Etiqueta: Arquitectura dos Sentidos

  • Primeiro, tudo

    Primeiro, tudo

    Primeiro, acordar claro. Ou adormecer, dependendo de quando nos assalta, em vagas, em assombros, ondas de uma aflição inexplicável que nos corta o ar (e corta ao meio), punho firme que nos agarra e segura violentamente pela cavidade torácica.

    Uma explosão, um disparo, paredes a esburacar e a poeira, a poeira, a poeira, a misturar-se com o nosso suor e uma lágrima confusa (doeu), a guerra, a guerra, a guerra (tantas guerras).

    Alguém fez a pergunta: porquê tantos homens em idade e corpo de soldados, ali a arrochar nas costas do Mediterrâneo? Exauridos (os homens fugindo da guerra, a guerra fugindo dos homens), e as mulheres que carregam filhos nos braços e rasgam os joelhos na fuga?

    Exploded House in Borodyanka

    Ver é um exercício. Tomamos como certo que nos é dado, pronto, sem necessidade de aperfeiçoamento ou silêncio.

    Ver.

    Primeiro, tudo.

    Conhecer o corpo ao nosso lado, deixar que um coração ouça o outro a bater. Cheiros, gestos, respirações e a alma dos intestinos a regurgitar medos. Conhecer a casa da alma, desenhar os contornos de memória e saber onde vive cada espaço. Que cor tem cada sala.

    E ouvir. Saber que tonalidade de acorde segura as notas atrás das paredes (edifica-me, eu sou música e tu não sabes ler pautas) que tormenta, tormenta, tormenta… (e o punho firme a trepar a pescoço).

    Voltamos aos ângulos mortos, mais uma urgência.

    A diferença entre torres (colmeias) de casinhas empilhadas e as almas ali, todas encaixotadas como no cemitério, confusas de tantos corações a bater, tantos corações a gritar, tanto ar a quitar-se (urgência) e as casas deitadas a repousar ossos cansados na terra, a descarregar na fornalha nuclear do mundo, os mundos todos que nos habitam, povoam, infernizam (dorme, vai a casa e dorme, não passes só por lá, toca alguém no caminho, não vivas sozinho).

    Grayscale Photography of Chainmails and Helmets on Ground

    Não tenho opiniões. Talvez tenha lamentos. Desculpem, não tenho, já chega de opiniões. Passaram a ser tantas, tantas, tantas (e a guerra, a guerra, a guerra).

    Que vorazes as máquinas estão, a devorar as nossas palavras, a sugarem-nas até já nascerem sem significado, aguadas, finas, ruído de estática em fundo. A sobranceria da era dos andróides que fingem ser meninos de verdade.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Azul

    Azul

    Viste os ecos azuis nos azulejos molhados do corredor que se estendia do balneário, frio, escorregadiço? Chinelos slap slap, cuidadosos, e o aconchego da toalha, a linha do elástico da touca, a repuxar cantos da pele, as coxas arrepiadas, a aproximarem-se de um degrau de chuveiro.

    O pudor tímido.

    O reverberar de água, motores, chlap, o mergulho daquele homem em braçadas ríspidas. O cheiro.

    Close-up of Water Droplets Against Blue Background

    Cheiro azul de cuspe, desinfectado, e gestos hesitantes (vais cair, vais cair!). Abandonar tudo num canto e chegarmo-nos junto a uma toca aquática, suave, tina de água tépida, e o cloro a entrar pela alma dentro (quando morremos o ar que nos abandona é o nosso espírito?)

    Cada pequeno pulinho, bailarinas em pontas, deita-te, que assim já te equilibras. Flutua, que assim já te moves com o movimento dos outros. Que mais fácil, que é assim, deitada, e o mundo navega na mesma.

    Claro, alguém passará, salpicando tudo em volta, sem delicadezas, agitando ondas e perturbando o sono leve. Que mais fácil que seria assim, com bolha que protegesse a cara da água fria, que viajou no ar, que pairou um segundo livre antes de se derramar na pálpebra fechada.

    Existe uma claraboia que deixa o sol se despejar por ali abaixo. Gaivotas pairando longe, flutuando no céu azul, (e tu a flutuares em azulejo), fazendo de conta que o tempo também flutua, que também balança, como mesa manca, só um bocadinho manca, só o suficiente para estremecer – e te deixar na dúvida se foste tu que vacilaste.

    flock of bird flying on sky

    Nadadores que se escondem debaixo de água, a encolher o nariz, ao romper a película transparente, ouvem os brilhos azuis das pessoas que deslizam junto à borda?

