Etiqueta: Arquitectura dos Sentidos

  • Da culpa e da inocência das árvores

    Da culpa e da inocência das árvores


    Espalhadas pelo mundo existem várias árvores mais velhas que este império, mais velhas até que o anterior e o anterior a esse, em silêncio, a observar.

    A casca da velha árvore fica espessa, nesta contemplação, dura, cansada mas firme.

    Quantas guerras já viu a árvore dos mil anos, e que mesmo assim dá fruto?

    girl in pink jacket and pink pants climbing on brown tree during daytime

    Com dois mil trezentos e oito anos, no Sri Lanka permanece uma figueira de nome Jaya Sri Maha Bodhi. Diz-se ter Buda ali atingido a iluminação, enquanto ela lá estava, simplesmente, a observar. A seus pés morreram pessoas, em massacres, como o de 1985, quando uma milícia separatista tentava reagir contra a perseguição da população Tamil no nordeste do país, olho por olho. Hoje a pátria de Jaya tem uma inflação de 73,7%, e na sequência de protestos desesperados, que chegaram a invadir o palácio presidencial, a vida continua, miserável, restando à figueira assistir.

    No Líbano, um olival que se mistifica como a fonte do ramo de oliveira que a pomba devolveu a Noé, conta já mais de cinco mil anos, embora ninguém arrisque ferir as Irmãs para contabilizar a sua real longevidade.

    Quanto já viram e viveram estas oliveiras ao ponto de estarem inscritas no Antigo Testamento? Enquanto isso, hoje o Líbano é flagelado por um surto de cólera, a população encolhe-se há tanto tempo sem rede eléctrica e, após a explosão em Beirute em 2020, ninguém se incomodou de saber ao certo se aquele povo precisava de nós e quem lhe tinha feito tal maldade.

    O Cipreste de Abarkuh, no Irão, com mais de quatro mil anos, que, reza a lenda, terá sido plantado pelo próprio Zaratustra, sentirá o ruído que ecoa da revolta das mulheres que cortam o cabelo em protesto contra a lei sharia, talvez anunciando o secularismo iraniano que a Pérsia não viu, ou talvez servindo de combustível para pavimentar a estrada americana para leste.

    Um teixo em Fortingall, no Reino Unido, conhecido pelo seu veneno, com mais de quatro mil anos estimados de contemplação, e que foi entretanto murado para sua protecção, suspira certamente pela libertação. Enquanto assim está, Assange apodrece na cadeia, perdido num limbo, esquecido por quem serviu.

    Curioso como um cidadão australiano, de repente, não tem pátria que o defenda. Assistimos que nem árvores imóveis, a tiranos de escalpe na mão, a arfar de regozijo por mais uma opressão enquanto maquinam estratégias que arredondem o gado em direcção ao matadouro em nome de países e muros e campos de girassóis cobertos de neve.

    Venham os discos voadores – e que não saibamos o que é o sabor de sangue e ferro na boca.

    macro shot of brown tree

    Em 1932 iniciaram uma experiência em Tuskegee, no Alabama. Recrutaram centenas de homens afro-americanos que viviam na pobreza, com a promessa de cuidados de saúde gratuitos. O objectivo era, porém, observar o que lhes sucedia em caso de apanharem sífilis que não fosse tratada, muito embora ninguém os informasse desse detalhe. Muitos morreram, provavelmente incontáveis, em troca de uma mão-cheia de nada. Apesar da penicilina estar largamente disponível a partir do final dos anos 40, a sádica experiência durou até 1972. Só se revelou a verdade em 1979. Só foram pedidas desculpas em 1997.

    Nos anos 60 do século XX, alguns cientistas laboravam na teoria do AZT como uma solução para combater alguns cancros, mas a ideia não pegou por falta de eficácia, nem atraiu investimento. Nos anos 80, outros cientistas agarraram a oportunidade da crise do HIV para voltar à carga com este veneno, e utilizaram-no como resposta sem direito a muitas perguntas. De novo, muitos morreram, provavelmente também difíceis de contabilizar, e ainda hoje se tenta raspar a neve destas lápides a ver o que lá está escrito.

    Na mesma época, outros laboriosos cientistas desenvolveram e testaram a tecnologia mRNA. O que queriam ser quando fossem grandes? Os senhores que curariam o cancro.

    man under tree during daytime

    De novo, no cancro não funcionou. Mas recentemente, devem ter ouvido falar, outros agarraram a oportunidade de um vírus respiratório que um morcego a sangrar passou a um pangolim, que depois foi comido numa sopa por um chinês [estou a brincar, mas tomem lá um vídeo todo catita que também foi disseminado em 2020 e as mais recentes correcções).

    As árvores são pilares entre este mundo e outros mundos, entre o que está em baixo, invisível e o que está em cima, inalcançável. No meio podemos nós escavar, ou trepar; nelas temos a certeza de encontrar a raiz das coisas, e do seu fruto, ou sua seiva, poder vir alimento.

    Os outros pilares, os que nós fizemos com grande artifício – a banca, a big pharma, o industrial military complex –, esses, arrasarão todas as árvores pela pura ganância de se manterem a devorar o mundo.

    Que culpa têm as árvores?

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Um pardalito de louça

    Um pardalito de louça


    Não penses no cheiro da roupa passada a ferro, até porque a ruga no colarinho da camisa não deixa que te concentres na chama da vela junto ao caixão, e num funeral tão prolongado até o luto fica enjoado com o cheiro de flores e laca do cabelo, não havendo pois espaço para cheiros confortáveis e limpos.

    Não penses no cheiro da roupa passada a ferro, até porque mesmo que mantenhas essa honraria de domingo no teu modesto lar, começa a ser urgente reveres teu gesto sempre que tenhas que pôr mais moedas no contador e dar à manivela para fazer faísca.

    red lighted candle on dark room

    Também podes ir buscar brasas… O quanto perguntaste à tua avó como se vivia? Até me sento mais direita junto dela enquanto “avó, como fazias?” e por entre um gracejo rouco diz-me ela todos os truques de viver à míngua e construir uma vida, sorrisos, filhos, netos, bisnetos, um telhado sem goteiras e um chão com mais que terra batida.

    Minha querida avó Mila. Esta fica para ti, que me dizias “açúcre” em vez de açúcar, só para me arreliar em pequena.

