Etiqueta: Arquitectura dos Sentidos

  • Ribeiros, riachos e bichos-de-conta

    Ribeiros, riachos e bichos-de-conta

    Aquilo que devemos ter em conta sobre viagens no tempo é se, de verdade, as queremos fazer.

    Nadar contra a corrente, para além de esforço considerável, requer a capacidade de engolir golfadas de pirolitos. Os ribeiros trepam fragas e não sobram margens para abrir os braços, de verdade, pagas o preço dessa viagem?

    Ah, e depois, podes sempre decompôr, se é mera viagem (ida e volta) ou se é regresso (retorno). Numa viagem, a tentação da nostalgia é tão imensa que quase admitimos o risco.

    Green Swim Band

    – Deixa-me só ir lá ver, de novo.

    Num regresso há, pois então, perda. Perdemos a pescaria, fogem-nos as redes das mãos, a rebentação engole-nos e abafa-nos, choca o corpo contra pedras polidas.

    Nunca arriscaria tal. Isso é para garotos e românticas que se atiram do barco em plena rebentação.

    – Simão! Simão!

    Viagens no tempo fazem-se com facilidade, fazem-se com música e água, sem precisarmos de regressar, para ir (e vir) só lá ver (de novo).

    Somos todos antenas. Seja em que ponto do ribeiro (tempo) for. Estamos todos a ampliar o sinal uns dos outros, lembramo-nos mutuamente de pedras nos caminhos e saltamos riachos que alimentam lameiros (a lama) que alimentam aquele rebanho (a lã) que nos alimenta a nós, aos nossos filhos, enquanto o sangue se inflama com coisas vãs (a lama) e o lodo entra nos sapatos se nos falha um pé.

    a group of cell towers sitting on top of a mountain

    Todos nós antenas, que lá continuam pelo tempo corrido, corninhos no ar, flutuando ao de leve com as brisas e ventanias da sociedade do espectáculo, entre actores que memorizam bem as suas deixas – até com precisão matemática –, pontos, encenadores nas sombras, e os críticos – ah! Os críticos. Essa massa soberba – cheia de ar no recheio, fermento lento e pão que seca num dia até parecer cavaca amarga. Ranho que pinga do nariz (são as alergias, as alergias!), mas têm eles sempre uma opinião, homessa! Sempre um refrão na ponta da língua, para cantar em verso e fingir que não seguem a partitura. Os instrumentistas todos a levar com chimbalaus e a plateia só ais e uis, que espanto, que emoção! Ora são os turcos, os argelinos, os brasileiros, os portugueses de bem e os portugueses de mal, os aventais e os bordados! Ai! Ui! Pim! Pam! (Pum!)

    Nada de novo. Qualquer viagem no tempo nos ensina isso. Mas precisamos de tempo para a fazer, pode parecer diferente, mas na verdade não há atalhos para ida e volta. Podemos ter ido até onde o primeiro Deus habita, a distância percorrida continua a mesma.

    E mesmo que agora baixem todos os lancis, pintem os passeios de vermelho, para em seguida desovar mecos de ferro a cada cem centímetros (cem). Pim! Pam! (Pum!) Tomem lá estas acessibilidades mágicas, que a vida não foi feita para trepar ribeiros sem tropeçar nas fragas, dependendo da distância das rodas a um potencial volante tereis ou não privilégio de circular pelas ruas ocupadas pelas forças opressoras.

    Entre rios, ribeiros e riachos, anda a água acima e abaixo, a alimentar mares e oceanos e, com música bastante, quantas viagens no tempo podemos fazer até ficarmos loucos?

    – Sabes que, para os meus filhos, eu sou como a chuva e peço desculpa, e isso é razão bastante para que me gostem.

    O primeiro Deus, ouvindo-me, soltou sonora gargalhada, sobressaltando-me. E, imediatamente, se enrolou como um bicho-de-conta.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Ruas, vielas e caminhos

    Ruas, vielas e caminhos

    O primeiro Deus atravessou o limiar daquele bar escuro e hesitou frente à Viela da Fonte da Caganita. Sabe Deus que caminhos com nomes de eventos, e não de pessoas, aportam uma carga demoníaca pesada. Ainda mais em entroncamentos. É sabido.

