Etiqueta: Análise

  • Médio Oriente: o destino de milhões decidido pelos mais baixos impulsos humanos

    Médio Oriente: o destino de milhões decidido pelos mais baixos impulsos humanos


    Enquanto políticos, analistas e jornalistas, em estilo desportivo, contam as horas até uma possível grande escalada – uma grande guerra – no Médio Oriente, e enquanto Israel, apesar das indicações de que poderá em breve encontrar-se na maior crise (de segurança) de toda a sua história, continua a cometer assassínios em massa e demolições na Faixa de Gaza, temos de questionar se há algum actor na comunidade internacional, em geral, que esteja a tentar travar o possível curso fatal de eventos. Ou questionar se serão as decisões tomadas pelos líderes apenas um reflexo da natureza humana central e de um estado de espírito completamente despudorado e irreversivelmente desumanizado.

    Depois de o líder político do Hamas, Ismail Haniya, ter sido morto na semana passada em Teerão, onde assistia à tomada de posse do novo presidente do Irão, Masoud Pezeshkian, as autoridades iranianas, lideradas pelo Líder Supremo Ayatollah Ali Khamenei, anunciaram uma vingança feroz. Um ataque a um convidado do Irão em território iraniano foi um passo que foi longe demais para o gosto das autoridades iranianas – um passo israelita que foi longe demais. Dado que o exército israelita também matou o número um operacional do movimento xiita libanês Hezbollah, Fuad Shukr, em Beirute, poucas horas antes da liquidação da Haniya, prevaleceu imediatamente a narrativa de que uma grande guerra regional com efeitos globais seria praticamente inevitável.

    Todos os passos subsequentes – por todas as partes envolvidas – foram passos para a guerra. Algumas tentativas diplomáticas – lideradas pela dissonância cognitiva e moral dos Estados Unidos, que aumentaram consideravelmente a sua presença militar na região, e pela União Europeia, completamente impotente, que aparentemente desconhece a grande ameaça de guerra à sua porta – revelaram-se patéticas. A sensação de que outra grande guerra já é aceite como um  facto irreversível soa como uma profecia autorrealizável da boca dos principais actores regionais e globais. Uma história pré-contada.

    O porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros iraniano, Nasser Kanani, fez recentemente uma declaração que deverá ficar nos anais da dissonância cognitiva e moral. “O Irão não quer uma escalada na região, mas Israel precisa ser punido pelo assassinato de Ismail Haniya na capital iraniana e evitar mais instabilidade na região.” Sim, é compreensível que o Irão queira vingança. Mas por que razão – da mesma forma, sabendo absoluta e antecipadamente as consequências da sua acção para a sua própria população civil, a liderança do Hamas fez ao atacar o Sul de Israel em 7 de outubro do ano passado – o Irão, com ataques retaliatórios contra Israel, directamente ou através dos seus representantes regionais, faria alguma coisa que certamente afectaria mais a população civil iraniana?

    Tem o regime iraniano conhecimento de que o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, tem tentado arrastar o Irão para uma grande guerra há muitos anos – e a um ritmo acentuadamente crescente nos últimos meses – e está pronto a fazê-lo (o mesmo se aplica à propagação dos confrontos com o Hezbollah, à brutalização do apartheid na Cisjordânia ocupada,  o bombardeamento do Iémen, os crimes de guerra em série em Gaza, os ataques a alvos iranianos na Síria e o conflito interno israelita em curso) para ameaçar existencialmente até o seu próprio Estado judeu?

    Os tambores de guerra já ressoam no Irão. A propaganda está em plena forma. Mas o país não é como é por acaso. E os militares também não. Por que – uma vez, para variar – não se fazer o que um homem (líder, país…) é forçado a fazer pela sua natureza?

    brown camel

    O destino de centenas de milhares, o destino de milhões é decidido pelos mais baixos impulsos humanos. As convenções internacionais, o direito internacional humanitário e as principais instituições internacionais, lideradas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, são apenas ecos de ilusões ouvidas há muito tempo. O que nunca foi mais nem menos do que uma ilusão. Talvez… um fantasma.

    Outro motivo para preocupações fortes de que uma grande guerra é inevitável foi a visita “não anunciada” do ex-ministro da Defesa russo e agora o número um do Conselho de Segurança Nacional, Sergei Shoigu, a Teerão: Shoigu e o seu superior são quase os últimos a querer a paz. O último que estaria pronto para pisar no travão. Muito pelo contrário.

    Uma situação muito semelhante – igual – é o apoio inabalável dos Estados Unidos a Israel e a Netanyahu, que há duas semanas no Congresso previu muito claramente o desenvolvimento de acontecimentos que controla remotamente com o seu maquiavelismo e assassínios em massa. Até agora, apenas em Gaza, onde o número de mortos da punição coletiva de Israel aos palestinos está inexoravelmente a aproximar-se de 40.000. Este número não inclui pelo menos 10.000 pessoas desaparecidas e presas entre as ruínas dos terrenos em chamas do enclave palestiniano.

    Boštjan Videmšek é jornalista


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  • Método de Hondt: o ‘milagre’ improvável que salvou a noite do Bloco e dos comunistas

    Método de Hondt: o ‘milagre’ improvável que salvou a noite do Bloco e dos comunistas


    Tão criticado por ser um método de alocação de deputados que beneficia os maiores partidos com o objectivo claro de promover maiorias, o método de Hondt acabou nas eleições de ontem em Portugal por beneficiar, de forma clara, o Bloco de Esquerda e a Coligação Democrática Unitária.