    Sabes que os gatos têm inveja dos pássaros e, se murmuram miados na varanda ao vê-los passar, é porque se lamentam da sua pesada sorte de serem os caçadores e não a caça.

    white and brown cat on green grass during daytime

    Rainhas, príncipes, princesas, corregedores, presidentes, ministros, senhores assessores. Tudo gatinhos com inveja de pardais, tão preocupados parecem viver com treparem ao topo da árvore para depois nem saberem descer. Quem os vir julga até que alguém precisa deles, aos ares que se dão, às adorações que movem.

    Houve até uma madame que se fartou de fazer bonecos de cera à escala real de cada uma das figuras. Figurões. Figurinos. Fez mal!

    Se era para usar cera espetava-lhes ao menos um pavio no cucuruto para nos alumiar as noites frias de inverno europeu! O que devia ter usado era caco! Vinha aprender umas coisas para os nossos lados e fazia figurinos de loiça destas tão poderosas criaturas, tão preocupadas em mandar. Mas pequeninos, assim, para caberem no louceiro. Umas miniaturas todas catitas a petrificarem estes seres tão importantes que ali ficam a servir de amparo ao pó dos dias, pousadas em filinhas ordenadas na prateleira de vidro para todos nós vermos, a Rainha e a Diana, o Gorbatchev e o Regan, o Biden e o Trump, o Putin e o Schwab…

    snow covered grass plant selective focal photo

    Sabes que a arte de adicionar mais farinha nas pataniscas também se aprende com sorrisos.

    O meu avô Moura um dia chegou mais cedo do trabalho com fome, viu um saquinho de pó branco em cima dos armários e assumiu que seria farinha. Estranhamente, ele bem que vertia o polme na frigideira, mas aquilo sumia-se!… Assim, puff!… como o nosso ganha pão hoje em dia!

    Afinal era potassa. A minha avó tinha pedido que lhe dessem um saquinho para arear os tachos e o meu avô arruinou-lhe a dádiva na frigideira.

    Típico. Assim, txi!… como os senhores dos bancos, e os gatos invejosos e os figurinos de louça (todos alinhados na prateleira, pó bem espanado, reduzidos à sua insignificância).

    No fim do dia, das vidas e das mortes que se coleccionam, se tens ou não asas, importa muito que tenhas abrigo. Os abrigos e as casas não nascem nem brotam do chão. Constroem-se. E constroem-se conforme o terreno em que se querem pôr de pé.

    Podes afundar estacas de madeira até terreno firme, podes compactar pesadamente em pedra líquida, podes até flutuar…

    Mas sempre, sempre a tentar.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • De quem são os rios?

    De quem são os rios?


    Habituamo-nos a ver que as águas correm e que só temos de saber navegar o barco. Habituamo-nos que as águas sequem e comecem a rarear, ou que venham em bátegas e a turbulência nos impeça de atravessar em segurança. Por instinto gravado nas nossas células, é um hábito acharmos que tudo o que vivemos é natural.

    É relativamente simples separarmos as águas do hoje, caso o barulho pareça por vezes demasiado: existe, hoje, mais que nunca, o mundo real e o mundo irreal.

    man and woman standing on river

    Podemos chamar virtual ao irreal, como se ainda houvesse algo de virtuoso ou potente, como o seu étimo nos conta, mas o facto é que não deixa de ser aquilo que é: irreal, o contrário da realidade.

    Pessoas que aplicariam boas maneiras no trato umas com as outras, de repente perseguem-se por ruas e passeios irreais. Caminham, umas atrás das outras, com agressividade, e tentam rasteirar para que tombem de dentes contra o lancil de cimento (irreal). Proíbe-se o piropo no mundo (real), e vociferam-se discussões entre estranhos nas praças mais públicas deste mundo (irreal).

    Ideias que não passariam de desabafos, suspiros, degraus num caminho, passam a ser uma comunidade, pesada e enorme como um paquiderme enraivecido a bramir a tromba na direcção de quem se atravesse na procissão.

    O decoro perde-se. Jornalistas, homens (hominídeos) de letras, a quem entregamos a vigília da isenção, da transparência e da legitimidade, acham que podem, aparentemente sem ordem do pai tirano (será?), perseguir e borrar a pintura de colegas das artes e cultura. Zurram “zorro!”, levanta-se a condenação pública da multidão, mas como diz a má-língua: embrulha-se o peixe no dia seguinte com essa folha de jornal (mas isso é no mundo real).

    pink leafed tree under the blue sky

    Os que sobram no rio, afogam-se em torvelinhos. Podem falar que não se os ouve. Podem gritar que não se lhes admite. Podem calar, para prevenir. O exemplo fica dado: calem-se todos, cumpram as regras, serão felizes. De quem são os rios, afinal?

    No meio da propaganda há sempre algumas verdades. Propaganda não tem de ser mentira. Tem apenas de ser uma poda eficiente. Um tesourar nas expectativas, um tesourar no movimento. O ser humano está construído à semelhança da restante natureza, no seu crescimento e na sua necessidade de movimento. O sistema cardiovascular, como rios, o cérebro como uma noz, o ar a entrar dentro dos nossos alvéolos pulmonares como um brócolo, braços a estenderem-se como árvores.

    Mas a propaganda decidiu discordar disso, dessa relação absoluta (e real) do ser humano com o seu mundo natural, mesmo que na sua natureza esteja a imposição, a manipulação e a selecção artificial. Será problema antigo, talvez, a desconexão, ainda mais advinda da revolução industrial, entre o homem e a Natureza, não falta prosa e ciência (a antiga) sobre o tema. Não faltam sequer religiões – por alguma razão é muito comum que assentem muitas na ideia da expulsão de um jardim. Meu conhecimento por uma maçã, minha alma por um beijo, meu pecado por meus filhos.

    Mas a propaganda pegou nessa ideia, juntou umas observações, notou outras ideias. E, como provavelmente sempre acontece, alguém reparou que era uma óptima oportunidade de negócio.

    De que forma poderiam branquear manchas de óleo negro, aumentar lucros e criar uma histeria transgeracional? Uma simples ideia, que nem é mentira, basta ser podada como uma verdade conveniente: a pegada ecológica.

    Por exemplo, o conceito da pegada ecológica foi criado pela British Petroleum (BP).