    O escuro do bar espalhou-se, de dentro para fora, pelos céus e, sobre as nossas cabeças, trovejou implacavelmente. Encolhi-me e encostei-me à perna dele, não por medo, mas frio e desconforto. Aí viria a cheia para engolir bocados, quatro cavaleiros a cavalgar em cada nuvem, o dilúvio a limpar as serpentinas de percursos palmilhados, as paredes de farelo a esboroar, gritos histéricos de incautos, os chalupas de galochas no alto da Rua do Rixixi a ver as ondas apoiados em cajados, aguardando a ascenção, crentes que a sua consciência os salvaria antes de serem sorvidos.

    Coitados.

    silhouette photography of street

    Negacionistas a rebolar na lama, adolescentes dopados com ansiolíticos numa canoa a bater com os remos em afogados “A culpa é tua, a culpa é tua! Como te atreves?!”

    Enfim, o caos. E o primeiro Deus manteve-se observador e não me enxotou. Havia uma serenidade no seu comprido casaco negro de fazenda que era boa de colher. O país de Viriato julgava-se por ele escolhido para escapar às águas, sabíeis vós, lusitanos, que não serviriam para mais do que bancada sobranceira ao apocalipse? É sabido que nada escapa, sabe Deus que limpar sem levantar o tapete é batota. Seus batoteiros.

    Também nada há de agradável na margem dos rápidos, sabemos que a água pode galgar num ápice, o que me restava naquele cantinho era decidir-me por galochas, canoas ou lama, pouco mais, na verdade. Desta vez ninguém fez a arca, meteram-se todos os espertalhões debaixo de terra.

    Energúmenos.

    Por alguma razão os dilúvios são a melhor escolha para limpeza, escusam de se enfiar em tocas que só se vão escapar as bactérias na orla da exosfera, a enxurada infiltra-se em tudo.

    man in black crew neck t-shirt sitting on black couch

    E já que estamos no país das ruas, vielas e caminhos que falam dos momentos, olhei o primeiro Deus, sem lhe largar a perna, e perguntei “Afinal onde está a Irmã Lúcia? Aquela que dizia para uns senhores consagrarem a Rússia? É que os chalupas disseram que a senhora foi trocada! E, de facto, que a carinha laroca dela mudou muito, mudou! Não sei se será hábito cirurgia plástica em mosteiros, não me parece!

    O primeiro Deus sorriu, pareceu até conter uma gargalhada, ignorando-me e mantendo a vigília. Amuei, carreguei o sobrolho como garota e bufei. Se fosse sensata largaria a fazenda negra e tinha antes montado refúgio, em tempos idos, na Rua Quebra Cus. Mas aquilo dos três meses de inferno e nove meses de inverno não me apaziguou, certo é que as pessoas fogem de quebrar as costas, ou os cus, ou as almas em rochas e ferro, e dentes também, além Douro, por uma razão, a salto até, pois num salto largo de lá fugiram todas as gentes.

    O que não tem remédio, remediado está.

    Ninguém quer na verdade falar sobre os retornados, insistem em amuos bufados em esquinas enquanto um dos reis que vai nu fala em reparações históricas. Como se a história fosse reparável. Como se fosse assim nau de mastro quebrado, que com os lacinhos das inaugurações bem atado até se põe de pé de novo, como se as nações de hoje devessem algo pelas nações de ontem. Porque se formos a secar o dilúvio de tristezas com as dívidas, sabe Deus onde é que isso vai parar. Qual o limite. Qual a nação (e o que é isso?)

    desk globe on table

    Existem nações refúgio? Em 2020 quase achamos que sim, na Suécia não venderam novos normais com a mesma ganância. “Isto é como uma guerra” disse o rei nu.

    Guerra, é o que estes reis de realejo inventam, na pausa da casa de banho, com as calças nos tornozelos. Patético.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Colecção

    Colecção

    O primeiro Deus apoiou o queixo numa mão, enquanto a outra tamborilava os dedos no balcão de madeira. Soltou um suspiro mudo.

    Era o dia sétimo, infinitos sete dias de cansaço, e 99 milhões de afogados eram apontados como seguros e eficazes para uma travessia do Canal da Mancha. Os deuses menores apressaram-se a alinhar todos estes corpos, flutuantes, enquanto berravam que avançassemos, caminhassemos sobre as águas que limitassem as bóias humanas. Deuses menores, todos bem enxutos, que não aproximavam um pé das águas, pois seria demasiado arriscado. Mais a mais, até abotoavam o colete salva-vidas naquele enterrado capítulo… Declaration of competing interest.

    white clouds and blue sky

    Mas isso são detalhes, bainhas (não tirem a espada), mangas, debruns, corte em viés, colarinho. Agora são todos contra as bóias humanas. É esperar que não se repita de novo. E seguir limpando.

