Lia uma notícia e sentia metal na boca, ferro encostado aos dentes a enferrujar. Outras notícias e a língua cheia de algodão, a iminência de asfixiar.
Parar um momento e avaliar porque temos a garganta arranhada e a cabeça a latejar, com um paladar que nos sobe pelo nariz, é uma tarefa exigente e, parece hoje, cada vez mais inevitável qualquer que seja a fonte de informação que utilizamos. Para quem sinta o mundo com a língua, obviamente que os esforços são redobrados.
E foi o que primeiro desconfiou. Como assim perder o gosto?
— É sim. Um dos sintomas, sabe? Perde-se o gosto.
Ora mas isso acontece tantas vezes…
(E a mãe compadecia-se do seu estado febril e desalentado à mesa “não tens apetite não é?”
— É que a comida não sabe a nada…)
Ou sabe tudo a papel e quem é que quer ter a boca cheia de papel sem ser para guardar segredos?
Então, ainda com desconfiança, voltou a subir a gola do casaco e cumprimentou com um aceno, agradecendo o gentil aviso. Se perdesse o gosto estava sabido que teria de ir para a fila penitente e deixar o testamento em cima da escrivaninha. Até porque a morte não vem todos os dias mas para cada um só vem uma vez, já diziam as velhas e é verdade.
A morte. Já há uns anos que anda vestida de popelina colorida.
Já para nós, a perda de pessoas às vezes torna-nos de vidro. Certas salas estão cheias de pessoas assim, como cristal vazio, prestes a partir com um encostar mais brusco. E nós de vidro, a deslizar por entre estofados dos sofás e corrimões de madeira carunchosa, cada toque um tilintar.
Chegou a gola novamente ao queixo para enfrentar o vento e pensou nas pessoas que ficaram em cúpulas para trás. Uma vida passada cheia de bolhas em cada sítio com personagens que viveram tanto tão juntas, em convivência estreita e confinada. Será que existiram ou foram imaginadas? Serão elas hoje de vidro por quem perderam?
Batendo os pés no tapete de entrada imaginou neve, mas a Primavera à porta, coelhos que põem ovos de chocolate e amêndoas revestidas a açúcar.
Pelo limiar, antes mesmo de ter coragem de encerrar o mundo de lá de fora, avistou num relance uma nave hesitante. Um disco voador a latejar por entre o céu branco de Fevereiro e a olhar intensamente o quarteirão.
Um baloiçar da estrutura voadora mais forte e ei-la! A pequena nuvem de fumo a sair do traseiro, fofa como algodão doce.
E talvez prova que sempre somos nós à procura de casas de gengibre.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Eu comecei a dizer “às vezes desobedeço…”, e ele respondia “não é às vezes, é sempre!”
Eu fazia uma pausa arreliada e respirava fundo, dizendo “…e às vezes respondo torto…”, e ele interrompia “não é às vezes, é sempre!”
Pensava eu que se não me conheces de lado nenhum, raisparta isto!…
“Vai em paz e que o senhor te acompanhe.”
E cismei eu, “não quero companhia, seu ranhoso, a fazer de mim mau diabo!”
Fui embora e cheguei a casa berrando a minha revolta “o padre era um estúpido! Nunca mais lá volto!” E a minha avó ria-se:
— Ainda agora chegaste da confissão e já estás a pecar!
O conjunto de pecados que uma criança inventa para brincar aos adultos é quase tão proporcional ao tamanho do mundo tal qual o vemos. Pequenino. E as portas são todas imensamente largas e altas.
Dependendo do quanto espigamos, talvez já possamos ver adultos sem nos ficarmos pelas pernas e, talvez, sintamos mais direito a levantar a cabeça e a cometer o pecado da insolência de pedir satisfações das regras arbitrárias que nos impõem.
Eu não sabia o que os adultos murmuravam baixinho de joelhos. Pensando que estavam a sibilar por entre os lábios como quem chama um gato, limitei-me a imitar.
As velhinhas no banco encantavam-se com o meu ar compungido e penitente, e gabavam à minha avó a minha dedicação à transcendência em tão tenra idade. Já a minha avó, ciente que eu estava a bichanar gatinhos imaginários, dava-me uma cotovelada e sussurrava “levanta-te estapunho! Que estás a fazer, rapariga?!”
Foi a primeira vez que reparei que imitar um comportamento sem o compreender a fundo era em si mesmo ilustrativo da minha imaturidade. E se havia coisa que eu estava investida em esconder era essa inocência. Pois essa inocência para mim era o que me mantinha grilhões de dependência, algo absolutamente intolerável para quem sonhava em receber correspondência endereçada a si.
O meu pai ironizava “hás-de receber estas cartas e veres que são contas para pagar e já não vais querer.”
— Não, não! Eu quero receber, porque se receber cartas para pagar é porque são coisas minhas que eu conquistei!
Claro que fui descobrindo que há quem discorde. Ainda hoje em dia me espanto que queiram pôr a unha no que eu paguei com o meu esforço. Como a rapariga da carteira em frente que, depois de cobiçar a minha linda lata de lápis de cor, todos virados com as letrinhas douradas para cima, sussurrou, com a colega do lado, “vamos dizer que não temos lápis e assim ela empresta-nos os dela!”
— Eu ouvi! E só por causa disso agora não vou emprestar!
A injustiça a borbulhar-me na voz! Também era facto que não tinha sido eu a conquistar literalmente os lápis, mas eram meus, conquistados pela resiliência de só responder torto às vezes e desobedecer pouco, para que me brindassem o conformismo com o prazer de ter lápis novos a pintar a folha.
— Olha que depois destes, não há outros! Vê se os estimas!
“Todos os animais são iguais, mas alguns, são mais iguais do que outros.”
