Etiqueta: Arquitectura dos Sentidos

  • Aveiro: crónica dos lugares

    Aveiro: crónica dos lugares

    Percursos ainda se fazem assim em terras lusas – as placas, as que melhor se aguentam, aquelas que parecem verdadeiras, em molde de cimento, pintadas de branco, letras negras, para ali sabemos que, a partir dali, se inicia uma terra, outra terra, pouca terra.

    Mas aqui é diferente. As aguarelas são pintadas na ria de Aveiro, pela ria de Aveiro. Canais estendem-se por pântanos, e cegonhas a deslizar no ar, uma com uma cobra no bico (aqui comem cobras e lagartos). E flamingos ceifando crustáceos, e as cores esbatendo-se, difusas, em diferentes planos, ali no horizonte.

    people in boat in front of buildings

    Se desviamos o olhar de casas que insistem em ferir as vistas, em cimento húmido e contornos brutos, conseguimos ver telas dignas de museu, e melhor ainda, pois estão vivas (aqui dizem cobras e lagartos).

    E ora pois que raio! Que lindo! Não vêem? Não ouvem? Terão as casas olhos? Terão as casas ouvidos?

    Pois o que fazem agora a casas e línguas que se perdem as subtilezas? As nuances, o enredo. Não peço frufru, arre! Peço saliva enrolada a lamber os conceitos, as formas, os remates! Não este indecente percorrer de palavras directas, comunicação, rudeza torpe e pensamentos esquemáticos em tabulações ocas! Tão ocas que lhes ouvimos o eco de gota que cai da torneira

    Ping…

    E nota-se que esperamos outra. Arre!

    Não. Acalmemo-nos. Quero o deslizar daquelas asas, suavemente sobre a ria que, se espelha, resplandecente e nítida, ocre, verde acinzentado, a esbater-se no plano, ao longe, que esconde fábricas num pano de fundo azulado, diáfano, etéreo.

    A ponte, corcunda se debruça na outra margem, que serve para desaguarmos, calmamente, na atlântica continuidade do caminho.

    brown wooden dock on sea under blue sky during daytime

    Couves galegas encostadas às meações como reduto de subsistência, um canteiro horta onde se consegue semear. Em Aveiro, as casas não se encostam umas às outras. Nem que seja a largura de ombros de alguém franzino, sobra com distância de segurança, as portas erguem-se degraus em relação à rua, como se as casas arregaçassem as saias para quando a água passar.

    Vamos aos cricos.

    O vento, sempre o vento. Que nos segue por cada ponto cardeal de maneira incompreensível, não há muro que nos resguarde, como se o mar quisesse manter o seu poder de arear a terra (que gorda que nasce aquela batata). São sítios, como muitos sítios. Fisionomias que ficam de quem flutua em moliceiros e colhe sal do mar.

    Flor de sal.

    – O que é aquilo branco na água, mãe?

    É sal, é a espuma do sal (espuma dos dias), algo que existe para deixar de existir num pequeno embate, excepto para quem aporta remos a pentear as ondas para pescar tempero.

    (E a espuma dos dias da lista do Jeffrey Epstein? Curioso, a cada trimestre ou coisa e tal, lá vem tema quentinho do forno para nos entreter, para nos pôr às turras, a dar mais umas opiniões, mais umas especulações, e outras coisas acabadas em ões.)

    gray pathway near lighthouse

    Batam pratos. Batam panelas. Batam com os talheres na mesa para exigir o sal e o pão (paz, habitação).

    Caminhos e lugares, podemos fazer crónicas de passeio em silêncio a ver a paisagem esbatida em água, entretidos com a desgraça alheia, alheados do entretenimento desgraçado.

    O que conta é a viagem.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Fruta da época

    Fruta da época

    Sentada numa cadeira de assento puído e desengonçada, baixou-se para apanhar uma pastilha cerâmica (rosa) que se soltava do chão, no meio da ausência já de muitas outras, como um charco de ruína que alastrava naquele fundo da sala do café Les Deux Moulin, encostada à passagem para a casa-de-banho onde Jeunet ilustrou um dos seus famosos e gritantes orgasmos.

    Recordação, pensou, leva com ela e guarda como tesouro incógnito para os descendentes reencontrarem e ficarem desconcertados. A versão em película estava mais envernizada, aromatizada de canela, lustrosa, mas nesta versão pode arrancar bocado como quem descarna a crosta da ferida para levar com ela.

    brown fabric seat near brown wooden pedestal table

    São pequenos gestos, de criança, que repara que tudo termina. Pequenos gestos, como quando se vive um tempo apressado e estouvado em que todos os dias se roça os nós dos dedos em muros ásperos e se carrega a pele esfolada, a lembrar que as arestas nos rompem a carne quando a alma quer esvoaçar demasiado rápido (azul). Não há tempo para tantas referências a mapear o caminho, recordações de encher os bolsos, paus e pedras, folhas secas de árvore que se colhem no caminho e que povoam a casa. As pedrinhas mais brancas, mais polidas. As rochas mais brilhantes com cristais de quartzo.

    – Mãe, ensinas a desenhar uma bola de Kémon?

    – Uma bola de “cámone”?

    – Sim!

