É por nos ser conveniente seguir a rua principal (que não existe, não há rua principal, não há princípio) para chegar ao destino (para quem ainda o tenha), que viramos à esquerda, e não à direita (não é para mim).
É por nos ser conveniente calar em vez de falar (não cantar) para baixar a cabeça (para quem ainda a tenha), que seguimos a vida empurrados pela multidão (a formiga no carreiro?)
É por nos ser conveniente a conivência com o crime, com o pecado, com a imoralidade, com a falta de ética de invertebrados que tomaram conta dos edifícios, que não denunciamos (but not a snitch!), não nos pomos de pé e somos crescidinhos, adultos, rijos (isso é masculinidade tóxica? Mandem entrar os homens por favor!)
Um bufo.
Um delator.
Ou um whistleblower? (Precisam-se provas!)
Se eles, supostos líderes, tivessem espinha, acordavam de manhã com dor nas costas por aquilo que fazem por si próprios contra nós, com ou sem falcão.
Burgueses insuportavelmente viscosos, com cheiro de cremes por cima de plástico, animados por palhaços de calças de ganga com muita graça, muita graça mesmo, assim como senhoras bem compostas e bem apresentadas na mesinha brilhante da televisão. Que nojo.
E como se atrevem a não se envergonharem pelo nojo que nos metem? Cábulas! Doninhas que deslizam junto às paredes com a cuequinha húmida por poder ir dar um suposto passeio de uma suposta fortuna de bitcoin. Que nojo.
Influenciadores que se fotografaram com a máscara personalizada, olhem para mim que lindo, fui ver os gorilas na bruma, fiz mais um teste, portei-me bem, é preciso portar bem. Que nojo.
E pensam eles que a Madame Guilhotine não aparece ciclicamente na história para mudar o capítulo. Pensam eles que a cumplicidade com aquilo que é errado não tem dolo (é errado! É errado! Nem tudo pode ser relativo! Não podem eternamente escudarem-se na desculpa que não sabiam!)
Anjinhos que dividiram câmaras e juntas de freguesia (uma p’ra ti outra p’ra mim), e nós não sabemos dos senhores que vieram bater à porta para pagar a viagem da diáspora no dia do voto?! Não sabíamos que era errado?! Não comentamos entre dentes e finos e tremoços o nojo da corja que andava a acolchoar o “seu”?
– Ah mas vou aproveitar a viagem! (Não é para mim!)
Não sabemos como funcionam os corredores das academias, as palmadinhas nas costas, as simpatias, as guerras e rixas internas, as lutas por poder que nada constroem, nada trabalham?! Estão espantados com o desemprego jovem? A desorientação dos miúdos? A “fuga de cérebros”?! Pois, mas quantos estiveram a dar-lhes a mão? Quantos estão com dor de costas a segurar uma instituição por arames? Quantos estão sobrecarregados com o trabalho das alminhas que estão a governar o “seu”?
– Eu vou botar lá por ele! (Não é para mim!)
Que guardem lá o avental! Que se abotoem lá com as lombadas de palavras que não são deles! Virão uma vez mais os propagandistas do ministério da verdade gritar “negacionista”, “chalupa”, “o que fazer com eles?” Ninguém viu nada, agora foi tudo contra, o assalto aconteceu à porta do prédio e as persianas desceram sorrateiramente assim que a polícia chegou. Ninguém viu nada…
É por nos ser conveniente passar pelos pingos da chuva (não temos o chuço?) que seguimos pela rua principal para chegar mais depressa ao nosso destino e pousarmos a cabeça na almofada esta noite, dormir, na paz da falta de espinha.
É por nos ser conveniente que temos a máquina de lavar roupa e a máquina de lavar louça, esses triunfos que emanciparam as mulheres.
É por nos ser conveniente que despachamos o chato do arquitecto, que mais a mais é caro, e só faz bonecos, e mais a mais a realidade virtual agora até trata disso.
Conveniente.
Segui pela rua principal, para chegar mais depressa ao destino, e avistei ao longe. Havia neve naquele campo, em pleno Julho, em pequenos tufos espalhados por entre a relva alta. Um campo murado e cercado por uma rede alta onde ovelhas se passeavam preguiçosamente.
Ao aproximar-me vi que, afinal, a neve eram flores.
Conveniente.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Esta coisa do viver tem corpo mas também tem tempo. Como esse corpo que vestimos, e que esticamos a pele nos ossos, à medida que nos pomos de pé na vida, à medida que esse vestido fica solto, amarrotado e enrugado, onde antes existiam dobras, e a velhice se instala e nos aninha. A pele transforma-se em peles, todas as que vestimos, remendamos e engomamos ao longo do tempo.
Eventualmente, livres da pintura que pode esconder as brechas de terra seca que se abrem pela nossa cara, livres da roupagem que pode encobrir as manchas que povoam os nossos braços, livres para avistar os derrames que trepam pelas nossas pernas, vemos o tempo e não o corpo. Afinal, a quarta dimensão é visível e real, só que não conseguimos ver num momento só.
(E as curvas, as curvas onde alguém se pode aninhar em nós, onde nos podemos aninhar em alguém. Sento-me no teu colo e encaixo a cabeça na curva do teu pescoço e que descanso posso sentir, que alívio, que até o ar parece correr melhor dentro de nós se podemos repousar no carinho que um corpo encontra com outro corpo.)
A casa que nos embrulha não é diferente. Também se cansa, também se estraga e envelhece. Também decai e morre, também sofre abandono e entranha o cheiro das nossas peles nas paredes. (Será que fico a cheirar à minha casa?)
