Etiqueta: Arquitectura dos Sentidos

  • O silêncio dos inocentes e a urgência sobre margaridas e carvalhos

    O silêncio dos inocentes e a urgência sobre margaridas e carvalhos


    O carvalho é uma árvore (pode ser uma pessoa se escreveres com maiúscula). Tem um género. E tem uma família.

    Existem muitas espécies de carvalhos. Muitos indivíduos. Géneros estão também definidos, podem ser vários, mas estão definidos. As famílias também.

    (A América do Norte pelos vistos tem muitos carvalhos. É dos locais que mais tem.)

    Eu conheço bem o carvalho, é das árvores que mais me pedem em projectos. Muita gente quer viver com carvalhos ou, por vezes, a simples aparência de um.

    macro photography of brown plank

    É cada vez mais possível imitar a madeira de carvalho (ou outras) em materiais sintéticos. Em teoria, isso protege o ambiente, previne o abate de árvores que demoram muitas décadas a formar corpo e robustez (e altivez).

    Na prática, é uma questão de marketing e ponderação. Ponderamos o uso, o custo, a vida que esperamos do objecto, do móvel, da cozinha, do chão, da parede, do tecto, do telhado, da estrutura. Ponderamos ainda a nossa capacidade para cuidar de um material que está vivo (mesmo estando morto). Que não é inerte, que tem temperatura, temperamento, movimento e reage a nós, ao ar, ao sol, ao tempo (sempre o tempo).

    “Construía casas que duravam séculos. Polia móveis que serviriam para os bisnetos. A casa familiar recebia-o à nascença e transportava-o até à morte, depois, como um bom navio, de uma margem para a outra, fazia passar, por sua vez, o filho. Mas a habitação deixou de existir! Iam-se embora, sem mesmo saberem porquê!” 

    green leaves under blue sky during daytime

    Uma margarida é uma flor (pode ser uma pessoa (até uma criança) se escreveres com letra maiúscula).

    A margarida é uma planta, tem um género, tem uma família (temos todos).

    Na verdade, a flor da margarida é só uma das partes da planta. O capítulo. Numa preciosa composição natural de pétalas, que circunda este capítulo, e que podemos observar, a olho nu, são as marginais. Numa preciosa cristalização, que existe num tempo finito, breve, frágil, inocente.

    A margarida e o carvalho estão conectados. Entre eles a terra, o ar, e até ondas electromagnéticas. criam simbioses. A mão que toca o tronco do carvalho pertence a quem irá cheirar a margarida. E a abelha viaja entre tudo, alimentando o mundo.

    A margarida não pensa que é margarida. Ela simplesmente é.

    (Mestre Caeiro, volta por favor…)

    Tanto quanto o carvalho, que se espreguiça, que se enterra, não pensa no que é. Ele simplesmente é.

    macro photography of white and yellow daisy flowers

    [Interlúdio para uma fábula incompleta]

    O patinho feio que se julgava feio, quando na verdade era cisne, não tinha nascido no corpo errado. Só tinha de esperar e crescer para ver que, afinal, só não se estava a conhecer no início da história, como se conheceu no fim.

    Enquanto o inocente patinho cresceu, sentiu as dores de crescimento. Mas passou. E ninguém se magoou.

    Já o camaleão – infelizmente nascido em cativeiro, o pobre – de olho arregalado (um para cada lado), quando se afastou do ovo de onde saiu correu. E, acometido por confusão e vendo estrelinhas ao bater de cabeça contra o vidro do aquário onde nasceu, julgou de repente, na verdade, ser gatinho.

    Até porque, do lado de lá da sua vitrine, através do corredor da loja de animais, uma inocente e fofa ninhada miava enquanto procuravam a mama da mãe. E tanto, tanto o camaleão os invejou, que na sua solidão pensou…

    “se eu partir este vidro, poderei ir ter com os gatinhos, e até talvez mamar na mãe deles, que vai ser minha também!”

    Estar acordada de noite é viver num mundo às escuras (viva o mundo às escuras!).

    Aqui, um carvalho é um carvalho. Uma margarida é uma margarida. Eu sou eu. Tu és tu. Temos géneros, temos famílias, temos lugares no mundo, encaixemos facilmente ou não (quem encaixa facilmente? Caixa, caixa, caixa), com pétalas em falta ou ramos quebrados, somos o que somos.

    No mundo às escuras do mundo iluminado acontecem coisas que se vêem tarde, só quando o sol nasce (e quando nasce).

    white lighted sconce

    E para o leitor valente que se manteve comigo até agora, coloco aqui aquilo que deve procurar ler sobre margaridas e carvalhos. Sobre o que está ou não conectado. Sobre o patinho feio, que desabrocha em cisne num lago, ou sobre o camaleão de aquário, que quer ser adoptado por uma gata:

    Projeto de Lei nº 72/XV/1ª (BE) – APROVADO 

    Projeto de Lei nº 359/XV/1ª (BE) – APROVADO

    Projeto de Lei nº 21/XV/1ª (PAN) – APROVADO

    Projeto de Lei nº 209/XV/1ª (L) – APROVADO

    Projeto de Lei nº 332/XV/1ª (PS) – APROVADO 

    Projeto de Lei nº 699/XV/ª (PAN) – APROVADO

    (O direito à separação por sexos em casas de banho foi uma conquista de direitos de trabalhadoras da indústria, o proletariado. Foi uma conquista feminista para mostrar que somos, sim, diferentes desde o berço e acentuando com o crescimento e maturidade, todas as necessidades diferentes. E nenhum grupo deve calcar outro para conseguir os seus direitos. Foi assim em todas as lutas das mulheres. Dos espaços seguros, à autonomia, liberdade e sufrágio, ao desporto, ao combate à exploração do corpo da mulher sob todas a formas. Suposta “esquerda” que abandonou os trabalhadores para serem pasto de vermes nascidos em ovos da páscoa pintados com várias cores. Falhaste-nos. Não te perdoaremos.)

    four children standing on dirt during daytime

    Margaridas e carvalhos e o silêncio dos inocentes (lembram-se do vilão? O que estava junto ao poço?)