    Que brilho tens tu quando estás sem roupa e tiritas pelo mundo fora? Sabes que se não tiveres medo das gotas, que fogem livres da dança dos outros, te podes aquecer num abraço, e se chorares ali ninguém vê? Porque é tudo azul. E o tempo flutua.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Perdura, porventura, ternura

    Perdura, porventura, ternura

    Há pequenas coisas, como, por exemplo, sentir areia nos dentes enquanto comemos fruta na praia, que sabe à ferrugem que avistamos ao longe numa escultura imensa, maciça, de ferro a oxidar ao longe, lacrau áspero de rabo eriçado na nossa direcção (vou picar, vou picar!)

    Podemos exasperar-nos. Tentar cuspir, selectivamente. Ou podemos tentar continuar a mastigar, o mínimo de movimentos, até a engolir quase assim, como está. Engolir a praia suja, a bem da paz de espírito.

    Explicarmos a alguém como vemos, as coisas, exige articulação suave, candura, um refinar a areia até ser pó dourado entrando pelas narinas, bem dentro, até respirarem a nossa verdade, e nada verem mais, e o deserto ficará nos seus olhos, ondulado e amarelo.

    Person Foot Prints on Sands Photo

    Palavras.

    Falarmos com paredes é exercício de lamento, duro, emparelhado e sólido. Cego. Surdo também. Mais fácil o murmúrio, sempre, entre dentes (talvez o mínimo de movimentos para engolir a areia com sumo da fruta), o sol queimando as vistas e o horizonte a bater-nos o cabelo, na cara. Aguentar a nortada e continuar, se as mãos tremerem esforçamo-nos para que não notem, que não acudam.

    Mas o corpo diz mais, mais do que a boca.

    Então, assim, fácil é enredar-nos. Descobrimos, se calhar, que não conhecemos os nossos pensamentos (como não conheço os teus), e divagamos, e viajamos, e papagueamos frases curtas, que nos deram embrulhadas e torcidas nas pontas (rebuçados), caramelo sem gosto, a gosto.

    Oh Deus! (deuses!), quantos caramelos a derreter ao sol, a colar a areia ao céu da boca!

    photo of silhouette photo of man standing on rock

    Sacode! Sacudamos! Que se o corpo ainda tiver força para sacudir, talvez se espantem então para longe os magros demónios que se penduram nas nossas costas. Como sombras de mãos que, dançando sozinhas, povoam o tecto, enormes, para distrair a birra.

    E se tropeçarmos, porventura, temos de nos agarrar, cada vez mais a algo terno, que nos ampare, que a idade não perdoa, e perdura.

    Mariana Santos Martins é arquitecta

    P.S. A autora pede humildemente aos seus esforçados leitores que se deleitem com a hiperligação no início do texto em pleno, ouvindo, mas também vendo. Porque o Belo é urgente.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Lobo rouco, lobo louco

    Lobo rouco, lobo louco

    Os mantras entoam-se no horizonte, como uivos de lobo, e pouco mais nos sobra que agarrar o cestinho e continuar no caminho de cabeça baixa (não te desvies do caminho), segurar o corpo a tremer e manter o medo da floresta longe de nós (não te desvies do caminho).

    Quase todas as verdades que importam estão guardadas em histórias de crianças. Quase tudo o resto está construído em cima disso, com a diferença que uma criança ainda consegue levitar e um adulto é demasiado pesado para o fazer (demasiadas bolas de ferro nos tornozelos).

    Gray Timber Wolf

    Era uma vez.

    (_Estava na floresta um lobo a uivar, por trás duma giesta eu pus-me a
    escutar…_)

    Na História Interminável, um lobo negro é convocado pelo Nada para lhe permitir engolir a terra da Fantasia, obliterando a sua existência contra os esforços de uma criança guerreira e uma criança leitora (e
    durante anos eu tremia com a perspectiva de que o Lobo e o Nada estariam escondidos no piso de cima de casa, pois se o piso era escuro e como um nada, até eu chegar lá acima e acender a luz, certamente viveriam lá, esperando matreiramente para me devorar).

    No Capuchinho Vermelho, o lobo trapaceia até conseguir comer a avozinha e se travestir no seu pijama, de forma a ouvir melhor, a ver melhor e com a boca tão grande comer a indefesa menina.

    Nos Três Porquinhos, o lobo bufa a sua raiva contra as frágeis casas dos três irmãos, esfomeado, raivoso e determinado.