Tudo precisa de cuidado, de limpeza, de ternura, de um abraço. As coisas também. (As pessoas também.)
Mas os anos passam, e nós não vemos o tempo, a não ser quando ele já passou. Pensamos sempre que é cedo de mais ou tarde de mais. Pensamos sempre que há um ontem, um hoje e um amanhã, e que o hoje é já tão enorme que não dá para olhar para ontem ou imaginar o amanhã.
Não dá para falar mais baixo sem que os sussurros se infiltrem nas portas até enferrujarem as dobradiças que rangem, grasnam em cada vaivém. E não dá para falar mais alto sem que as vibrações sacudam as janelas e lá fora vejam que almas querem fugir a bater as asas e voar. (Longe, longe desta casa vou encontrar a minha casa.)
Cavar a terra para descobrir um projecto é como preparar o terreno para semear fruto desconhecido. Na verdade, não sabemos se estamos a pôr água de mais ou água de menos, não sabemos se quer sombra ou se quer luz. Só sabemos que, entre as ervas daninhas e o mundo a viver em volta, cada vez mais nos pavimentam os espaços vazios para que só passem as rodas, porque se passarem os pés sabemos que nos vamos queimar.
Da folha vazia passamos à folha amarrotada, no fim talvez cheguemos a um origami preciosamente podado, que levou tempo a mimar, aparar e amparar.
O mundo agora é feito de folhas amachucadas numa pressa. Amarfanhadas. Atiradas para o ar como quem tenta acertar no cesto dos papéis. Estas folhas sem desenho sempre existiram, espraiam-se pelas estevas desde sempre, agarradas o mais possível a ribeiros, que alimentavam campos, ou estão encavalitadas em buracos onde se conseguem enfiar nas cidades.
Mas estas folhas de ontem tinham uma coisa que as folhas de hoje não tinham: tempo. Tinham demorado tempo, tinham custado tempo, tinham durado no tempo, tinham materiais feitos com o tempo infindável da natureza que sempre existia e sempre existirá.
E isto, simplesmente isto, tinha uma dignidade que não conseguimos hoje ver nas placas pré-fabricadas empilhadas num armazém enorme, sujo de colas e venenos vários que nos apressamos em assemblar por cima da cabeça e respirar intensamente.
Então, agora passamos por muita construção. Muita mais do que alguma vez a minha avó viu. A terra já não entra dentro da cozinha de casa, o Estado (essa entidade sobrenatural) até já tanto construiu, e tantos de nós saíram das barracas.
Porque estais então tristes? Porque estais então cansados?
Posso ser eu a desenhar o espaço da curva do pescoço onde deveis repousar a cabeça e respirar de alívio?
Digam-lhes, não nos tirem as casas. Sejam elas como forem, não lhes chamem velhas nem tortas. Não nos digam que o nosso corpo polui o tempo, dêem-nos carinho, cuidado e limpeza. Criar demora, digam-lhes, aguardem.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Descobri por acaso a Simonetta Gatto, uma linda criatura nascida no Zimbabwe de pais italianos, nascida em movimento.
Com a Simonetta, que escolho mencionar hoje sem a avisar previamente, descobri, de uma forma doce e singela que Bolonha, a cidade que desenhou novos contornos no mundo académico nas últimas décadas, era a Manhattan da Idade Média, tendo sido alcunhada de “La Turrita” graças a um fantástico skyline de mais de 150 torres, 22 sobreviventes aos nossos dias.
Eram tantas, que o terreno até aluiu. Uma coisa que acontece quando muitos gigantes de egos bicudos se empilham demasiado próximo. Coisas de torres, portanto…
Outras coisas próprias de torres é servirem por exemplo para as treparmos, nem que seja com ideias mais revolucionárias. (Toca o sino!)
Foi o caso de Galileu que subiu uma das torres, ainda hoje viva, para cismar em atirar diferentes objectos de lá de cima e tecer as suas ideias sobre gravidade e velocidade terminal. Assim vemos que, por vezes, até torres que ameaçam a terra podem ter o seu uso no ar, nem que seja para atirar algo de lá de cima. Com diferentes formas, pesos, materiais, lá ia tudo caindo até cá baixo. (Experiências nocturnas claro, para não acertar em ninguém no cocuruto.)
– E como conseguia Galileu rigor científico nas suas experiências? – perguntei eu na minha mente, e Simonetta respondeu-me:
– Um pêndulo construído com toda a precisão, de um tempo que andava devagar, e um pequeno coro de Jesuítas entoando em uníssono um cronómetro musical. Não era perfeito, mas era perfeito para aquele tempo.
Assim se tentava refutar o princípio da equivalência de Aristóteles, que postulava que o mais pesado caíria mais depressa. Começou-se o trabalho. Mas só se concluiu parte dele em 2017.
Mesmo Einstein teorizou em fórmulas, mas não conseguiu verificar; teve de ser um pequeno satélite francês a concluir a experiência de Galileu em órbita (será que também tem coro de Jesuítas?), e assim se vê como a Ciência atravessa séculos para responder a uma singela pergunta, em que na verdade a maioria de nós nem entende o porquê de tal curiosidade.
Ambiciosos e visionários gigantes que dizem para onde devemos ir. Como devemos viver. Que ajardinam o mundo para nos estender a todos na relva (e enterrar). Especialistas em maquinar políticas em corredores escuros e sinistros, globalistas que tecem uma teia e berram ameaças. Se o mar nos engolir, se o sol nos incendiar, se os vírus nos devorarem… eles terão a solução: controlo.