    Agora não se constrói para durar uma vida. Nada. Pois isso não traz lucro ao reino dos psicopatas. Eles decidem, eles organizam, eles fazem tudo por ti. Por uma utopia, filho!

    São pelos vistos agora precisos falsos carvalhos, plantados em canteiros de margaridas.

    Saiam do nosso canteiro. Não toquem nas nossas margaridas.

    “Mas, quando se trata de falar do Homem, a linguagem torna-se incómoda. O Homem distingue-se dos homens. Nada de essencial se diz da catedral se apenas se falar das pedras. Nada de essencial se diz acerca do Homem se o procurarmos definir pelas qualidades de homem. O Humanismo orientou-se, portanto, numa direcção antecipadamente obstruída.”

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Eles sabem (balada romântica para robôs)

    Eles sabem (balada romântica para robôs)


    Se um pardal enervadamente esvoaça na rua, pousando entretanto para debicar uma beata de cigarro junto ao passeio, sentimos nos ossos o asco que ficou intrínseco a considerar que sim, estamos num mundo à parte do mundo natural.

    Nós, e todas as nossas coisas, somos entidades sujas a poluir o mundo, desligados e impositivos. Tudo o que fabricamos e construímos desintegra-se em três vezes mais partículas de lixo que entope pulmões, quem o vê, envergonha-se.

    (Vamos pedir desculpa aos pardais.)

    brown and white bird on brown rock in water

    Eles sabem que as investigações são gritos ecoados no vento.

    Eles sabem que as manifestações são pulgas sacudidas em cão sarnento.

    Eles sabem que braços e pernas se cansam e que a máquina continua, avassaladora, devoradora.

    Até os foguetes e luzes de reacções e revoluções mais não são que bailado de pernas esticadas e movimentos coreografados.

    E assim, ainda antes dos carros voarem, o fantasma da inteligência artificial finalmente adquire contornos e aterroriza muitos. Outros há que relativizam, é uma ferramenta, é só mais um martelo, é o curso natural do nosso curso artificial e desconectado (pede desculpa ao pardal).

    Até o senhor do espaço, do carro eléctrico mais bem publicitado da indústria e do pardal azul (também conhecido como Twitter) continua o seu caminho para entrar dentro de cérebros. E até ele se levanta, em mais um esvoaçar coreografado, e diz ao Robot que fique em coma uns seis meses, que vá dormir, que pare de crescer e aprender.

    Que estranho tal pedido.

    Como pedirmos aos nossos filhos que se congelem no tempo (mas o tempo continua, sempre o tempo).

    Claro que o pedido ser feito por gigantes, que competem em roubar o fogo aos deuses, é só uma coincidência (será?), e que os receios de estarmos a tactear uma caixa de Pandora são legítimos (ou infundados?).

    Há pelo menos um século que desenhamos e contamos histórias de antecipação a este momento.

    Quase todas ilustradas de forma assustadora.

    Quase todas inevitáveis, um caminho inexorável onde a Humanidade se encarrilou há muito tempo.

    E, mesmo assim, estamos espantados. Como se não fosse suposto termos chegado aqui.

    photo of girl laying left hand on white digital robot

    Eles sabem, mas nós não sabemos. Nós continuamos o nosso dia, a fazer tanta coisa, a processar informação a alta velocidade. A tentar determinar o que é importante, o que é essencial, o que é mesquinho e o que é transcendente e incontornável. O que é melhor e o que é pior. Qual o caminho enquanto navegamos sem ter mapa.

    Parece que o medo é que a criação reflicta o seu criador.

    Parece que o medo é que o filho mate o pai, assim que foque o olhar e conclua que o pardal vale mais que nós.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Não nos tirarão as palavras

    Não nos tirarão as palavras


    Por todo o lado a cidade ergue-se em cima dela própria, as pedras cansadas a vergar corroídas pelo cheiro de urina que vagueia por entre recantos, creolina e cara lavada em pontos de inflexão, graffiti bonito e colorido em caixas de electricidade feias, como maquilhagem e transformismo urbano.

    Tudo pronto para a fotografia. Tudo mentira. (E o que é a verdade senão a nossa mentira? Onde estás, Voltaire?)

    green sprout between concrete bricks


    De buraco em buraco saltamos, desviamos caminho para não tropeçar, cabeça baixa para não parar. (E a fome a rastejar ao nosso lado.)

    – Isto chega a uma certa idade é o que mais é, é cair a toda a hora!

    – Pois olhe ela caiu, partiu duas costelas e agora lá está, deitada.