    – Se desaguarmos de novo na estação de São Bento, e a usares, vais apanhá-los a todos?

    Mantos verdes a atapetar o caminho das ruas e, no entanto, “não pise a relva” para atalhar a viagem; mas, se no destino encontrarmos bivalves abandonados na praia do mar de Inverno, lá vão eles para a caixa de recordações (azul) em que os objectos absurdos, perdidos, abandonados, quebrados e esquecidos, se guardam para cristalizar memórias de cada ano. 1989. 1998. 2004. 2019. Canhoto de concerto, de comboio, de cinema. Cartão desbotado.

    From above stylish workplace consisting of clipboard with calendar and golden notebook on pink background

    Será que alguma vez pudemos realmente partilhar uma discórdia sem trincheiras? Parece que já foi há tanto tempo. 2020. 2021. 2022. 2023.

    O que é a covid?, o que é a vacina?, o que é a Ucrânia?, o que é uma mulher?, o que é Gaza?

    Objectos absurdos, perdidos, abandonados, quebrados, esquecidos…

    Somos o que comemos; e quando ela se baixou para apanhar o chão desfeito, raspou a mão ao de leve em reboco areado, o suficiente para romper a pele. E será que, na verdade, somos uma rabanada, um pão frito, um leite com casca de limão, um ovo batido? Somos o que comemos; e mesas fartas junto a mesas vazias, paredes não divisórias se encostarmos os ouvidos ao reboco (areado), o suficiente para romper (a pele), e ouvir que na casa ao lado se pode falar outra língua e sorver o caldo com colheres diferentes.

    Somos como comemos; e quem se sente (sente) no chão endireita a coluna de maneira diferente da nossa, se sentarmos na cadeira quem se alimenta de cócoras, corremos o risco de entortar a pessoa. Então fazemos o farrapo velho e honramos os ascendentes. Digo farrapo porque roupa pode trazer o cheiro de cedro do armário e naftalina esquecida nos cantos do fundo. Já nem as traças nos comem as roupas, deram uma trinca em poliéster e acrílico, e partiram com indigestão para outras paragens mais doces.

    Sacos de excesso e seres humanos a alastrar em cadeiras puídas e desengonçadas. Discussões com boca cheia ou silêncios compungidos, comendo pecados, oleando beiços. Rega com vinho, vamos falar de política? Qual delas?

    green glass bottles

    Um pateta de barba rala e cinzenta, tão mais pateta como os patetas que o clamam como mal menor. Chefe, mas pouco. Larápio, mas pouco. Chão desfeito em pastilhas cerâmicas (rosa).

    Um sorriso de sapo com esgar de alface (fora de época), tão mais sapo e verruguento como quem o clama como mal necessário. Os truques do costume na embalagem, boas contas, porte de patriarca (laranja), mais cómico só se entrar de braço dado na missa do galo com madeixas lisas e baças (azul), papagaios a saltitar em busca de poleiro presos por corrente curta nos tornozelos.

    Ui, ui, ui, mas o bicho papão que papava bola no pequeno ecrã, para entrar na sala de estar da vizinhança e alapar-se no sofá com alarvidades, durante anos, no quentinho a debitar, pôs-se em bicos de pés e foi trepando um degrau de cada vez e agora ui, ui, ui, melhor é ser saneado na entrada. De certeza que patetas e sapos não usam o bicho papão para mandar dormir as criancinhas. De certeza que o bicho papão é diferente. Ou de certeza que o bicho papão é real.

    Mas como ela se baixou para apanhar do chão desfeito e guardou na caixinha das recordações, eu sei e lembro de pequenos cubos de memória, como quem sugeriu confinamento especial e agravado a ciganos, como quem defendeu mais dinheiro português enviado para leste. Pequenos cubos. Coisa pouca. De certeza que é real, de certeza que é diferente. Coisa pouca.

    a close up of two people holding hands

    Sobram os sacos de excesso (de gatos), da minha esquerda que fica à direita de alguém, saudosa Odete, que gargalhada darias tu à bola de bilhar que faz tabela em tacadas, o povo, unido. E ainda as gémeas de Kubrik, a dar ao pedalinho com os joelhos para fora para caberem no triciclo, devagarinho lá chegarão, mordazes, ferozes, com a probabilidade genética de ambas não possuírem sentido de orientação nem encontrarem o norte que lhes permitiria defender o próprio sexo, em vez de sucumbirem à treta ideológica de fábulas mágicas com sabor a alcaçuz de panteras cor-de-rosa.

    Ui, ui, ui que consolo de humor é ver os animaizinhos a rabear cheios de fome, e o pastorinho já a descamisar para o primeiro mergulho do ano, a ver se esquece a vergonha, tronco nu e aberto, que isto de fazer simpatias e favores é coisa pouca, de certeza que é real, de certeza que é diferente. Coisa pouca.

    Abram as portas, depois vê-se, vai tudo ficar bem. Baixem-se para apanhar do chão desfeito, que entre cerâmica de recordação e bivalves, com jeitinho conseguimos construir um muro de retalhos que mantenha o lobo à porta e nos preserve os aromas de canela enlatados em casa.

    Pudim.