    E deveu-se a um ‘milagre’ extremamente improvável, fruto de diversos condicionalismos, dependentes da distribuição dos votos entre as duas principais forças partidárias (que rondaram, ambas os 32%), entre o terceiro e o quarto (Chega e Iniciativa Liberal, que rondaram os 9-10% e também mesmo de um peso relativamente significativos dos partidos que não elegeram, em particular o Livre, o ADN e o PAN. Só estes três últimos representaram 6,3% dos votos.

    Qualquer que fosse a distribuição dos votos pelas diversas forças partidárias, sabia-se que só era garantido um partido eleger em Portugal, com direito agora a 21 eurodeputados, se tivesse uma votação acima de pelo menos 4,762% (divisão de 100 por 21). Isso sucede desde as eleições europeias de 2014. Antes, em 2009 a fasquia era de 4,546%, quando Portugal teve 22 lugares; nas eleições de 2004, 1987 e 1988 era de 4,167%, quando tivemos 24 lugares; e nas eleições de 1994 e 199 era de 4%, quando tivemos 25 assentos no Parlamento Europeu.

    Ter menos do que esta fasquia não era, com efeito, sinónimo de derrota evidente, mas certo é que nas oito primeiras eleições para o Parlamento Europeu, somente o Bloco de Esquerda tinha conseguido eleger, em 2014, abaixo da fasquia: para ter garantia de um eurodeputado precisava de 4,762% e obteve 4,56%, reelegendo Marisa Matias. No entanto, note-se: a diferença foi de cerca de 0,2 pontos percentuais.

    Ora, nas eleições de ontem, é certo que o Partido Socialista beneficiou, como está no âmago, do método de Hondt, porque teve com 32.08%, o que dá um rácio de 6,7/21, mas obteve oito deputados. A Aliança Democrática e a Iniciativa Liberal beneficiaram de um mero ‘arredondamento’: o primeiro teve um rácio de 6,53/21 e o segundo de 1,9/21, elegendo respectivamente sete e dois eurodeputados. O Chega não se pode dizer que foi prejudicado pelo método de Hondt, pois recebeu dois deputados face ao rácio de 2,05/21.

    Desta vez, de entre os partidos mais votados, o Partido Socialista foi o único a beneficiar do método de Hondt, elegendo mais um do que a proporcionalidade de votos lhe daria.

    A distribuição afortunada dos votos dos eleitores pelas diferentes forças partidárias, mesmo daquelas que nada ganharam, foi a causa fundamental para que, desta vez, e de forma completamente insólita, não um mas logo dois partidos abaixo da tal ‘garantia mínima’ tivessem direito a um singelo assento no Parlamento Europeu. E, ao contrário do que sucedeu com Marisa Matias em 2014, nem sequer com uma votação relativamente próxima da tal fasquia. Ontem, o Bloco de Esquerda (com 4,26%) ficou aquém cerca de 0,5 pontos percentuais do limite de eleição garantida, o que significa que precisou de apenas 89,5% dos votos teoricamente necessários, enquanto a CDU ficou aquém de cerca de 0,64 pontos percentuais do limite de eleição garantida, significando, no seu caso, que necessitou somente de 86.5% dos votos teoricamente necessários.

    Não deixa assim de ser curioso como um método de distribuição de assentos tão pouco benevolente, em regra, para os pequenos partidos, foi desta vez a salvação de dois, ainda mais em simultâneo. Por um triz, as eleições de ontem não foram uma hecatombe histórica para o Bloco de Esquerda e a CDU.


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  • Novo Banco, Impresa & Trust in News: o triângulo dos negócios de media que ‘assaltaram’ um Estado conivente

    Novo Banco, Impresa & Trust in News: o triângulo dos negócios de media que ‘assaltaram’ um Estado conivente


    Os amigos são para as ocasiões. Mas, na alta roda da imprensa nacional – ou melhor, em certos grupos de media –, haja, para além de amigos, um Estado amigo, ou mais prosaicamente, um Governo amigo.

    A história começa em 2017, quando um dos mais relevantes grupo de media em Portugal, a Impresa, fundado pelo antigo primeiro-ministro Pinto Balsemão, estava em grandes sarilhos financeiros. Longe estavam os momentos áureos da colocação em bolsa desta empresa de media – detentora do canal televisivo SIC e do semanário Expresso, e de mais de uma dezena de outras publicações.

    Em Junho de 2000, como líder incontestada no sector da comunicação social, Pinto Balsemão conseguira, com sucesso, uma oferta pública de venda (OPV) por um preço por acção a rondar os 5,6 euros (o valor de abertura em bolsa, ainda em escudos), encaixando uma verdadeira fortuna. Após essa operação financeira, e mesmo com uma posição minoritária de cerca de 30%, a família Balsemão manteve o domínio do grupo de media, e também os principais cargos (e salários) do Conselho de Administração. Mas, pouco tempo depois, o ‘sonho’ dos investidores foi colapsando. A Impresa nunca concedeu qualquer dividendo, e foi-se endividando. Sinal disso, em 2017, a cotação chegou abaixo dos 20 cêntimos, ou seja, cerca de 2% da OPV.