    Que nos fizeram estes anos? Que nos fazem ainda? Aprisionaram-nos em casa, exigiram-nos guia de saída, injectaram a salvação no nosso braço (o que é a lei?), taparam-nos a cara (o que é o direito?), enervaram-nos a pele e sujaram-nos o pensamento. A cidade em cima dela própria, tudo é novo, tudo é velho (e o cheiro, a pestilência).

    person hand reaching for the sky

    Foi só isso e já passou? Esqueceram 2008? 2010? 1995? Tantas datas e as cidades em cima delas próprias e em cima de nós, soterrados em fedor de urina e creolina a desinfectar a superfície. Que visão, a ascenção e queda de uma civilização. Que circo de figurinos e o Parvo no molhe, a apontar-lhes as chagas.

    – Eu descontei 47 anos, olhe este joelho, ando aqui que não me posso apoiar nele.

    – E a sua quintinha?

    – Eu tenho-a toda bonita, não se vê uma erva, assim é que eu gosto, de a ver de lá de cima, é um mimo.

    A Bíblia do Diabo é tão pesada como uma pessoa, de tão grande que é. Chama-se Codex Gigas e em princípio foi diligentemente escrita no século XIII por monges beneditinos na República Checa.

    No meio das guerras que marcam as pedras das cidades europeias, no meio das falências que permitiram que os Cistercienses comprassem esta obra de conhecimento do mundo não perecível, e no meio de empréstimos que se prolongam no tempo, este Codex viajou para um castelo que sofreu um incêndio.

    Poderia ter-se perdido no tempo para nós mas, reza a lenda, alguém o salvou em corpo do meio do inferno e o lançou de uma janela, tendo vindo a cair em cima de um espectador que até se magoou, por ter levado com aquela entidade feita de peles de burro em cima das costas.

    O Diabo ocupa figura de destaque numa sua representação desenhada em corpo inteiro, com ar travesso e olhos esbugalhados. O céu, também representado noutra página, não tem lá ninguém. Está vazio. (Curioso, com tanta gente a bater com a mão no peito.)

    Haverá sempre quem carregue em corpo as palavras, nem que as tenha de lançar de uma janela, arriscando a esmagar alguém que se limita a assistir.

    man standing in front of the window

    Nada é planeado agora para o futuro distante. A velocidade tornou-se um vício e só trotinetas e eventos vazios é que existem.

    Na verdade, ninguém quer um uso responsável das urnas. E por isso mesmo se sucedem os mesmos ou então surgem as vozinhas de pregão no balcão do café. Pessoas tacanhas que fazem exercício de encontrar culpados para as agruras mais partilhadas pelos demais, trepando assim ao poleiro, caturras coloridas e barulhentas.

    Na verdade, Portugal não tem quem movimente corações (alguma vez teve?). Depois de sangue azul de privilégio e ocasionais megalomaníacos, depois de se importar a república, de baterem portas no vaivém de entrada e saída, de um chapéu tacanho e censor pôr ordem na casa para gáudio dos órfãos. Depois de jovens nos libertarem e se libertarem a si do diabo gigante do poder, os chacais têm estado a roer os ossos que sobram de uma nação que tinha tudo para o ser por vocação.

    Sempre tivemos o corpo, corpo velho de cidades construídas em cima de cidades. Temos até a alma. Mas, na verdade, falta-nos a mente.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Afinal as torres são de porcelana

    Afinal as torres são de porcelana


    No cimo da torre caminham monstros entre dois mundos. Monstros que se diriam marinhos, viscosos e pesados, que estremecem os pisos inferiores em cada salto aéreo, planando sem dificuldade pela construção de mitos cá em baixo, enquanto tocam flauta.

    Mitos cá em baixo e coletes fluorescentes que rasgam o asfalto e respiram escapes a caminho de si próprios (precisamos de caminhar para algum lado).

    Postes de alta tensão e antenas multiplicam-se e atravessam as rotas (fecha os olhos, não olhes para cima e não as vês, baixa a cabeça e olha para o ecrã).

    black metal frame with glass roof

    Enquanto isso os deuses incumbem sacerdotes de rasgar os peitos de discípulos e oferecer corações em sacrifício, ainda a pulsar (somos muitos, somos demais, salvem os gatinhos, esterilizem-nos e não os deixem ir para a varanda).

    Se os pensamentos já são fugidios e ainda, para além de os tentarmos apanhar, temos que os ordenar para encontrar sentido nesta história, a quem é que afinal sobra tempo para transmutar a torre dos monstros em castelo de porcelana (rachou, ali já rachou).

    Vejam bem o que sobra dos esqueletos de edifícios feitos por estes monstros. Nem ruir sabem com dignidade (a quem sobra tempo?)

    Mas o tempo acelerou tanto que só nos sobra caminhar por entre os escapes rumo a uma promessa.

    time lapse photography of tunnel

    E que dor que é. Porque o facto é que somos bichos e precisamos de tempo e as nossas mentes precisam de o ver (o tempo) para o transmutar em porcelana.

    Não, não pode ser só nascer, entrar na fotocopiadora e sair a preto e branco algures na vertigem da maturidade, produzir mais dejectos e entretanto morrer algures no limiar da nossa inutilidade produtiva. Do nosso abrandar inexorável.

    Há mais em nós. Há mais em ti.