    Essa mesmo.

    A pegada ecológica pode ser uma mera ferramenta de medição de tudo. Um único morcego na Amazónia tem uma pegada ecológica apocalíptica para as populações de mosquitos. (E que jeitinho me fazia um, um morcego, agora aqui, em Aveiro.)

    Num golpe de mestre, que conduziu a narrativa até aos dias de hoje, de repente a poluição atmosférica não era culpa “deles”. Era nossa, porque andávamos de carro (movidos a petróleo) e ainda por cima vivíamos longe do nosso trabalho (alimentado a petróleo).

    brown sand with heart shaped print

    O continente de lixo, que flutua no Oceano Pacífico, não era culpa das frotas pesqueiras industriais (movidas a petróleo), que monopolizaram o mar e largam toneladas de redes de nylon (feitas de petróleo) em cada rota. Era nossa, porque usávamos objectos de plástico (feitos de petróleo).

    O transporte, abate e desrespeito pela vida animal (derivado do petróleo), após uma horrível vida de clausura, abuso e medicação forçada, não era culpa de uma indústria sanguinária que trabalhou sempre para criar excesso de oferta, excesso de procura, excesso de lucro e excesso, excesso, excesso. Era nossa, porque comemos carne, e tivemos filhos, e fizemos férias, e lavámos os dentes com uma escova de plástico colorido.

    E a nossa camarada British Petroleum mudou as cores, para verde e amarelo, apresentou-se de cara lavadinha, de novi-bíblia debaixo do braço, e a frase “já pensou no Jesus das eólicas hoje?” Mostrou-nos a sua calculadora da nossa culpa, mediu-nos a pegada ecológica, e quantos planetas eram necessários só para nós, sozinhos!

    ten birds sits on wire

    Não contentes, como em todos os cultos, outros Golias seguiram o exemplo. Começou até a vir o brinquedo no happy meal e nas nossas escolas, e em breve uma geração, hoje adulta, aprendeu a regurgitar sem contestar, a vestir o molde sem pensar. Sem virar a capa do jornal e ver a quem pertencem os rios. Porque, simplesmente, a terra é assim, foi assim que lhes disseram que a terra era. Plana.

    Mas, como os rios correm para o mar, quem é dono dos rios sabe que eventualmente a água se salga, a ferramenta é novamente usada para cavalgar o empreendedorismo e voluntarismo desta nova geração. Adoráveis e dóceis herbívoros que inovaram a indústria, os produtos, as soluções. Um sem fim de artigos, sistemas, estilos de vida que voltam a reconectar-nos com a Natureza, reduzem a nossa pegada e garantem que salvamos o mundo a tempo!…

    E como sempre, alguém vê uma oportunidade de negócio, antes da terra ficar salgada como Cartágo.

    people walking on sidewalk pathway beside road with vehicles and high-rise buildings during daytime

    Agora, que populações histéricas, sob doses incríveis e nunca antes vistas de flúor, ansiolíticos, PLV e glúten, com o acesso mágico e transcendente ao tão desejado mundo irreal, estão na presença de um embate imenso entre impérios, agitam-se as bandeiras, quando na verdade, e digo-o numa angústia profunda de mãe, o resultado será sempre a tirania. Como em todos os rescaldos de um grande cisma.

    Primeiro aterrorizam. Depois amordaçam. Por fim esfaimam.

    E enquanto estamos nestes debates eternos, com o barquinho no meio do rio, os donos do mundo já têm o livro das revelações escrito, e já falam entre comparsas sobre a inevitabilidade da “restruturação” de tudo isto.

    Agora já é tarde. Sobra enviar estas missivas em garrafas para a água. Esperar que outros náufragos as encontrem. Mesmo que vos calem.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Língua de vaca, o pão que o diabo amassou e os “come-nações”

    Língua de vaca, o pão que o diabo amassou e os “come-nações”


    É sempre um espectáculo de variedades incrível observar uma senhora encavalitada em saltos altos e passinhos pequeninos, estilo Betty Boop, embrulhadinha em cor-de-rosa, com uma máscara branca bem demarcada no rosto como um super-herói da Marvel (ainda com isto das máscaras?!), a cantar de galo com uma super-potência que possui muito da dívida soberana do seu país… Os cowboys do deep state mandaram postal aéreo: “Dear Xi, fill in the blanks!

    Para a mente do comum mortal, como eu (e alguns outros), de novo vem a pergunta: “Porquê?”

    pair of brown patent-leather open-toe platform stiletto pumps

    Claramente, os representantes oficiais (não mais lhes chamarei líderes), tal qual deuses, não estarão loucos, mas talvez aborrecidos. Querem entreter os dias e não vão deixar os sérvios darem pontapé de saída neste jogo insano? (Afinal até vão, talvez, tanto dá, há várias casas no tabuleiro de xadrez.)

    Para o corpo do comum mortal, como eu (e alguns outros), de novo vem a noção que só sobrará, com sorte, o pão que o diabo amassou. E é pão negro.

    Há quem diga que este chegou a ser o único pão em Portugal na região alentejana e algarvia, porque era necessário usar mais alfarroba para compensar a falta de cereais. Daí a cor negra, daí o diabo como padeiro do nosso dia-a-dia. Muito diferente de embrulhos cor-de-rosa ou cores vermelhas a esvoaçar no Império de Leste, isso é certo, seja a origem da expressão esta ou outra, sobra pouco de migalhas para sacudir aos passarinhos.

    Espantei-me estes dias, pois de novo, para várias mentes e corpos, há legitimidade em desafios bélicos, de qualquer escala, ainda mais desta. Eu sei que o convencionado para a natureza humana é que nos definimos por oposição. Se somos isto, não somos aquilo, fechem a jaula e ponham o cão e o gato lá dentro, criança ou adulto, menino ou menina (pim!), não existe cinzento!

    rotten green apple

    A banalidade do mal não pode ser verdade, porque o que diz isso de mim e de ti? (E do cão e do gato?) Magia negra certamente estará na origem destas reacções colectivas tão bem orquestradas. E diziam os optimistas que a Internet ia acabar com o conceito de massas – claramente que nunca aprenderam nada sobre pão.