    Ainda chegaram a existir negociações com a Globo, mas como Balsemão não desejava ceder o controlo da Impresa, o grupo brasileiro recuou. As dificuldades de liquidez eram, porém, sufocantes. Para piorar, o banco que sempre apoiara a Impresa, o BPI, fora comprado no início de 2017 pelo catalão Caixa Bank, que terá fechado a ‘torneira do financiamento”, tanto mais que se estava então em plena crise financeira do sector bancário. O passo seguinte foi optar por uma emissão de obrigações para encaixar urgentemente 35 milhões de euros, junto de investidores institucionais. A oferta de subscrição decorreu entre 3 e 14 de Julho desse ano, mas houve um desinteresse absoluto, e a Impresa teve de desistir desta opção.

    O ano de 2017 viria a ser um annus horribilis para a família Balsemão, depois lucros de 4,0 milhões de euros em 2015 e de quase 2,7 milhões no ano seguinte: teve de reconhecer 23,2 milhões de euros em imparidades do goodwill (um activo associado ao valor dos órgãos de comunicação social). Resultado imediato: os prejuízos desse ano ascenderam aos 21,6 milhões de euros. Mesmo com a dívida em fase descendente, certo é que a Impresa quase estava então a trabalhar para os bancos: cerca de um terço das receitas serviam então para pagar juros.

    E é aqui que entra a Trust in News. Na verdade, o reconhecimento das imparidades nas contas de 2017 no valor de 23,2 milhões de euros resultou, de forma paradoxal para um leigo, de uma receita, ou seja, da venda de um portfolio de revistas – onde a Visão era o título mais sonante – que se viria a concretizar nos primeiros dias do ano de 2018. Luís Delgado – um antigo jornalista, ex-administrador da Lusa e comentador de política e que estivera no negócio da restauração (Time Out Market) – criara pouco tempo antes uma empresa unipessoal com um capital social de apenas 10 mil euros. Mas, mesmo sem mais nenhum investidor conhecido, prometia pagar à Impresa um total de 10,2 milhões de euros. Como antes da venda, nos activos da Impresa, as revistas estavam exageradamente valorizadas (33,4 milhões de euros), a venda resultou, no imediato, numa menos-valia de 23,2 milhões de euros, daí o reconhecimento das imparidades, que veio a afectar o resultado líquido, dando um prejuízo histórico nesse ano.

    Antes da venda em 2018 do portfolio das revistas à Trust in News, a Impresa, fundada por Francisco Pinto Balsemão, teve de reconhecer imparidades (prejuízos de 22 milhões de euros). A venda por 10,2 milhões de euros, nunca se concretizou por aqueles montantes e os investidores nunca foram previamente informados nem saber quanto a Impresa afinal recebeu de Luís Delgado

    Concretizado este negócio em 2 de Janeiro de 2018, não se sabe, no entanto, quanto dos 10,2 milhões de euros acabou por sair dos cofres da Trust in News para, efectivamente, saldar esta compra, porque nos sucessivos relatórios e contas da Impresa, a partir de 2018, esses montantes não são referidos. Fica-se apenas a saber de reiteradas renegociações dos planos de pagamento. Isto sem que a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), que supervisiona as empresas cotadas em bolsa, se tenha mostrado interessada em esclarecer uma informação relevante para os investidores.

    Em todo o caso, pelos elementos do Portal da Transparência dos Media, deduz-se que alguns milhões de euros terão entrado na Impresa em 2018 via Novo Banco. Isto porque, nos registos respeitantes a 2018, a Trust in News admite que, além de manter então ainda uma dívida de 6,2 milhões de euros à Impresa – ou seja, terá pagado no primeiro ano, quatro milhões de euros – era devedora de 2,7 milhões de euros ao Novo Banco. Ou seja, tudo indica que a operação de compra de Luís Delgado tenha sido financiada pela instituição bancária que estava em processo de intervenção estatal.

    Em 2019, o Novo Banco ainda emprestaria mais dinheiro à Trust in News. No final desse ano, a empresa de Luís Delgado já devia 3,7 milhões de euros ao Novo Banco, ou seja, a dívida para esta instituição financeira aumentara cerca de um milhão de euros. No entanto, globalmente, os financiamentos bancários à Trust in News já ascendiam aos 4,5 milhões de euros.

    Além desses alguns milhões de euros (pelo menos quatro milhões) de encaixe líquido, vindo do Novo Banco, a Impresa também conseguiu aliviar a sua folha salarial, pois só em gastos com pessoal as revistas vendidas a Luís Delgado representavam (e ainda representam) cerca de oito milhões de euros por ano. Acresce, contudo, que a Trust in News ‘herdou’ um portfolio de revistas financeiramente ‘tóxicas’. E desse modo, a empresa de Luís Delgado aumentou, ao longo dos anos, o passivo de forma descontrolada, incluindo dívidas ao Fisco, à Segurança e ao Novo Banco. Mesmo a Impresa acabou já por assumir, nas suas contas de 2023, que a Trust in News não lhe vai pagar 2,5 milhões de euros ainda em dívida.

    Luís Delgado (à esquerda) comprou em 2 de Janeiro de 2018 à Impresa um conjunto de títulos, entre as quais a revista Visão, num negócio oficialmente envolvendo o pagamento de 10,2 milhões de euros a ser concretizado em dois anos e meio.