Depois comecei a descobrir que afinal as injustiças eram permanentes. Actos divinos que não me tocava compreender, diziam. Enfureci-me com o adágio “Deus dá nozes a quem não tem dentes”. Como assim? Que absurdo! Então um homem tão inteligente, com visão panorâmica em tempo real de tudo o que se passa cá em baixo, e mesmo assim vai dar nozes a um desdentado sem pelo menos poder moer aquilo?! Isso é injusto e não faz sentido!
Ao menos fazia um bolinho.
Em vez disso manda um terramoto zurzir o mundo de quem já vive sem nada ou com muito pouco. Até nos vizinhos, sem unhas, nem dentes e as chamas a deflagrar, rasteiras, as casas a caírem e nada sobra.
Pomos o coração com quem não podemos acudir. E mesmo que nunca mais tenhamos voltado a uma igreja, rezamos, porque basta bichanar baixinho, um pensamento de fundo, que se tenta permanente, por todas as pessoas que sofrem longe, enquanto a nossa vida continua com visão panorâmica em tempo real.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
No silêncio do crepúsculo ou no remanso do lusco-fusco, ouves o som que a tua terra faz?
Um silvo abafado de comboio na distância. Ventos contínuos de carros na auto-estrada. O sacudir de ferro do camião do lixo e os travões agudos de um autocarro.
Ou um avião, imenso, pesado, a contrariar a gravidade, devagarinho e tão depressa. Um estertor suave da vidraça na marquise que sente com o corpo da casa o movimento de um mundo de gente a sobrevoar.
Uma mota apressada a rasgar o frio em fúria?
Ou o sereno breu, uma toada de cão que ladra lá longe, a pressentir cheiros que o alarmaram. A fazer a quietude mais gorda, mais parada, em terra de um mundo que só gira porque vemos o sol nascer.
Na cidade descobri as máquinas que não dormem, milhares e milhares de máquinas que pulsam em cada cantinho de cada família. Máquinas de lavar, automóveis, portões de garagem, uma buzina, uma sirene. Um ronronar permanente. Será vida?
Na aldeia descobri chilreados, insectos que não descortino, zumbidos e o roçagar do próprio planeta a atravessar o vazio. Como movimentos do estômago dentro de mim.
Clic! Clic!
O mundo é feito de ruídos, e se fechamos os olhos eles crescem, tanto quando pedimos que falem mais baixo, para vermos melhor, enquanto procuramos um lugar de estacionamento.
Clic! Clic!
E então se a televisão estiver ligada, ai o barulho… Mas enquanto aquele barulho bolsa, sempre ouvimos menos as vozes dentro de nós. Ecos do que nos disseram, ou se calhar só ouvimos, ou talvez até só lemos. Ecos que nos caíram como pedras, e nós esmagados debaixo delas, um pé a tremer, um suspiro final.
Clic! Clic!
Ao meu lado, na borda da cama, com uma perna chegada a si num abraço, ela corta as unhas do pé direito alheada da minha irritação.
De frente para a televisão, de comando na mão, e com uma nuvem cinzenta e arreliada a sombrear o meu semblante, olho-a com alfinetadas de desdém ao ver uma unha rebelde saltar no ar para parte incerta:
— Precisas de estar a fazer isso agora?!
Clic! Clic!
— Nem consigo ouvir as notícias, e há um balão chinês por cima da América!
Levanta-se e sai, em silêncio descontraído e trocista do meu sistema nervoso, em aromas de sabonete e com o cabelo enrolado na toalha que já escorregava.
Afinal, que importa? São só barulhos.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Coisa é fascinante constatar – e entenda-se o fascínio com o devido riso de escárnio – como é que no Portugal de 2023 se tem a casa gelada ao ponto de se ver o próprio bafo; como é que se tem a roupa tão fria que vestir se mostra penoso; como é que se tem coisas guardadas que subitamente ficam cobertas por uma camada de bolor.
Pobreza energética.
Num país de sol que tantas vezes brilha
Como se pode, e não se pode (e só para quem pode), procuram-se bálsamos e pensos rápidos, janelas simples emparelhadas com velhas para poder pagar cada janela, mantendo as existentes, mas tendo assim duas fiadas, e as condensações a escorregarem nos vidros…
O famoso capoto [acessível, rápida execução, desempenho mais pobre, sistema antigo tratado como a coisa mais nova que já se viu por estas partes, pobreza de informação, ao ponto de pensarem que o dito capoto é nome quando, na verdade, é uma marca, à semelhança do pladur], o que não é o mais perfeito a resolver pontes térmicas [uma ponte que o calor cruza para fugir de nós pelos cantos, mesmo que queimemos toda a lenha que encontrarmos] em reabilitação, mas todas as gentes o fazem e põem e vai aparecendo. Não sobra dinheiro para arranjar o telhado ou colocar isolamento por lá, e assim continuam surgindo as telhas partidas e a água a minar, a minar.
(O minério agora somos nós.)
Também não há dinheiro para o valor actual dos pellets, e tantos que investiram nisso, de salamandra catita, com mais fé na relação custo benefício. (Viram o preço da saca agora?) Pelo meio ainda surge mais uma bandeirinha a queixar-se das partículas do fumo emitido pelas chaminés. Ou ligar o ar condicionado e aquecer o ar que vem de lá de fora e foge rapidamente, encostando-se aos vidros e junto ao caixilho (libertem-me, libertem-me! Ar vira água e água dentro de casa, as cheias de todos os dias).
“Apanhem lenha” dizem os bem calçados, assim uma coisa como a decapitada que disse “comam brioche”.
Andar com mini-aquecedores que se ligam junto às pernas para os miúdos aquecerem e que mal se desligam, com o pânico da conta da luz, todo o calor se esvai em meia hora.
As casas em que sempre vivemos definem-nos?
Se somos o que comemos, somos como vivemos?
Pelo meio, os tiranetes lusitanos piam, piam, piam.
Entretêm, entretêm, entretêm.
Um palco invadido, outro palco projectado.