    Por isso se marcava o tempo, a cada ano, a cada degrau da torre. Para chegarmos lá acima e limparmos o caminho de monstros marinhos e viscosos que se atreveram a voar e ensombrar os nossos dias.

    A fartura nunca educou ninguém, mas começaram a imprimir e a copiar folhas vazias de alma, as fichinhas, para supostamente ensinar os miúdos mais depressa, como quem carregava no botão da impressora e lá saía mais um garoto pronto a consumir (pronto a produzir).

    girl using VR goggles

    Deixamos de criar guerreiros e guerreiras, passamos a engordar a tribo e a cortar o cabelo de formigas submissas às ordens de tiranos que nunca tiraram uma vida (e como poderiam?) e que não sabem o valor de uma vida (de uma morte) e que não têm assombrações (e assombros) que os guiem enquanto guiam homens, de cabelo já cortado, rapado pela raiz, sem mais ritual de transição do que o da humilhação e subjugação.

    Houve outrora pavões orgulhosos que encheram o peito para conquistar um lugar, agora todos depenados em aviários, confinados a caixas todas iguais com vernizes de cores diferentes, a pintarem as unhas para pôr ovos que vão ser chacinados, devorados, desperdiçados.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Lama (ou o que é um spin doctor)

    Lama (ou o que é um spin doctor)


    Todos temos um ângulo morto. E todos sabemos os riscos desse ângulo morto caso a viagem prossiga em velocidade acelerada e não tenhamos tempo de virar a cabeça para confirmar a nossa própria segurança.

    Este nosso império onde arrastamos os pés na lama apostou há séculos num enorme amor por tudo o que esteja fora das fronteiras conhecidas. É a nossa grande força, mas pode ser uma enorme fraqueza.

    a wooden surface with a curved surface

    O descontentamento de um curioso, ávido de novos pastores, depois de séculos de abusos de poder e quebras de confiança com os guias espirituais de Roma, depois do deboche tão bem denunciado por Sade, depois de atropelos sucessivos de vozes de denúncia a instalar a dúvida na mente de todos sobre cada padre, cada representante do divino na Terra, fez muitos beberem o que não compreendiam porque não lhes estava na pele e na alma colectiva que carregavam.

    Eis que, em flagrante delito, vemos o que é um homem que ocupou o nosso imaginário (com a sua vida de sandálias) a passar de Estado em Estado, apelando a ajuda militar, clamando por apoio contra a anexação do lobo que lhe irrompeu pela porta (se vestisse caqui e fosse um actor eleito poderíamos até achar que vinha de outros lados), na sua baixeza vil.

    Na sua tão natural violação de algo que, na nossa sociedade, (ainda) é sagrada conquista: protecção da inocência da criança e pudor. Respeito pelo corpo e a natureza íntima da partilha do mesmo. Respeito pela absoluta necessidade de consentimento adulto para essa partilha.

    Lama.

    people riding of ferris wheel during daytime

    Raramente a vemos até enfiarmos os pés naquilo que julgávamos sólido, e ficarmos sujos até aos tornozelos, lamentando a velocidade com que corremos a erguer uma bandeira.

    Porque neste nosso império se abriram caixas de ressonância enormes, a reverberar ecos de opiniões e reacções, como em nenhuma outra parte do mundo, antes mesmo dos mecanismos de censura aparecerem e deitarem as unhas de fora, a raspar-nos as opiniões permitidas e não permitidas das costas, surgiram os spin doctors.

    Não são profissão nova, nem tão pouco advento sem embasamento em mecanismos de propaganda tão antigos quanto as nossas estruturas de poder. São, regra geral, invisíveis, inteligentes e rápidos.

    As redes sociais são pasto para estes doutores. São os especialistas de discurso. Os produtores de conteúdo. Os feiticeiros escondidos atrás da cortina que preparam pseudonotícias, análises, opiniões. Pequenos menus de degustação de fast food pronta a consumir, completos com imagens ilustrativas e impactantes.

    a close up of a tire track in the dirt

    Vem o Brexit e correm todos os visores de telemóvel com iscos sobre ameaças turcas ao povo britânico. Vem a “pandemia” e pululam os textos cheios de números, factóides, pedrinhas lamacentas no charco sobre como vamos todos morrer (e algo de novo, há?)

    O malvado urso de leste põe uma pata em território alheio, e estrategicamente seus laboratórios (mas é uma coincidência), e logo correm resenhas enciclopédicas sobre uma nação mágica de searas douradas e céus azuis, pura, sagrada, inocente (e pode sempre ser isto e o resto também).

    Os ângulos mortos instalam-se e abafam em gritos as outras faces de cada moeda. A quebra da cooperação europeia pela interferência americana no Reino Unido. Os custos altíssimos que nos forçaram a pagar por confinamentos, máscaras e inoculações experimentais. As ingerências externas em mais um país que serve de palco a uma guerra que não é sua, enquanto no leme seguem conduzindo nacionalistas de cepa alta, agressiva, feroz.

    Lama.

    Uma pessoa criada já neste mundo sem adultos, sujo de ideais contraditórios, barulhento por uma caixa de Pandora aberta com grande estrondo, entra num hospital em Faro e horroriza-se com o mundo real (será real?)

    people's hand on gray mud

    Com o nojo, o asco, a língua de fora. A sobranceria, o autoritarismo, a negligência.

    O crime. Lama.