A máscara, a vacina semestral, a moeda digital, o rastreamento do teu movimento, da tua alimentação, dos teus comportamentos. Da queda em velocidade terminal que os aguarda eles movem-se na fé de que se subirem alto o suficiente serão a ave de rapina que paira sobre nós ratinhos, de garras estendidas.
Já se viu em Bolonha, nas torres ou na uniformização do ensino superior disfarçada de liberdade de movimento e garantia de qualidade. Uniformização é a chave, esmagar a anomalia.
Porque este imperador (certamente uma teoria de conspiração) considera as anomalias um risco (para o topo das torres).
E o pêndulo construído com toda a precisão, de um tempo que anda depressa, que nos acerta nas costas e empurra-nos para a esquerda e para a direita. Pensamos nós, ratinhos, que existe diferença, enquanto as torres se empilham nos nossos ombros e nós como terra, aluímos.
Pobre do imperador, todo nu, não sabe ele na sua infinita arrogância, que nós que vivemos em tocas somos a massa que edifica este mundo. Nós que escavamos a terra e abrigamos as nossas crias experimentamos um amor que ele nunca conhecerá.
Nós, que vivemos com medo, quando na verdade temos o poder, nas nossas mãos e nos nossos pés descalços. Porque nós fazemos parte deste Mundo, e eles, lá em cima, vão ficar a pairar no silêncio infinito da nossa órbita.
No fim, todos caímos, à mesma velocidade.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Gotas de chuva como pingos de mel dourado, caem em raios de luz, e eu juro que o céu, ao descer de Trancoso, indeciso entre a Primavera e o Verão no crepúsculo do fim do meu dia, parece desabar-se em cascatas de algodão, incandescente, que fazem até acreditar no divino, ou em galopadas furiosas de quadrigas romanas pertencentes a uma classe superior de seres – se olhar cá para baixo, podem, num respingo, alumiar ou ensombrar tudo o que nos sustém.
O carro mantém a rota a serpentear por asfalto, agora lambido por um rio de ouro líquido, fino, singelo.
Penso talvez que, assim, as cerejas ganharam viço, mas e ai que boas que estavam – e que importam os bonecos a papaguear nos ecrãs que o fim está próximo, alterações e climáticas e patati patatá!
Calem-se diacho!
Já todos entendemos que querem é fechar o país, porque vem aí o calor, e temos todos que fingir que os incêndios não são um negócio, e isto há já décadas.
Agora, aquilo que está a dar é fingir ser tudo pelo nosso bem (patati!), pedir licença de porte de isqueiro para não chegar fogo à mata e não fumar para não chegar fogo aos pulmões (patatá!), que isto de viver num estado totalitário será coisa a estranhar devagarinho e depois entranhamos, que remédio!
Mas as gotas de chuva como mel continuam a correr, quando tem de mesmo de ser, e sinto-as como quem atravessa uma tempestade de cometas rasgando o dia… Ou a noite.
Tenho saudades de Arraiolos. Tenho de ir derreter ossos nortenhos por lá, até porque já fazem falta as migas. Vou pela estrada fora, e continuarei a seguir até lá, é sensato procurar o calor, ao contrário do que me diz a televisão, que cresceu, duplicou e alastrou pela parede da sala, que nem bolor negro, tóxico, intrusivo…
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
A luz azulada, emanada do computador, recorta o perfil gentil daquela mulher contra o meu olhar ensonado.
Um perfil doce de mãe, cansada, que, cuidando do bebé numa enfermaria, neste quarto piso de hospital, se apoquenta em terminar trabalho, para aquela empresa na segunda-feira não sentir a sua falta.
Um semi-sorriso, meigo, o olhar, concentrado, o cabelo, amarrado, no topo do fato, de treino, as esquinas, das omoplatas, a revelarem-se, na camisola, e curvada, num ninho, o adormece, num sussurro, baixo.
Deu-me bolachas, um iogurte, uma maçã, uma t-shirt limpa e o tal sorriso, meigo, de mãe, mãe de toda a gente, tudo, tudo doce.
Eu, olhem, sabem… Dei-lhe palavras, que tenho muitas, e ela lá ia mordiscando todas, pacientemente; às vezes lá lhe sacava o riso aberto, e sentia-me finalmente a retribuir a atenção silenciosa que ela me dispensava, com elegância.
Ouvem-se pi, pi, pi, e choros, coisas que caem noutros pisos, tosses, mais choros, o burburinho das máquinas, e cadeiras e mesas, que parecem vaguear sozinhas pelo edifício. Os cadeirões, repousos de mãe, descansando ossos, grasnam loucamente para se abrirem, e cada uma, de nós, hesita em sequer deitá-lo (deita-te) pi, pi, pi.
A medo passa, mais uma noite, e pergunta-se, a medo, a uma enfermeira de olhar enervado, se temos direito a pequeno almoço.
– Não! E não o vai deitar agora que ele começa a chorar e depois não me vai ouvir a explicar! (deita-te).
Já sem medo, perguntamos se temos direito às visitas, para poder aproveitar a avó a chegar, e pudermos assim acorrer, a correr, à casa de banho, numa outra paz de espírito.
– Não! E só pode o pai e a mãe ou outro acompanhante designado. Na obstetrícia decidiu-se fazer assim, e por isso já sei que ontem era diferente, mas hoje é assim, porque houve uma reunião e a pediatria não vai fazer diferente e tem de compreender que as visitas só vêm desestabilizar o serviço (deita-te).
Aqui, aprendemos gestos, formas, de deslizar, truques, para imobilizar, um pequenino, mentiras que repetimos, sem cessar, para que acreditem, que vai passar, que a dor é precisa (deita-te).
