, Francisco Assis, João Costa, Edite Estrela, Miguel Costa Matos, Ascenso Simões, João Leão, Mariana Vieira da Silva, Marta Temido, Ana Mendes Godinho, António Sales, Pedro Nuno Santos, Margarida Marques, António Mendonça Mendes, Francisca Van Dunem, Nelson de Souza, José Luís Carneiro, Matos Fernandes, Tiago Antunes, Ana Catarina Mendes, António Costa Silva, Alexandra Leitão, Tiago Brandão Rodrigues, Fernando Medina, Mário Centeno, Manuel Heitor, Pedro Adão e Silva, Pedro Siza Vieira — alguns mais do que uma vez — e, claro, o chefe que lhe ‘passava’ os cheques mensais: António Costa, então primeiro-ministro e secretário-geral do partido.

    Filipe Santos Costa na PS TV. Com quatro anos de YouTube, a conversa com Eduardo Ferro Rodrigues tinha hoje 177 visualizações.

    Ouçam, se quiserem, o seu cândido e respeitoso ronronar de então. Compare-se agora com a verve felina de justiça sumária em três minutos. E, claro, Filipe dirá — sempre sorridente — que é independente e competente. Trabalhava para o PS e dizia-se jornalista; hoje diz-se jornalista e… trabalhará para quem?

    Essa é a pergunta. Mas quanto à legalidade, tranquilizem-se: o Tribunal Administrativo garantiu que tudo estava conforme. Tal como Pilatos confirmou que a crucificação de Cristo era legal. Que é imoral, disso não tenho dúvida. E descarado também. Mas a culpa nem é só dele: é de quem, na televisão, o mete a fazer aquilo.

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    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

  • A indignação é, afinal, coisa de macho?

    A indignação é, afinal, coisa de macho?


    Com a altivez que uma vida de observação discreta me permite, ainda mais comodamente estendido sobre mantas de lã viradas ao sol, confesso-vos que me espanta a versatilidade dos humanos no que toca à indignação. Não a uma indignação prática, que leva alguém a fechar a porta de casa com um estrondo, mas à nova indignação higienizada, tornada protocolo. Nas indignações, há agora um aroma institucional a repúdio — uma espécie de bouquet técnico de ressentimento moral bem destilado, servido à temperatura ambiente com frases compostas e duplicações virtuosas.

    Vi isso esta semana, por exemplo, numa comunicação da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), que denuncia o grave atentado verbal de um certo criador de conteúdos digitais. O comunicado, que se pretende galope retórico em defesa da honra feminina, ofereceu-nos esta pepita sintáctica: “denúncias de cidadãs e cidadãos indignados”.

    Ora, esta combinação não me escapou, tanto mais que ainda não vi — nem mesmo da parte do PAN, esses zelotas da moral doméstica — qualquer defesa do uso de “gatos e gatas”, quando se referem à minha espécie, ou de “cães e cadelas”, quando se referem aos tontos e babejantes canídeos.

    Adiante. Vamos ao foco. Não me surpreendeu, pois, que se colocassem as “cidadãs” em primeiro lugar — um hábito moderno, cavalheiresco, correctíssimo segundo as boas intenções da época, que tem algo de ternurento, como pôr uma criança a cortar a fita, e, no fundo, de condescendente, como quem diz: deixemo-las ir à frente, coitadas, que sozinhas talvez não cheguem lá.

    O problema está em que, depois, o adjectivo escorrega subtilmente para o masculino plural — “indignados” — como quem tropeça ao sair do elevador com um cartaz pela igualdade. Não estou a dizer que seja erro, não. Mas é daqueles acasos deliciosos que, como a mosca sobre o pudim, estragam a fotografia da virtude.

    E o mais curioso é isto: por entre tanto zelo, esquecem que a frase parece dizer que as cidadãs foram nomeadas com rigor de paridade, mas o sentimento colectivo da indignação ficou gramaticalmente masculino. Talvez porque, no fundo, até a indignação institucional obedece à velha norma da gramática, essa matriarca teimosa que não se deixa seduzir por ofícios em papel timbrado.