    O primeiro Deus ouviu a minha zanga e, continuamente mudo, agarrou o copo de mel fervido em frente. Bebericou, gargarejou, desinflamou a garganta por milénios de silêncio.

    Por momentos, julguei ir falar, mas continuou apenas o tamborilar de dedos, suave, em unhas bem cortadas.

    Olhei o dia, pela janela, do obscuro bar, que transformava a luz lá de fora em noite cá dentro, e vi içado, numa bicicleta, um homem já todo ele ampliado. O pescoço desapareceu e a cabeça e os ombros fundiram-se, como se fosse todo ele uma bigorna, a pedalar, a custo, rua acima na direcção do bar. Tive medo, desviei o olhar, pensei – que te aconteceu homem bigorna? – conseguem ver o que lêem? Conseguem imaginar que somos, afinal, todos assim, invólucros que, de repente, deformam, incham, quase estouram, e a alma, cá dentro, a pedalar, pedalando em contínuo, rua acima na direcção do bar, mel fervido, a desinflamar a garganta por milénios de silêncio.

    Rodas envoltas em ferro amarelo, visitas roubadas e um bocadinho que fique em cada canto. Cada canto que nos deixe um bocadinho.

    Explico, ao primeiro Deus: sabes que sou uma colecção deles todos? Não há paz nisto.

    Ele sorri.

    O pascácio.

    a dark room with a shelf filled with bottles and glasses

    Claramente, detém um sentido de humor a roçar o cruel.

    Uma colecção deles todos, dos deformados aos polidos – e, que raio, melhor que nos sobrem as árvores e animais simples. Esta experiência genética já produziu demasiada anomalia para se suportar, mas tudo continua, mesmo sabendo-se, desde os alquimistas, que corríamos o risco da ciência perder o respeito pela vida – pois, se não tem pela morte, saberá ter sequer tal conceito?

    Pigarreou “talvez o melhor seja ficares no teu cantinho”.

    Verdade. Controlar pelo menos três lados de cada vez, apontar a janela para onde é seguro.

    Detalhes.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Ambição

    Ambição

    Há um silêncio que embrulha aquele senhor, não é solene, é uma cautela, um cálculo, um sorriso de escarninho. Respostas curtas e a gotejar de desdém, esperteza, manha, diria diplomacia mas prefiro dizer ardil.

    Este senhor tem a pele saudável, dentes devidamente monitorizados, perfume em aroma leve, elegante, roupa engomada e discreta. Uma aparente calma (devidamente monitorizada), senta-se de forma confortável na cadeira estofada, sem anseios ou devaneios. Boas noites de sono propiciam isto, saúde (calma).

    black and silver hair brush beside black soft tube

    Há uma trança de números que embrulha aquele senhor, moedas que geram moedas e quantos algarismos sobram para ele. Trata de assuntos. Tem três telemóveis hiperactivos e vários números importantes gravados na lista de todos. Os números são importantes, porque pertencem todos a outros senhores calmos e bem engomados, alguns eleitos, outros instituídos (ungidos), nunca encardidos ou puídos pela traça.

    Defronte da cadeira estofada está a mesa redonda com centro de pedra marmoreada, de novo com um brilho elegante (leve), e em cima da mesa os meus bonecos, desenhos suados de um esforço vão de tentar brincar aos sistemas, onde as pessoas vão ser roubadas e compartimentadas em caixas indignas, casas fatiadas como pão de forma, farelo, para render uma medida política, para acenar com circo (e pão), nós de forca em pescoços tensos, nada de calma, nada de escárnio, só cabeça baixa (não baixa, vergada, vergada pela bota da ambição).

    Há um silêncio conivente, que nos embrulha a todos perante um senhor assim, a mão estendida é sempre solene, a cautela já pouco importa. Primeiro direito. Depois esquerda e segue-se a vénia. Obra feita para encher a boca com bolo rei, e nós todos a rabear na orla da toalha, a ver se nos cai migalhas para encher a barriga, que a vida não é só rezar e sobra pouco a oeste da meseta em tempos de terceiras guerras disfarçadas de acidentes.

    stack of stack of books

    Há salas assim de cadeiras estofadas e mesas debruadas a mogno, dignas, onde ocasionalmente indignos entram de mão estendida a ver o que lhes toca, ou outros disfarçam o roncar de estômago com um pigarrear tímido, ou outros fazem peito de raposa segura das suas capacidades, ou outros entram com absoluto sentido de propriedade, cautela, cálculo, calma, ardil. E todos manobram rodas para que a coisa ande (avança, avança! Se viras as costas ao sistema, o sistema vira-te as costas a ti).