    No Pedro e o Lobo já vemos que, na verdade, o lobo é mais um instrumento, faz parte da composição, e com todos os outros sons conseguimos chegar a uma história, que acaba como tem sempre de terminar. Com um pato que talvez morra, e caçadores que talvez apareçam, pululantes, a terminar a opressão num grande estrondo.

    As histórias de crianças têm lá tudo ou quase tudo. Deixam os avisos que importam e condensam tudo em frasco de doce de conserva. Com princípio, meio e fim.

    A diferença é que, porventura, no frasco de doce o fim da opressão é um estrondo rápido e definitivo. Mas depois do Big Bang a geleia espalhou-se a alta velocidade em todas as direcções e nós não conseguimos ver o açúcar concentrado numa partícula compreensível. Apreensível.

    Por mais que almejemos pelo troar dos caçadores que nos vêm salvar, o mais seguro que devemos contar, é que o fugirmos do lobo ainda só acabou de começar.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • A sociedade do espectáculo e a chata da ética

    A sociedade do espectáculo e a chata da ética

    Se calhar temos mesmo circuitos diferentes, e alguns de nós têm os fios ligados num disjuntor, e não no outro.

    Porque uns de nós olham os spots publicitários da Guerra Fria na SIC Notícias, e vêem mestres de cerimónias, sequências de imagens orquestradas com brilhantismo de Hollywood.

    Mas outros vêem a guerra dos livros de História, a ameaça existencial, a propaganda como um mal necessário para manter a moral nas trincheiras.

    brown CRT TV

    Alguns de nós olham rodapés sobre como Portugal é campeão de concentração de glifosatos, e vêem um esquema de perseguição aos agricultores nas entrelinhas, um polvo monopolista que cresce e engorda a comer o pequeno produtor em resposta a uma agenda globalista, nada tem a ver com o ambiente, nada tem a ver com a saúde. São as mesmas pessoas que acharam boa ideia fabricar munições com urânio empobrecido, matem quem dispara e matem quem é alvejado.

    Outros vêem o apocalipse ambiental, por entre vídeos bombardeados sobre eventos climáticos extremos no mundo inteiro, a necessidade absoluta de sucumbirmos a nossa existência ao bem comum, seguirmos as regras e não questionarmos.

    Alguns de nós vêem máscaras como símbolos, agressões, malefícios à saúde, o reduto final e visível de como fomos todos burlados durante três longos e penosos anos. E alguns de nós até acham que, entre uma máscara e um suposto beijo não consentido, mil vezes o bater de lábios a festejar vitória, porque “o vírus foi derrotado”.

    Outros vêem a prova de que o planeta nos quer assassinar indiscriminadamente e o importante é cumprir as orientações das pessoas que sabem e querem o nosso bem. Entre a natureza de vírus com nomes de letras e números, como um asteróide, e o maldito patriarcado, o melhor… é ficar em casa.

    silhouette photography of person

    Uns vêem um bebé como a alegria que motiva a vida, pequeninas mãos que dormem em suaves espasmos de preguiça a enrolarem as moles mas afiadas unhas junto ao nosso pescoço. Vemos a encarnação de um breve momento. Vemos o sono e sentimos o alívio de quando o bebé se sente seguro e adormece profundamente. Se se sente seguro, quase conseguimos sentir o mesmo. Ou pelo menos o alento de manter o ambiente seguro em volta. Vemos todos os momentos seguintes de uma vida inteira. E vemos o único amor que importa.

    Mas há outros que vêem mera carne. Pratinho de experiências. Não é vida, é biologia. Não é biologia, é laboratório. Não é laboratório, é edifício. E um edifício pode ter pessoas lá dentro vestidas com umas batas brancas todas iguais e óculos e luvas e essas coisas. E ai de quem atente ao progresso das batas brancas!

    Ai de quem levante o fantasma bolorento da ética!

    woman standing in front of the digital machine

    Qual ética, na era em que pessoas se injectam com o que lhes mandam injectar? Qual ética, na era em que as pessoas são presas se lhes dizem para o fazer? Qual ética, se abdicam do seu rosto em nome de uma farsa? Qual ética, se os senhores que mandam, de bata branca e fato e gravata, estão no pináculo da sobranceria moral, se eles tudo sabem e sabem melhor e são melhores do que nós e todos os outros?

    Alguns de nós olham, enfim, moinhos, mesmo deixando o cavalo parar para beber água.