    E tudo isto se transformou num péssimo negócio para o Estado que, no decurso do Processo Especial de Revitalização (PER) da Trust in News que deu entrada no Tribunal de Sintra em Abril, só tem agora duas alternativas, ambas perdedoras: ou deixa cair a empresa de Luís Delgado para a insolvência, não havendo activos para recuperar as dívidas à Segurança Social e à Autoridade Tributária e Aduaneira (ATA); ou então aprova o plano de recuperação, assumindo um perdão integral ou parcial. Nos dois casos, o contribuinte sai penalizado.

    No meio deste estranho negócio que está agora, ao fim de apenas seis anos, na antecâmara da insolvência, surpreende, ou não, o silêncio mudo em torno deste negócio entre a Trust in News e a Impresa, envolvendo o Novo Banco. Afinal, não é todos os dias – uma força de expressão para dizer que é absurdo suceder – que uma instituição bancária, ainda mais o Novo Banco que estava sob alçada do Fundo de Resolução, autorizar a concessão de um empréstimo de vários milhões de euros a uma empresa com um único sócio, um capital social de 10 mil euros e para um negócio que não tem sido assim tão rentável nos tempos recentes

    Mais estranho ainda é o silêncio do Governo, tanto do actual como do anterior, que assiste sem reacção visível – a não ser promessas de apoio aos media com o dinheiro dos contribuintes – ao facto de uma empresa com capital social de 10 mil ter aumentado as suas dívidas ao Estado, em apenas cinco anos, acima dos 11,4 milhões de euros. Um autêntico ‘milagre’ inalcançável para a generalidade das empresas.

    Mais estranho é observar que a família Balsemão não parece estar chateada com Luís Delgado por este não lhe ter pagado integralmente, nem pouco mais ou menos, os 10,2 milhões de euros oficialmente acordados em 2018. Afinal, Luís Delgado mantém presença frequente no canal da SIC, pertencente ao Grupo Impresa, como comentador político.

    (Foto: D.R./ Ministério das Finanças)

    Mas a utilidade do Novo Banco para a Impresa não se circunscreveu ao negócio das revistas com a Trust in News. Também em 2018, no mês de Junho, o Novo Banco comprou a sede do Expresso (e agora da SIC) à Impresa, por 24,2 milhões de euros, apesar de a banca estar, naquela altura, a livrar-se de activos imobiliários. Este negócio envolveu a locação financeira pela Impresa por um período de 10 anos.

    Ninguém pode duvidar que a entrada nos negócios da Impresa de um banco a ser capitalizado com empréstimos do Estado só podia ser possível com o aval do Ministério das Finanças e a anuência do Fundo de Resolução. Em resumo, a intervenção do Novo Banco na compra da sede – e na ‘injecção’ de liquidez imediata – mostra ser uma intervenção política que visou dar a mão a Balsemão num momento de aflição

    Ou seja, em um ano, o Novo Banco não apenas pagou 24,2 milhões de euros à Impresa, com um retorno pela locação (que nem, sequer se encontra plasmado nas contas do grupo de media), como financiou parte da compra da ‘carteira’ de revistas por parte de Luís Delgado, que só teve de meter 10 mil euros para ser dono de 17 revistas.

    Acresce que, se a Trust in News está à beira da falência (se o Estado não lhe der a mão), a Impresa não está melhor, apresentando um passivo de 222,6 milhões de euros em 2023, dos quais mais de 128 milhões em empréstimos de curto e longo prazos. E 70% dos seus activos são goodwill referentes aos títulos da imprensa escrita e televisão, que não valerão, tal como se evidenciou na operação das revistas a Luís Delgado, aquilo que surge no balanço.

    Quanto ao terceiro protagonista desta pouco dignificante história de negócios dos media em Portugal, o Novo Banco, prossegue como se nunca tivesse tido pés de barro, graças aos muitos fios de aço feitos de dinheiros públicos, que o foram segurando ao longo dos anos. Até porque as dezenas de milhões que acabaram por beneficiar a Impresa e a Trust in News, em negócios que arriscam a acabar mal, são uma gota de água – uma gota de água num ‘oceano’ de ajudas do Estado.

    Recorde-se que este banco, que ficou supostamente com os activos ‘bons’ do BES, foi vendido em 2017 ao fundo norte-americano Lone Star que ficou com 75% do seu capital social, ficando os restantes 25% no Fundo de Resolução bancário – que está na esfera do Estado. O acordo de venda previa injecções de capital até 3.890 milhões de euros para suprir necessidades de capital devido ao registo de perdas, nomeadamente com créditos ‘maus’ herdados do BES. Assim, mesmo depois da venda, o banco continuou a receber injecções de capital estatais.

    Ao todo, só entre 2014 e 2020, o Novo Banco engoliu mais de 11.200 milhões de euros, sendo que, deste total, mais de metade proveio do Estado. Os contribuintes emprestaram, assim, sem garantias absolutas de retorno, 6.030 milhões de euros ao Novo Banco, dos quais 3.900 milhões na sua constituição e 2.130 milhões de euros entre 2017 e 2020, ao abrigo do acordo de venda. Desde 2020 foram feitas novas injecções de capital ao abrigo deste acordo, o que elevou o valor global para cerca de 12.500 milhões de euros. Dos 3.890 milhões de euros do mecanismo para cobrir perdas herdadas do BES, o Novo Banco consumiu 3.400 milhões de euros. Acresce que o Fundo de Resolução bancário ‘forneceu’ 1.000 milhões ao Novo Banco em 2014 e mais 848 milhões de euros entre 2017 e 2020, num total de 1.848 milhões de euros.