    Ora pois então o senhor calmo, composto, sossegado trata de assuntos. Um gavião. Uma pedra filosofal. (Se não comes estás a ser comido, sabes, sabes?)

    Escusemo-nos de juízos de valor, por favor, predadores fazem parte da lei natural (sabes, sabes?), eles seguem por aí a controlar a população de lebres, a restringir o crescimento dos patos bravos. Desde que as salas continuem com umbrais selectivos, desde que as pedras não se danifiquem por palmas suadas de ansiedade, os aromas permanecem sem a intensidade dos brutos, isto é importante!

    Quando o senhor se levanta, alheio a contemplações desta natureza, alheio porque genuinamente desinteressado dos novelos, (para quê novelos se já as tranças levam tanto tempo e atenção a manter apertadas?) sabemos que a conversa está encerrada. O bólide não se paga sozinho. O retemperar forças em férias onde o sol se mantém a brilhar não se sustenta a mãos estendidas. Se insistimos em novelos estranhos sobre ética e deontologia vemos a calma a perturbar-se, a impaciência sacode-lhe a anca, de repente vemos os números dos seus olhos a ponderar o quão dispensável somos, como interlocutores tão impertinentes. Que as crianças não pagam nada, e as crianças é que acreditam em heróis e vilanias.

    gold and black car license plate

    Convenhamos, de novo, não se atormentem a julgar o senhor. Entre o falcão e o bando de pombos são poucos os que escolhem os pestilentos gangrenados.

    O senhor Ambição é um motor! Toda uma economia!

    Isto no fim do dia é tudo um jogo.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Condução

    Condução

    É qualquer coisa como uma calma natural – não diria paz, diria harmonia. O motor segue, trabalhando, naquele compasso próprio, e ronronado, mais rápido do que nós poderíamos andar, talvez mais seguro, dependendo apenas da capacidade de ele, o carro, curvar, como se quer e para onde se quer, mesmo se a chuva martela o seu fino tecto sem piedade.

    Mãos calejadas de bate-chapas. E a forma como, numa curva, se desfaz a manobra, largando o volante na pressão exacta para deslizar pelas mãos, e pelos calos, de uma forma suave, macia, meiga, num shush arrastado, parecendo um corpo a esfregar-se nos lençóis ainda quentes da manhã.

    a close up of the front of a classic car

    Tanto assim é que, aliás, estamos sentados, a bordo da “viatura”, veículo, nave, como que argonautas percorrendo o mundo. E o mundo se move lá fora, tanto que estamos, aliás, sentados, a bordo, gestos suaves nos pedais, pressão suave no volante. E o mundo se abre à chuva, lá fora, e o sol tímido de Primavera surge e nos cega pelo vidro, ali, enquanto estamos, aliás, sentados.

    Sentados.

    Sentados.

    E o mundo é que se move lá fora.

    Cheiro a óleo de motor numa cave escura, panos esfarrapados tingidos de negro, tinir de martelos na distância, chapa amolgada, a queda de uma peça, metal, metal, metal. Calos nas mãos, e a pressão exacta que se exerce, com paciência, na condução, metade do caminho nem por nós é feito, mas pelo mundo que se move lá fora, forças cinéticas que nos levam, alguns a segurarem o leme, outros só à boleia.

    A acidez industrial que nos penetra as narinas, e sabemos que o mundo se constrói assim, de forma suja, veloz, violenta (mas a pressão exacta e a suavidade do couro nos calos das mãos, shush, shush).

    Fatos macacos azuis, semanas de segundas a sábados. Domingos desmaiados num sofá, que se esmaga debaixo de ossos, que vibraram em demasia em cada martelada. Sestas com sonhos nebulosos, e a pressão da água a ferver em radiadores que se preparam para declarar a sua irritação. Velas, faíscas, ar, combustível.

    white vehicle on road

    A forma de condução diz tudo de uma pessoa (já viste, já viste?) – se tem o sangue quente de novos imortais ou a frieza conformada de velhos curvados (que força é essa, que força é essa que trazes nos braços?).

    A espacialidade, a navegação, a rota imaginária. O olhar de soslaio para um retrovisor na esquerda, na direita (em cima?) e o não parar e o parar também.