Uma mãe montou ninho, naquele quarto, cinco sacas, tamanho jumbo, almofadas, jogos, livros, cartas, comida, comida, comida, roupa (deita-te), e o pai, sem entender tanta daquela coisa (deita-te).
Mas a mãe monta este ninho, para o seu passarinho, põe a alma no bolso, entra pela porta, para compor as penas, em desalinho, dele (deita-te, deita-te, deita-te).
Movem-se tristezas, nos corredores, e nem sou digna de observar, estas lindas almas. Que doces são.
Aquele menino, crachá de médico e estetoscópio ao pescoço. Já possui privilégios, acesso às áreas reservadas, domina já rodapés e circuitos.
Batas azuis, brancas batas, um rapaz bonito encosta-se ao contentor do lixo, preto, companhia de elevador. Observo: curioso como me habituei já a evitar tocar nos contentores, e agora sou passageira de uma relação íntima que não me lembro muitas vezes que existe.
Monstros mortos de pé: é o que os hospitais, os nossos, são.
– Você tem de entender que as refeições são um serviço à parte, e não somos nós responsáveis pela organização.
Eu entendo tudo. Eu quero é sair daqui. Só me custa não poder levar estas mães comigo, e as crias delas e os ninhos também.
A vigília permanente, recortada, a luz azul, e ainda há quem queira proibir, ou deseje obsolescer, a palavra “mãe”.
Noite dentro, aqui todas as janelas são quadrados, polígonos luminosos, mantendo-nos alertas ao mundo, lá fora, na rua, na estrada, num movimento sem importância.
Noite dentro, todos os quadrados estão enviesados, nascem losangos, e trapézios.
Monstros, mortos de pé, com formigueiros, a tentar manter de pé, e a circular pelos circuitos, enquanto empurram contentores deslocando ar pastoso por vários canais. Lixívia, máquinas (pi pi pi), mopas, tabuleiros, sopa, sem sabor, onde os legumes morreram há largas horas, pão de dias (dias maus, maioritariamente), olhares pálidos, cansados, de acompanhantes resignados, pavimentos descartáveis, vinílicos (sabem o efeito dos vinílicos na saúde?), e poliéster (voltem as mantas de lã, por favor: mas porque deixaram as formigas de ter respeito pelo que é natural, como nós?)
Assim é, quadrados com viés, a bandeirinha da república, na entrada do bloco, a recepção renovada, a ripado de carvalho, para ter cara lavada. E os órgãos, em sepsis, escondidos atrás das paredes…
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Balindo, as ovelhas aproximaram-se do muro. Que inopinado! Para ruminantes fofos pareciam estranhamente seguros de que eu não seria uma ameaça. Seria por conviverem com flores que parecem neve ou talvez me pedissem que as libertasse da sua cerca, ares dos tempos, presas sem predadores.
Não lhes toquei. Sinceramente, ocorreu-me que poderia ser mordida. Sabe-se lá o que pode fazer uma ovelha reclusa a quem caminha do lado de fora. Melhor manter distância segura, do lado de cá do muro (mais conveniente).
Ainda faltavam largos passos para chegar ao meu destino (em princípio) e contemplei pelo caminho outras tribos urbanas deslocadas do cheiro a cimento e rebarba de metal das obras que nos cercavam. Gatos tinhosos que se digladiavam junto a embalagens de comida em múltiplas pilhas de gordura junto a um silvado de uma casa devoluta, apaparicados por duas senhoras que lhes estimavam a dieta em afincada penitência humanitária. Três voluntários na mata mais distante que ceifavam furiosamente a vida de flora dita “invasora”, plantas que sempre achei inofensivas mas, esclareceram-me, seriam uma praga não autóctone que punha em causa a sobrevivência de espécies indígenas.
Que estranho, estranho mundo que nós vivemos.
Que inconveniente. Espécies mais oportunistas e eficientes em lutar pela vida, a comprometerem a segurança de outras. Há que ceifá-las pois! (É?)
Orgulhosamente sós, os indígenas da Sentinela do Norte também acham conveniente repudiar o mundo inteiro da sua casa. E o mundo lá vai tentando respeitar isso, até porque cada tentativa normalmente acaba numa escaramuça de arco e flecha.
Os Sentinelas existem, nós – o mundo – sabemos que eles existem. Não sabemos que língua falam, quantos são, como se organizam entre eles, que crenças e fés alimentam – se é que alimentam algumas – sabemos apenas que estão ali, de sentinela em pleno Índico, sabemos que não somos bem vindos de barco, de avião, de helicóptero, a nado. Podemos levar prendas, podemos levar “a palavra”, não fomos convidados a entrar e não têm eles qualquer intenção de sair.
Podemos pairar por perto em mar alto. É possível que os vejamos a começar a preparar pequenos barcos para virem ter connosco e nos demonstrarem o que pensam sobre espécies invasoras.
O mundo, para os Sentinelas, não existe, ou não importa que exista. É uma inconveniência que não augura nada de bom e não é tolerada. Será, porventura, um notável exemplo de seres humanos sem curiosidade. Ou então uma pobre tribo oprimida em que jovens ambiciosos se vêem amarrados por anciãos medrosos. Ou talvez até, esteja ali, por entre prendas e subornos do passado, um segredo, um tesouro de magia que não sabemos que existe, o que contém, que fonte da juventude se esconde e os alimenta candidamente para lhes suportar a vida rodeada de mar, preciosa e incólume.
A Índia assegurou na lei que não os devemos incomodar. Que se o fizermos nem mesmo os nossos ossos serão recuperados, ficaremos lá, sim, para sempre (que inconveniente!)