    Mas atenção: o Novo Banco poderá ainda ir buscar mais 180 milhões de euros ao Estado, depois de ter vencido disputas em tribunal arbitral com o Fundo de Resolução, como noticiou o Jornal Económico. Hoje, o Fundo de Resolução anunciou que vai pagar 128 milhões de euros ao Estado para comprar mais 4,14% do capital do Novo Banco, passando a deter 13,54% do capital. Na prática, o Fundo de Resolução compra os direitos de conversão de créditos fiscais, ao abrigo do regime dos impostos diferidos. Este regime tem permitido ao Estado deter uma posição no banco convertendo créditos fiscais em capital. Ou seja, sem esta compra do Fundo de Resolução, os contribuintes portugueses iriam reforçar a sua posição no Novo Banco. Assim, ‘encaixam’ 128 milhões de euros, pagos pelo Fundo de Resolução bancário que está na esfera estatal.

    two Euro banknotes

    O Novo Banco continuará a ser detido em 75% pelo Lone Star, o Fundo de Resolução sobe a sua posição, enquanto o Estado, através da Direcção-Geral do Tesouro, dilui a sua fatia para 11,46%. Certo é que, no final de 2022, o Fundo de Resolução ainda devia mais de 6.000 milhões de euros ao Estado.

    E é neste cenário de muitos milhões, para aqui e para ali, que se vai esfumando o dinheiro dos contribuintes, e se fazendo negócios dos media, sempre com prejuízos. No final, o Governo Montenegro ainda anuncia mais ajudas para continuar a beneficiar o infractor.


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  • Europeias: com os votos das legislativas, Chega terá quatro deputados, enquanto comunistas e PAN desaparecem

    Europeias: com os votos das legislativas, Chega terá quatro deputados, enquanto comunistas e PAN desaparecem

    Nenhuma eleição é igual a outra, mas com a proximidade das Europeias a distribuição dos votos do passado domingo servirão como referência, pelo menos psicológica. O PÁGINA UM foi ver como ficariam distribuídos os mandatos para eurodeputados se as percentagem das eleições de Junho fossem exactamente semelhantes às do passado domingo. Há duas ‘expulsões’ quase certas e duas estreias garantidas, uma delas fulgurante. Conheça também algumas estórias sobre os sufrágios que se iniciaram em 1987, e que não parecem muito estimulante para os portugueses, que os ‘brindam’ com taxas de abstenção que já suplantam os 60%.


    Daqui a cerca de três meses os portuguesas serão chamados de novo às urnas. Pela nona vez desde a entrada de Portugal na então Comunidade Económica Europeia – que evoluiu até à actual União Europeia –, apresta-se a mais uma dança de cadeiras para eleger 21 representantes portugueses para integrar 705 deputados no Parlamento em Bruxelas (e Estrasburgo e Luxemburgo). E, embora as comparações com sufrágios internos possam ser falíveis, não será muito provável, devida à estreita proximidade temporal, que haja grandes diferenças entre os resultados das recentes eleições legislativas – que quebraram, pela segunda vez em democracia, o bipartidarismo clássico – e as eleições para o Parlamento Europeu. Excepto, claro, como disse certo dia Marcelo Rebelo de Sousa, se Cristo descer à Terra.

    Nas eleições do parlamento europeu não se aplica os círculos distritais – que, claramente prejudicam os partidos mais pequenos –, entrando todos os votos para o ‘bolo nacional’, mas existe um óbvio obstáculo: como agora são apenas eleitos 21 deputados – já chegaram a ser 25, em 1994 –, mostra-se necessário, em princípio, pelo menos, uma votação a rondar os 3,7% para garantir um eurodeputado.

    view of stadium interior

    Porém, esse valor mínimo depende de outros factores, entre os quais a própria distribuição dos votos, por via do uso do método de Hondt, e que beneficia sobretudo os maiores partidos. Até agora, somente em 1987 – as primeiras eleições europeias em Portugal – houve três partidos a ultrapassarem os 15%, sabendo que os dois maiores (PS e PSD) costumam, mesmo nos maus sufrágios estar acima dos 20% e nos bons acima dos 30%.

    No sufrágio de estreia para a Europa, Francisco Lucas Pires, encabeçou a lista de um ainda pujante CDS e conseguiu 15,4%, ficando a cerca de sete pontos percentuais do PS (com Maria de Lourdes Pintasilgo como cabeça de lista), numas eleições ganhas pelo PSD (com Pedro Santana Lopes a liderar a lista), que obteve 37,45%.

    Apesar disso, e estando então em jogo 24 eurodeputados, o CDS somente conseguiu quatro mandatos (razão de 3,85% por deputado), ficando o PS com seis (razão de 3,75% por deputado) e o PSD com 10 (razão 3,75% por deputado). Neste sufrágio, a CDU conseguiu 11,5% e elegeu três eurodeputados (razão 3,83% por deputado), enquanto o PRD, já em ‘queda’, ainda elegeu um eurodeputado (Medeiros Ferreira) com 4,5% dos votos.