    Há homens que nascem para conduzir uma vida inteira (eterna), conduzem e engatam mudanças, quebram ciclos com o pé na embraiagem, travam ao de leve, gerindo a poupança de calços, nariz no ar a medir a máquina, ouvidos afilados a auscultar os sussurros.

    Se tirais a máquina ao homem, que conduz, é vê-lo lá, desmaiado a um domingo eterno, durante a sesta, a premir ligeiramente o pé direito no acelerador e a mão (e os calos) a engatar a mudança, o volante a deslizar na curva de saída da via rápida, e o horizonte agora tão longe, porque a máquina se vai sem eles (e agora? E agora?).

    Agora, é montar puzzles, cismar, sem saber se envelhece, porque parou, ou parou porque envelhece.

    Como podemos nós envelhecer se ainda nos lembramos tão bem de ter sangue quente de jovem imortal, mas dentes que caem, gengivas que retraem, calos que amolecem, joelhos que petrificam se sentados.

    assorted-color car lot

    Sentados.

    Sentados.

    Ajustes na máquina. Calibragem, nariz no ar, a medir, ouvidos afilados, a auscultar. Reserva de combustível tem impurezas, contamina o circuito e tolhe os movimentos.

    Fatos macacos azuis.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Expiação

    Expiação

    Viajar a alta velocidade na vida deve deixar para trás a carne dos ossos, porquanto, de novo, aqui se apresentar este menino franzino, com as rugas da camisa a caírem nas esquinas dos cotovelos de forma leve – como se, em verdade, nem estivesse vestido, já assim andasse, nu, braços e pernas a soltarem-se no caminho.

    Os cabelos firmes e grisalhos agarram-se com força, a ele. A sua barba rala e rija é que denuncia os hábitos matinais segurando-lhes os despertares da insónia, mas os círculos em volta dos olhos atestam a geometria que lhe navega as noites por galáxias distantes e nebulosas roxas, entidades de outras dimensões e sussurros a baralharem-se nos gritos internos do seu desespero.

    a close up of a man's green eye

    Estacou frente a mim na paragem de autocarro do Bolhão, eram três da manhã. Mediu-me com atenção para decidir se depositaria em mim o que recolheu na última viagem, até se convencer a sentar-se ao meu lado para conversar sobre o estado, de então, do Conde de Ferreira – entenda-se, o hospital, não o sangue azul escorraçado pela populaça ao fim de umas noites de prevaricação de regras sagradas no burgo.

    O mundo que ele me mostra é dos jogos dos impossíveis. Nada há de mais agonizante do que forçar alguém a ver o Preço Certo na televisão com companheiros que babam, alienados – e ele, ali, com tanta fúria que saiu para ir comprar uma televisão só para ele, porque quer ver muito os documentários. Aqueles, sabes, de Física, do Universo, da matéria negra, mares nunca dantes navegados que, esses sim, esses sim, ah! Se pudéssemos erguer caravela de chapas rebitadas a caminho de Saturno, só para ver aqueles anéis a girar de perto.

    Mas sabes, comprei a televisão, que era boa, e a doutora que lá anda pegou e afiambrou-se a ela. Já viste isto? Quer-se dizer, fui falar com a auxiliar, queixei-me, e ela vira-se para mim a dizer que eu podia ficar com a pequena, a grande, fica para a doutora…

    a close up of a man's eye with a blurry background

    Ora já viste? Não é de os carbonizar? É ou não é? Diz-me. Que farias tu? Que eu vejo que tu sabes ouvir e que sabes do que falo. Que farias tu? Olha que eu vou carbonizá-los!

    Porque, sabes, a maçã podre, não apodrece a boa, mas também não a torna melhor! É, ou não é? Ora ouve bem: a maçã boa, não apodrece a boa… Mas também não a torna mellhor! É que é mesmo assim, sabes?

    Não sei. Nem sei. Já viste o estado de coisas? E depois… é sempre os mesmos.

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  • Condição

    Condição

    É um rapaz de cinquenta anos, esguio, alto, moreno. Faltam alguns dentes, os que restam encavalitam-se em cima do cigarro.

    Cabeça baixa a vencer a distância ao chão. Nunca o vi caminhar devagar, e caminhar é o que sempre faz, quase corre, não tem outro meio que não as pernas.