E pelo meio esfregamos as mãos, encostadas à boca, ansiando a Primavera. E a larga maioria quer lá saber de respeitar as centenas de mortes em crianças causadas pela inoculação experimental contra o vírus da moda.
Mate-se o mensageiro? Que podres terá ele, não é? Está frio, ninguém tem tempo para pensar nisso.
Segue em frente! Falar? Eu? Para quê?
Cada um sabe de si, não é verdade? E aquecer as carnes já gasta tanta energia.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Olhou para a câmara porque sabia que alguém o via. Um bebé quando acorda já sabe onde está a vigilância. Olha de frente para a câmara, porque acredita que estou ali miniaturizada, a vigiar o sono e a vigília. Uns choram e chamam, outros ficam a olhar, outros desatam a gatinhar para tentar fugir, enquanto a mãe não se manifesta por artes mágicas.
Um dia olhei o céu e senti que já ninguém me via. Estaria alguém ainda a ver? Disseram-me para acreditar que sim, e eu fiquei a olhar, cheguei a gatinhar para desatar a fugir, experimentei chorar e chamar e depois fiquei a olhar outra vez.
Assim nos fizemos, ou fizeram-nos, entre a casa dos nossos pais, a Igreja e a escola. E todos os recreios e caminhos entre eles.
Quem é que nos paga a escola?
– … é o Estado.
Errado, é o Governo, que afectou verbas ou não para investir num molde de cidadão eleitor futuro. Esse Governo foi agora eleito por interferência externa de grandes poderes do capital corporativo, a diferença entre ter cartazes e não ter. A diferença entre ter uma equipa de gestão de imagem e conteúdos ou ser um cão pequenino a ladrar em oposição controlada.
Se for um Governo mais fascizante, prima por investir em baixar-nos o pensamento crítico com o medo e o respeitinho; normalmente é útil para isso usar entidades sobrenaturais.
Se for um Governo mais liberalzinho, vai fazer o mesmo, mas em vez de entidades sobrenaturais dão-nos um computador pessoal (que já ninguém tem pachorra para fazer marcação na biblioteca) e acesso à internet. Que dádiva!
Ambos gostam de exaltar grandes substantivos abstractos; um usa a Pátria, o outro usa o Mundo, dá tudo no mesmo. Ninguém vai ensinar Jaspers, Kierkegaard, Kant, Nietzsche, Heidegger, Sartre ou centenas de outros mais. Nem há tempo. Ninguém sequer explica as diferentes correntes desde a escolástica, ao simbolismo, às inquietações modernas ou ao pós-modernismo que serve de semente ao actual “mundo”.
Quando muito proíbem filósofos perigosos, não enquadrados no pensamento vigente. Sem segundas hipóteses na igreja woke. Ninguém vai explicar ou mostrar Adam Smith e Marx. Ninguém vai dizer o que é “interpretação”. Ninguém vai explicar as estruturas de funcionamento da sociedade, do Estado, dos impostos, do mercado livre. Ninguém vai explicar, porque ninguém vai ver, é não ouvir, é não querer ver, é não querer entender nada…
A única coisa que vão fazer é ensinar-nos que houve uns egípcios com umas pirâmides e uns gregos com umas togas, depois que houve uns portugueses heróicos que foram por aí fora participar no mercado livre das mercadorias em voga (e, dependendo do púlpito, podemos ter a versão “somos-os-maiores” ou “somos-umas-bestas-esclavagistas”). Por minha culpa, minha tão grande culpa!
O menino é malcriado, o menino é pequeno burguês, o menino pertence a uma classe sem futuro histórico!
Pelo meio aparece o Pitágoras, alguns axiomas, Pessoa, Bocage e talvez Cesário, e ainda talvez Saramago. Tudo embrulhado e enfrascado em conserva, para saber tudo ao mesmo. Camões e Eça servem-se enlatados lavados com champô.
Tudo ao molho e fé em Deus, ou no tik tok partilhado no intervalo. Tudo num torvelinho hormonal de crianças em desenvolvimento com o mundo num telemóvel e uns senhores no fundo da sala a explicar que o mundo vai acabar; antes, bastava todos reciclarmos e deixarmos de usar laca e fazer grafittis; agora, melhor deixar de comer carne e, de preferência, deixar de respirar. É o molde, é o que é, é a lei, come, cala.
Vá! Mandem-me lavar as mãos antes de ir pra mesa!
O Estado não existe.
É uma entidade sobrenatural criada para nos fazer crer que o poder é nosso. Que houve consenso, moral, ética, terreno comum, que houve necessidade, que a grande obra pública era urgente e emergente. E caros amigos monárquicos, isto vai até vocês. Não pensem que a ruína da Fazenda Pública nasceu com a República. São todos os mesmos. Têm todos as mesmas ambições megalómanas.
Um gajo sonha de noite, dá uma bofetada na própria mãe e vamos para a guerra, combater vizinhos mouros que estavam aqui como estava toda a gente. É o califado! Lutem! Um gajo sonha de dia, dá um encontrão ao irmão e vamos para o mar, trapacear e raptar indígenas distantes em nome de Cristo e do progresso e que espertos que nós somos.
As palavras é só bolinhas de sabão, parole parole parole e o Zé é que se lixa!
Depois umas salas ao xadrez com outros gajos de avental, sonham de madrugada e maquinam planos, engendram progresso, ou sem avental a obra, a obra! A obra de Deus fazem eles! Abaixo o rei, viva a República! Continuemos…
Estado que se preze, autoridade que seja digna, reduz os seus papéis ao mínimo de garante da ordem e de estrutura assistencial de que se orgulhe. Estado que se preze desaparece do nosso dia-a-dia. A cada escola cabe seu caminho, sua gestão, sua planificação programática entre corpo docente e pais e famílias. E aí quem não concorda; é livre de se expressar e, em caso de não estar feliz com o consenso maioritário descentralizado e local, procurará, bem mais próximo possivelmente, uma solução, ou até criará uma.