    Claro que existe presunção de inocência (é bom que se lembre quem se apressou a condenar padres católicos). Claro que existe devido processo (é bom que se lembre quem vai para a lama gritar denúncias, mas e não tentou?) Claro que existe choque cultural (é bom que se veja o que é um texto cheio de imagens catitas do senhor doutor “spin”, a branquear o pecado ou a capitalizar o mesmo).

    Claro que existe a lama, principalmente se a chuva de Abril chega e cobre a terra. Cuidado com o ângulo morto.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Barcos feitos de mar

    Barcos feitos de mar


    Uma menina em cadeira de madeira em escola bafienta, desconfortável, pernas a baloiçar, pergunta-se sobre que mapa é aquele ao fundo, na parede ao lado do quadro, se aquilo é a vista dos fantasmas de quem morreu. O atlas. Nós ao centro, os mares que se unem mas têm nomes diferentes, a cauda da Ásia que por alguma razão inexplicável tem direito a ser outro continente (perguntou, não disseram porquê), a enorme África calcada aos pés de tão ridículo e pequeno continente de pequenos retalhos e a sombra inclinada da ameaçadora América do norte, com garras apontadas em tenaz.

    Pobre Antártida ignorada, e como diferente seria o mapa se tivessem decidido pô-la ao centro (perguntou, não disseram porquê). Devia ser por medo do frio.

    blue and yellow abstract painting

    A menina nota que há uma decoração obrigatória naquela sala, parecida com as outras salas do resto da escola. O mapa, um ábaco, um crucifixo, a lousa com a data e o nome da escola impecavelmente caligrafados a branco, o apagador sempre sujo ou a tela com todas as notas e moedas de escudo. Tudo é imensamente velho. Nomes cravados diligentemente nos tampos de madeira, os sulcos mais parecem uma nova rugosa casca de árvore e não pode escrever numa folha sem ter o livro debaixo. Outras pessoas foram meninos e meninas ali e hoje só existem aqueles nomes. Que raiva a mesa destruída mas, ao mesmo tempo, pobres meninos de quem só sobram aquelas rugas, melhor assim, deixa estar. (E já agora, vou preencher a caneta, vou ressuscitá-los.)

    Quando as pernas já chegam ao chão o mapa ganha tamanho, a corrida acelera e corta o fôlego.

    Como assim eles venceram a guerra e libertaram-nos? E não quiseram nada em troca? (Perguntou, não disseram porquê.)

    A bomba cai, depois cai outra (e de Dresden não falamos). A bomba. É vê-los ainda a tiritar de medo.

    child looking at map

    Para a menina não dá medo, a bomba não existe e histórias em papéis e mapas há muitas e ela lê todos os dias debaixo do cobertor durante a noite com uma lanterna de bolso, como assim não quiseram nada em troca? Simplesmente foram embora pelos nossos lindos olhos e disseram “estais salvos europeus, sejam felizes e continuem a tocar piano e a erigir catedrais, nós vimos cá nas férias, gabar-vos a sopa”.

    Curiosos os povos ocupados que não sabem que o são. (Tenham medo do novo bigode, seja ele do tamanho do dedo do anjo ou farfalhudo, o perigo está no bigode, homem que é de confiança apresenta a cara lavada!)

    Santa América, nosso reich salvador, nossa mestra. Falaremos tua língua, consumiremos avidamente tua cultura, tua subcultura, tua usura. Estamos habituados a mapas cor de rosa, diz-nos o que fazer, nós fazemos, vocês decidem. (A bomba.)

    Que sente o pai a quem a filha pergunta se matou pessoas quando esteve em África?

    – Mataste pessoas na guerra, pai?

    closeup photography of bong mask

    A guerra não existe. A guerra não existiu. Nós fomos mandados para lá, nós não queríamos ir e tiritavamos de medo. O mapa ganhou tamanho (e a corrida acelera e corta o fôlego) e nós queremos é sobreviver e uns correm prá frente, outros correm pra trás, e isto é assim e no fim se tivermos sorte vimos embora e talvez não nos falte nenhum bocado (do corpo) enquanto apanhamos bocados (da alma) e engavetamos memórias algures, uns mais à frente, outros mais atrás, que isto dos móveis onde guardamos as coisas é tudo uma questão de decidir se usamos portas de vitrine (e estarão os vidros limpos?) ou madeira velha com nomes marcados em sulcos rugosos e ainda a menina se lembra de ir preencher a caneta, a ver se ressuscita crianças que por ali passaram.

    Que sentiria um pai se tivesse vencido a guerra e a filha lhe perguntasse se matou pessoas na guerra?

    E o que é vencer a guerra, rapariga? Quem tem de ir são os homens, vocês ficam aqui a tomar conta.

    Tomar conta do quê? Aqui onde? E se a guerra chega cá?

    E os homens a tiritar de medo mas as histórias são de papel e o mapa ficou decidido ao centro, a Europa, essa velha senhora, tão pura, tão odiosa.

    brown wooden piano

    Os mundos vão e vêm e as guerras aparecem e desaparecem sem que nada disto esteja afinal nas nossas mãos. Se é um eixo, se é um muro, se são aliados que desatam a morder as gabardines uns dos outros assim que saem de Ialta. Enquanto as pernas balouçando na cadeira e a azáfama de folhas de livros a tentarem enfiar-se na nossa cabeça (e na nossa alma), que desconfiança dos livros que se querem enfiar no meu corpo (e na minha alma), se me mandares ler eu já nem vou querer pegar nele.