    E o serviço da Vista Alegre a banhar-se na torneira na sua saída anual.

    orange persimmon fruits

    Fruto da época, cada um de nós terá de falar sempre do que a árvore apresenta. Será demasiado enfado debruçar-nos no tronco ou na raiz, porque áspero e rompe a pele dos nós dos dedos. E mais a mais, que importará afinal falar de cascas? Se nada mais rompe que as nossas mãos, ninguém quer comer conservas de há muitos anos que isto avinagra e nem todos têm cascos de carvalho para embrulhar a pinga.

    Fruta da época, comam laranjas. Tangerinas, dióspiros, se ainda os houver por aí e talvez um kiwi, que as constipações voltaram a existir e disse-me a minha mãe que Deus pôs uma farmácia para nós nas florestas.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Pressentimentos

    Pressentimentos

    Acordar com um pressentimento dói nos músculos, talvez pelas corridas pela noite (assim deitados), e cada movimento que se segue anuncia-nos esses apertões, espalmados, doridos.

    Agora, ao acordar, o dia será atravessado por gestos, parece que veremos os nós orientando os nossos membros em vectores, penosos, (pre)sentimentos pesando na vontade, e transformar-nos-ão não em massa mas em mero contorno, pequena bolha articulada em diagonais e tangentes vazias.

    Person Lying on Bed Covering White Blanket

    Até o som entra como um desenho por dentro (de nós) e ficamos em pausa, (pre)sentimentos que se suspendem numa dúvida, numa hesitação sobre a realidade (acordaste verdadeiramente?), e se calhar é melhor ir já comprar velas, pois entre o gás russo, a tempestade solar e o apagão estratégico (do poder), pouco falta para uma consoada cozinhada em fogareiro; e entre isso e a sensação sobre a irrealidade dos últimos anos, das compotas trocadas na porta de entrada e da prisão domiciliária (ainda a falar nisto?). E tudo parece possível neste declínio inexorável de tudo o que se ergueu, até a reencarnação do Kissinger.

    Pressentimentos.

    Assim, como aquilo que se sinta antes de sentir, a onda de choque do soco antes do punho rasgar o caminho (vectores) em direcção ao nosso estômago. Pôr em causa tudo. Antes mesmo de acontecer.

    Consentimentos.

    Quando mesmo a nossa mente subconsciente lê os padrões em volta, os contornos, as linhas que orientam o pulsar ténue dos cubos de granito na calçada, os ritmos, as rotinas, temos uma última oportunidade para dar ou retirar o consentimento.

    Low-angle Photography of Building Showing Airplane on Skies

    O consentimento de agirem sobre nós, de coagirem contra nós, de reagirem contra (nós).

    Basta dizer baixinho lá no fundo do nosso ser, onde na verdade nunca mais ninguém chega, às vezes nem a nossa visão chega lá, mas o som chega: não consinto. E com este singelo passe de mágica, o muro fica erguido. E com este singelo reconhecimento, desse fundo do nosso ser, vai ser difícil apanharem-nos de novo; como poderiam, se agora conseguimos ver melhor, e mesmo que não saibamos sequer o que se vê, certamente sabemos que está lá.

    As palavras são a força mais poderosa em cima deste planeta. Têm mais peso que a locomotiva, mais amplitude que as asas do avião, deixam mais pegadas que todas as botas de tropa a dizimar pedras (e carne) em poeira.

    E as palavras são nossas, sempre nossas, mesmo que se escondam lá no fundo do nosso ser, e mesmo que nos embrulhem e atem os pulsos com palavras alheias, nesse fundo nós sabemos que a diferença, as nossas e as dos outros, nunca se misturam.

    Os chavões e a propaganda são contornos de diagonais e tangentes vazias, bonitinhas, rápidas de comer, mas vazias, sem digestão, sem transmutação em pedra, em sólido, em valor.

    letter wood stamp lot

    Eu, que não sou escritora, gosto muito de escritores, dizem palavras que são minhas e não lhes emprestei, mas eles pressentiram-nas por aí, em ti, em mim, em tantos de nós. Se lhes mastigo parágrafos e versos, consigo digerir, e a transmutação (em pedra, em sólido, em valor) acontece, porque lhas ouvi como som dentro de mim, aquele som que chega ao fundo do nosso ser, onde a visão não alcança, porque a luz não acontece, tarda, demora, e o tempo (sempre o tempo) atrasa-se a acontecer.

    Mas o som, invisível, que ouço e pressinto dentro da minha cabeça, quando vos leio, esse chega sempre a todo o lado, não está dependente de velocidade ou distância. Existe. Apenas.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Dos livros não lidos

    Dos livros não lidos

    Não desflorados, décadas de amarelecimento das páginas, e mesmo assim chegam-me as páginas ainda unidas, a clamar pelo canivete (liberta-me, liberta-me), a mão a folhear poemas envelopados, a voz do autor embargada em cada sussurro expirado pela margem aberta.

    Da caixa aos teus pés a aguardar em Lisboa, e eu aqui, atolada, quem se mova muito em areias movediças fina-se (sossega, sossega!)

    Deixa ver, deixa dar tempo. Dar tempo é importante no mundo e nas coisas e nas assaduras, em geral.