    O facto é que a massificação da comunicação e partilha online tornou-se uma ferramenta, sim, extraordinária; e uma ferramenta também é uma arma. Uma arma poderosíssima de propaganda e colonização como nunca a rádio, a televisão ou o cinema conseguiram criar.

    Mas, se considerarmos como todas essas ferramentas invadiram o nosso quotidiano – e , no caso português, até fizemos sempre questão de subalternar a nossa língua nessa comunicação, com as famosas legendas (e para mim é doloroso ver actores dobrados) –, somos, com efeito, uma mera colónia estadunidense e, como tal, estamos propensos ao belo do consentimento manufacturado do regime de Washington.

    São décadas a ver gente gira na tê-vê, sempre sentados na sala de estar, a debaterem se naquela noite vão comer italiano, mexicano ou chinês. São décadas a ver americanos a comer nações enquanto passam clips de gargalhadas de pessoas mortas na sala de estar. (E eles adoram chinês!)

    Já nós, colónia pobre, podemos sempre ir aos cricos, prendas que a ria de Aveiro dá (não cabem na cova de um dente, “não teremos nada, mas seremos felizes“). Podemos sempre acreditar que, pelo menos, não ouviremos sirenes de bombardeamento aéreo em terras lusas, e que temos maneira de usar o famoso “desenrasque” português para rapar o tacho.

    stack of jigsaw puzzle pieces

    Porém, verdade, verdade é que, enquanto embrulhos cor-de-rosa deixam bombas malcheirosas no quintal vermelho dos outros, pouco importa se o nosso Pai Tirano chega a evitar que a luz suba, e nem para candeias de azeite vamos ter solução no abrigo nocturno.

    A linguagem informa o nosso pensamento, informa estruturas cerebrais e a nossa percepção do Mundo. Isso informa tudo o que produzimos para esse Mundo, desde a resposta dada ao plano maquinado. Um português sabe bem, pela História, pela Diáspora e pela postura – pois “nenhum povo despersonaliza tão magnificamente” – que a arte da diplomacia passa por essa empatia essencial de que simplesmente não pensamos da mesma forma.

    Assim sendo, há várias maneiras de agir e de reagir, mas se não ouvimos ou não queremos conhecer a outra pessoa, certamente que, mesmo inadvertidamente – e que não é o caso de falta de aviso –, vamos desrespeitar.

    Por exemplo, no espaço, para um alemão num escritório, a convenção é que gabinetes privados garantem concentração nas tarefas. Para um americano, portas e paredes, nesse escritório, é um horror onde se escondem conspirações. Não é tarefa fácil projectar algo para manter a harmonia na Torre de Babel, porque as culturas e suas linguagens simplesmente dominam tão profundamente o corpo e a mente que o bem ou mal-estar é espoletado pelas coisas mais inusitadas.

    aerial view of people walking on raod

    O comum mortal como eu (e alguns outros), por oposição a profissionais do duelo (que fazem yeehaa! desde o início do ano), sabem algumas coisinhas cruas e não urdidas para nos apanhar na teia de aranha: para um país existir é convencionado diplomaticamente ser necessário uma declaração de independência reconhecida e não tomada em violação dos princípios básicos das Nações Unidas, reconhecimento do Estado por uma maioria dos países (Taiwan, Palestina ou Kosovo não são muito consensuais neste ponto…), e por fim juntar-se às Nações Unidas (acho sempre este ponto cómico ou como diria Marx, o Groucho, eu não queria pertencer a clubes que me aceitassem como membro).

    Taiwan é, para todos os efeitos, namoradinha da República Popular da China com um estatuto de separação amigável, mas votada a celibato. Assim, a grosso modo.

    Ou seja, por miúdos: se o prato servido à mesa é língua de vaca, o Cowboy não pode dizer que não foi por falta de aviso da China.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Estranho amor dos pombos de falcoaria e dos andróides que sonham com ovelhas eléctricas

    Estranho amor dos pombos de falcoaria e dos andróides que sonham com ovelhas eléctricas


    Actualmente, parece que nem de foguetão se chega a tempo do que se vai passando. Com a qualidade do cálculo matemático deste século, até se aponta para que algo se despenhe na nossa cabeça, e a senhora Miquinhas, a molhar as paredes de casa em Pombal para se prevenir dos incêndios, ainda olha para cima a pensar que vem aí mais um “meteorito” chinês. Por entre as nuvens de fumo, se por enquanto não é outro vírus, pensa a Miquinhas que só lhe faltava mais esta, e que os seguros nem cobrem quedas de aeronaves.

    E de repente até cai um no Índico. Coisas que os títulos não prevêem.

    A space satellite hovering above the coastline

    Bem vistas as coisas, começa a aparentar ser uma apropriação cultural. Isto tudo das tragédias ao virar da esquina é coisa de querer encarnar os filmes apocalípticos de Hollywood, tragédias que cabem em hora e meia de sala e pipocas doces.

    Pena a realidade não caber em hora e meia, guerras que duram meses… até enjoa e tira a vontade de tocar os sinos, ainda mais com ondas de calor a derreterem ferro (toma lá Hollywood!, nesta não pensaste tu!) Mas com jeitinho os Balcãs já tocaram os seus, os falcões a esvoaçarem pelo eixo são uma visão histórica muito interessante para os próximos dias, quiçá meses.

    Curioso esta coisa agora da apropriação cultural. Pelos vistos é a colonização dos genius loci, absolutamente proibido. Tranças no cabelo? Ofensivo. Rastas? Ofensivo. Macramé? Ofensivo. Queimar livros? Isso pode ser, desde que sejam ofensivos segundo os parâmetros de entidades superiores e benevolentes que nos poupam ao fardo da interpretação.

    Nem o Tintim escapa! Esse branquela com a mania de passear pelo mundo a revelar conspirações. Essa bandeira do privilégio! O melhor mesmo é fazer uma fogueira, com fins simbólicos claro, até porque o Canadá pela sua latitude tem de simular umas ondas de calor. Acabamos com essa apropriação de uma só vez que a cultura não pode ser detida!

    brown sand with shadow of person

    Entretanto, as máquinas tentam ganhar consciência, para nos salvar a todos, ou transformar em pilhas, ou ir atrás de um autocrata a leste de outra linha imaginária… mas uma até se abespinhou com um miúdo a jogar xadrez, por isso claramente também não podemos depositar muita fé na inteligência artificial. Isto, quando falta o processo químico de sintetização e excreção, podem bem desistir da etérea ideia da alma. Nenhuma alma se aguenta neste plano de idiossincrasia sem desfrutar do prazer de bolinhos de bacalhau e a sua inevitável digestão.