O estado da escola mostra precisamente o Estado que temos. Os professores não querem ver isso porque continuam a ser pagos pelo Estado, escravizados pelo Estado, manietados pelo Estado. Mas esses professores já foram educados numa escola que lhes dizia que a entidade sobrenatural do Estado era uma inevitabilidade, por isso “lutam” e reivindicam. Sem abrirem os olhos para verem que a razão de ser da luta deles continua a existir e a manter a necessidade de luta.
O Estado…
Essa entidade sobrenatural.
O Estado, que investiu décadas a vender que é sinónimo de liberdade. Que em 1974 apareceram e nos soltaram as grilhetas da opressão. Que quem está lá agora são os descendentes naturais desses heróis, muito embora os heróis de então estejam a fazer tijolo, abandonados que foram na própria hora ou arrumados numa prateleira desde 1975 a mandar vir baixinho, porque a pátria lhes comeu a carne e deixou os ossos.
O Estado…
Essa entidade sobrenatural que, se for brasileira, até injecta manifestantes detidos na capital com a inoculação experimental da moda.
Curioso. Diria até que parece prova de que afinal é um castigo e uma penalização. [calma, calma, certamente é um mal-entendido…]
Curioso… Diria até que parece que o Estado quer tratar as pessoas como animais no matadouro [ah! mas são meliantes… não são bons cidadãos!]
Curioso. Como ferro em brasa na carne.
O Estado…
… não existe.
Mas alguns de nós continuam à procura do cérebro, outros à procura do coração, outros à procura de coragem, outros só querem bater os calcanhares e voltar para casa, seja lá onde isso for.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Uma vez mais continua o carrossel, por entre o verdadeiro, o falso, o dúbio, a fofoca e o informativo, o cavalinho sobe e desce com música infernal de realejo, e nós, a tratar da nossa vida, só queremos evitar ficar nauseados.
Um dos papas finou-se, um dos futebolistas gera nova polémica, um dos políticos de carreira gera novo desfalque, atrás da cortina fica um sem-fim de cenários ainda mais grotescos.
Mais que tráfico de influência, estamos numa guerra de influências. Cada um no seu recreio, num infinito e imensurável parque infantil de quem grita mais alto, quem domina a brincadeira, quem dita as regras do jogo.
Amigos imaginários que proclamam fábulas, rufias que perdem o domínio da caixa de areia para outros rufias aparentemente maiores e com piadas mais originais. Nas turbas vemos ecos de vozes a entrincheirarem-se pela sua suposta equipa. Que circo.
Humildes, vaidosos, vaidosos humildes. Omnívoros, carnívoros, vegans, trans, lobbies, colaboradores e trabalhadores, ladrões ou presumíveis inocentes, figuras públicas com gripe e teste de gravidez de virose VIV (very important virus)!
Façam like, façam subscribe, não se esqueçam de partilhar, mensagens que circulam de mão em mão a prometer o apocalipse climático, viral, pandémico, de reacções adversas, de genocídio, de eugenia. Usem máscara, o novo acessório do século XXI, tão indispensável como um chapéu nos idos anos 20 de outra era, um, dois, esquerda, direita!
Alguém pare isto por favor.
As figuras de louça continuam nos seus poleiros. Um na China, outro na Rússia, outro nos Estados-assim-um-pouco-unidos. E nós a correr na roda do hamster. Corre, corre, corre. Grita, grita, grita. Squeak!
Pelo caminho ficam migalhas que órfãos por imposição, aflitos, seguem, confusos em florestas de metal escuro, terra queimada, terra de ninguém, viva a liberdade. Sais à rua de cravo na mão, sem saberes que sais à rua de cravo na mão a horas certas, né filho?
Não!
Tiranos são eles todos. Não é mais um que outro. Não há demónios a leste mais diabólicos que os demónios a oeste. Não há heróis libertadores da praça pública dos passarinhos azuis mais confiáveis que qualquer estátua de bronze no país da bandeira bicolor. Carne é o que somos para eles todos, dispensável, supérflua, para canhão ou para a barriga do lobo.
Quem nos grita que isto é uma guerra, seja ela qual for, seja qual for a trincheira, é sempre quem nos merece desconfiança!
O que nos sobra? Impotência e revolta? Conformismo e cansaço?
Haverá trincheira que mereça o vivermos em lodo, lama e vermes?
Lembro sempre de 1914. Que podia ter sido 1917, 1918, 1945 quando as forças aliadas lançaram últimas vagas de destruição total.
Valeu a pena?
Em 1914, no Natal, “surgiu um sentimento pacífico espontâneo nas zonas de guerra, quando as tropas de todos os exércitos europeus celebravam o nascimento do Salvador.
(…) Na manhã seguinte, soldados alemães deslocaram-se até à linha de arame farpado britânico e soldados ingleses foram ao encontro deles. ‘Pareceram ser muito amigáveis e trocámos lembranças, estrelas para os bonés, insígnias, etc.’, anotou Hulse. Os ingleses ofereceram aos alemães pudins de ameixa, ‘de que eles gostaram muito’.
(…) A Legião Estrangeira Francesa estava numa parte da linha onde a luta se interrompeu, os que tinham sepultado os corpos voltaram ao trabalho e foram trocados tabaco e chocolates. Entre os legionários estava Victor Chapman, um americano que se tinha graduado em Harvard em 1913. ‘Durante todo o dia não houve troca de tiros, e na noite passada a tranquilidade foi absoluta’, escreveu aos seus pais a 26 de Dezembro, ‘mas no entanto fomos instados a estar alerta. Esta manhã, Nedim, um turco pitoresco e acriançado, começou de novo a erguer-se na trincheira e a gritar para o outro lado. Vesconsoledoss, um cauteloso português, disse-lhe que não se expusesse daquele modo, e então, e porque falava alemão, fez alguns comentários mostrando a cabeça. Voltou-se para descer e – caiu! Uma bala tinha-lhe entrado pela parte de trás do crânio: gemidos, uma poça de sangue.’