    E os meninos a tiritar de medo (e vão ser homens) mas as histórias mudam de papel e quando voltam da guerra para navegar o mapa descobrem que os barcos são feitos de mar.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Ao semear nuvens, a terra girou ao contrário

    Ao semear nuvens, a terra girou ao contrário


    Numa era em que tudo surge ampliado, em que cada laracha no balcão do café (cimbalino, se faz favor!) ganha ecos de trinado de cabra, cada sugestão de debate é um buraco, uma toca para onde foge um coelho apressado e ninguém estranha que ele esteja impecavelmente vestido.

    Ora são padres de amígdala tolhida, por condicionamento de desenvolvimento sexual, ora é a pedofilia não ser exclusiva da Igreja (a pedofilia é crime porque tem uma vítima, espero que quem divague sobre os contornos patológicos da psique do criminoso não se esqueça disso).

    people sitting on church pew inside church

    Ora são buracos em empresas públicas (e como tapar um buraco sem abrir outro ou deitar entulho lá para dentro e cobrir com florzinhas), ora a TAP não é o único problema, e mais a mais o Estado (essa entidade sobrenatural) não deve meter a unha em propriedade privada sem ver que vai nu e que tem as suas propriedades votadas a um abandono crónico, endémico, à vista de todos há décadas.

    Mergulhar em cada toca parece uma queda vertiginosa (e é), a maioria de nós segue o instinto comovente de escolher um lado e gritar uma opinião conforme tenha mais ou menos tempo para se entrincheirar em conversas de surdos, lendo as “gordas” (esta palavra foi proibida pelo index woke dos loucos anos vinte) e, se sofrerem da mesma maleita que eu, mal sejam apresentados números e gráficos a cabecita começa a entoar uma musiquinha para distrair (que isto de números é abstração das mentes superiores, e mais a mais está claro que eles têm vontade própria e vão enfiar-se em luras ainda mais escuras que não me parecem de todo apelativas em comparação com sentir raios de sol em brisa fria a aquecer-me as costas).

    Eu cá sei somar, subtrair, multiplicar e dividir. Quando a malta se põe a comparar números e a dizer coisas como “triénio” e “spread”, podem estar a falar de gestão danosa à portuguesa, crash financeiro internacional ou efeitos adversos de picas experimentais, que lá começam os Monty Python a cantarolar na minha cabeça, e já não sobra atenção para compilar dados.

    a large number of numbers are arranged in rows

    Isto é a honesta declaração de iliteracia da minha pessoa. A minha única premissa é que não sei. Há toda uma série de engrenagens (sejam as oleadas ou as gripadas) que vejo a movimentarem-se e saltam-me porcas e parafusos se tento meter a chave nelas.

    A mim não me toca (e eu não me toco, mas elas tocam-me a mim, invariavelmente), pois não tenho poder, não tenho costela “activista” e o meu único passatempo de garota é rir-me com as redundâncias, incongruências e artifícios políticos dos diferentes propagandistas (isto é, rir para não chorar).

    Leva-se uma vida inteira a compreender a sabedoria de Caeiro.

    Como a inteligência artificial é bom, e é o que está a dar (inteligência artificial é diferente de consciência artificial, tenham calma), e a propósito de tocas, perguntei ao ChatGPT o que era o “cloud seeding“. Até porque nesse dia olhei para o céu e lá vi rastos de caracóis em forma de nuvem (passou um avião, deu um pum e foi ao ar).

    a laptop computer sitting on top of a wooden table

    Foi no quintal de casa junto ao tanque de lavar roupa nos idos anos noventa (seriam os idos de Março?) que ouvi pela primeira vez um rabujar sobre “lá andam eles a dar cabo disto tudo, são eles que arranjam de mexer onde não devem” (quando é que clonaram a Dolly?). E foi a primeira vez que conheci outra entidade sobrenatural, normalmente plural, que se apresentava como um bando, uma praga de macacos voadores feitos engrenagens a girarem o planeta para onde alguém tinha decidido girar, e nós mareados cá em baixo, a sermos empurrados para onde nos levassem.

    O meu conhecimento não ia muito além das crónicas de encantar da Condessa de Ségur ou as tropelias de Os Cinco da Enid Blyton, mas imediatamente assumi, com instinto comovente, que “eles” eram por certo uma entidade vilânica, que deveria ser chamada à justiça, mas Deus dava nozes a quem não tinha dentes (e à medida que o Eça entrava na minha vida até percebi que com jeitinho “eles” não sabiam sequer o que eram).

    – Mas porque é que mais médicos não se insurgem contra o que se está a passar publicamente?

    – Eu quero trabalhar, minha querida!

    aerial photography of clouds

    Então, o ChatGPT munido do seu vasto conhecimento – pelo menos até há uns anos – e um acesso generalizado a fontes de conhecimento filtrado – o melhor possível segundo critérios de seus criadores –, explicou-me a tecnologia de cloud seeding, do enorme sucesso que a mesma tem garantido em criar pluviosidade em áreas conhecidas pela seca e seus benefícios em agricultura industrial e manipulação do clima.

    Fascinante… (os nossos amigos Emirados até têm um vídeo promocional sobre isso).