    O caso leva-me a reflectir sobre o uso doméstico da indignação, que observo com ciência empírica cá em casa. Porque, vejam bem, quando me deito de barriga no teclado, ou resolvo experimentar a consistência das persianas às quatro da manhã, não é a minha dona que se indigna. Ela, serena, resignada, encolhe os ombros, murmura algo sobre “o Serafim é como é” — e volta ao livro. Já o meu dono — esse, sim — transforma cada deslize meu numa revolução que exige a tomada da Bastilha. A sua voz sobe meio tom e meio, as sobrancelhas desenham parábolas revolucionárias, e há um vago tom de manifesto em cada exasperação: “Isto já não se aguenta!”.

    Vêem a analogia? Na CIG, como cá por casa, a indignação tende a instalar-se com mais frequência no lado masculino da frase. Coincidência? Talvez. Ou talvez a própria indignação, quando exposta em público, seja um produto mais viril do que se imagina — não por desígnio, mas por vício de estrutura. Porque, se fosse verdadeiramente feminista, talvez dissesse “cidadãs e cidadãos indignadas”, assumindo a ruptura com a norma em nome de uma nova gramática política.

    Ou então, para se ser genuinamente democrático, o correcto seria escrever “cidadãs indignadas e cidadãos indignados”, mas apenas após um sorteio rigorosamente aleatório que determinasse qual dos géneros mereceria a primazia nessa noite.

    a large group of people holding up signs

    Mas isso não interessa agora. Aquilo que me diverte — e aqui ronrono com gosto — é que a linguagem da indignação se tornou tão previsível, tão estilisticamente ensaiada, que já não morde. Lê-se, consome-se, esquece-se. E, enquanto os comunicados se repetem com indignação certificada, o mundo gira, os gatos dormem, e a verdade escorrega como um rato entre frases pomposas.

    Pior ainda: quando tudo é indignação, nada o é. Como nas casas onde o dono grita por tudo e por nada, mas é a dona quem, sem palavras, nos dá o verdadeiro tom da justiça — com um olhar de lado, um afago na cabeça ou um prato de atum às escondidas.

    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

  • Milagre seria o camião de areia parar no ar, meditar sobre a vida e recuar

    Milagre seria o camião de areia parar no ar, meditar sobre a vida e recuar


    Como gato idoso e culto que sou — e ainda por cima preto e branco, o que me concede legitimidade para abordar temas maniqueístas —, já vi muitos milagres. Já vi ratos fingirem-se de mortos para enganar donas de casa. Já vi uma criança dar-me uma sardinha inteira sem esperar que eu fizesse um truque. Já vi um veterinário dizer que não valia a pena vacinar-me pela sexta vez contra uma doença que nem os morcegos apanham.

    Mas confesso: nada me preparou para o que encontrei no título do Correio da Manhã. Leiam, meus caros, com fé e estupefacção:

    “Milagre na A8: camião com 40 toneladas de areia embate em autocarro com 37 crianças e atira-os para ribanceira”

    Vamos aos pormenores. Primeiro, não só temos um camião que se atira a crianças e a um autocarro, como ainda os atira para uma ribanceira. Assim mesmo: atira-os. Os puristas devem achar que existe aqui um intolerável erro gramatical. Atira-os. Quem é os? As crianças, presumimos. Mas há aqui uma pequena questão de ordem gramatical: o verbo atirar é transitivo directo, tudo bem, mas o pronome os remete para um sujeito masculino plural. E se é para designar as crianças, então deveríamos ter atira-as. Sim, as. Porque, surpresa!, crianças é um substantivo feminino. Mesmo quando são 37 e alguma até joga futebol e gosta de camiões, continuam a ser as crianças.

    Mas… sucede que, analisando bem, nem há erro. Isto é, se considerarmos que o camião de areia atira o autocarro (masculino) e, dentro dele, 37 crianças (femininas), então a forma composta os até pode estar sintacticamente justificada — ainda que não convença nem um cego em dia de nevoeiro. Portanto, puristas da gramática, sosseguem: o Correio da Manhã, por milagre — ou por pura inconsciência sintáctica —, até esteve gramaticalmente certo, mesmo parecendo idiota.

    Resolvido isto, vamos ao essencial. Temos, então, um camião de 40 toneladas de areia a embater num autocarro e a projectá-lo ribanceira abaixo. Mas isto, ao contrário do título “Milagre na A8: camião com 40 toneladas de areia embate em autocarro com 37 crianças e atira-os para ribanceira”, não é um milagre! Isto é o resultado previsível das leis da Física clássica, mais especificamente da Segunda Lei de Newton, formulada no século XVII, e que nos diz que a força exercida sobre um corpo (F) é igual à massa (m) desse corpo multiplicada pela sua aceleração (a), ou seja: F = m × a.