Sir John French recordou mais tarde que quando lhe foi dado conhecimento daquela confraternização, ‘Dei de imediato ordens para evitar qualquer nova ocorrência de tal conduta, e disse aos comandantes locais que deveriam ser estritamente cumpridas, o que teve como resultado um boa quantidade de problemas.’”
Cuidado com quem nos incita a lutar. Cuidado com quem nos diz que é mais humano ou existencial fazê-lo quando, na verdade, o mais humano é sempre trocar cromos e jogar ao berlinde.
Riam. Riam de quem vos manda odiar. Talvez a rir se deixe de ouvir os uivos.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM. O trecho citado consta nas páginas 76 a 78 do segundo volume de A Primeira Guerra Mundial, da obra de Martin Gilbert, editada em Portugal pela A Esfera dos Livros em 2007.
Os anos sucedem-se e assim mais um se vai findar, o que sempre acontece para as barrigas cheias ou para as barrigas vazias, por entre ventos frios no hemisfério norte ou brisa morna no hemisfério sul, porque assim todos concordaram.
No fio dos últimos dias do ano, Nostradamus escrevia em enigmas para acertar na hora que o relógio apontava, pelo menos duas vezes em cada dia. Vibrava com a antecipação da tragédia e, com o aproximar da meia noite derradeira, vários discípulos imaginários do império dos rios sem dono começavam a rabear para apostar as fichas na leitura dos seus vaticínios.
Desde pequenino que ensaiava seus poemas por entre o bafio de salas fechadas, ele próprio então desconhecedor de seu poder transcendente. Bem que cantarolava o que se avizinhava para as aranhas debaixo da cadeira mas elas não ouviam. E que teriam sentido as pobres, de pernas esmagadas e vida sumida por entre as suas teias envoltas no pano húmido que a avó foi buscar, para prontamente limpar aquela inaceitável invasão?
Terão porventura pensado, “o menino bem avisou”? Nostradamus duvida que tenham tido sequer tempo. Zás! E morreram.
Quando, anos mais tarde, em corredores frios de pedra, Michel (era este o primeiro nome do jovem) aprendeu as artes da medicina, já seu coração ia recheado de pensamento, astrologia e literatura. Que alquimia aquela!
Tão notável era que se notabilizou pelo protocolo contra a peste, que assolou um então não tão velho continente, mandando remover os mortos abandonados pelo pânico, limpar os doentes e dar-lhes vitamina C. Autêntica magia, hoje sabemos que completamente desacreditada pela sienciah (como a astrologia).
Mas eis que Nosferatu se cruza com o nosso profeta e, em silêncio, rouba a vida da pobre mulher de Michel, sem sequer poupar a vida a seu filho. Zás! E morreram. (Mas foi coincidência.)
Nosferatu era um esquálido rapaz, que sempre fazia questão de rejeitar todos os cookies dos sítios de internet que utilizava. Lia muito, por isso via mal ao longe, e suas unhacas compridas afastavam potenciais senhorios pelo que era um problema conseguir casa para arrendar.
Atraído pelo cheiro de carne humana, Nosferatu não resistiu aos encantos exalados pela esposa de Nostradamus e lá lhe sorveu a vida e espalhou pragas em redor. Fontes próximas deste anorético demónio, que também acompanhavam de perto as campanhas do senhor doutor, asseguram que, não tivesse este episódio histórico acontecido – se acaso tivesse ele conseguido um T2 em Olivais Sul – e na verdade Nostradamus não se confrontaria com o verdadeiro alcance do seu poder de divinação, ao sofrer a viuvez antecipada pelo esfaimado rapazote.
Isto só prova a importância de um bom agente imobiliário. Como muitas outras coisas na vida.
Já em Portugal, um operador de telemarketing chamado Noel, lê esta nossa saga, de barriga cheia de sonhos pela quadra natalícia, maravilhado com a suma importância desta crónica na sua vida íntima, flagelada que é nos últimos anos por ter seu nome de baptismo em constante confusão com um acrónimo que mata qualquer reputação: No Observed Adverse Effect Level (NOAEL).
Muito transtorno profissional e social acometia Noel todo este tempo, por esta confusão. Pois está bom de ver, que toda a gente sabe, que não há nada mais arrepiante do que não causarmos efeito algum. Ora, imaginem o que sentiria ele, se caminhasse na praia e, olhando para trás, não visse as suas pegadas?
Teria sido o mar? O vento? Nosferatu deslizando numa última e fatal travessura de quebrar o espírito?
Malogrado o dia em que se lembrou Nostradamus de prever que Noel, de todas as pessoas do mundo, seria a nova encarnação de praga bem mais contínua e silenciosa: a da impotência e ausência. A invisibilidade e nulidade, de viver a vida sem deixar pegadas, sem causar efeito, sem sequer matar as aranhas debaixo da cadeira da sala bafienta.
Pois será que foi profecia, ou o dito causou o acontecido?
Há quem sinta que é melhor nem ler, nem ver, sob risco de o fazer verdade. E a verdade não é para todos, e todos sabem disso.
Os anos passam, mais um passará e outros sempre virão, para quem esteja e para quem não esteja também.
Ditoso o leprosário onde se movem os incautos.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Alegadamente, quis o acaso e a virtude de quem se preocupa, que me fosse feito ouvir as queixas de um petiz de barba grisalha que padecia terrivelmente de infecção respiratória, dessas que assolam o jardim à beira-mar plantado, conhecido pelos seus vastos prados desflorestados, mas alegre clima ameno temperado entre o esgoto não assumido no Mediterrâneo, esse cemitério aquático de quem foge do jugo imperialista ocidental, e o feroz Atlântico, conhecido pela sua aliança transnacional (trans é bom, é o que está a dar).