    E outros, talvez, vêem gigantes, vestem uma armadura e preparam-se para cavalgar de frente contra um edifício.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Cimento: crónica dos materiais

    Cimento: crónica dos materiais

    Se entro e ainda está fresco, é doce o cheiro. Sinto a água, ainda no embrulho, recordações de infância trazem-me o barulho de lama, debaixo dos pés, gotas, soltas, sujas, terra, pó, areia.

    Traço 1 para 4. Traço 1 para 2.

    Existem números desenhados a branco, ali, no cimento. Não os vemos, mas eles estão lá (junto ao ferro), não os entendo, mas eles já se levantam (junto ao osso).

    This picture shows the scene of a construction site. In the foreground a hand wearing work gloves is carrying a bucket. In the background a cement truck is visible. Cement is flowing from the truck into the bucket.

    Nervuras de férreo metal, incrustadas com cimento, já petrificado; as mãos do teimoso que recusa as luvas, a pele a queimar. O cimento tudo come, come a água até de nós. E à medida que seca, na nervura do teu pescoço, endurece as circulações e impede o ar chegando à mente.

    Em apneia (e a água por ele a ser bebida).

    Cimento há em que lhe puseram conchas de mar, lá… sal, mais praia.

    Cimento fica que começa a romper (fissurar), o estalo a percorrer o eixo à procura de uma água da juventude, que por mais voltas jamais regressa. Chegou ao fim.

    O curioso mundo do cimento – e do betão, que se arma, que se armam em pedra, sem o ser. Não os entendo muito bem: são, para mim, construções de lama, com números brancos escondidos, e o senhor engenheiro a fazer troça de mim.

    Mas é, afinal, uma caixa de madeira que o embrulha, para a existência, precisa da mãe-árvore para nascer.

    Mas a talocha, o afago, a meiguice de emassar, até o nível soluçar a sua bolha, apenas quando o retiramos… aí, sim, sinto carinho; aí, sim, sinto escultura.

    Green Leafed Plant on Sand

    Que trabalho, que pesado, que suado.

    Reboco. Fino, areado, delgado.

    Reboco.

    Andamos todos a emassar cimento, fissurado.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Tecido: crónica dos materiais

    Tecido: crónica dos materiais

    Já estivemos bem mais embrulhados, em panos, rodeados por fibras, delicada ou grosseiramente entrançadas, a cobrir todos os objectos e todos os cantos e recantos. Mas eles, os panos, ainda lá estão.

    Estão descidos sobre as nossas janelas, estão repousados sob os nossos pés, estão embrulhados em cadeiras e sofás, capturados entre o colchão e a cama, até invisivelmente entalados em recheios de paredes e tectos. Lã de rocha, lã de vidro.

    Como a roupa que escolhemos para nos envolver, as casas pedem o carinho do tecido. O abafo de roupa pesada, gramagem alta, ou a frescura de malhas, finas e abertas.

    White, Black, and Red Textile

    O tecido rodeia-nos, para dar silêncio. Poucos se apercebem que o tecido nos foi sendo retirado das vidas, quando fomos recusando os naperons de crochet que avós tricotavam, para ali pousarem, na televisão, no aparador, na mesa. Despimos as casas, e elas, nuas, se envergonham agora de frio, com gritos a baterem contra a sua pele e a atordoarem-nos os ouvidos.

    Deixem a vossa casa vestir-se, e ela absorverá o som, e dar-vos-à sossego.

    O fio de algodão em nós, padronizados em matemática, encostavam-se aos vidros para filtrar luz e a temperatura.

    O peso ondulado da cortina, em queda junto à parede, guardava-nos o pudor, nos resguardava a intimidade.

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    O laço do felpo cobrindo o chão em alcatifa.

    O ponto apertado do tapete, a fita leve da passadeira.

    A nódoa de vinho tinto naquela toalha de mesa.

    Os pêlos da gata no canto das mantas, na cama.

    O vaivém das flanelas e dos linhos, em picos, nas primaveras e nos outonos.

    Pano. E aquele respirar junto com o mundo, no balançar do cósmico vazio.

    brown and white rug

    E no fim, a mortalha, embrulhem-me em musselina, e enterrem-me de pé, com uma árvore plantada na moleirinha.

    Quero sair da terra depois de morta e espreguiçar os braços no ar…

    … e no meio, o toque gentil do tecido, subindo o corpo. E só retirado se me puder vestir contigo.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Madeira: crónica dos materiais

    Madeira: crónica dos materiais

    Todos nós temos caixas, certo? Alguma espécie de caixa, de algum tipo de forma, com algum tipo de conteúdo, mesmo que seja o vazio. (Meu coração é uma caixa de madeira.)