    Book on Red Surface

    Ao passar de barco, sob a ponte, vejo uma mulher romântica que polvilhou sementes por cima do pilar da ponte, no embasamento de pedra, para ali nascer vida. E nasceu desde então, ali floresceu uma tenaz planta, enraizando-se na medula de argamassas, a beber do rio em suspenso, viçosa, de amplas folhas estendidas, a querer, a desejar, um regresso à mãe que estende a mão desde a guarda de ferro. E os navegadores mirando, no embasbacamento, cuidando ser mais seguro assassinar a planta, não vá uma fina raiz minar a estrutura.

    Ao passar de barco, sob a memória, flutuando, vejo que uma mãe lava a louça de almoço cantarolando a Elis, como passarinho na gaiola. Passarinhos na gaiola, saberão de certo vocês, têm momentos assim. Desatam num canto contínuo, enorme, um clamor por ajuda ou que a voz se solte (liberta-me, liberta-me). Notas entrançadas no eco do azulejo e a água a correr na torneira (o movimento possível), mãos mergulhadas em espuma de um tacho sujo (o movimento do barulho da rua, do outro lado da janela) e a sublimação da solidão como precioso espaço onde se abre as asas (mulher romântica que estende a mão desde a guarda de ferro). Nascem plantas em pilares de pedra sobre as águas.

    E depois do nada, silêncio.

    Talvez durma. Talvez rumine os anos (e ali atolada, quem se mova muito em areias movediças fina-se).

    Person Holding A Green Plant

    Quem prende passarinhos em gaiolas, quem colhe flores no jardim, ou quem decepa plantas em pedras, não se apieda da vida que tira. Nem lhes ocorrerá que tiram vidas, simplesmente tratam de vida. É tratar, é andar, e arrumar. Cuidam que é cuidar (não é, não é), e por isso as linhas que lhes desenham as rugas, que estalam a pele, não se aparentam vilânicas; mostram-se, aliás, frágeis (porque os gatos têm inveja dos pássaros, já vos tinha dito).

    Quem vê os passarinhos em gaiolas, desconcerta-se. Não sabem interpretar nem o silêncio nem o canto. Cuidam que abrir a porta é condenação (fascinação), e que tormenta se mostra o risco de deixar de ouvir o canto, quando o temos ali tão perto, tão seguro, tão garantido.

    E afinal, dos livros não lidos, o poeta embarga-se no sussurro de cada página por desflorar. E o canivete vermelho, que jaz apreendido no balcão da autoridade, estremece para o virem libertar. Romper é preciso. Sem medo.

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  • Gasómetro

    Gasómetro

    Algures, em incerto ano do passado século, foi-me oferecido um gasómetro dourado em miniatura. Era a Casa da Malta a querer brindar as visitas com uma homenagem aos mineiros, aqueles seres alumiando-se em modo periclitante, passo a passo, terra preta, buraco, carvão, antracite.

    Se uma luz é ajustada, diminuída, tão levemente, tão compassadamente, descendo e ensombrando a realidade, quem tenta ler letras mais pequenas, por entre o escuro, começa a duvidar da sua própria sanidade. Se uma luz é questionada, tão simplesmente, tão timidamente, por quem tenta perscrutar através da noite, o maquiavélico que manipula o gasómetro sorri, escarnece, desdenha da percepção.

    E ai ai ai – se quem duvida do gasómetro se exalta! Tremores abalarão a mina, poeiras soltam-se contra os olhos, podendo até ficar soterrado o corpo no buraco (terra preta, carvão, antracite).

    O gasómetro dourado foi viver para uma prateleira de madeira. Como lembrança de luz ajustável. Como lembrança da pouca luz que existe nos buracos mais fundos.

    É uma arte.

    Os maquiavélicos dominam essa arte.

    Reduzem muito ligeiramente a luz nos dias pares. Aumentam-na nos dias ímpares.

    E ai ai ai – se questionarmos que algo se passa com a luz; seremos loucos. Loucos! Desvairados.

    De quando em vez a alucinação é colectiva – muito embora não seja alucinação, e muito embora até possa não ser colectiva (como pode tal, não, como pode, eu sozinha pensei assim!)

    Conformem-se.

    Está toda a gente a ver. Conformem-se.

    Está toda a gente a ouvir. Conformem-se.

    Calem-se!

    Shhhhhhhu…

    Nada mais sufocante do que descer o buraco da mina (terra preta), o gasómetro a finar-se, e toda a gente a respirar no nosso pescoço. Decide, decide depressa. Não há qualquer direito a desobediência. O menino é malcriado, o menino é pequeno-burguês, o menino pertence a uma classe sem futuro histórico…

    Eu sou parvo ou quê? Quero ser feliz porra!

    O mundo envolto em redes onde todos estamos embrulhados em fios de seda invisíveis é a teia perfeita para apanhar todos os insectos que ousem nela pousar. Um pequeno vibrar no fio e a aranha desenha a geometria perfeita para enredar a nossa sanidade.