Acontece que neste jardim, cauda sudoeste do jardim da Eurásia – conhecida pelos seus dois furiosos ministérios da verdade que se digladiam recentemente em prados amarelos e céus azuis –, o Inverno é sempre uma novidade própria de quem vive os dias, e não os meses ou as estações (nem tenho comboio em horário útil!), a prevenir as noites e esquecendo os vindouros tempos, descendentes e guerras urgentes.
Assim sendo, temos então o atol sanitário do costume, potenciado por energias violentas de quem passou três anos a lavar os legumes com lixívia, a açaimar as pessoas em trapo descartável e a sinalizar, com devida documentação azul fotografada, o selo no braço de quem recebeu a inoculação de Soma.
Este petiz sofria, porventura sentia, a panela no peito, a fervilhar o testo em cada respiração, e, para seu horror, viu-se forçado a dirigir-se às urgências médicas da divina ciência do serviço nacional de saúde do jardim lusitano. Ora toda a gente sabe (it is known) que à conta de 127 negacionistas do ministério da verdade português, o serviço nacional de saúde morreu, visto que estes endemoninhados esbilros de Satanás influenciados por uma extrema-direita em ascensão, se recusam a admitir que homens são mulheres e o seu contrário também, defendem algo tão arcaico e pré-histórico como o sistema imunitário, não escondem o rosto com o hijab azul de polímero do bem, insistem enfim, em existir e ainda por cima em liberdade!
Vai daí que o petiz o que faz? No seu compreensível transtorno de sofrimento animal, proclama abertamente mandados de prisão imediata para estes vis não conformados! Para o bem comum. E dele também (e já agora, nem que seja por prazer vingativo de verificar que a Soma não o safou e ainda por cima não tem ele estatuto para a Soma de melhor qualidade que garante protecção alargada a todas bichezas que por aí andam).
Quis o acaso e o masoquismo desta alma que vos escreve, e se preocupa com os destinos sanitários da nação, que fosse ainda confirmado o devido estatuto do petiz no seio do serviço público, entregue à causa pública, à luta de “todes” aqueles que por bem prestem culto à mesma igreja. Pois, se não é um ser humano, eleito em assembleia de freguesia por reputada facção canhota, alegadamente sujeito a deslocações penosas de duzentos e cinquenta mil metros para se sacrificar por todos nós, cabeças de gado, terraplanistas e consumidores iletrados que devem confiar no ministério, a ter direito a reclamar a privação de liberdade dos untermensch, que insistem em poluir o ambiente interior e exterior (e já agora, podiam ao menos garantir que a ida às urgências até matava dois coelhos de uma só cajadada – analogia carnívora pelo qual a autora se penitencia, mas soava bonito assim – e fazia mais análises de diagnóstico clínico, etc.), não sei quem possa ter esse direito!
Petiz sacrificado! Que luta por causas! Que vive pelos outros! Deve ser protegido! (Já causas entre a Soma e a maleita não! Não há! Escusam de vir com essa conversa!)
Como esperam que se encha o tacho de onde se come, se se tem panela quando se inspira a boa luta?!
Entre 2019 e 2020 foi essencial ter uma gestão sanitária e da coisa pública. Essencial!
(Sinto que faço o mesmo balanço de passagem de ano há três anos, deve ser a maldição do “Groundhog Day”)
Porque não alterar a constituição?! Porque não garantir que cada pessoa essencial faz aquilo que lhe mandam, movem-se para onde mandam, comem o que mandam, sobem os camiões para onde lhes mandam? E os não essenciais, bem, esses, os petizes já lhes deram demasiadas oportunidades, não é? São uma cambada! E não se preocupam com o planeta! No meio desta urgência! Isto é como uma guerra!
(Não, não, não. Não é verdade. Não nos esconderemos como um qualquer animal.)
O dia a dia continua, o excesso de mortalidade está gritado aos sete ventos. Aumentou mais este ano do que nos anos anteriores. Assim como os graus de temperatura e os rios atmosféricos.
(Há lugares para nos escondermos?)
Primeiro, o ideal é congelar contas bancárias de protestantes contra a verdade.
Talvez instaurar o modelo chinês de créditos sociais, basicamente como a famosa app do StayAway Covid, em que, assim a modos que se alguém tossir num raio de uns metros em espaço público, o nosso telefone inteligente fica vermelhinho de raiva para nos avisar da necessidade de fugir para longe.
Bem, mas não igual ao chinês, o chinês é mau. O nosso seria bom claro.
Que dizer? A voz até se embarga e até me falham as palavras. Declarar o que quer que seja com sentimentos e não com reflexões é sempre perigoso, excepção feita à mestria bocagiana de proclamar amor ou sátira com a mesma doçura, talvez.