    Mas o que me preocupa nem é isso.

    O que me preocupa é a facilidade com que por entre todo este barulho não nos ouvimos pensar. Muito menos ouvimos o pensamento dos outros. Muito menos sabemos qual importa na verdade.

    Trocando por miúdos, perdemos a noção do valor da vida e da morte. O valor da memória que nos dá a todos a vida além morte. As pessoas caem-nos dos braços e morrem e ninguém pára tudo. Ninguém fala incessantemente nisto pelas ruas, pelas avenidas, pelas pontes! Por todo o lado, o implícito encolher de ombros desanimado de pombos com as mãos cruzadas atrás das costas e uma perna gangrenada pela cloaca de vida que lhes sobra, de bico afilado atrás da migalha e um xuto no rabo se se demorar muito nas pernas dos gigantes.

    photo of girl laying left hand on white digital robot

    Bem, há quem fale, na verdade. Há quem até diga que há males que vêm por bem. Há quem diga sem pestanejar, sem encher a boca de algodão para as escaras que nos vomita em cima, que isto é o equilíbrio perfeito rumo ao fim das alterações climáticas e do ferro a derreter a 40º. Rumo à Utopia! Se um problema nos incomoda o ideal mesmo é mudarmos as variáveis, as componentes, que diabo!, até mudamos a operação e de certeza que o problema quase se resolve sozinho.

    E isso não tem de significar que interesses obscenos e supra terrenos, paranormais e secretos desejam ferramentas para nos fechar a todos em gaiolas até falecermos de fome. É só o copo meio cheio. Só isso.

    Mas eu vou, à cautela, comprar um square foot de verdejante solo escocês e tornar-me Laird a ver se safo a família da purga da ralé, sugestão da rede.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O Pai Tirano, o governo totalitário à Costa e outros mundanos problemas

    O Pai Tirano, o governo totalitário à Costa e outros mundanos problemas


    Pela Tatão!… Nem é uma mulher! É um tambor!… Pelatatão, pelatatão (tão tão)

    Se houve coisa que o Vasquinho e a sua Geração de Ouro nos ensinou foi a evadir a censura com sucesso. Por isso é sempre pertinente manter a memória viva. Até porque, como todos bem sabem, a censura está viva e de boa saúde, só mudou de nome.

    Para mim, ver as películas destas figuras do Portugal de antanho evoca-me o cheiro a bafio e óleo de cedro, com requinte de tabaco lusitano suave a manchar o estanhado da parede. Com carinho o digo, pois estes eram os aromas da minha infância pelas casas dos avós.

    Pai Tirano (1941), realizado por António Lopes Ribeiro.

    Mas funesta coisa esta de uma certa classe de figurões – e não figuras – andar em revivalismos pintados a guache, em remakes, retakes e replays destas operetas fora de suas épocas.

    Só pode querer dizer que tenho que pagar licença de porte de isqueiro em breve e, a julgar pelos últimos dias, meter na cabecinha que, em incerta tarde, um qualquer parque, um qualquer jardim, um qualquer baloiço ou um qualquer escorrega será obviamente vedado para meu bem e para a modéstia do estilo de vida dos meus filhos. Até porque dizem que o Mundo vai acabar e temos de salvar o Planeta, um balancé de cada vez, para não apanhar um escaldão.

    Como diz a má-lingua, a História repete-se, tendemos todos a achar e esperar que um pai tirano surja no nevoeiro venha em formas já conhecidas. Esperamos que venham com as mesmas ideias, no mesmo cavalo, com as mesmas cores ou até do mesmo lado de onde vieram da última vez. Depois, afinal não é. Para alguns pode chegar a merecer até voto na urna.

    round brown wooden table

    Ultimamente, sinto o cheiro a bafio e óleo de cedro no ar, próprio de casas fechadas com gente medrosa lá dentro. Eu sinto cheiro de totalitarismo, à portuguesa, meiguinho. E ainda por cima agora as boas intenções são todas modernaças, usam estrangeirismos e pronomes. Usam máscara, usam patologias e diagnósticos, são especialistas! (E não tractores holandeses, circulem, circulem!)

    Elite que se preze a ascender a seu poleiro costuma notabilizar-se por uma desconexão absurda com a realidade.

    Quem se mantém, por exemplo, no casulo universitário da retórica, pensa que a vida e os seres humanos se resumem a abstração, ou que talvez quem não acompanhe o pensamento de Suas Excelências será certamente inferior, démodé ou alguma espécie de fóbico.

    Então vomitam e regurgitam impropérios e tentam colonizar até a língua de todos, pois se a língua é pensamento e identidade, sim, porque não tentar uma colonização deste género?

    white and black speaker on green wall

    Quem não admita falar esta novilíngua, quem questione o porquê de as instituições estarem a impor este linguajar, é um dissidente que não merece o passaporte sanitário! Nem tão pouco debate, e ai de quem tente falar sem pensar antes, que os esgrimistas do pensamento disso têm muita prática. En garde!

    Esfera privada e esfera pública. Não me parece descabido que a Escola, enquanto arma poderosíssima do Estado para propaganda de dimensão quântica, saiba quando está a ultrapassar os seus limites da esfera privada familiar e do desenvolvimento individual da criança dentro dos seus valores familiares ou da comunidade. E respeitar isso é inclusivo. (Não que inclusividade seja realmente a questão para estes produtos de rankings escolares de marfim, produtores de superioridade moral muito acima dos selvagens que andam cá em baixo a comer animais enquanto eles ficam a debicar brioche ou scones.)

    Sempre esperei que o ensino fosse laico. Fosse qual fosse o culto. Porque direito ao culto tem o indivíduo, pelo que, até sua maturidade cognitiva e emancipação, tem direito de influência a sua progenitura. São regras normalmente acordadas, que preservam as culturas de cada um numa sociedade e que, normalmente, pais tiranos querem revogar à força.

    woman standing writing on black chalkboard

    Mas desengane-se quem pense que o mundo do dinheiro e do poder está alegremente a pavimentar concordância para uma sociedade mais igualitária, para todes e todas e todos e quantas mais vogais, consoantes e símbolos haja.