    Num exemplo mundano — mas infelizmente real —, se temos um camião com 40.000 quilogramas de massa a deslocar-se a determinada velocidade (digamos, 90 km/h, porque milagres raramente respeitam os limites), o impacto com um autocarro ligeiro, carregado de matéria-prima humana em idade escolar, gera uma força de colisão suficiente para vencer a inércia e lançar o conjunto infanto-veicular pela ribanceira abaixo. E quando dizemos força, falamos de algo concreto: cerca de um milhão de Newtons — sim, 1.000.000 N, numa estimativa simples em que o camião trava bruscamente num segundo.

    Para se ter uma ideia, é o equivalente a levar, de uma só vez, 200 murros de Mike Tyson, todos concentrados no mesmo ponto e no mesmo instante — o suficiente para transformar um chassis em acordeão. Isso não é milagre. É Física. É Cinemática. É Dinâmica. É Física em movimento, é Mecânica aplicada a ferro e carne.

    Milagre seria o camião parar no ar, meditar sobre a vida e recuar, envergonhado pelas suas intenções de maltratar crianças. Milagre seria o autocarro converter-se numa pomba e planar sobre o vale, ao som de um coral de Bach. Milagre seria o jornalista saber distinguir entre uma catástrofe com causas perfeitamente naturais, um acaso e um acto divino. Mas não. Para o Correio da Manhã, aparentemente, basta que um autocarro com 37 crianças caia numa ribanceira — depois de ser abalroado por um camião de 40 toneladas de areia — para haver milagre.

    Senhores, contenham-se. Eu sei que o milagre a que se refere o Correio da Manhã não está no título, mas na ausência de vítimas, tanto assim que alteraram o título na versão digital mesmo mantendo o permalink. Mas, mesmo assim: milagre? Milagre seria o camião ter parado a tempo. Milagre seria não ter havido acidente. Milagre seria o Correio da Manhã ter enviado um jornalista que distinguisse entre causa e consequência, entre acção divina e reacção em cadeia. Mas não. Portanto, para o Correio da Manhã, feita a correcção, milagre é isto: um camião cheio de areia bate num autocarro cheio de crianças, tudo se precipita ribanceira abaixo e não morre ninguém.

    Sobre milagres desta natureza, em acidentes evitáveis, sempre serei céptico. Mas tenho ainda a esperança, talvez mesmo a fé e a crença, de que um dia, sim, um dia, talvez a Graça divina desça e conceda ao jornalismo sensacionalista um milagre a sério: não assassinarem constantemente a inteligência dos leitores.

    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

  • Polígrafo: relações espúrias para conclusões estúpidas

    Polígrafo: relações espúrias para conclusões estúpidas


    Sou gato velho, sim, mas não perdi o faro nem me tornei cínico — apenas selectivo. Já vi muitos jornalistas escorregarem em estatísticas como ratos inchados a meter a cabeça numa ratoeira coberta de queijo ideológico. Mas há miados que me fazem arquear o lombo e cravar as garras no estofo do bom senso. Esta, por exemplo: um fact-checking a ronronar que o Chega teve maus resultados nas freguesias com mais licenciados. Pois claro, foi o Polígrafo — esse jornal que… bem, deixemos o resto à vossa imaginação — que tratou logo de abanar o rabo com entusiasmo e pôr-lhe o carimbo de “Verdadeiro”, como quem encontra o Santo Graal da inteligência democrática entre os restos do lixo estatístico.

    Li o texto. Com olhos semicerrados, orelhas em alerta e o instinto de quem já viu muitos canários travestidos de águias. A autora chama-se Salomé Leal — uma jornalista que, segundo me consta (embora esteja sujeito a pimenta na língua), cultivará doutoramentos imaginários em estatística, mas que, por comedimento, se apresenta apenas como licenciada em Comunicação pela Universidade do Minho. Três anos, possivelmente sem chumbos — ou com equivalências em retórica criativa.

    E foi esta Salomé que decidiu iluminar o mundo com a seguinte revelação: nas 11 freguesias onde mais de metade dos residentes têm ensino superior, o Chega não chega sequer aos 10% dos votos. E pronto, bastou-lhe essa (nem) dúzia mística de freguesias para decretar — com a subtileza de um rinoceronte num trampolim — que existe uma relação sagrada entre possuir um canudo e votar com decência. A implicação, para quem lê nas entrelinhas com lentes de aumento, é clara: os esclarecidos votam bem; os ignorantes, mal. E assim se acaricia o ego do eleitor do Bloco Central — esse devoto da moderação, com cartão multibanco prateado e nariz treinado para o Moët & Chandon.