    Saliente-se que estas eleições para o Parlamento Europeu – que elegeram deputados por apenas dois anos, e não cinco como habitualmente, por via da adesão recente de Portugal à CEE – tiveram uma ‘proximidade absoluta’ com as legislativas antecipadas desse ano, por via da queda do Governo minoritário de Cavaco Silva em resultado de uma moção de censura do PRD. Coincidiram na data. E os resultados não foram exactamente semelhantes porque as circunstâncias e os protagonistas eram muito especiais.

    Com efeito, nas legislativas de 1987, Cavaco Silva arrecadaria a sua primeira maioria absoluta, com uns estrondosos 50,2%, e a grande diferença com o sufrágio para o Parlamento Europeu surgiu da capacidade dos sociais-democratas de ‘capitalizarem’ nas urnas para a Assembleia da República os votos dos centristas. O então líder do CDS, Adriano Moreira, somente conseguiu 4,44%, ou seja, cerca de menos 11 pontos percentuais do que o seu ‘camarada’ Lucas Pires nas europeias, enquanto Cavaco Silva suplantou em quase 13 pontos percentuais a votação de Pedro Santana Lopes. O actual presidente da autarquia da Figueira da Foz referiu, mais tarde, que a estratégia do PSD foi de priorizar as legislativas, mesmo do ponto de vista de materiais de campanha eleitoral. Nos restantes partidos que então elegeram eurodeputados (PS, CDU e PRD), as diferenças entre os dois sufrágios foram mínimas.

    Denotando, este exemplo de 1987, a importância dos cabeças-de-lista apresentados pelos diversos partidos, certo é que nunca, como em 2024, houve um quadro político em vésperas de eleições europeias em claro ‘tripartidarismo’. Hoje, a situação apresenta algumas similitudes com aquela saída das eleições de 1985 – com o PRD próximo dos 20% e PSD e PS então também abaixo dos 30% –, mas as Europeias realizaram-se dois anos depois, em 1987, quando o PRD cometera um ‘harakiri’ político ao fazer cair o Governo minoritária de Cavaco Silva.

    Pedro Santana Lopes, aos 31 anos, foi o primeiro vencedor das primeiras eleições para o Parlamento Europeu em Portugal, no ano de 1987, obtendo 37,45%. Mas a sua vitória foi ofuscada por coincidir com as eleições legislativas, onde Cavaco Silva ‘cilindrou’ a oposição, conseguindo uma maioria absoluta com 50,2%. Imgem: RTP Arquivo (debate contra Maria de Lourdes Pintasilgo)

    Por esse motivo, mostra-se interessante olhar como será a distribuição dos 21 mandatos no Parlamento Europeu nas eleições do próximo dia 9 de Março com as exactas percentagens obtidas pelos partidos nas recentes eleições legislativas. Assim, se no domingo as notícias não foram nada favoráveis aos comunistas, então para as Europeias afiguram-se dramáticas. Com efeito, contas feitas, com a distribuição dos outros partidos, os 3,3% da CDU no passado domingo serão insuficientes para eleger um eurodeputado. Se se mantivesse a abstenção nos 33,7% registada no domingo – nas Europeias a abstenção tem ultrapassado os 60% –, os comunistas necessitariam de mais cerca de 20 mil votos para ‘sacar’ um mandato. Saliente-se que os comunistas (em coligação com o PEV) têm actualmente dois eurodeputados e representação no Parlamento Europeu desde 1987.

    Obviamente, se a CDU conseguir Governo os 202 mil votantes do domingo passado e só forem votar os 3,3 milhões de eleitores das Europeias de 2019, então ficará com cerca de 6% do total, garantindo facilmente um mandato. Mesmo assim muito longe dos históricos 14,4% de Carlos Carvalhas em 1989, que permitiu a eleição de quatro deputados, incluindo um (Maria Santos) do Partido Ecologista Os Verdes, parceiro habitual dos comunistas.

    Porém, neste exercício de projectar as percentagens das recentes legislativas para o universo das próximas Europeias, a CDU não será o único partido com assento parlamentar em Portugal a não ter representação no Parlamento Europeu. Também o Livre – cujo co-líder, Rui Tavares, foi já eurodeputado pelas listas do Bloco de Esquerda em 2009, desvinculando-se depois em 2011 – não conseguirá qualquer mandato europeu se mantiver os 3,26% do domingo passado. E quanto ao PAN mais difícil ainda se torna: os 1,93% em Europeias valem nada. Perspectiva-se assim a perda do seu único eurodeputado eleito em 2019 com 5,08%.

    Quanto ao Bloco de Esquerda – que desde 2004 está no Parlamento Europeu, tendo chegado mesmo a eleger três deputados em 2009 –, manter-se-á em Bruxelas se obtiver nas Europeias os 4,46% das Legislativas do passado domingo. Porém, reduzido a um representante.

    Francisco Lucas Pires em 1987, como cabeça-de-lista do CDS en , foi quem maior percentagem de votos alcançou em eleições europeias (15,4%) a seguir aos ‘dois grandes’. Será esta faquia ultrapassada nas eleições de Junho?

    Quem também perderá deputados, caso tenha a mesma percentagem das Legislativas, será o Partido Socialista. Em 2019, os 33,38% resultaram em nove deputados, mas os 28,66% de agora darão apenas para sete. A perda de dois deputados dever-se-á sobretudo aos acertos finais para distribuição dos últimos mandatos.