    O mundo do dinheiro e do poder, meus caros, está alegremente a fabricar guerras culturais para vos manter distraídos, para que não vejais o bolor nascer no amarelo do português suave a entranhar-se no estanho da parede. Enquanto vocês berram a quem pertence o arco-íris, eles contam notas na religião deles: o lucro.

    No fim? No fim, vão todos presos.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Requiem das flores transmontanas, da russofobia ou do país a arder

    Requiem das flores transmontanas, da russofobia ou do país a arder


    Disse Dumas, no Conde de Monte Cristo: “A partir de agora, não viveremos mais, viveremos apenas mais depressa.”

    E cá estamos, depressa. Começamos a pensar sobre uma coisa, e logo vem outra. E outra. E mais outra.

    Não chega a dar para pensar, simplesmente não há tempo.

    green grass field and trees under blue sky during daytime

    Melhor que nos digam exactamente o que pensar, e que seja de fácil digestão, porque entretanto está um calor dos diabos (dizem que é o El Niño, ou isso era nos anos 90; agora chama-se alterações climáticas, porque o Al Gore no seu jacto privado disse num documentário que estávamos à beira do fim do Mundo), ainda tenho de ir comprar pão (e o pão está tão caro!), às tantas ainda me esqueço de pôr a máscara (mais vale nem tirar!), e a culpa não é minha, que faço o melhor que posso e creio que tenho bons valores e sentimentos (e a culpa é do Putin, que é um louco e veio arruinar a nossa paz!)…

    Jorge Dias foi um antropólogo português com um trabalho extraordinário. Nascido e criado no Porto, cedo contactou com o interior de Portugal e nos seus estudos, na Alemanha, familiarizou-se com a etnologia regional (volkskunde), pensamento essencial ao longo do seu trabalho e vida.

    Como quase todos os da sua geração, por serem poucos e notáveis, o Estado Novo foi quem mais lhe encomendou diversos estudos que procuravam informar a propaganda do regime. (Ou por outras palavras, estudos que validassem ideias e ideais pré-concebidos, um exercício intelectual interessante, mas pobre, muito em voga nos dias de hoje e apelidado de “especialista”, contrário a uma honesta busca de conhecimento.)

    As vantagens destes patrocínios é que, com o jogo de cintura correcto, conseguia-se aproveitar a oportunidade para levantamentos de dados essenciais à compreensão dos diferentes temas, e ainda era possível defraudar o intento propagandista do regime, posto que às mentes “poucochinhas” dos nossos líderes não sobrava densidade suficiente para entenderem entrelinhas.

    Com a sua obra “Estudos do Carácter Nacional Português” – tal como Fernando Távora com o Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa –, Jorge Dias conseguiu levantar extensivamente uma monografia sobre a cultura portuguesa – que o Estado pretendia que atestasse a “raça” e a “nação” –, ao mesmo tempo que apresentavam a conclusão final de que somos todos diferentes, com múltiplas facetas, modos de viver, de construir, enfim, de ser.

    Dizia Dias que, embora pesasse que a “Nação” também nascesse em virtude da vontade política de um príncipe – com certa dose de megalomania –, o facto é que Portugal só se mantinha coeso graças ao Atlântico.

    Esta atracção enorme pelo mar amontoava no litoral as populações, abandonando o interior, mas também evitando a absorção do pequeno rectângulo por Castela.

    É por isso facto que eu, nascida e criada no Porto, me espantei ao chegar a Trás-os-Montes e ver tanta gente proclamar, com veemência, que mais valia serem espanhóis!

    Facto é que ainda não tinha visto a outra interpretação do que Dias tinha dito. Não conseguia ver, porque ainda tinha uma lente de nacionalismo ou patriotismo que me impedia de ver dessa forma. (Nós podemos ver de tantas maneiras).

    Achava eu que era real essa coisa da “Nação” ou da “Pátria”, enquanto o senhor transmontano, defronte de mim, apenas sabia o que tinha vivido.

    people sun bathing on beach

    Entre o ter ido a salto para a França, por viver na miséria cá, entre o ter de ir a Espanha, para poder pagar o gasóleo ou fazer compras (pois, na altura, nem tão pouco havia autoestrada que o trouxesse ao Porto ou até Vila Real em tempo útil), entre ver o amendoal ser deitado abaixo por conta de contas comunitárias, entre ter de rapar os fundos da reforma que França lhe pagava para poder pagar a um médico privado em Portugal (caso contrário bem ficaria sem a consulta); entre tudo isto, o que era isso de “Portugal”?

    Ensinou-me muito, este senhor transmontano. Por isso lhe agradeço.

    Agradeço porque partilhou comigo a vida dele, e as experiências dele, e me ensinou, como o Lennon nunca realmente conseguiu, a perguntar o que era isso das fronteiras, e o que era isso dos países. O que era isso da “comunidade”…

    Sensatez desta não brota do chão e não se compra; é fruto da vida sem pressa e do pensamento com calma. Por isso Pessoa nos dizia que o seu mestre era na verdade o guardador de rebanhos, Caeiro.

    Então digam-me o que é isso da fronteira na Rússia e na Ucrânia? E o invasor e o invadido? Vamos continuar a fingir que não se esteve a debater diferentes lentes de propaganda nacionalista e que havia alguma espécie de envolvimento legítimo emocional ou moral da parte dos nossos líderes? Havia algo que não os famigerados interesses?

    Havia algo que não uma inicial aparente incompetência dos líderes europeus, e agora uma clara maldade em não defender os direitos e bem-estar dos seus constituintes?

    A France24 mostrou, há cerca de uma semana, imagens de ucranianos em Lysychansk a receberem as tropas russas com acenos de alívio e alegria.

    Será que quem defende a russofobia em Portugal é o mesmo tipo de pessoas que viram costas aos transmontanos portugueses? Até porque o futuro está no mar (e segundo Dias, o passado também), e serão mais velhos, flores secas, florestas abandonadas e pouco importa.

    Mas não se espantem que, caso perguntem, “como é que era, se Espanha invadisse?”, recebam a resposta “eles que venham: oxalá!”