A cada passo, dois vocalistas de pregões divergentes ralham um com o outro, vagarosamente, as suas palavras saem com mais velocidade do que o seu caminhar, pernas sincopadas a empurrar o caminho de ambos como se carris invisíveis os conduzissem para uma cave escura onde vão ficar a falar sozinhos (não os sobrevoem).
– Isto o que faz falta é mais controlo!
– Não! Não! O que faz falta é menos! Nenhum controlo permite o crescimento!
E eles sorriram ao juiz, com uma disposição solarenga
Porque não tinham a cura mas certamente precisavam do dinheiro
Ao vislumbrar o meu destino vi flores roxas sacudidas pela brisa junto à estrada. Mas ao aproximar-me descobri que era lixo.
Inconveniente.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Ser o filho do meio de uma sucessão de guerras culturais tem destas coisas. Um karma, talvez, de saber que o irmão mais velho já cá estava e já outro mundo viu, e de reconhecer que o irmão mais novo precisa das atenções especiais de quem ainda não controla o corpo e a mente (e eu controlo?).
Do fim do século, que já não voltará, ficou o gosto do metal. Doce, áspero. Como se a cada quilómetro de auto-estrada e cheiro quente do asfalto a pressionar o peito tivéssemos a certeza que íamos lambendo postes de alta tensão na busca de um gelado Perna de Pau em cada estação de serviço. Era o progresso que sabia assim: a veneno que o nosso corpo destilava com a facilidade de quem se julga imortal (e imoral).
Estamos todos numa bolha, cada um de nós; uma bolha fechada de paranoias e gosto metálico. (E que medo se rebenta a bolha!)
Carpetes estendidas a acumular o cheiro da pele morta dos outros, feltro vermelho a fingir-se de luxo aristocrata quando as cabeças já rolaram na guilhotina, saltos altos com espigões agressivos a marcar os passos de ídolos anoréticos (e as drogas a fazerem girar o planeta), carnes obesas a rodopiar e a atrair a si o campo gravitacional da queda de uma civilização. Palhaços que de cara borratada avançam de gatas, loucos, desvairados, os únicos que com lucidez inata ilustram o esboroar das ilusões.
Comboios que passam rápidos debaixo de varandas onde uma senhora estende roupa abnegadamente num espaço exíguo, vertiginoso (não tenho mais molas), salta! E a espuma de um dia que se empurra devagar enquanto outros correm, correm, correm.
Crianças nascem como brechas de luz nestas cloacas e velhos definham em silêncio e solidão entre paredes quadradas de alvenaria, tijolo vermelho (carpetes e sangue), ossos que quebram como giz (gesso nas paredes que mancha, ressoa, o bolor a trepar até ao tecto).
A geração dos eternos adolescentes, filhos de sacrifícios humanos movidos a anfetaminas (e a guerra senhores!), comem, comem, comem tudo e não deixam nada. Sinalizam virtudes, mão no peito (canta o hino), mão no peito (diz amen), mão no peito (declama ciência), mão no peito (não ao nuclear!), mão no peito (vai de bicicleta), mão no peito (e segura o coração para que não saia a fugir, que o frágil órgão não aguenta mais inflamações de mentes que não se encontram e vermes que entram pelos ouvidos e nos dão dores de dentes).
Demasiado?
A cada música ouvimos um apelo e sentimos o gosto do ferro na terra. Viajamos. Construímo-nos em cima do que já está feito. Pré-fabricados e opiniões. Opiniões pré-fabricadas e a luz que tremeluz da televisão, do ecrã, de mais um aparelho, pequenino, médio, grande, enorme, ligado por USB às nossas vias respiratórias (compra, compra, compra).
Podemos deixar as coisas abrandarem? Se somos nós que corremos, dizem os entendidos que não se pode assim dizer, do pé para a mão, que o planeta tenha desatado a mexer-se mais depressa.
Se somos nós, como quando fechamos os olhos para dormir, que desligamos a existência e flutuamos em planos de sabores mais meigos, podemos deixar as coisas abrandarem.
Podemos ser o russo. Podemos ser o ucraniano. Podemos ser o inglês e o americano.
Podemos ser o italiano, o espanhol e o português.
E nada que as torres de alta tensão metálica e doce, ásperas e pesadas, nada que turbinas velozes a rasgar o vento para baterem com a tua mão no peito, nada do que elas te dizem, para que corras, é verdade.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Dir-me-ás um dia que te lembras das caras em metades, como fases da lua em quarto minguante.
Não chores. Já são onze horas e já se ouve o ruído do silêncio. Como folhas de papel que roçagam umas nas outras a embalar o teu olhar que se semicerra.
Não chores. Sabes que naquele livro azul a minha mãe falou-me dos esquimós? Eu arregalava os olhos para ver melhor, na penumbra do quarto, a neve a cair e a luz céu que emanava de dentro do iglu. O ajuntamento de vários esquimós que preparavam a demanda para ir à caça.
Dorme. Como eu quando deitava a cabeça na almofada, com força, com o entusiasmo de querer saber como ia correr a caçada. E com a cabeça encostada contra a almofada ouvia,
fesh… fesh… fesh…
compassado, um ritmo suave sempre
fesh… fesh… fesh…
e via os esquimós afastarem-se na neve, e eram as suas passadas!
fesh… fesh… fesh…
a pressão das botas de pele e pêlo contra os cristais de gelo…
fesh… fesh… fesh…
a afastarem-se na neve até os perder de vista. Até ficarem brancos como tudo era branco, até adormecer.
Afinal era o meu coração a bater. Mas eu acreditava que era o som das passadas de esquimós na neve.