Esta nação de poetas, cabrões dos vindouros. Primeiro, fechar o mundo. Lockdown. Depois, reconstruir melhor. Reset. Podemos manter-nos a polir latão no Titanic ou ocupar o nosso lugar essencial na cadeia produtiva de emancipação e transhumanismo. E quem diga o contrário é tolo. Houve um vírus, ainda há, muitos! E podem vir muitos, muitos mais! E por culpa nossa o planeta está a morrer! Está a cozinhar lentamente! Temos de priorizar! Corram! – seguem-se gritos – A economia depois vê-se! Vai tudo ficar bem! E quem procrastinar a pagar a senha de almoço na escola dos miúdos, o pai Estado fica-lhes com a guarda! – mais gritos – Toda a gente sabe que, mais a mais, os miúdos devem beneficiar de três meses de aulas de Cidadania sobre identidade de género! Até porque dentro de cada um de nós existe uma outra alma, que pode ficar com as mangas do casaco curtas no pescoço, há que libertar as almas. O heróico paranóico hara-kiri!…
Entretém-te filho, entretém-te Não desfolhes em vão este malmequer que bem-te-quer Mal-te-quer, vem-te-quer, ovomalt’e-quer Messe gigantesca, vem-te bem, vem-te vindo, VIM na cozinha, VIM na casa-de-banho VIM no Politeama, VIM no Águia D’ouro, VIM em toda a parte, vem-te filho Vem-te comer ao olho, vem-te comer à mão Olha os pombinhos pneumáticos que te arrulham por esses cartazes fora Olha a Música no Coração da Indira Gandi Olha o Moshe Dayan que te traz debaixo d’olho O respeitinho é muito lindo e nós somos um povo de respeito, né filho? Nós somos um povo de respeitinho muito lindo Saímos à rua de cravo na mão sem dar conta de que saímos à rua de cravo na mão a horas certas, né filho? Consolida filho, consolida, enfia-te a horas certas no casarão da Gabriela que o malmequer vai-te tratando do serviço nacional de saúde Consolida filho, consolida, que o trabalhinho é muito lindo O teu trabalhinho é muito lindo, é o mais lindo de todos Como o Astro, não é filho? O cabrão do Astro entra-te pela porta das traseiras, tu tens um gozo do caraças, vais dormir entretido, não é? Pois claro, ganhar forças, ganhar forças para consolidar Para ver se a gente consegue num grande esforço nacional estabilizar esta desestabilização filha-da-puta, não é filho? Pois claro! Estás aí a olhar para mim Estás a ver-me dar 33 voltinhas por minuto Pagaste o teu bilhete, pagaste o teu imposto de transação e estás a pensar lá com os teus zodíacos: Este tipo está-me a gozar, este gajo quem é que julga que é? Né filho? Pois não é verdade que tu és um herói desde que nasceste? A ti não é qualquer totobola que te enfia o barrete, meu grande safadote! Meu Fernão Mendes Pinto de merda, né filho? Onde está o teu Extremo Oriente, filho? A-ni-ki-bé-bé, a-ni-ki-bó-bó Tu és Sepúlveda, tu és Adamastor, pois claro Tu sozinho consegues enrabar as Nações Unidas com passaporte de coelho, não é filho? Mal eles sabem, pois é, tu sabes o que é gozar a vida! Entretém-te filho, entretém-te! Deixa-te de políticas que a tua política é o trabalho, trabalhinho, porreirinho da Silva, E salve-se quem puder que a vida é curta e os santos não ajudam quem anda para aqui a encher pneus com este paleio de Sanzala em ritmo de pop-chula, não é filho? FMI, de José Mário Branco
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
E pergunto-me porquê, em silêncio (e por vezes falo alto, mantenho a criança viva, não resisto a esse prazer, de atirar pedras ao charco).
É como mergulhar na água. Fundo. A sensação de asfixia. A privação de oxigénio no cérebro que se governa no mínimo, confuso pelo som denso que se abate nos tímpanos e aperta com força, luz estranha e fria que entra nos olhos, ar líquido que jorra nariz acima.
Que difícil que é pensar, que difícil que é saber. Quanto mais proclamar.
(Quem proclama são os psicopatas.)
Procurar as histórias exige caminho e é penoso. Exige mergulhos. Mas o mais difícil não é isso. O mais difícil é mantermos o papel de observador intensamente. O mais difícil é ter uma opinião e ter o seu contrário também.
(Podemos ser ambos.)
Certamente que Adolf Hitler era um carinhoso dono para seus cães. (Preferem a menção da sua namorada ou dos seus animais domésticos?) Aliás, até era vegetariano. Mas ninguém quer ver a humanidade do monstro ou do psicopata, até porque mergulhando e gerindo o cérebro nos mínimos com os sentidos confusos pela agressão, é importante engavetar e priorizar.
(São sempre patriotas os psicopatas?)
E vende-se a ideia de que boa que é a pátria. Esse “grande substantivo abstracto” como li o António dizer (o Lobo Antunes). Que medo mete a pátria, que a qualquer momento timonada por psicopatas nos manda para a guerra e para a fome. (Golo!)
Festejemos as poucas alegrias que nos pode dar a bandeira, que a “bucha é dura, mais dura é a razão que a sustém” (como disse o Torga, e depois o Zeca também).
O pai dá e o pai tira.
Certamente que urge salvar o planeta. Desde sempre. Que maçada a nossa existência e acima de tudo a existência dos outros. E acima de tudo a diferença. E a indiferença também. Que confronto, que agressão aos sentidos (e o cérebro a ficar sem ar).
O ar já esteve tão sujo que, ainda mais com a fome, as pessoas tinham síncopes no meio da rua (foi há pouco tempo). Andavam descalças (e era proibido) mas afinal se pelo menos não estiver frio na verdade isso até faz bem à coluna (ai, as ironias dos paradigmas). Agora está o ar mais limpo, mas não chega, e continuam as crianças a colarem-se às paredes com palavras de ordem.
Constrói, destrói, constrói de novo. O papel do arquitecto é conduzir a água para fora, porque entrar, ela vai entrar sempre.
(Tenho pensamentos que se intrometem enquanto tento rever as histórias que ouvi.)
Um homem de ar macilento e pescoço esguio explica-me que a sua qualidade de vida aumentou e a sua saúde melhorou desde que se tornou vegan. Fico feliz por ele.
Outro homem com ar robusto e pele curtida do sol troça dele e, enquanto leva o guisado à boca, explica que vegetal não puxa carroça. Rio-me. De facto não consigo imaginar que puxe. Imagino até que por entre a honra de respeitar cada animal ao ponto de não o matar não seja fácil conciliar isso com as necessidades do corpo, embora evidentemente seja possível.
Conciliar o transcendente com o terreno não é fácil (e o cérebro sem ar debaixo de água), é um exercício de uma vida inteira (para alguns nem é para uma vida só), mas é, acima de tudo, o caminho de cada um.
(O individualista ou o colectivista.)
O individualista defende de pedra e cal a sua liberdade, a sua livre iniciativa, a sua independência e autonomia (a pedra ergue, a cal queima). A democracia parece ser o sistema perfeito para conciliar e proteger o individualismo (será? Ou não tivemos uma ideia melhor até agora?)