    É esta a grande verdade revelada pelo oráculo do fact-checking? Um decalque preguiçoso de preconceitos urbanos, embrulhado numa análise simplória que confunde correlação com causalidade, método com militância e jornalismo com doutrina de salão?

    A simplicidade da verificação de factos do Polígrafo… existe e até dá lucro.

    Ora, façamos um intervalo para a razão, que ainda há por aqui alguém de pensamento livre, como se andasse de telhado em telhado.

    Primeiro: usar 11 freguesias e uma só variável, num país com mais de três mil, para tirar conclusões sobre o padrão nacional de voto num partido é como provar uma sardinha grelhada e concluir sobre a safra de toda a costa. E nem são freguesias comuns — são redutos gourmet do Portugal urbano, onde se bebe café sem açúcar, se adopta o pronome neutro e se reciclam emoções nos ecopontos da virtude progressista.

    Segundo: admitir que o Chega tem menos votos onde há mais diplomas pendurados na parede não implica que haja mais inteligência política. Aquilo que pode haver é mais conforto material, e conforto não costuma votar com raiva — protesta-se pouco quando se tem carro eléctrico, vinho biológico e férias marcadas. Quem está bem na vida revolta-se no Twitter, com filtros, sem sujar as mãos de boletim.

    Terceiro: fazer um fact-checking com apenas uma variável dependente (voto no Chega) e uma independente (nível de escolaridade) é estatisticamente indigente. Mesmo que houvesse uma correlação — e não basta meia dúzia de freguesias para isso — seria sempre necessário provar que não se trata de uma relação espúria. Mas a ânsia em confirmar preconceitos é tanta que já se perdeu a prudência científica.

    Acredito, depois disto, que qualquer dia o Polígrafo ainda descobre que as cidades com mais padres também têm mais prostitutas — e, por analogia criativa, concluem que o clero promove o meretrício. Ou que os municípios com mais bibliotecas geram mais casos de miopia, o que levaria a proibir a leitura por razões oftalmológicas. Ou que onde há mais pistas de atletismo há mais obesos — e logo se sugere fechar os estádios para combater a gula. Ou ainda que nos períodos em que se vendem mais gelados há mais afogamentos, o que levará à proibição de gelatarias nas praias.

    A estatística, caros leitores, não é um palito com que se pesca o argumento do dia. É uma Ciência — e exige método, contexto e honestidade intelectual. Três coisas que, em certas redacções, são mais raras do que um gato a votar no Parlamento.

    O Polígrafo, como sucedeu na pandemia, pratica a indigência moral e intelectual com esta forma de fact-checking, que veste a beca da ciência para concluir o que já trazia escrito no bolso de trás: que quem não segue o “partido do cherne” ou os clássicos fá-lo por ignorância; que o eleitor sem diploma é, por inerência, menos esclarecido, mais manipulável e, no fundo, um simplório incapaz de decisões políticas válidas.

    Ora, isto não é apenas uma falácia estatística nem chega a ser pseudociência — é uma condescendência ordinária, quase uma forma de eugenia do voto, onde os títulos académicos servem de filtro higiénico para separar os “bons eleitores” dos “outros”. Uma espécie de purificador democrático com selo poligráfico. É o velho elitismo remisturado com verniz de jornalismo de retrete — e, pior ainda, produzido por uma pobre licenciada em Comunicação da Universidade do Minho, sem noção de aritmética básica, quanto mais de estatística inferencial, de modelos probabilísticos ou de análise de séries temporais, que são as disciplinas que se ensinam a quem quer realmente perceber relações causais sem tropeçar em correlações espúrias como quem escorrega numa casca de lugar-comum.

    Enfim, eu aqui só vejo, na análise do Polígrafo, um verdadeiro burro — ou, sendo rigoroso no género e no caso em apreço, uma senhora burra.

    E agora, se me dão licença, vou até à janela contemplar os 1.345.689 portugueses que votaram no Chega. Nenhum deles é meu dono, garanto-vos. Mas mesmo que o fosse, não o absolveria. Talvez procurasse compreendê-lo — o que, ao contrário de um fact-checker de pacotilha, exige escutar, sair da bolha e pôr as patas no terreno. Literalmente.