    Palavras, bonecos, regurgitações de spin doctors, factos elegantemente embrulhados em fita de cetim azul, prontinhos a partilhar, divulgar, informar. E todos correm a imitar o comportamento “declaro que não aceito que o Facebook utilize as minhas informações”, e entram na listinha algorítmica dos meigos, às vezes até dos meigos que, por momentos, duvidaram, pois que “um advogado recomendou na televisão que eu declare que não aceito que o Facebook utilize as minhas informações”, outros até que levantam sobrolho e fincam pé enquanto cofiam o bigode e entram na listinha algorítmica dos narcisos resistentes, pétalas amarelas (como o gasómetro).

    brown rocks

    Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos céus; bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados; bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra; bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos; bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia; bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus; bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus.

    Darwin ainda não existia quando os pastores proferiram estas palavras. A Natureza ainda não nos era clara ou acessível. Entretanto, de pastores e lobos o mundo ficou cheio, e as ovelhas têm de decidir, de novo, se aceitam sepultar esperanças em urnas, ou se arriscam sair do cercado.

    O mundo é um circo, um palco, um lugar comum.

    Entretanto as silhuetas de casas velhas cortam o horizonte e ocultam a fuga. Melhor esquecer o gasómetro e tactear às escuras. Seguir com o faro, com o instinto que os nossos olhos nos impedem de ver.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Pirâmides

    Pirâmides

    Parte 1 – Indevida

    Estranha espécie que se dedica a erguer pirâmides de pedra para encerrar labirintos, para encerrar mortos, múmias, objectos. Antecâmaras, túneis estreitos (labirintos), blocos, blocos, blocos. Tudo a barrar o caminho.

    Estranha a espécie que quer entrar nesse labirinto, cuidadosamente, esgueirando o que possa por caminhos asfixiados, como escaravelhos luzidios, espalmados, deslizantes junto a grãos sólidos enquanto, magicamente, numa bolsa de ar, revelam asas e se erguem a flutuar, se afastam do mundo compacto (não são daqui, não são daqui).

    person walking near The Great Sphinx

    Talvez as pirâmides, talvez as barragens, talvez as pontes (o ferro, cravado na alma do globo), talvez as torres, talvez as estradas, tenham sido feitas para escaravelhos luzidios (espalmados) que, se quiserem, revelam asas e se erguem (a flutuar), voam e afastam-se (do ferro cravado na alma), pois, visto de longe, olha o lindo que é, olha a linda espécie que ali desliza junto a grãos sólidos, e afinal nem sólidos são (o que é sólido?) e o vento leva sem problema, sem esforço, revelando asas e erguendo-os a flutuar, numa tempestade de areia sem fim a esconder pirâmides (e barragens e pontes e torres e estradas).

    Nada sobra.

    – Eu sei fazer casas. O triângulo é o telhado, mãe.

    Pois é. O triângulo é só o telhado, o que está abaixo é que é a casa (o que é uma casa?) As casas servem para guardar coisas, às vezes também nos guardam a nós (desde que mantenham o telhado), traumas, vidas, silêncios, ruído. Um choro, uma gargalhada, o eco de uma discussão (coisas), e às vezes os mortos (os nossos), e até os vivos (mortos), que esquecemos lá dentro cuidando que cuidam das coisas, que as alimentam e duvidam (duvidam, duvidam).

    a roof with a triangle shaped window on top of it

    Os mascarados prosseguem, vestem as coisas e são blocos de pedra que erguem pirâmides, cuidando que dentro deles os labirintos não importam, ar escuro não ocupa espaço, nem constitui caminho (não entrem, não entrem, não entrem).

    As pirâmides mantêm-se porque precisamos de as ter no horizonte, a pontuar o êxodo, a areia infinita erguida a flutuar perante os nossos olhos, que alívio, ali há gente (e coisas e mortos). Desde ali podemos mapear, referenciar, encontrar rotas. O mundo sem rotas é enorme e pode comer-nos. A deriva assusta e causa-nos hesitação (duvidam, duvidam).

    Rotas e rotinas (precisamos de as ter no horizonte, a pontuar, a flutuar, que alívio) devoram-nos e empurram-nos para dentro de labirintos. Se já não sabemos encontrar a entrada, não vale a pena voltar atrás, mesmo adivinhando (duvidando) o risco de não chegar ao fim, e ficar morto num espaço de ar escuro (não ocupa espaço), ficar ali sem chegar ao fim – afinal qual era o fim, qual era a saída, qual era o centro, qual era o propósito?

    Nada sobra.

    maze garden

    Parte 2 – Devida (à leviandade dos cadernos virtuais, que se apagam quando mudamos de andamento)

    É possível morrer de coração partido. Parte. Põe-se o órgão dentro de casas com triângulos, labirintos, ar escuro que não ocupa espaço.

    Estará tudo a morrer de coração partido. Parte. Não há cola que chegue para restaurar estilhaços desses. Almas em bocadinhos não voltam tão cedo.

    Reparem que as folhas que são levemente sacudidas lá fora parecem pardais, para o míope ou para o desavisado, certamente pardais, passarinhos tímidos em pequenos saltos. Se partidas (as folhas) não saltam tanto, encostam-se umas às outras à espera da vassoura, a compostar o caminho.