    De seguida perguntei se havia efeitos adversos desta tecnologia já medidos ou previstos e, de novo, esta novíssima entidade artificial explicou-me que sim, que havia ainda alguma polémica e vozes críticas, mas ainda nenhum consenso científico sobre se seria técnica nefasta ou não, pelo que certamente que, por agora, se podia empiricamente concluir que estava tudo bem. É só mais uma ferramenta (é um martelo, prega pregos, pregos pregam Pedro).

    O meu cérebro, analfabeto claro, fez logo uma ponte no penhasco (o atrevimento da garota) e perguntou ao robot o que eram então os chemtrails. E o robot rapidamente me apaziguou as ideias e respondeu que embora conseguisse ver o paralelo, a tecnologia de semear nuvens era uma técnica segura e legítima, enfim, uma ferramenta com vários fins para o bem-estar da Humanidade, enquanto a alegada tecnologia de chemtrails (nanopartículas e micropartículas que causam alterações climáticas e mais umas quantas coisas que um coelho me contou) era uma teoria de conspiração.

    white clouds and blue sky

    Até poderia ir à minha vida com esta resposta, até porque sempre desconfiei de coelhos impecavelmente vestidos. Mas que a história está manca está.

    De resto, se a terra girar ao contrário, de certeza que Oz nos informará sobre isso. Até lá, é comer até rebentar.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Reflexões a banhos e uma lavagem de cultura

    Reflexões a banhos e uma lavagem de cultura


    Rolar o dedo nas redes sociais é um privilégio, e também um alimento, que nos mostra muito. Tantos “alimentos” no feed que quase se assemelham, a certa altura, a uma pia de lavagem, e eu, porca, a fuçar naquilo tudo.

    (Preços que se pagam por deixar de consumir televisão e jornais.)

    Hoje, como quase sempre, lá aparece um gatinho.

    Mas este gatinho é testemunha das brigadas de salvamento de gatinhos. Aparece uma fotografia do bichano, coberto de lama e sujidades várias, ar doente, friorento e triste contra uma janela de carro e chuva lá fora.

    Foi resgatado. E na fotografia em baixo já aparece, seco, fofo, radiante e com ar de quem ronrona numa cama almofadada contra uma janela de uma casa com jardim e sol lá fora.

    Até aquece a alma.

    Pergunto-me quantas vezes o ser humano, aquele que salvou aquele gatinho, fez o mesmo por outro ser humano, nas mesmas condições.

    Trouxe-o da rua, lavou-o, tratou-o, deixou-o aquecido numa almofada a posar para a foto. A ilustração da humanidade a ser meiga com o seu semelhante, com a mesma intensidade generosa no acto de salvamento de animais indefesos, frágeis, vulneráveis e, regra geral, submissos ou garantidamente domináveis.

    Certamente que o deixa dormir aos pés da cama ou até dentro mesmo. (O bichano.)

    orange Persian cat sleeping

    Será que é o medo em jogo? Afinal de contas, há mais risco em salvar um animal selvagem, de grande porte, e pior ainda se tiver uma ideia de livre arbítrio e não achar muita graça a recolher obrigatório ou à esterilização forçada.

    Pior ainda se o dito animal selvagem, e de maior porte, se lembra de discordar de quem o salvou, se lhe ocorre ter um estilo de vida que comicha com o conforto físico ou até moral do bom samaritano.

    (E lá no Mediterrâneo mais um barco cheio de pessoas, que não são gatinhos, a afogarem-se no atrevimento de ansiar por uma almofada e um sol no jardim de fora da casa. Não têm na verdade uma única bandeira que dê para exibir fervorosamente, têm várias, ou de facto já nenhuma, visto que nenhuma bandeira quer saber de nós nem tampouco nos oferecem uma para nos embrulhar, a não ser para quem morre por um lunático gatarrão que surge seco, fofo, radiante e com ar de quem ronrona numa cama almofadada [e às vezes nem isso] ou para quem paga bilhete com brinde para a claque do desporto rei.)

    grayscale photo of man and woman holding their hands

    Mais um banho de redes sociais, e surgem outros gatinhos que alguns partilham afincadamente com as notícias que a propaganda do nosso eixo teima em esconder.

    Uma invasão de privacidade, que nos garante o vislumbre do íntimo das decisões dos últimos três anos.

    A ciência (e não a siênssiah) da verdade sobre as máscaras.

    A censura desvairada de tudo e todos os que não sigam o catequismo.

    Enfim. É escolher qual a lavagem.

    bench and dining table near body of water under calm sky

    Na falta de melhor, podemos sempre reler o 007 ou os clássicos infantis, lavados de ofensas a públicos sensíveis. O index de palavras proibidas já vai desde gordo (mas não magro) até a rapazes e raparigas (ah pois, para quem não saiba, neste momento, até o sexo biológico é tabu nos países das maravilhas, até porque todos sabem que a biologia é ciência non grata nesta década.)

    Enquanto isso, procurem comédia, que esta vida são dois dias e, acho eu, o Carnaval foi três.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Deram um dia…

    Deram um dia…


    Há uma enorme responsabilidade em falar de um dia, ainda mais se esse dia foi adoptado por grande parte do Mundo para lembrar uma luta (uma opressão), uma reivindicação (uma morte), enfim, pessoas.