    Enquanto isso, os nossos velhos morrem. Morrem sozinhos. Morrem ao abandono, esquecidos, com sede.

    Enquanto isso, o nosso país arde, famílias perdem tudo, o ar perde-se em colunas de fumo.

    E o que dizem os nossos líderes? Não é culpa deles. É das alterações climáticas. É do vírus, este, aquele, qualquer um deles. É da Rússia e do louco do Putin. E dos comunistas. E das taxas de juro. E dos socialistas. E da oposição. E do Chega. E dos fumadores. E dos negacionistas. E minha. E tua!

    E deles? Ai, isso é que não é!

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As gotas e o oceano, a vida e a morte, Davos e o que devemos a Assange

    As gotas e o oceano, a vida e a morte, Davos e o que devemos a Assange


    Tempo quente faz pensar em tempo – tempo de assimilação, de cura ou de memória. E no tempo de cura, como no de assimilação, nada tem real significado se for rápido, enquanto o tempo da memória pode ser um acaso fugaz, um aroma, um pestanejar. Ou toda uma História.

    Na memória do mundo, com mais ou menos floreados e contos com pontos, está inscrita uma história partilhada por todos que informa (e em forma) o presente e o pensamento. E eis uma:

    No mar Egeu, embrulhado no Mediterrâneo, pequenina partícula do arquipélago grego das Cíclades, a ilha de Delos surge árida e divina.

    aerial photography of body of water

    Inundada pelo sol desde o amanhecer ao anoitecer, Delos, na mitologia grega, julga-se ter sido dada a Leto para que esta tivesse onde dar à luz os gémeos Apolo e Artemísia, perseguida pelo desdém de Hera – mulher de Zeus – que, ao vê-la engravidar de Dionísio, quis garantir que Gaia não a deixaria parir em lugar algum na terra. Poseidon apiedou-se de Leto e fez emergir Delos do mar.

    Parece talvez confuso? Tantos nomes, parentescos, intrigas e tragédias, que sempre me causaram aflição por não abarcar tudo o que se passava atrás da cortina. Segredo dos deuses e nós, meros mortais, espectadores na melhor das hipóteses.

    Delos foi talvez o primeiro local a receber purificação, pelo menos no nosso berço civilizacional, onde se declarou ser proibido morrer (e nascer também). Atenas declarou a exumação de todos os cadáveres na ilha, movendo-os para uma ilha vizinha, para garantir a limpeza do local para culto divino do casal de deuses.

    Claro que nascer ou morrer são os pontos mais importantes e sagrados de uma vida, por isso a nossa perplexidade se vemos os dois tocarem-se. Atenas podia declarar que a razão era religiosa, mas, acima de tudo, a preocupação era se poderia haver clamores de direitos de propriedade e herança sobre o local, se estes pontos tão essenciais da vida e da morte se inscrevessem naquela morada. Havia que manter o local neutro comercialmente.

    (Ai, a moeda!)

    Portugal sabe uma coisa ou duas sobre proibição de morrer (e nascer também). Ou talvez seja a língua portuguesa.

    No Brasil também tentaram passar esta lei em 2005 (vêem como isto não é só antigo), porque, alegadamente (devido crédito ao titular recente da expressão nesta casa), a população cuidava muito mal da sua saúde e não haveria mais espaço para sepultar os falecidos, por razões ambientais.

    Por cá vemos os mortos serem usados como arma de arremesso há mais de dois anos e, agora, que tantos partem, já ninguém faz boletim diário, já ninguém apresenta gráficos.

    (Excepção feita aqui, nesta morada.)

    Talvez haja proibição de morrer em Portugal (e de nascer também).

    Outra história:

    Davos é uma comuna suíça junto aos Alpes onde, tanto quanto sei, é possível morrer, nascer e reunir globalistas muito pertinentes ao destino de cada um de nós.

    Local anfitrião do World Economic Forum – esta pequena estância de boa saúde alpina e ar puro acolhe todos os anos gente que é gente no mundo. (Não nós, meros mortais, na melhor das hipóteses espectadores.) São já cerca de 50 anos de reuniões auspiciosas.

    Nestas reuniões já passaram toda uma série de líderes internacionais essenciais à cena mundial que sempre assistimos. Guerras são traçadas ou evitadas, os tempos de régua e esquadro sobre o atlas vão-se mantendo. Nos últimos anos, principalmente, tem havido muito interesse em conversarem por lá em transhumanismo, emergência climática e, claro, pandemia.

    Claro também é que este ano a Rússia faltou, pela primeira vez desde 1991. Um pequeno sinal de transformação de desígnios.

    person standing on cliff during golden hour

    Quem fala desta reunião, ou concílio, pode também falar da reunião do G7, dos BRICS, do FMI, ou da OMS. Muitas salas extravagantemente decoradas, bem servidas de excesso (de comes e bebes, cereais, talvez até de bacalhau à Brás).

    E porquê falar de Davos? Porque ao contrário de Delos e o seu controlo sobre nascer e morrer, em Davos podemos considerar que é operado um controlo muito eficaz sobre viver. (“… Entre uma e outra todos os dias são meus…”, serão?)

    Mas são nossos os dias se são passados em domínios filtrados e curados pelos senhores, ou seus algoritmos, destas reuniões? São nossos os dias e os pensamentos se nos são alimentados por outras pessoas ou ecrãs?

    O meio sempre manipulou a mensagem, percebeu-se isso rápido, daí que a invenção da Imprensa seja o acontecimento mais importante do nosso passado colectivo. O acesso generalizado à informação permite às gotas no oceano saberem que cor tem o céu.

    Em princípio quase todos nós podemos ir confirmar uma informação, mas nem sempre podemos ter a certeza da sua veracidade, fora o próprio viés da leitura. Mais grave ainda é ver como a informação nos é oferecida sem procura, sugestões (inofensivas), prioridade em resultados de buscas, conteúdo misteriosamente desaparecido.

    E isto é verdade desde as sugestões Google, às sugestões Facebook, às sugestões Netflix. Mesmo para quem se tenta ausentar dos meios de comunicação tradicionais, tudo está embrenhado numa enorme teia que nos conhece intimamente, projecta e prevê o nosso futuro e extrapola o nosso passado como uma espécie de engenharia invertida.

    Sabemos se, por entre sugestões e previsões, não estamos subtilmente a ser empurrados?