    Acena-me sempre, se em mim tropeça na corrida, estende-me o punho para chocar metacarpos na distância de quem se acanha.

    silhouette photography of man

    Ocasionalmente, pede trabalho para amigos. Ninguém tem condição para comer, não com as moedas que recebem por hora. Maioria das vezes ao negro. Não têm condição.

    Para ele vai-se andando. Não se pode parar. Levanta-se sempre às seis da manhã, vai até ao concelho vizinho ver um irmão. Pelo caminho visita quem lhe estende o punho. Quem lhe dá sacas de laranjas, pão, massa, arroz. Frascos de salsichas e latas de atum.

    Sempre dá, vai dando, enquanto não respondem da segurança social.

    Trabalhou muitos anos numa confeitaria, tem orgulho no trabalho que fazia e diz que faz o que for preciso. Se é preciso varrer, varre-se. Se é preciso limpar, limpa-se.

    Levanta o nariz enquanto recorda; a cabeça quase se ergue também.

    Isto está, sabe, não sei… Não sei onde isto vai parar. Não conhece quem precise? Não é assim para trabalho fino de obras, mas para as massas, os baldes, o entulho, sabe?

    brown and green metal handrails

    Fica condicional, conjugação permanente, nem sabemos o quanto até que temos de contar só com as pernas e as sacas para comer. Num vaivem infinito que atravessa cidades, a empurrar os dias para as noites e as noites pela janela fria da casa de adobe com estuques embolorados.

    Como se chega a esta condição e o quanto parece impossível sair de lá, por mais que se continue a caminhar.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Caminha: crónica dos lugares

    Caminha: crónica dos lugares

    A cor não sobrevive ao tempo.

    Não é que tudo tivesse aquele tom empastelado de areia compactada (naquele tempo). Não é que penas de tinta sépia esbatessem as nuvens, e a chuva estivesse sempre próxima, a enublar as vidas, enquanto carvão gasto, e espalhasse cinza pelos caminhos (daquele tempo).

    É que os anos amarelecem as coisas, como o ar oxida a maçã mordida. Então, a cor, não sobrevive ao tempo. E no fundo, cá dentro, ficamos a cismar que as pessoas viviam assim, sem azuis, verdes, laranjas, rosas, vermelhos.

    Quando toquei as cartas do território desde Vila Praia de Âncora até Caminha, passei logo as mãos pelo corpo da Serra d’Arga. Como quem acaricia. Quando fatiei aquela mancha, curva a curva, para empilhar cada camada como quem constrói um mundo (sobre o mundo, dentro do mundo), ganhei-lhe carinho.

    Enamoro-me profundamente por tudo o que conheço. Até do feio. Sinto-lhe o suor, o esforço, o anseio, e não o respeitar é uma desonra. Minto: será desonra? Traição? Violência, talvez, pelo menos.

    Por isso não sei se vos digo a verdade, mas em tudo, pelo caminho a Caminha, encontro beleza. Com carinho. Surgem casas, pendendo a cabeça ou os braços, de forma torta, desengonçada (têm as casas um rosto? Têm as casas mãos?). No fundo, se vivas e habitadas, até me aquecem a alma. Ali há gente, aquela casa é lar de alguém.

    Passei curvas apertadas e cruzei aldeias. Por exemplo, Argas, onde um carneiro me olhou com ar inquisidor (avisando). Passei dias no Mosteiro, perdida entre ribeiros, um bosque implantado por força de vontade e escadarias transformadas em monte.

    Passei noites num canto da Mata do Camarido, a ver se assim sabia o que era ser de Caminha, a raia, a irmandade silenciosa com Galiza, a Ínsua, Camposancos na saída do ferryboat.

    Sabem, Camposancos foi muitas coisas. Um edifício, só que tanto foi colégio jesuíta, como armazém de cereais, como campo de concentração de Franco, ali, de olhos postos em Portugal. Casas que podem ser assim, cascas de vários espíritos. Manoel de Oliveira ainda estudou ali, há umas vidas atrás.

    Venci a barra na mudança de maré a bordo de uma Gamela timonada por um senhor alcunhado de Garrafão. Fiz-me de forte, não sabia nadar, naquela altura, mas seria certamente imortal e, mais a mais, o Minho ali é nosso e brandura lusa não me ia encurtar a sentença.

    Mas a cor não sobrevive ao tempo.

    Talvez assim as memórias fiquem todas a preto e branco. E sépia (depende de lentes, papéis, químicos?).