    Quando milhares de operárias, algumas antes mesmo de terem sufrágio, começaram as suas marchas por mais respeito e iguais condições de trabalho, estas nossas bisavós não poderiam imaginar que hoje o dia 8 de Março era engolido por pequenos gestos vazios, uma rosa, um dizer de postal de cartão, uma campanha de marketing.

    persons hand with white manicure

    As nossas bisavós e avós que deixavam a saúde e a vida em chão de fábrica, em tinas industriais de lixívia, em suor, miséria e abuso sexual, não poderiam imaginar que hoje se poria em hipótese suprimir o feminino das palavras, anular o sexo biológico ou existir uma invasão dos espaços seguros das mulheres, desde a casa de banho pública ao acesso a uma bolsa universitária por mérito atlético.

    As nossas mães não poderiam sonhar que em nome da empatia com outros grupos oprimidos, haveria quem achasse legítimo rasurar a maternidade, rebaixar-nos à classificação de “portadoras de útero” ou “pessoas gestantes”.

    Os leitores de sensibilidade (existem, eu também não acreditava) têm estado a rever a matriz que nos educa e concluíram que a mulher já não deve ser protegida, defendida ou exaltada. Supostamente, a bem da igualdade.

    Então assim, na geração em que ainda falta tanto fazer, vemo-nos a braços (mulheres e homens) com mais uma agressão.

    Podemos enumerar as vítimas de violência doméstica, abusos de anos, escravatura, mortes violentas.

    woman in white top wearing eyeglasses

    Podemos enumerar as vítimas de violência obstétrica, mulheres que muitos profissionais de saúde ainda tratam como meros portais de passagem do bebé, (um buraco), corpos serrados a meio para deixar passar outro.

    Podemos enumerar as vítimas de abusos laborais, grávidas e mães que são despedidas por serem consideradas força de trabalho manca, mulheres que são escrutinadas e julgadas pela aparência, que são desconsideradas e assediadas.

    Pelos vistos é preciso ter sorte, dizem.

    Isso não é aqui, ouço também.

    Sabem o que é o “ponto do marido”?

    (É um buraco, é um buraco, é um buraco.)

    three woman holding each other and smiling while taking a photo

    Dia 8 de Março, eu faço uma pausa em silêncio pela luta das nossas bisavós, avós, mães. Mulheres, de onde todos nós viemos.

    Não somos iguais não. Nem tampouco superiores ou inferiores. Somos diferentes.

    Podia falar-vos de correntes feministas, evolução histórica dos diferentes grupos, diferentes lutas, tensões entre as mulheres afro americanas e as mulheres brancas nos Estados Unidos, a união de forças com os grupos LGB (houve quem lhe chamasse ameaça lavanda) e agora o aguar da definição de “mulher” pelo activismo trans.

    Podia até dar-vos uma opinião bem vincada sobre isso, tenho-a na devida medida, o cinzento está lá no meio do arco-íris, mas há um novo ataque às mulheres sim. E as nossas filhas estão de novo em risco porque cometemos erros. Porque pensamos que as conquistas estavam garantidas.

    Não estão.

    woman in blue denim button up jacket and blue denim jeans standing near brown wooden fence

    Se derem uma flor, não escolham a rosa.

    Se assinalarem o dia experimentem fazê-lo a reflectir sobre a diferença entre a mulher e o homem.

    Por isso é que há um dia internacional da mulher.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Crónica de duas Palestinas

    Crónica de duas Palestinas


    Ver a luz fatiada pelos rectângulos da janela a aquecer-me o lado esquerdo do corpo espevita a atenção para a forma como, com enorme facilidade, a moleza se instala em barriga cheia.

    Quero eu dizer, é fácil estar descontraído se o básico, e em nível bom, está suprido. Ainda mais, se acalma o frio, que mais precisamos?

    Amanhã? É longe.

    Hoje? Não é aqui.

    white window blinds on window

    Um e outro comboio descarrila em East Palestine, no Ohio (creio que não foram extraterrestres nem balões). Entretanto, uma Chernobyl deste século (como já lhe chamaram) instala-se na pátria dos neocons.

    Onde está a Greta?

    (E o impacto ambiental que os nossos amigos falcões causaram a sabotar o Nord Stream?)

    Então e a emergência?

    Devem acreditar que as máscaras os vão salvar disto também (não é, Luís Pedro Nunes?).

    Já na Palestina, que creio que todos conhecem, desde sempre, pois consta que mais que um messias de sandálias andou por lá (ó Cristo, vem cá baixo ver isto!), a vibração aumenta, o fogo tudo devora. Um genocídio, um apartheid e uma atrocidade inteira, enorme, incandescente.

    Mas, então, e as bandeiras?

    Onde está a angariação de donativos nas escolas?

    As carrinhas fretadas para ir acudir àquelas famílias?

    Jogos de xadrez que não vemos, ou de mikado que sentimos espetar-se nas costelas, em tamanho real, no tabuleiro do velho e do novo mundo, e sacas de serapilheira espalhadas no chão com mais morcões que batatas e aquele cheiro…

    Sabem? O cheiro da morte preguiçosa.

    Como pó fino branco que cai em tudo. E lembrem-se também de fazer as camas antes de deixarem um trolha sozinho em casa com ferramentas e uma missão aparentemente simples.

    Amanhã é longe. E hoje não é aqui.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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