    Já a Aliança Democrática, com os 29,49% de domingo passado, ficará com oito deputados, o que se traduz num ganho líquido de apenas um eurodeputado se considerarmos o somatório dos mandatos saídos das eleições europeias de 2019, onde PSD conseguiu seis deputados e o CDS apenas um. Aliás, é neste caso que se mostra a vantagem das coligações (se não forem ‘tóxicas’) em termos de optimização da distribuição dos mandatos pelo método de Hondt: em 2019, se se somarem os votos individualizados de PSD (21,94%) e CDS (6,19%), a razão percentagem por deputado fica em 4,0%, enquanto com os 29,49% – que dariam para oito deputados – essa razão passa para 3,7%.

    No caso da simulação do PÁGINA UM, esta união mostra-se mais relevante: mesmo com perda de influência eleitoral do CDS – que regressou à Assembleia da República à boleia da AD –, com a distribuição de votos nas Legislativas de domingo passado, o 21º deputado nas Europeia seria ‘entregue’ à Aliança Democrática por uma diferença de cerca de 20 mil votos. Ou seja, sem os centristas – que valem certamente mais de 20 mil votos –, o PSD elegeria sete eurodeputados, tantos como o PS.

    Simulação da distribuição dos eurodeputados pelo método de Hondt se os diversos partidos tivessem os mesmos votos das legislativas (ou, obviamente, as mesmas percentagens). Análise: PÁGINA UM, a partir do simulador do Ministério da Administração Interna.

    Quem entrará seguramente no Parlamento Europeu se mantiverem as percentagens das Legislativas serão a Iniciativa Liberal e o Chega. No caso dos liberais – que em 2019 tiveram apenas 0,88% nas Europeias, com Ricardo Arroja –, os 5,08% são largamente suficientes para recolher um mandato, embora muito longe de um segundo.

    Quanto ao Chega, a estreia vai ser bastante auspiciosa: os 18,06% de domingo darão para quatro mandatos, o que constitui, descontada a eleição de 1987, a estreia mais fulgurante de um partido português no Parlamento Europeu. Com efeito, estas serão as primeiras eleições europeias para o Chega, embora André Ventura tenha sido candidato em 2019 na coligação Basta!, criada antes do final do processo de legalização do seu partido, e que integrava o Partido Popular Monárquico (PPM), o Partido Cidadania e Democracia Cristã (PPV/CDC) e ainda o movimento Democracia 21. Os 49.496 votos então obtidos por André Ventura deram apenas 1,49%, deixando-o muito longe de Bruxelas e sem a chama actual. Nas Europeias de 2019, Ventura destacou-se por ter faltado a um debate ‘à molhada’ na RTP com os candidatos dos pequenos partidos, optando por ir fazer comentário sobre futebol na CMTV.

    Em todo o caso – e como já referido nas eleições de 1987 para os desempenhos Cavaco Silva & Santana Lopes e Adriano Moreira & Lucas Pires –, muito vai depender não apenas da capacidade de segurar eleitores das Legislativas para as Europeias mas também dos cabeças-de-lista, embora não se esteja a ver que qualquer partidos consiga encontrar um ‘coelho’ para tirar da cartola e entusiasmar o eleitorado a seu favor.

    André Ventura concorreu em 2019 para as eleições parlamentares integrado na coligação Basta!, antes mesmo da legalização do Chega no Tribunal Constitucional. Agora, se mantiver a fasquia alcançada nas recentes legislativas, o Chega elegerá quatro eurodeputados.

    Mesmo se se mostra mais difícil em eleger um deputado para Bruxelas, em comparação com a eleição para a Assembleia da República, as Europeias têm sido palco de algumas surpresas e quase-surpresas, o que não será provável nas próximas. A maior surpresa ocorreu em 2014 quando o antigo bastonário da Ordem dos Advogados Marinho e Pinto aproveitou o seu mediatismo para integrar o Movimento Partido da Terra, conseguindo dois eurodeputados com 7,14%. Acabaria tudo em ‘divórcio’, e Marinho e Pinto criaria, um ano mais tarde, o Partido Democrático Republicano que nunca teve sucesso eleitoral interno, ‘evoluindo’ para a actual Alternativa Democrática Nacional (ADN).

    A maior quase-surpresa foi protagonizada por Miguel Esteves Cardoso (MEC) em 1987 – um ano antes de ter fundado, com Paulo Portas, o semanário O Independente, que tantas dores de cabeça daria a Cavaco Silva. Aos 31 anos, MEC foi candidato pelo Partido Popular Monárquico e obteve 2,77%, fazendo uma campanha eleitoral marcante. Dois anos mais tarde – numa altura em que o MDP-CDE (um histórico pequeno partido que depois acabaria fundido no Bloco de Esquerda) procurou surpreender com a candidatura do maestro António Victorino d’Almeida –, MEC fez nova tentativa, mas conseguiu somente 2,07%.

    Desconhecendo-se ainda, com excepção da Iniciativa Liberal, quem serão os cabeças-de-lista das próximas Europeias, convém salientar que, ao longo das diversas eleições, por lá passaram personalidades que acabariam mais tarde como primeiros-ministros, como Pedro Santana Lopes e António Costa. Ou então mesmo ex-primeiros-ministros, como foram o caso de Maria de Lourdes Pintassilgo e de Mário Soares (que foi também Presidente da República). No caso de Soares, a sua candidatura em 1999 enquadrava-se numa estratégia socialista, defraudada, de o colocar como presidente do Parlamento Europeu.