    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

    As ilustrações são produzidas com recurso a intiligência artificial.

  • Uma gota de água num oceano de palermice

    Uma gota de água num oceano de palermice


    Comecemos com um princípio inegociável: a água serve para beber, não para banhar. Não digo isto por razões ambientais nem por fobia: nenhum gato digno do seu bigode molha voluntariamente, com água tépida corrente, o dorso em nome da higiene — o banho, se bem praticado, faz-se com método, língua e paciência. A simples ideia de ser mergulhado em água, como um lombo de bacalhau, provoca-me espasmos, desgosto e um olhar que recorda a revolta de Espártaco.

    Ora, foi quase em estado de sono filosófico e pelagem asseada, como se deitado no tampo de uma cómoda barroca, à sombra de uma edição do Tratado da Água de Vida, de Paracelso, que me chegou aos bigodes uma ventania digital vinda do Observador. Um título saltou-me à retina: “Um e-mail consome meio litro de água. Não estamos conscientes do que estamos a fazer“. E eu, que julgava que a água se consumia na tigela, na panela e no chuveiro, descubro agora que, afinal, também se bebe em anexos PDF e newsletters matinais.

    Fiz então o que qualquer gato culto faria: espreguicei-me com lentidão, pus-me de cócoras diante do ecrã, e li: trata-se do livro da espanhola Virginia Mendoza, Seca, mas a abordagem noticiosa, pegando neste título para destaque, acabava por ser o próprio tsunami. Ali estavam: uns quantos parágrafos molhados de comoção, um pingar de citações dramáticas, e no final — oh ironia líquida — uma torrente de bytes promovida por e-mail, notificações, redes sociais e uma imagem com sombras calculadas.

    Fiz as contas e comparei um e-mail de meio litro com os cinco mil litros por 10.000 newsletters do Observador, com os quatro mil litros de 20.000 notificações push, com os vinte litros de 50.000 leitores únicos a clicar e ler a notícia. Tudo somado, a água evaporada por uma única peça online deu trinta mil litros, o equivalente a seiscentos duches rápidos ou ao consumo diário de água potável de duzentas pessoas.

    Dei uma lambidela à pata dianteira e pensei: “Não se apaga a sede da inteligência com baldes de hipocrisia.” Porque vejamos: se cada leitor acede à notícia e a partilha no WhatsApp com emojis molhados e exclamações, consome-se o suficiente para inundar o campo de golfe do Clube dos Bem-Intencionados. Mas que importa isso, se o gesto é nobre? A nova moral das ‘redacções verdes’ é assim: salvar o planeta com indignações em formato responsivo, e compensar o carbono com scrolls verticais.

    A hipocrisia hídrica não se esgota, porém, num e-mail gotoso.

    Imaginem o seguinte: num mundo onde outrora se enviavam contratos por estafeta, dossiês por um valente carteiro em motoreta, memorandos por fax com ruído de modem asmático, e volumes jurídicos por mala diplomática, temos hoje um prodígio silencioso chamado ficheiro PDF.  Mas ninguém fala da água poupada por não se imprimir relatórios de duzentas páginas com gráficos em PowerPoint, nem da energia poupada por não se acenderem salas inteiras para reuniões presenciais que agora se fazem em Zoom, com fundo de biblioteca falsa e gato a passar.

    E eis que, perante esta revolução silenciosa, aparece um grupo de almas lavadas a contabilizar mililitros por megabyte, como se o verdadeiro desperdício estivesse no envio de um currículo por correio electrónico, e não nos quilómetros de auto-estrada evitados, nos jactos não levantados, nas impressoras que não gemem, e nas remas de papel esborratado de tinta que não esmagam secretárias.

    Oh sim, meus senhores, vamos todos fingir que vivíamos melhor quando três cópias autenticadas de um contrato tinham de atravessar Lisboa num Renault 4 com o ar-condicionado a tossir, ou quando actas de reuniões vinham em envelope pardo a pesar mais que o juízo do remetente. Agora, porque um servidor na Islândia consome energia para guardar a epístola digital de um gestor sobre sinergias de equipa, eis que toca a soar o alarme ecológico, com palminhas de indignação digital com apelos ao engagement.

    É claro, dirão os monges da consciência sustentável, que devemos reduzir o supérfluo. E eu, Serafim, não discordo. Um gato jamais envia e-mails em massa, nem subscreve newsletters sobre fiambre. Mas confundir o essencial com o acessório, e ignorar que um simples e-mail pode ter poupado papel, tinta, gasolina, querosene e paciência — é de uma asinidade que nem um burro de carga suportaria com brio.