O colectivista defende o bem comum, o enxame, o formigueiro, a estrutura massiva e maciça a progredir num só corpo, numa só mente, ninguém fica para trás (tirando os danos colaterais, isso acontece, é a vida, não é?)
Pelos vistos, os malvados individualistas querem continuar a comer guisado com vacas poluidoras em flatulência excessiva, das quais temos muita pena do sofrimento e morte delas mas, ao mesmo tempo, mais vale elas não serem tantas porque… O planeta é finito. (E alguém disse que éramos oito mil milhões na última contagem de cabeças de gado! Melhor explicar aos miúdos que se colem às paredes e que não tenham filhos!)
Pelos vistos também, os malvados colectivistas querem obrigar-nos a todos a comer alface e farinha de larvas, mas é pelo bem do planeta, e porque coitadinhos dos animais. E a acção de cada um importa! (Curioso, parecem um individualista neste ponto…)
E como disse o Herman neste momento “eu, é mais bolos.”
A mãe cria e a mãe morre.
Eu quero saber porque é que se está a morrer mais no mundo. Agradecia que permitissem cavar essa verdade em vez de cavar o buraco entre especulações. Eu não quero contar histórias, quero ouvir.
Alguém informe por favor os Tribunais e todos os Jornalistas, que nós os comuns não queremos ideologias, só gostávamos que, para variar, por entre a dureza da bucha, nos dissessem a verdade.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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A caminho da serra do sol nascente sente-se o ar a rarear. Respiramos nuvens e deixamos o Atlântico para trás.
Há muito tempo para pensar, se por acaso temos de sair do nosso ninho habitual rumo a outros mundos. Cada casa, cada casario, cada vila, cada cidade. Cruzamos essas vidas todas na distância e reparamos que nada realmente importa, e tudo importa tanto. Pois o dia continua a nascer e a morrer no horizonte, enquanto destinos são influenciados por directivas, resoluções, leis, normas e tiranias várias, de gatos, ratos e porcos gorduchos sentados a fartas mesas, comendo alarvemente enquanto tricotam fio para nos asfixiar em teia.
Mas nós, nós lá continuamos todos, cada um a tentar comprar a saca de pão diária, a tentar ser a sua melhor versão, a cismar se a sua herança real será a mais serena e amorosa para seus descendentes.
Andamos todos ao mesmo. E no caminho frio, vencendo montes, rumo à serra, pensando se a neve cá chega para nos fossilizar os anseios, tento espreitar cada encosta, e imaginar que vida de outra pessoa (serás tu?) atravesso ali, se lhe (se te) apetece tanto gritar a ti, como a mim, devorar as árvores num trago, e em duas passadas galgar montanhas e ultrapassar tudo.
Um planeta de titãs. De tanto nos quererem convencer que a chave de salvar o planeta está algures no nosso bolso, certamente que nos insuflam as pernas para sermos titãs, a dar passadas entre montanhas como quem faz um corta-mato simples por caminhos de cabras.
Por esse caminho espreitam brotos de eucalipto a encarrapitarem-se por troncos negros de árvores mortas. Sempre nasce alguma coisa. Somos tão importantes para a Mãe Natureza que lá vemos todas as nossas pegadas a ser apagadas com relativa facilidade.
Mais tempo, menos tempo, falar com a geologia seria, aí sim, ver tempo a sério. Tempo que nos deixa a tiritar de frio nas nossas manias e talvez a neve chegue, mas, por enquanto, os gatos espreguiçam-se no sol de São Martinho.
O nosso caminho é tão pequeno que eu ainda tenho de explicar às avós da família porque é que agora não se põe pó de talco no rabinho dos seus netos.
Então, agora que já todas estas gerações pensam que aquilo é cheirinho de bebé, afinal os senhores da Ciência, que só estavam a vender coisas boas e práticas (e até inoculações), alegadamente deixaram que fosse parar amianto aos simpáticos recipientes com um sorridente bebé desenhado?
(Sim, aquele amianto que esteve tanto tempo nos cobertos das escolas, telhas partidas a deitar veneno em pulmões de crianças e seus gritos de brincadeiras, mas só o tempo o mostra, o veneno, quero eu dizer, muito tempo.)
Ainda por cima, de vez em quando, lá se fala baixinho que as fraldas – tão práticas que até podemos deitar fora – também têm veneno que fica ali encostado horas a fio, a marinar, durante mais de dois anos, a envenenar-nos os filhos. Enquanto se sussurra que trabalhadoras das fábricas destas fraldas aparecem, por vezes, a avisar que têm de usar equipamento especial para trabalhar, e que várias colegas adoeciam só de manusear o que ali se fabrica.
Mas vai tudo ficar bem.
Cada um mede a pegada com a lente que (mais) lhe convém. Até porque o frio sempre vem e, enquanto nos cruzamos pelo caminho, sobra pouca força para engolir as árvores com tantas queixas; e se nos dói as costas de quebrar o corpo ao meio na luta pela saca de pão, quem é que tem tempo de se arreliar com tudo isto? (O tempo perguntou ao tempo quando tempo o tempo tem…)
Como se criam estas crianças para a ditadura?
Como lhes explicamos que talvez possam ficar presas na gaiola, para prevenir, para precaver, para antecipar, porque é melhor para eles? (Eles quem?)
A caminho da serra do sol nascente sente-se o ar a rarear. Sinto que se abro a boca para berrar me asfixio, engolir as árvores parece desespero e começo a maquinar planos de sobrevivência.
Lá voltamos nós, cada um no seu cantinho, a cismar, a pensar se bater chocalhos para espantar demónios adiantará realmente, ou se estaremos apenas a aliviar a consciência sobre a nossa resposta… quando os bebés, já crescidos, nos perguntarem onde estávamos no momento em que o grilhão lhes torneou o tornozelo.
Sabes tu?
Mariana Santos Martins é arquitecta
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