Nunca ouvi o mar num búzio, mas ainda hoje ouço passos de esquimó na almofada, a aquecer o coração.
Se te ponho em lume brando tantas vezes é para poderes ouvir o mar ou passos de esquimós na neve.
De qualquer modo são estas crianças que me tornam os dias maiores. A viver no ritmo delas, o dia estende-se inexplicavelmente.
Sinto o seu aborrecimento a torná-los líquidos, esparramados no chão, sem força nas pernas para tanta vida de uma só vez. São um copo de leite, o doce velho de uma pêra semi-roída ferida e a morrer na mesa, dormir sestas para que os sonhos invadam os dias também.
Se te mantenho em lume brando é porque já vejo a miúda a borbulhar, quase a vir por fora, gestos que tínhamos as duas, só nossos, e já não são de ninguém. Agora acho sempre que se lhe estendo a mão me queima. Escaldada continuo, mas dói e estala a pele. À falta de mais pergunto o que comeu. O que comi? Mãe, estás sempre a perguntar-me o que comi! Come fruta… Eu sei, ainda hoje comi uma pêra!
Mau!
Insistes com essas coisas e eu bem me lembro do som da tesoura na cozinha, a
cortar-me os caracóis,
fesh! fesh! fesh!
Eu chorava, mãe, não me cortes os caracóis! Eu quero ter caracóis!
“Vai lá fora ao quintal que tens muitos.”
Se calhar vivemos todos esses momentos em frigoríficos. Numa paisagem de memórias petrificadas, polidas pelo vento gélido num assobio. E os esquimós a caminharem por entre a embalagem de ovos e o passeio ao jardim zoológico. Em saltos vislumbro o macaco que me agarrou os colarinhos para roubar os amendoins. O meu pai a salvar-me.
Devagarinho o pânico esgueira-se para dentro de mim. O céu avermelha-se de nuvens nocturnas e reflexos de lâmpadas.
Aguentar de novo a pesca de moedas nas almofadas do sofá, suster a respiração, vamos lá outra vez. Espiralar sonos em anúncios de concursos da nossa infância, a bota Botilde e um hospital em ruínas, cadáveres a passearem-se em rodapé. Almas penadas que ninguém quer ver, assombrações em que ninguém quer pensar. Está tudo normal, está tudo normal, está tudo normal.
Devagarinho o pânico instala-se dentro de mim. Estende as pernas no sofá da minha sala e come amendoins. Não chores, eu lembro-me de tudo quando olho para ti e continuo. A pele estala e continuo.
Mãe, que saudades que tenho tuas. Andamos todos mortos a brincar às ausências.
E que mal que me saio a proteger a inocência deles. Porque não sei se devo fazê-lo.
Devo? Como fingir que as andorinhas vão continuar a regressar na Primavera, se o céu se avermelha por nos ver a regressar dos mortos?
Um dia prometo que me rio disto. Não me rio mas sorrio. Pequenino.
Basta mantermo-nos frios, a caminhar na neve de cabeça baixa sem esquecer que leva tempo chegar ao fim. Sentir o conforto do carapuço. Quentinho.
Não chores. Sabes que nascem malmequeres nos telhados se lhes deres tempo suficiente?
—
Transformas-te em mim, longe, mas em mim.
Até a tua carne estala da mesma maneira e eu aqui, sem sentir o ar à tua volta há demasiado tempo. Já me falham as ironias porque escorrego em saudade. Saudade de coisas que realmente nem chegaram a ocorrer, troco versos em diálogos com a árvore podada. Ninguém a deixa crescer porque ainda deita a casa abaixo, e que deite ou que a levante que eu quero esticar os braços e espreguiçar-me com ela há tanto tempo. Em vez disso mais uma raiz que me puxa e me tolhe. Mas tão límpidos que ainda são os teus olhos mãe, azuis como o livro que lhe dei a provar, fixos, a desconfiar. Remóis, já me tiraram aquilo tudo do sítio. Não tiramos, reformulamos.
Quem me dera o meu rico filho, mas somos espelhos umas das outras, a cismar baixinho se isto é o melhor que podemos. Se já retribuímos. O coração aperta, porque nunca pára. Se somos “mãe” agora vais ver, vais ser mãe de toda a gente e nunca acaba.
E continua aquele corpo a encolher-se, ali deitado. A flor murcha continua a ser flor, mas vive uma luta, todos os dias, a manter o cheiro da morte longe daqui.
Abrir as janelas para deixar a morte sair. Que trabalho ingrato, espantar a noite todos os dias para fora de casa e ninguém vê nada. Oh mas aqueles sorrisos do meu rico menino… E não pára.
Ontem olhaste para mim enquanto te punha uma colher de sopa na boca. Quase ouvi o teu pensamento. Quem nos dera não estar aqui mas estando. Passamos a vida a fechar a porta a ladrões, burlões, podadores e vendedores porta a porta.
Agora temos de fechar a porta ao ar também, suster a respiração e chorar a ver as árvores irem abaixo, fruta que já não nos vão dar. Porque é que eles não gostam de árvores? Eram da minha avó, foram mimadas e eram doces como o carinho que ela me dava. Tu a falhares-me e ela a rir, uma gargalhada grande de vez em quando, maior que o mundo. Ou o sorriso pequenino e tu escondida debaixo das cobertas…
“Eu vou morrer meus filhos!”
Sim mãe, vamos todos e ainda nem morremos o suficiente. Ainda podemos perder mais uns bocados dentro deste frigorífico. Pode ser que alguém abra a porta e veja esquimós ao longe, por entre o fiambre e aquele cheiro de carne e iogurtes.