    Mas caindo destes esvoaçares (saltitando), que isto de movimentos diáfanos não aquecem o corpo em tempos outonais, nada como ver aquelas três mulheres de avental e mangas arregaçadas, saindo do prédio cor de rosa (e o cabelo de uma está também cor de rosa, escuro, curto, encaracolado), com várias vassouras, mopas, esfregonas e um balde em cada mão.

    assorted-color lear hanging decor

    O sol de São Martinho a cruzar as sombras e a embater-lhes nos olhos (que se franzem), duas gerações (e aposto que a mais velha é danada com as outras duas!), argolas douradas nos lóbulos das orelhas, um meio sorriso e aquela aura de alheamento, aquelas ondas enquanto caminham, aquele saltitar do que é que interessa tudo isso, se é preciso é esfregar devidamente aquele canto desprezado entre o caixilho e o peitoril, que se acumula em negrumes húmidos e infecta a vida das pessoas.

    Do salto de pardal à pirâmide, as folhas de outo tono a acumularem na valeta, o escaravelho a esgueirar-se nas areias, os blocos à nossa volta e chamem as senhoras da limpeza! Chamem-nas que alguém tem de limpar isto e tem de limpar várias vezes, daqui até ao equinócio de Março, não sobra assim tanto tempo para decidirmos se concretizamos um ensaio sobre a nossa lucidez. Não sobra assim tanto tempo para sermos amargos e evitarmos partir mais corações na vã esperança de os ver mais leves na balança final.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Uma maçã não é uma pêra

    Uma maçã não é uma pêra

    – Posso pêra?

    Olhei-a com estranheza, enquanto os cabelos negros lhe invadiam a boca e com trejeitos sorridentes de criança balouçava o corpo, com um joelho apenas apoiado na cadeira, brincadeiras inventadas sem fim.

    “Posso pêra?”, repeti eu de olhos arregalados num inevitável zangar despótico, pela aparente insolência de ela combater o uso de verbos ou artigos e desprestigiar assim o bordado da língua materna.

    yellow fruit on white ceramic plate

    Hesitamos as duas. Ela a avaliar se tinha pisado uma risca comigo, ou se eu ia ceder. Eu a avaliar o quão ridícula me sentia por fincar pé, em coisas. Meras coisas, tantas coisas que, na verdade, poderia ceder, poderia deixar ao critério dela seguir ou não, mas avós agarrados aos meus ossos sussurram-me que endireite as costas e vinque a coisa, qualquer coisa, pelo menos uma coisa que a segure à terra quando as ventanias começarem a redemoinhar os cabelos negros e seja obrigada a franzir os olhos para conseguir ver melhor.

    (É para te ver melhor.)

    – Posso comer uma pêra?

    Ah! Podes. Assim está melhor!

    Mas que sei eu, na verdade? Se falantes de outra era, de roupas mais guarnecidas, nos ouvissem hoje a algaraviar, perguntar-se-iam como que raio havia degenerado a tal ponto a língua que, abdicando de rendilhados e vocábulos, se tinha convertido nesta coisa (qualquer coisa, pelo menos uma coisa) e talvez seja orgânico, talvez seja depurar de forma natural, pôr na borda do prato meias luas de cebola que serviram de tempero. Pode ser comido, mas pode ser recusado, porque há pressa, não há tempo, não importa.

    one red apple

    Se tens dois verbos, usa um. Se tens artigos (pronomes) cospe-os entre os dentes, como pevides, estão a mais, cospe! Já agora, aponta apenas. Faz ugh e aguarda a interpretação. Ou que te atirem a pêra à testa a ver se acertam.

    Mas que sei eu na verdade? Só o que vi que ela não viu. Não saberei o que ela verá depois de eu me finar, mas ela poderá sempre reler o passado, reler-me aqui a mim até depois de eu ser apenas um eco. E poderá até contemplar novas reflexões e interpretações deste meu rastro. Não sei. Não sei se é o culto da moda dedicado à adolescência. Dedicado aos meninos que não querem ser adultos

    (e não são)

    e dedicado ao abandono dos velhos, a era dos prazos de validade carimbados em Ver fundo da embalagem (o tempo perguntou ao tempo).

    Que verá ela um dia, ao reler este mundo que viveu, mas não sofreu? Verá que vivíamos a era da feminilidade tóxica? A era onde homens se atreviam a fingir-se mulheres e a cobiçarem-nos o que é só nosso? A era onde os homens se baralhavam se tivessem a voz mais grave, o corpo mais maciço, a barba mais rija, a força mais bruta?

    girl holding white flower during daytime

    Não recordo nem suspiro por uma era em que os homens dominavam. Em que os Kilonewtons associados à força e velocidade do punho anunciavam a sua passagem num troar seco de tenor, em que o mero olhar carregado de testosterona tentava vergar a nossa mais pequenina (insolência) forma de desafiar, de dizer que estamos aqui, somos metade, somos a metade multifunções, somos a metade portal, a metade guardiã, a metade que circunda o fogo em segurança. Não somos só uma coisa, eu, ela, nós todas, meninas e mulheres.

    Como se atrevem a achar que sabem o que somos? Como se atrevem a dizer que a vossa imaginação é superior a nós próprias, inteiras, ao nosso corpo, a como o nosso corpo informa a nossa alma, a como se o sangue que nos corre e alumia fosse igual a qualquer ciência do Dr. Frankenstein.