    De Caminha ficaram-me meses de ondulação nas vagas, matas auspiciosas, a energia de então, os pastéis de lá, o Mosteiro, a Arga de São João, a água, a neblina (a água, em névoa), Santa Tecla (a água, ainda), as pedras (com água), uma ruína a caminho de Vilar de Mouros, as azenhas (moendo água), os caminhos encharcados.

    Sempre água.

    A cada volta.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Viseu, Covilhã, Sever do Vouga: crónica dos lugares

    Viseu, Covilhã, Sever do Vouga: crónica dos lugares

    Dei as quintas-feiras a Viseu e as sextas-feiras à Covilhã. Assim, contraída a preposição, que Covilhã é moça e Viseu é bonacheirão.

    A Sever do Vouga dei um sábado só e furou-se o pneu numa picada, que comeu o resto da tarde em lama e bombinhas de soprar ar viciado, a ver se ainda regressava ao asfalto. Fica a caminho, sabem?

    Os tempos e os dias são assim dedicados a lugares (o tempo, sempre o tempo), sabem?

    Os lugares são por vezes pessoas, uma ronda que fazemos pelos quilómetros que unem esta e aquela terra, onde está esta e aquela pessoa, que aproveitamos para apertar os ossos contra nós, numa era de distâncias sussurradas e silêncios que fazem muito barulho. (Sabem?)

    Lugares comuns.

    Então, nestes pontinhos do mapa lá fui eu lançada várias vezes, em movimento curvo, giratório, fisgado, catapultado. Nada suficiente para ouvir com detalhe a côr da pronúncia, só o suficiente para sentir a paisagem esboroar-se em volta e esbarrar-me com as pessoas (que por vezes são lugares).

    Mas sabem, (sabem a quê?) sabem umas vezes a açucar em pó, outras a folhado de manteiga bem fina, o doce da terra, entrar na padaria e pedir o que só eles têm. Outras a fumeiro, lenha, braseiro, gelo. O ar parado do país ignorado. O ar redondo dos lugares sem mar onde o Atlântico não chega a trazer o interesse de (bananas de) um certo borbulhar em Lisboa (mas já lá iremos a essa moça, hoje não).

    Depois de entontecida, rotunda após rotunda de Viseu, rochas empilhadas no caminho e que lindas que são, mais que pedras, já são como naturais ali, eternas, sigo o corte para a Covilhã, avisto a linha do comboio que pouco ou nada passa (nunca que chegue), montanhas que mudam de sítio hoje, pontes, viadutos que se apressam em unir nenhures, a força de Espanha a anunciar-se (anda cá, anda cá).

    Porque nascemos aqui e ali, não acolá, que coisa estranha esta, eu que poderia pensar com outra língua, sentir o sabor das coisas com outro nariz.

    E eis a Serra.

    Estrela.

    O topo parece tão pertinho, que estranho é deixar de ver (gelo).

    Dei as sextas-feiras à Covilhã. As voltas que a vida dá, se pensava eu que tal lugar existiria fora dos passeios de escola, e ei-la lá, digna, serrana, paciente.

    Coitadinho do motor que precisava de ar extra para vencer algumas ruas sem patinar muito, coitadinhas das minhas pernas que ficaram estendidas em músculo espalmado no dia seguinte (nem entendi porquê). O peito a esforçar-se e o ar que era pouco (puxa o ar, puxa! Mas não afogues o motor!)

    Oh Covilhã. Sabes que existe uma covilhã no sítio da minha terra? (Quantas Covilhãs existem em Portugal?)

    Saberás tu (ou Viseu, ou Sever, ou Aveiro, ou o Porto, ou a Régua, ou Moncorvo, ou todas as que ainda vou percorrer), que és um país tu só e ainda mais país tu com todas? Mais que certa moça solarenga com borbulhar (de bananas) que nem se lembra de onde veio?

    Terras que alimentam a capital do reino (das bananas). Lugares.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Porto: crónica dos lugares

    Porto: crónica dos lugares

    Nina,

    Ponto final nessa conversa estragada que nos leva a juventude e nos põe em causa. A velhice fica-nos bem e ainda agora começou, mais vale começar a vesti-la enquanto está engomada, que isto, depois de se engelhar, custa mais a vestir e vai daí estamos nós aos saltinhos a puxar as calças nas coxas, a ver se passa, a ver se escorrega (e a propósito de escorregar, o que escorregava mesmo bem era uma nova garrafa de vinho fino, que se vier neste comboio na volta nem estraga, vem sossegadinha e ao desembocarmos em Campanhã até subimos até à Igreja de Santa Clara num trago só, a pagar a promessa do meu avô, pois que sim, aprendi a falar, não se vê logo?, pelos cotovelos tripeiros que tomei emprestados à nascença antes de me puxarem para a Cova a ver se medrava em sementeira rasa!)