Hoje dou-te mais uma colher de sopa, é sempre uma de cada vez todos os dias, manter-te viva tornou-se a minha razão de ser. Não deixo que deitem abaixo esta árvore. Porque é que eles não gostam de árvores? Dizem que tapam as vistas e fazem lixo. Não sei para onde querem olhar. Não há nada para ver ali quando deixa de estar a árvore na frente, mas enquanto ela está eu posso ver as andorinhas a regressar e a gata velha cá em baixo a murmurar. A ralhar baixinho que quer voar.
Até fica a parecer nova, orelhitas afiladas para os chilreios.
O teu corpo está tão pesado. Ainda bem, que assim sei que ainda queres estar viva, manténs-te pesada para não flutuares como uma folha para o céu, agarras-te com força ao chão e olhas para nós muito determinada, a desconfiar. Não vais morrer, porque não queres, vais ficar aqui porque te enfurece o anoitecer. Até te vejo de novo a levantares-te e a acender as luzes todas, que lá por seres velha não vais deixar que te pisem, nem que chores enraiveces-te igual e salvas pelo menos uma árvore, gritas por socorro até que alguém te acuda.
Mexi nas tuas cartas de amor hoje de manhã. Tantas que tens, tantas vidas que viveste em pequenos papéis sujos. Algumas estão escritas a lápis e mesmo assim não esbateram, mais de setenta anos depois. Com que força terão sido escritas para que hoje ainda as consiga ler. Acho que agora merecem resposta, ou pelo menos serem devolvidas. Vou pô-las no correio e ver se chegam a outra pessoa.
Cuidar-te até eu própria desvanecer, escreveria na carta. “Cuido-a para que esta carta se mantenha com a outra margem, para ter onde aportar e não ficar suspensa no vazio, a flutuar na imensidão fria. A cidade vazia e a neve a esgueirar-se por sobre os telhados. Os malmequeres a vergarem e o gelo a escorrer das pedras.”
Nas cómodas amontam-se os retratos, os teus, os nossos, os desenhados, pintados e retocados para embelezar a memória daquilo que lembramos enquanto existimos. Temos de saber que um dia só sobrará isso e ninguém para legendar aquela vida.
A nossa cidade está vazia, as sombras das pontes na água já não estremecem mais.
Até o rio parou e ouve-se apenas o vento a sussurrar tímido. Até a brisa vacila porque se lembra de nós. As gaivotas gritam porque têm saudades nossas.
Filha.
Basta um de nós faltar que acredita que o vento o saberá.
—
Tenho de começar outro dia enquanto finalmente dormes.
Levanto-me devagarinho para parecer que o meu calor se mantém contigo e estico as pernas para o gelo do quarto. Saio pelos furos da persiana para que não notes a deslocação de ar.
Corro em bicos de pés a cozinhar os cheiros da manhã, escancaro janelas em casa para sacudir as mortes lá para fora.
Metade do que faço é feito em surdina enquanto dormes.
A outra metade é viver em insónia para te apanhar acordado a sorrir.
Onde o sol não me chega acendo luzes que se vão fundindo, em corredores frios e embolorados, a água escorre e que vontade me dá de deitar paredes abaixo!
Ouço rádio na esperança de não saltarem os fantasmas pelos furos das colunas.
Está tudo normal porque agora é assim mesmo.
Enquanto o café negro gira debaixo do meu queixo a fumegar contemplo vidas passadas.
O que mais sobra?
Se tento vaguear por caçadas futuras sinto o pânico a espreguiçar-se em frente a mim e, com medo, só penso em esconder-me debaixo das cobertas.
Quando era pequenina a minha avó cobria-me com muitas cobertas. Tantas que quase me esmagava debaixo da cama. Sentia-me a ervilha no conto da princesa e pensava que me contavam histórias todas ao contrário. Arreliava-me que só falassem da princesa com ar maniento e a ervilha ali espremida entre colchões a asfixiar.
Foi só uma sesta assim. Fingi que dormi mas mantive-me acordada para não correr o risco de me expirar. Não me obrigaram mais a dormir de tarde.
Adoço o café e tinjo-o com leite para que não me queime por dentro.
Por uma fresta de luz do dia somam-se pára-raios a abanar. Carcaças de um tempo que já não existe. Andamos todos a arrastar esqueletos.
Chegas também tu.
Despes-te por completo em frente à porta e embrulhas as roupas numa saca. Entras com um sorriso em bicos de pés, cada dedo uma pancada…
pum, pum, pum…
Até ao chuveiro a saltitar como se o chão ardesse.
Amor da minha vida, sabes tudo o que se revolve cá dentro? Todas as saudades, todas as ausências, todos os futuros a gelarem em flocos suspensos no ar.
Se pesas a caminhar é porque queres estar vivo, ainda bem, teimas em agarrar-te ao chão para que o vento não te leve também.
Pousam passarinhos nos pára-raios e o metal a dar, a dar.
Se não fizer barulho a caminhar será que já fui com o vento como uma folha? Se continuar a tactear no escuro para chegar ao teu berço e te ver a esfregar os olhos será que passo a existir quando me vês?
Sorris e embeveço-me a contemplar-te.
Escorro-me entre a cortina, abro a persiana, deslizo a janela.
Sabes que a partir de agora andamos de meia em meia estação, sem saber se temos frio ou calor, como fases da lua em quarto crescente.
Vamos voltar ao início mas um bocadinho pior.
Não chores. Já são onze horas e já se ouve muito ruído na rua. Vejo lá fora passos apressados de roda da farmácia, embarram cotovelos e saltitam para trás com medo do ar, hesitam e chegam-se de novo, corpos baralhados com o frio da neve.