    E vocês… Meninas “aliadas”, criadas de servir… Feminilidade tóxica que vos emprenha a secura (da alma), estridentes capachos de homens que invadem o nosso sexo em enorme despudor, em enorme desrespeito, a acusar outros de masculinidade tóxica. A ironia. A ironia.

    – Posso pêra?

    brown seeds on brown wooden surface

    Comam, comam. Comam os verbos. Comam as essências. Cuspam as pevides.

    Que sei eu? Não estarei cá para ver o destino, só estou cá para segurar a ponte neste momento. Foi o sussurro que os avós me deram, enquanto se penduraram nas minhas costelas, com peso, um por um, com ternura firme e costas direitas.

    A chuva continuará a cair. Miudinha talvez. Ventanias vão e vêm, só temos de segurar a ponte.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Polegares para fora

    Polegares para fora

    É como aquele abraço, o corpo cede, as mãos rodeiam, em volta das costas, mas os polegares ficam estendidos, para fora, recusando o toque, recusando agarrar… Um passo para trás, um pé de fora.

    Agora, a noite chega mais cedo, todos sentimos o aviso do inverno, um novo inverno que acabrunha a mente, a pensar como aquecer a toca para nos escondermos. E suponho que a leste, pelas mesas e cadeiras emboloradas onde o regime do comediante herói treme, o horror do avanço da neve nas botas russas alucine as mentes cegas (polegares para fora), cismadas na fantasia gelada e petrificada de medo do gigante europeu, que é asiático.

    person in black long sleeve shirt

    O Zé envelheceu, entretanto, profundamente, embrulhado e implodido na recusa em admitir ter sido usado como peça menor neste jogo americano de vergar velhos europeus como colunato avançado contra a ameaça chinesa. Encorrilhado na noção que os traficantes de guerra das televisões, confortavelmente aquecidos e maquilhados debaixo do holofote brilhante, deixaram de falar nos ossos ucranianos que se espraiam nas planícies de Zaporizhia.

    A crença terá sido sincera. Que eram bastiões de um ideal europeu, democrata, ocidental… Que estavam a combater o mal e a defender o bem… Que cada vida de uma geração chacinada na lama, por estes anos, valia o sacrifício e elevava o legado de homenzinhos arrogantes que julgavam o seu papel na História como glorioso a conduzir jovens para a morte vã…

    Que parvoíce. A glória. A vã glória (polegares para fora.)

    Os únicos vencedores no jogo da História mantêm-se na sombra, a engordar as teias de influência obscura. Repousam em almofadas fofas em Genebra, entretidos a debater formas de comunicar o apocalipse climático e manter o gado informado e obediente nos cercados.

    Soldier Holding Rifle

    Enquanto o Zé perde o sono e repara que Israel é afinal o novo bastião dos valores e dos ideais superiores da ideologia vigente, contra o avanço da areia nas botas jihadistas, os ratos que o rodeiam começam a encher todos os bolsos com riquezas portáteis. Tudo se assemelha em ecos do passado, quando um lunático líder entrincheirado num bunker vociferava que o Reich de mil anos nasceria em cima das costas de todos os alemães estendidos sob as bombas aliadas.

    Nos corredores aumentam os sussurros de como resolver a saída de cena do palhaço triste, que tipo de punhal cravar entre as suas costelas. Se a História for meiga com o Zé, surgirá um breve momento de lucidez na sua cabeça que o fará envergonhadamente fugir, já, fugir para longe, esconder-se do mundo que o quer devorar. Mas se o medo dessa vergonha for demasiado insuportável, talvez a Primavera nasça em cima das suas costas, estendido sob a deslealdade de quem lhe bateu com as mãos no lombo (polegares para fora).

    De Gaza vemos as crianças estendidas entre sangue e escombros. Pequenas. Partidas. Convulsões que nos cortam o ar. Mães e pais que gritam ou mães e pais que já nem lá estão, ficando os corpos debaixo de toneladas de pedra, e aquelas crianças sozinhas, mãos enluvadas tentando acudir-lhes o corpo sem saber por onde começar.

    Guerra – que nojo.

    Unrecognizable multiracial guys showing thumbs up gesture

    Se não existissem homens e mulheres aprestando-se a serem botas, veríamos crianças mortas na areia ou corpos abandonados na geada de leste?

    Recusem. Digam não. As armas estão nas vossas mãos, pela glória de um Zé vacilante, medroso, de um Bibi aviltante, sorridente e psicopata, de um pobre velho Joe, demente, gaguejando chavões dados em cábula por falcões.

    Se as pessoas despirem o uniforme, estendendo armas, e recusando o seu uso, nos pés destes patetas, veremos que a carne cobrindo-lhes o esqueleto cansado é afinal igual à do inimigo que mandaram matar. Vejam-se nus. Para que serve um exército?

    Porque mantemos soldados ao fim de centenas de anos de história de holocaustos e vísceras espalhadas por entre pedras? Porque permitimos perder agricultores a enfiar as mãos na terra semeando alimento, enquanto insistimos em promover coveiros a enfiar o futuro na lama semeando a morte?

    Polegares para fora.

    Soldiers in Line to Get in a Plane

    Não queiramos bandeiras, fronteiras, muros ou países, que se alimentam de soldados, todos nossos filhos, condenando-os, assim, sem pejo, a mortes frias e violentas, em prol de medrosos, fanáticos e dementes, que se arrastam por veludos vermelhos sem sequer sentirem o peso da culpa a crescer-lhes nos tornozelos.