    boats docked near seaside promenade]

    Pois que então reportemos as dores, as agruras, as desilusões (e houve ilusões), o relatório médico com palavras ásperas a vaticinar-nos tratamentos e sentenças (desilusões?) para, logo em seguida, afogarmos a mágoa no Douro e sermos estridentes como mais ninguém nos deixa ser, só no granito percebem que voz alta e palavrão não magoa, é dito assim para viajar por penedos e estevas e chegar à outra margem. De que outra forma esperam respirar, assim baixinho não dá! De todo! Há que falar alto, quando alto deve ser falado, que enquanto programas a máquina para entrançar malhas coloridas dos casacos da nova colecção.

    (E Nina, entrou aqui agora uma senhora vestida de verde relva, dos pés à cabeça, quer ver, vê lá tu, as pedras, e já agora o resto também, pontua cada resposta minha com um “aaaah…” reticente, assim mesmo, e repete baixinho o fim das minhas frases porque se apressa – baixinho – já percebeu que o tempo é corrido, como os nós, e assim mesmo baixinho confunde-se quem fala o quê, um mistério, um paraquedismo que não se aguenta!)

    Pregamos em estilo Santa Catarina (tantas santas), ou Bolhão, ou tanto dá, Fernandes Tomás acima, ou abaixo, que nem aves canoras roucas pelos cigarros que ficaram a viver aqui dentro, ai os desarranjos urbanísticos e as reformas, ai os autarcas e os vereadores (e o raio que os partam a todos) e os nossos buracos continuam por tapar (e as contas também) e lá vem mais uma multa porque, enfim, existimos, e tínhamos de parar o carro ali, ainda para mais se ali vivemos, que coisa do demo.

    a train pulling into a tunnel

    Mas enfim, senta-te depressa, mais cedo, na estação de São Bento quando ainda não a tinham colonizado. Uma ou duas horas antes do comboio arrancar, para baixar a ansiedade que nos deprime e abafa e, mais a mais, até podes assim escolher um dos bancos que se vire para a frente ao seguir a linha do rio, e fugir à carruagem do motor senão logo ali ao virar Caíde já estamos certamente a assar, como as uvas, e sabes bem que te vou remoer baixinho que em tempos idos sempre podia ir para junto dos tropas no entre vagões, fumar mais um cigarrito com a perna estendida de fora quase a tocar na margem do rio até ganhar fôlego nas arribas e rezar pela chegada ao Pocinho por volta do pôr do sol. Em princípio, o pica já nem chateava.

    Depois disso resta rezar por um triste táxi que me faça o transbordo a Moncorvo, a ver se ainda janto os peixinhos no cigano (que não é cigano, a mulher é que é) do Sabor, antes que os gaviões do betão apareçam e dêem conta disto tudo e depois, que nem aspiradores, nos levem o peixe todo, de modo que só nos ficam barbatanas decepadas por pás que imagino existirem na tripa da barragem, a girar violentamente, para – dizem – nos alumiar a todos, mesmo que a linha termine ali e se quede o destino, não mais além – mesmo Barca d’Alva, onde está? –, que para além dali já não é nosso e bem difícil foi impedirem-me de investigar os famosos túneis de Mós, quando ainda era imortal e podia andar nessas aventuras de urzes roxas e terra vermelha, a testar a resistência e a dolência também.

    green and brown mountain beside body of water during daytime

    De modo que, Nina, agora que já pesam anos e já não somos imortais e quando te falo sabes que fico assim, como quem vende tralha de papel no quiosque de São Lázaro, quando ainda existia esse São Lázaro sabes? (tantos santos e santas), a contar histórias muito depressa antes que se me acabe a tinta e as folhas pautadas – que demorei a saber o que eram, demorei a perceber que eram pautas de outro tipo de música, a música do Porto que entrega aguça ao lápis rombo, pede lanche misto na confeitaria com Compal na montra e chama mil folhas a um bolo que não é o mil folhas e Napoleão ao que deveria ser, que em terra de molete a gente faz aquilo que quiser e a vida continua –, para que nos levem ao prado do Repouso a ver as águas a correr na mesma, com o estremecer da locomotiva ali na escarpa, e assim, dormimos, um dia.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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