Ao longe avisto os esquimós a regressar.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Sempre vi como um ritual, pois a pessoa chega, senta-se no café do costume, pede a mirita do costume, o carioca do costume, e vira as páginas do jornal do costume, até varrer o obituário, diligentemente, em busca de amigos, conhecidos, relativos de relativos.
Cara a cara, esbatida a negro com breves palavras de despedida, os que se vão embora recebem talvez a única menção da sua vida num jornal, sendo arquivados minuciosamente por pessoas que varrem o cemitério de papel.
– Olhe! A minha rua tem sido uma razia! Mais um!
Sempre se morreu, dizem, sempre se morreu assim, clamam. Estranho pensamento de quem voluntariamente se fechou numa gaiola para que não morresse ninguém.
– Outra vez? Sempre a mesma conversa, a mesma conversa! Já acabou! Já passou!
Acabou para eles no obituário é certo. Arrumamos as memórias algures na nossa mente, envoltas em aroma de manteiga quente e camomila que elegantemente se esfuma acima da chávena.
Não é mórbido, sabem? É ritual de beleza na verdade. Seguimos atrás da morte a ver quem vem de seguida, a ver o nosso lugar na fila e quem na nossa frente se atreve a tocar-lhe nos ombros para que se volte para si, silenciosamente, o manto negro a adormecer os olhos, mas apenas os olhos (se morrer, ainda fico aqui?) rezando para que não toque os nossos e quem deveria estar atrás de nós (os nossos), julgando a justiça e a tristeza de quem se vai (o sol foi embora, mãe?).
E no caminho mais próximo do fim rezamos todos (os nossos).
A perda.
(As flores estão a fechar, mãe?)
Quem respira o mundo em golfadas faz por aguentar os embates. Troca duas palavras sobre quem se fina, marca presença no velório de quem quer dever o respeito, comparece ao funeral de quem chorará.
– Eh pá já não nos víamos há quinze anos!
Quem respira o mundo devagar, como quem o mastiga pousadamente, corre com um dedo o obituário, arrastando o negro pela página abaixo, guardadores de memórias e de todos os nomes.
Quem fica, quem vai.
Os filhos da madrugada e seus herdeiros a pairar em círculos sobre searas esquecidas e albufeiras sujas. Parecem nem querer saber, não contam as caras das lápides, não contam as moedas para o molete.
Sabem, disse-se por aí, que na verdade temos três saudades.
Jorge Dias foi o autor que tal me ensinou. Temos a saudade que herdamos dos celtas: lírica, sonhadora, ligada à natureza (Caeiro, estás aí?); temos a saudade do estilo germânico: empreendedora, fáustica, numa ânsia por novos mundos e conquistas; por fim, enfim, a saudade do estilo oriental: um ensimesmar mórbido de glória que já passou.
É nisto que estamos, não é? A carpir-nos a nós próprios, sem herdeiros para um obituário de vivos.
Mãe, sabes o que é microquimerismo? Significa que fiquei dentro de ti, mesmo depois de sair. Assim ficamos de onde saímos, e onde saem pessoas que nos deixam cá ficar.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Dei por mim a pensar onde andarão os dias de festejo. Aqueles dias de fim de guerra, em que tudo sai para a rua numa explosão de alívio. Aquela celebração de vitória, porra, finalmente o rio desaguou! Mas, pelos vistos, já não se festeja fim de guerra, já não existe o momento de catarse, se calhar nunca existiu (também era propaganda?)
E até porque pessoas de vidro quebram com facilidade, basta um ventinho, e caem, uma ventania, e voam desamparadas (e tu que sonhas que voas), um encontrão, e estilhaçam. Se calhar, talvez seja melhor não sacudir muito o mundo com festejos. A ver bem, já aprendemos que não há fim à vista. Essa ingenuidade finou-se com os nossos avós e em silêncio, as guerras estão sempre aqui, ali, em todo o lado.
Somos gente de vidro que segue de cabeça baixa, pois quem a levanta arrisca a uma nicada nas esquinas dos cotovelos. Ninguém quer estar a olhar para ver os gigantes de ferro a levantarem-se por toda a parte. Postes, antenas, sistemas reticulados em módulos de treliças cinzentas e ásperas à alma (será o metal macio?), tudo o que é deles levantado de cabeça no ar que nem totens infernais, chifrudos armados em discretas árvores a passar cabos de gigante em gigante numa opressão total, permanente, enorme.
É a modernidade, não queres ter rede em casa? Não queres acender a luz de noite? Não queres tudo isto que temos para te dar e para andares mais depressa? (Gente de vidro não pode andar depressa, porque parte!)
Estamos todos traumatizados. Os gigantes de ferro tomaram conta do mundo, e caminham a passos largos pelos nossos quintais. Anunciam e berram zumbidos de alta tensão (não faz mal à saúde, não?), rasgam o vento com turbinas majestosas ou deitam pestanas de painéis solares a decapitarem árvores ainda jovens (tão jovens), a modernidade e tudo o que precisamos para alimentar este vício de estar acordado (é segura e eficaz, não?)
E há quem tenha medo da inteligência que é artificial. Viram-nos a abrir caixas na rua e a ligar computadores? (É inofensivo, não?) A treparem postes e a mexericarem afincadamente naqueles fios todos (os fios de Ariadne)?
E têm medo de um robot porque pensam, as pessoas de vidro, que os robots ainda estão longe, no éter. Não estão, já andam e são gigantes. Feitos de ferro agarrados aos nossos ombros de vidro.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.