    Numa caixa de madeira, os sulcos acumulam-se, num cheiro de tempo que passou, que se agarra às coisas, agarra-se aos tecidos desde quando ainda lá guardávamos o enxoval, algodão com cheiro de floresta cortada. (E já dizia o poeta que era como um cofre que não se pode fechar de cheio.)

    photo of brown wood slab

    Numa caixa de música, pequenos mecanismos rodam em dentes, suavemente percorrendo uma fita (de tempo), a mordiscar vazios para produzir melodias (pequeninas), muitas notas de música a reverberar desde os primeiros dedos que as marcaram na História do Mundo. (Meu coração é uma caixa cheia de gente.)

    Numa caixa de cordas esticadas, uma guitarra nasce, ou nasce um piano (e têm gente dentro), ou mais instrumentos ainda, que sopram cores dentro dos nossos ouvidos, e as moléculas de água sacudindo-se. (E já dizia alguém que nós somos as nossas coisas, e diria eu, ou as pessoas, que trazemos coladas à pele dentro de nós.)

    Numa caixa com portas e janelas nasce a casa, e se nos encostamos à madeira sentimos a temperatura que temos no corpo, encolhemos e esticamos com ela, rangemos à medida que o dia nos comprime, e dilata, berramos num estalido, abanamos com o vento, agarramo-nos à terra. (Eu sou as pessoas que me tocam, vocês todos, minhas palavras são vossas e em nada mais me fico sendo, do que uma criança sentada de pernas cruzadas e o livro aberto sobre a cabeça como um telhado que se faz chapéu e também é feito de árvores.)

    brown tree log on green grass field near lake during daytime

    Madeira e tempo são árvores, são muletas, são cajados, são martelos, são música, são a tua casa e a minha, timidamente a penetrar o céu e sentadas de pernas cruzadas com um livro a fazer de telhado. São mortos vivos de pé, na nossa vida e na seguinte, desejosos de repousar os ossos na terra para sentir as raízes, tanto em cima como em baixo.

    O boneco de madeira, de nariz em crescendo, porque conta mentiras, porque o fizeram viver numa fábula. Quantas vezes a criança o viu apertar os olhos e contar muitas patranhas para tocar com a ponta do nariz na ponta mais alta de uma árvore. E que mal tinha isso? Tudo na busca da fada azul.

    Quando o carpinteiro, essa espécie em vias de extinção, apadrinhou e esculpiu a mesa e a cadeira (para que nos sentássemos), acarinhou e oleou o armário (para que nos guardássemos), saberia ele, porventura, que o tempo e a arte seriam servidos enlatados (“lavados com champô”)?

    brown wooden table with white printer papers

    Esfreguem pauzinhos para fazer fogo; se o vento estiver de feição, poderemos lamber montes em braseiro desmedido. Ou deixem submersa a madeira, a inchar e a chupar a água que nos deixa verdes. Quando o musgo crescer, saberemos então onde fica o norte. E já não nos perdemos na mata.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Vidro: crónica dos materiais

    Vidro: crónica dos materiais

    Os primeiros sinais de magia dos homens (ouves os sinais?) aconteceram com uma fogueira (claro, o fogo, sempre o fogo) na praia, muitos mil anos antes de nós (eu hoje sou eu) sermos nós próprios, quando porventura éramos até outras pessoas noutros sítios ou, simplesmente, éter ou átomos à deriva noutra galáxia (o que é a alma?).

    Acendendo uma fogueira na areia, com conchas que o mar nos trouxe (ouviste o mar dentro delas?), com o calor enorme e exactamente necessário a exercer a pressão desejada, nasceu a transparência. Nasceu o vidro (que magia!)

    person holding grey lit torch

    Não está lá mas está. Deixa ver mas impede de passar. Que fortuna! (Será?)

    Com o tempo as nossas cavernas, construídas, puderam abrir os olhos (são o espelho da tua alma?), arregalar o horizonte, sem risco de tanto frio gélido, ou que a tempestade nos engolisse as coisas (somos as nossas coisas?). Janelas nasceram com o vidro, onde antes apenas existiam vigias. O rosto fortificado das pedras que envolviam os nossos abrigos deixaram de ser esquimós e puderam engolir o mundo (mas quem está a ver também pode ser visto…)

    – Isto não tem luz nenhuma! Eu quero mais janelas! E maiores! Quero muitas janelas! Era assim que eu faria a minha casa!