    Ora, a acção da Wikileaks, conduzida por Julian Assange, registou um dos maiores impactos que o jornalismo de investigação alguma vez teve.

    Em 2019, ano de grandes viragens, Assange perdeu o direito de asilo político na Embaixada do Equador em Londres, onde se refugiava há muitos anos, e foi preso, estando na iminência de extradição para os Estados Unidos e de ser julgado por conspiração. Já foi privado da sua liberdade anos a fio; agora arrisca a pena de morte.

    A Wikileaks empurrou o público a ver a verdade, com provas, sobre, por exemplo, aquilo que os Estados Unidos fizeram no Iraque. Assange foi o outro lado da balança para encontrarmos equilíbrio entre o que o poder nos alimenta, as nossas crenças e a realidade. As gotas e o oceano.

    Mas Julian Assange está agora sozinho no mundo, onde a Imprensa alterna entre definhar e borbulhar.

    O que poderíamos saber desde 2019 se ele não tivesse sido preso?

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Saber quantas Agudas existem em Portugal ou o aborto nos Estados Unidos

    Saber quantas Agudas existem em Portugal ou o aborto nos Estados Unidos


    São, pelo menos, três: a praia da Aguda, em Arcozelo, no concelho de Gaia, onde descobri o cheiro a maresia na infância; a praia da Aguda, em Sintra, de onde um amigo me mandou a cor das ondas; e a freguesia da Aguda, em Figueiró dos Vinhos, que descobri porque perguntei ao maravilhoso mundo da Internet.

    Sempre me fascinou encontrar os meus sítios noutros sítios. Entender o porquê de se multiplicarem por este jardim Atlântico, se foi falta de imaginação ou se existe uma razão (geográfica, que seja) para tantas Canelas em Portugal (acho que são bem mais do que três Agudas, e fazem-me sempre pensar em pontapés). Talvez seja reflexo de colonizações, invasões ou contágio.

    É desta maneira que sempre julgo ter a prova cabal que tudo aquilo que alguém pensa hoje, neste preciso momento, algures numa Aguda, alguém certamente já terá pensado antes, ou até no mesmo momento; talvez num espanto cósmico de interferência mística! Ou então, podemos convir que nada disto é novo, que há dilemas eternos, barreiras evolutivas do pensamento, eventualmente cristalizadas no seu entorno, e que sempre, sempre, passam por uma ascensão civilizacional e culminam com a sua queda.

    Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

    O dilema eterno do valor da vida humana, quando começa, quando termina, quem pode dispor dela, continua a inflamar as gentes deste mundo. Seria até de esperar que numa década tão furiosamente dominada por Cientismo, e em sociedades que clamaram por mandatos sanitários sem pruridos éticos, não houvesse agora uma bandeira de alarme hasteada em continente americano.

    O direito de acesso ao aborto nos Estados Unidos ficou consagrado há umas boas décadas, mas manco: usava do princípio da constitucionalidade – não descrita na Constituição – da privacidade.

    Agora, está aparentemente perdido e, para alguns, é motivo de gáudio; para outros é motivo para pensar que, se existir uma Aguda repetida, porventura alguém pensará igual.

    anti pregnancy pills and condoms

    Pesa ainda todo um novelo de moralidade e instituições religiosas – conhecidos baluartes de emancipação feminina (consultar no dicionário: sarcasmo) – a alardearem furiosamente a propaganda da sua mensagem.

    A verdade simples é que talvez o direito nunca tenha existido, não pelas razões que pelo menos muitas pessoas defenderiam. Talvez esse direito só tenha sido garantido enquanto o mercado – esse outro baluarte – queria acomodar as mulheres. Agora, com o monstro da recessão a bater à porta as sociedades, apressam-se em sacar os grilhões. Profilaxia.

    A verdade simples é que a preocupação do planeamento familiar cai sempre nos ombros da mulher: as consequências de ter ou não ter uma gravidez, um parto e um pós-parto; as consequências de uma pílula; as consequências de um DIU; os riscos de outros métodos mais naturais. Somos a baliza e temos de arranjar guarda-redes.

    A verdade aguda é que assim que se começou a desenvolver uma pílula masculina os primeiros estudos foram rapidamente interrompidos porque os participantes se queixaram de efeitos adversos. Alguns eram acne, diminuição da libido e variações de humor. Foi considerado que estes incómodos não compensavam em comparação com o estudo da eficácia desta pílula.

    man kissing woman's forehead white holding ultrasound photo

    Quem é mulher lê isto e não deixa de pensar, seja lá qual for a sua posição sobre o resto – e lembrando que quase todas nós sabemos que a posição é muito perigosa de ser escrita em pedra, que, pois claro, a mulher resolve. A pílula feminina “só” tem efeitos adversos como: ansiedade, depressão, flutuação de peso, cefaleia, náusea, redução da libido e até coágulos sanguíneos, entre outros.

    A verdade triste é que, neste momento, em alguns estados americanos, até as apps de monitorização de ciclos menstruais podem ser intimadas por um tribunal para fornecer dados privados sobre os ciclos das utilizadoras, para verificar se poderá ter ocorrido um aborto clandestino ou não, em caso de denúncia. Assim, à semelhança do gado.

    Importante é que se salve aquela gestação, mesmo que seja para viver na miséria, mesmo que seja fruto de violação, mesmo que a mãe seja uma criança de 11 anos – como ocorreu também agora no Brasil, e empataram a decisão até a gravidez ter sete meses. Seria, por certo, outra Aguda mais a sul.

    man in blue scrub suit holding white hose

    A verdade muito aguda é que isto afecta e destrói sempre as vidas mais pobres, mais desprotegidas, mais infelizes. E não falo dos bebés. Falo das mães.

    A verdade obtusa é que andam a debater crenças morais quando a ética deveria falar mais alto, e lembrar que o direito à autodeterminação sobre o próprio corpo e actos médicos realizados é absoluto.

    Resta saber quantas Agudas existem no Mundo, e se estamos mesmo a ver a perda de direitos de controlo reprodutivo, em nome de fervores morais e agendas políticas que atribuem poderes de uma sociedade ditar o que podemos individualmente fazer com o nosso corpo. Nada que não esteja a ser ensaiado e aplaudido há algum tempo.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.