    Não há direito de defesa. Não existe. É a mentira com que os maquilhados e quentes debaixo de holofotes brilhantes nos violam a alma, decididos a salgar a terra por abstracções inúteis. E é a mentira com que se convencem fanáticos nas ruas a maltratar outro ser humano.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Crónica de um dia de chuva a pé coxinho

    Crónica de um dia de chuva a pé coxinho

    Imagino que a História virá a retratar a triste trotineta, com o seu trotineteiro empoleirado numa capa de chuva a piscar os olhos pelo planeta, como já o fez sobre o curioso Penny Farthing [1].

    Inusitado. Frágil. Caricato.

    Rain Drops

    As carroças metálicas abrandam impacientemente na cauda das trotinetas, tremendo ante a possibilidade de uma ultrapassagem segura do peão com duas rodinhas que cruzam a rotunda num estranho ângulo obtuso, uma perna no ar a corrigir a curvatura do movimento.

    Todas as pessoas se vão fintando mutuamente, e eu sento-me (sinto-me) cá dentro, como a tampa metálica de ferro rebaixada anormalmente no asfalto, a ser martelada com mais uma gota de chuva e mais uma roda irritada (somos
    tantas, tantas).

    Pam pam! (tampas a saltar).

    Man in Blue Jacket Sitting on a Rock

    Viver hoje a queda deste império é viver como a precipitação de ‘comboios atmosféricos’ (parece poesia), uma catadupa de gotas, caudal que excede canos, sistemas que transbordam, que vomitam, que regurgitam. Que se espalham ao comprido entre enormes buracos, máquinas, terra revolvida, caleiras partidas entupidas com as folhas de Outono. A culpa é de todos, a culpa não é de ninguém.

    Anda tudo com as dores de costas a vergar, a vergar. Picadas de melgas e a humidade a entranhar-se nas malhas. O dinheiro que falta, o frigorífico mais vazio, a goteira na sala. O passivo dos passivos e as máscaras que jeito dão para esconder as bolhas que entram em erupção de corpos que não gritam, e adoecem. Bombas que estalam ao longe, aqui, ali, e a exigência permanente de uma opinião, uma bandeira, um estandarte.

    Paz, pão, educação.

    – Estamos aqui há horas e afinal não se decidiu nada!

    Fragrant tender tulips in glass vase placed near window during rain in evening

    Ninguém disse que era fácil. Podemos sempre admitir que o queixume e o desalento pertence a quem tem ânsias de poder despótico. Mas digo eu, aqui que ninguém me lê.

    Ninguém quer matar-me… – disse Polifemo

    Mais lata de tinta, menos lata de tinta, qual o assunto do dia para atirar contra as paredes e pessoas?

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Para os lados

    Para os lados

    Entrelaçamento quântico – é o que aparenta atravessar as eras naqueles tapetes de areia da Mesopotâmia, uma impossibilidade particular de diluir os poderes, equilibrar águas, que borbulham ou se separam, simplesmente porque aquilo que em cima está logo faz algo ficar em baixo, e não importa quantas vezes façamos a medição do evento.

    Dir-se-ia que todos aguardamos novo sacrifício de um carpinteiro em sandálias. Alguém que diga algo tão ultrajante como: amai-vos uns aos outros – e, em seguida, dê o corpo a esse manifesto.

    green and yellow spiral illustration

    Mas hoje, com tantos manifestos e tantos corpos a manifestarem-se, tantos homens que se fingem outra coisa, repararíamos?

    Dir-se-ia que aguardamos que as deusas marquem a linha no tapete de areia – e se não se portarem bem, tiramos os brinquedos aos meninos; paus e pedras têm um raio de acção limitado.

    Entretanto, sempre segue um apocalipse sazonal, daqueles sem graça nenhuma, que nada tem a ver com as promessas reveladas há milénios (a programação habitual segue dentro de momentos).

    Menos.

    Menos bom senso, e mais areia na boca, que nos sobra a sede, e as sandálias já não nos protegem, nem de nós. Por cá, a chuva cai já pesada – e quem gritou lobo berra-nos aos ouvidos que o mundo é perigoso.

    Joana bateu com o bastão no chão, a Catarina (furtada a mais conhecimento sobre o tema) proclamou a sua aliança com os homens que têm inveja do útero.

    Silhouette of Person Standing Near Calm Sea

    O mundo está reduzido a estes bastões, a estes grãos de areia, a tempestades pouco férteis que enevoam a vista e na verdade, creio que estamos todos a pagar a factura das clausuras “voluntárias”.

    Sugiro que se alinhem todos em formação num descampado, com uniformes mais ou menos equivalentes, talvez um capacete (paus e pedras), a quem mais caiba um elmo talvez, e corram de frente uns contra os outros. Berrem! Berrem muito desde dentro da alma, berrem com força por aquilo em que acreditem e choquem de frente, de peito aberto (paus e pedras).

    Depois contem os mortos – e quem tiver mais vivos ganha. Serão vivos cansados que vão dormir mal o resto das vidas e, cansados, não mais guerrearão.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.