    Sim, um e-mail consome meio litro de água — e daí? Se essa meia garrafa evita uma garrafa inteira de gasolina, três resmas de papel e dois neurónios fritos numa deslocação inútil, então brinde-se à modernidade. A maior secura que os humanos enfrentam não é no aquífero nem na nuvem — é na inteligência crítica dos que confundem gota com dilúvio, símbolo com substância, e fazem da espuma digital um tsunami de palermice.


    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

  • ‘Kit Apagão’ do Observador? E que tal um ‘Kit Jornalismo’?

    ‘Kit Apagão’ do Observador? E que tal um ‘Kit Jornalismo’?


    Chamai-me gato velho, mas garanto-vos que há já muitos anos não me deixo embalar por ronrons jornalísticos. Esta semana, enquanto me espreguiçava na almofada da janela, ouvi uma onomatopeia curiosa vinda do meu estimado parceiro humano. Fui espreitar.

    Encontrei-o a ver o Observador, órgão de comunicação social que se diz independente, que está a oferecer um Kit Apagão aos novos assinantes: um rádio verde com manivela, painel solar, power bank e lanterna. Um verdadeiro mimo de emergência para quando os serviços básicos colapsam como as ideias de um editorialista em dia de comissão.

    Ora, enquanto eles distribuem lanternas, eu, Serafim, distribuo ideias — e jamais haverá apagão que me silencie. E se a intenção é premiar o leitor com um artefacto de sobrevivência, então por que não ir mais longe? Crie-se o Kit Jornalismo: um dispositivo digno de uma civilização onde a luz se mede em lumens de verdade.

    Imaginem comigo. Um rádio felinamente afinado: em vez de ondas médias, capta pensamento crítico; em vez de interferências ideológicas, filtra factos. Faz-se girar a manivela — não a do sensacionalismo, mas a da integridade — e sai uma notícia sem patrocinador escondido. Se girarem rápido, até pode vir com gráfico, diversidade de opinião e, quem sabe, um pedido de desculpas por desinformação publicada durante a pandemia.

    Mas o Observador, claro, prefere oferecer um rádio físico, como se dissesse: “Queremos que fiquem informados… mesmo quando tudo falhar.” Mesmo quando as nossas notícias falham em rigor e conteúdo, presumo.

    O ‘Kit Apagão’ do Observador…

    Que visão tão comovedora. Já não bastava termos empresas monopolistas a brincar com o interruptor do país — agora temos o jornalismo a normalizar o colapso. O apagão não é um acidente; é uma metáfora. E esta promoção é um gesto simbólico: em vez de questionar os responsáveis pela escuridão, o jornal oferece uma vela e um bom serão de submissão luminosa.

    Mas não sejamos injustos. O rádio do Kit Apagão do Observador também tem manivela. Um gesto nobre. Porque, se há coisa que os jornais deviam fazer, era dar à manivela do rigor, não à da propaganda. Ao rodar o Kit Jornalismo, o leitor ouviria reportagens sem spin, sem fontes “próximas do processo”, sem estudos do “Instituto Internacional de Coisa Nenhuma” patrocinados por quem tem interesses. Ouviria jornalistas que investigam, questionam, confrontam. Sim, jornalistas que, se lhes faltasse a luz, não acendiam um candeeiro de presunção, mas acendiam fósforos de incómodo.

    E talvez, com isso, não fosse necessário rádio nenhum. Porque o jornalismo que cumpre a sua função é, ele mesmo, um gerador de consciência. Não precisa de pilhas, nem de USB. Basta-lhe carácter.

    … e o Kit Jornalismo sugerido para o Observador pelo Serafim.

    Mas não — o Observador prefere oferecer rádios. Talvez porque sabem que, na ausência de jornalismo a sério, o silêncio informativo só se combate com ruído mecânico. Dê-se à manivela e o povo distrai-se com a previsão do tempo enquanto a luz não volta e os factos continuam ausentes.

    Ora, como gato que nunca se deixou apanhar por armadilhas, aviso-vos então: caso assinem o Observador e queiram o Kit Apagão, aceitem o rádio — mas desconfiem da lanterna. Pois pode muito bem servir para vos guiar não à saída do túnel, mas ao fundo dele.

    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.