    Mulheres e crianças, presas dentro de casas gaiola, querem muitas janelas. E muito grandes (podes ver mas não podes passar). As paredes escancararam-se ao longo do tempo. Em vez de olhos, passaram a ter bocarras abertas, penduradas entre vomitar a privacidade de quem as habita e o engolir um mundo de luzes que as rodeia.

    (Miquido…)

    Free stock photo of architecture, building, curtain

    Montras. E janelas (e postigos). Passamos de pássaros em gaiolas a peixes em aquários.

    A minha casa é o Porto e tem ombros de granito, as janelas vão do chão ao tecto à medida da minha anca com a tua, para eu poder passar por elas e fugir sem ter de abrir a porta. Que estais a fazer à minha casa? O fogo vem aí?

    Os vidros estilhaçaram assim as nossas vidas. Deram-nos vãos com película de água do mar cristalizada. Deram-nos lentes de óculos, binóculos, telescópios, máquinas fotográficas. Deram-nos ecrãs. Todos os ecrãs deste mundo para onde fomos agora viver, a habitar o reino de vidro frio onde encosto a cabeça para respirar melhor se o pânico me avassalar (deixa ver mas não deixa passar).

    Deram-nos copos, garrafas (um resguardo de chuveiro que desliza). Faróis. Lâmpadas (para encontrar o caminho e espantar os demónios). A luz! A luz! (Lusitânia.)

    Já viste tudo onde encontras vidro? Mas cuidado com a repetida dor crónica: do plástico que finge ser vidro como finge ser metal, também anda por aí!

    (Miquida…)

    Podemos escrever mensagens no vidro. Ou pelo menos enrolar pergaminhos numa garrafa que baloiça nas ondas do mar, meu queridominha querida, roubar palavras aqui e ali, transparentes a borbulhar na água.

    E, se eu me quiser enroscar ao teu lado e sentir aquele arrepio que une o pescoço ao ombro, quando se sente lá a respiração, prometo que o bafo vai ficar na janela para te deixar mensagens de amor que se apaguem num segundo.

    Um do lado de fora, outro do lado de dentro, o vidro deixa ver mas não deixa passar.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Metal: crónica dos materiais

    Metal: crónica dos materiais

    Se em silêncio ouvimos aqueles eucaliptos, pinheiros e acácias, a sacudir gentilmente o cabelo com o vento, a folhagem… muito do sussurro dela se parece com as ondas do mar e quase que sentimos o sal a morder a bochecha junto aos molares.

    Como é que este som me lembra metal, se é tão mais fresco e azul?

    É porque também é leve, maleável. Mas o metal a ser feito é quente, sem dúvida, muito quente, nascido do fogo. Mas uma vez frio fica gelado, transformado em árvores petrificadas que seguram cabos de electricidade, espadas e adagas que usamos para sermos mais pontiagudos.

    aerial view of forest

    Se nos raspamos em metal, mesmo frio, sabemos que vai queimar a pele. Arrancar a derme (a frio), mostrar-nos o inferno da dor que se espalha como mancha. (Até a água há-de enferrujar a chaga.)

    O varão de ferro com nervuras a falarem em código. O perfil de alumínio a pedir que se brinque, se construa, se encaixe. A folha de inox a soltar trovões inesperados. O cobre em fiapos, o ouro do estaleiro.

    O andaime, o seu som clincante, sempre sujo de cimento, sempre de mil cores (clin clanc), o vento a assobiar nos tubos como quem toca órgão.

    As dobradiças, as braçadeiras da caixa aberta da carrinha, o guarda-lamas a querer prevenir a torção do plástico com que decidiram começar a fazer as portas, a carroçaria, o habitáculo (o metal a finar-se porque pesa, é trabalho de músculo e não de laboratório e robot).

    Clin clanc

    birds flying over brown metal tower

    Pensa no sabor do metal e sentes a língua a retrair-se um pouco, um incómodo ligeiro. Pensa no cheiro do metal quando entras na oficina do serralheiro e sentes o azul quente entrar nos pulmões e tirar o ar. O ácido do estômago a trepar por ti acima numa azia (metálica) e sabes que se não vais usar fogo para esculpir, com um enorme escudo em frente ao rosto, mais vale saíres dali, ali não se vive em paz.

    Clin clanc

    A era do progresso já não sabe a metal. Está escondido, torcido, perdido ou invisível. A era do progresso sabe a plástico. Polímero. Mas isso é outra dor crónica.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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