    António Costa detém, como cabeça-de-lista, a maior vitória nas eleições europeias. Em 2004 conseguiu 44,5%, superando por pouco o recorde de Mário Soares em 1999 (43,1%).

    O peso do socialista Mário Soares viu-se nessas eleições, obtendo, até então, a vitória mais expressiva em eleições europeias, com 43,07%, um valor que, em legislativas, daria para ‘sacar’ a maioria na Assembleia da República. Porém, como os mandatos das Europeias são atribuídos para todo o território, o melhor que o PS conseguiu foram 12 mandatos, metade daqueles a que Portugal tinha então direito.

    Acrescente-se que essas eleições de 1999, em pleno guterrismo, tiveram um ‘cartaz de luxo’: Mário Soares pelo PS, Pacheco Pereira pelo PSD  e Paulo Portas, pelo CDS, que ainda teve como antagonista (não eleito) o seu irmão mais velho, Miguel Portas, que não foi então eleito – seria quatro anos mais tarde.

    Cinco anos mais tarde, com António Costa a liderar a lista socialista, o recorde de Soares seria batido: o ainda actual primeiro-ministro conseguiu 44,57% nas eleições europeias de Junho de 2004, beneficiando da insatisfação popular ao Governo de Durão Barroso, que se demitiria no mês seguinte para ocupar o cargo de presidente da Comissão Europeia. Foi a última vez que qualquer partido superou a fasquia dos 40% – aliás, a partir dessas eleições nunca mais ninguém ultrapassou os 34%. E, provavelmente, se se mantiver a linha das eleições legislativas deste mês, pode suceder que nenhum partido utrapassse nas Europeias a fasquia dos 30%.


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  • Aquecimento global?! E que tal olhar para o Inverno em vez de temer o Verão?

    Aquecimento global?! E que tal olhar para o Inverno em vez de temer o Verão?


    A primeira pergunta deve ser vista em tom provocatório, porque feita por alguém que assume, desde os idos anos 90, antes do wokismo climático, a existência de alterações climáticas (que não se mede numa perspectiva meteorológica) decorrentes do aquecimento global, mas que rejeita histerismo (colectivos e individuais), hipocrisias (sobretudo políticas) e sensacionalismos (sobretudo de jornalistas) e renega, crítica e abomina toda uma corja de oportunismos ao melhor estilo do greenwashing (sobretudo de certas empresas, mas também de políticos como António Guterres), enquanto se continuam os negócios e as negociatas, e o povo, às tantas, acaba apontado como o culpado a merecer justa punição. E acredita; e cala; até concorda com a perda de direitos; e, às tantas, de liberdades – enquanto os supostos “salvadores do Planeta” viajam, comem e divertem-se para “salvar o Planeta” para aqueles que, acusados, estão “presos” para não “destruírem mais o Planeta”.

    Em abono da verdade, independentemente das alterações climáticas decorrerem dos gases com efeito de estufa, o Mundo tem um paradigma energético para resolver, e que passa também por resolver problemas de poluição, de uso ineficiente de recursos. Mas a solução para tudo isto tem de vir de políticos e de diplomatas, porquanto está nas mãos da China, dos Estados Unidos e da Índia (a União Europeia não conta, pelo peso residual). E tem de ser feito sobretudo sem radicalismos e sem tentativas de ressuscitar a energia nuclear. E também passa por assumir que, provavelmente, em muitos casos a solução será a possível: a adaptação, embora com evidentes perdas e com embates geopolíticos e sociais.

    Orange Safety Ring on Man Shoulder Near Body of Water

    Quanto à segunda pergunta, esta faz cada vez mais sentido, sobretudo no mundo ocidental onde o discurso político e mediático em redor do aquecimento global se estafa nas alegadas ondas de calor (por vezes inexistentes) supostamente terríficas e letais, e não em outros problemas decorrentes das alterações climáticas muito mais graves, como seja a redução dos recursos hídricos, o aumento do risco de incêndios (que não significa que haja incêndios e que não se possa fazer nada para evitar que o risco se transforme em dano) e as alterações profundas de habitats.  

    Mas esta pergunta também faz todo o sentido porque me parece essencial saber se, de facto, se notam efeitos das alterações climáticas – e do aquecimento global, portanto – na mortalidade em Portugal durante o Verão, a grande preocupação política e dos media nacionais.

    Ou seja, devemos estar mesmo preocupados com as ondas de calor no Verão do ponto de vista de Saúde Pública? Ou devemos considerar esse um problema mais secundário se comparado com as outras épocas do ano, em especial com o Inverno? Ou seja, devemos repetir o que se fez entre 2020 e 2022: olhar para a covid-19 sem cuidar do resto?

    Verão em Portugal em 2023, imaginado pelo Midjourney.

    Vamos então por partes. A resposta sobre se o aquecimento global está a causar em Portugal mais mortes, a resposta não pode ser dada com um simples sim, ou um simples não.

    Primeiro, porque, na verdade, o matar mais ou menos, quando falamos em efeitos de alterações climáticas, requer um período relativamente longo para análise, de várias décadas. E, nessa linha, entram factores que interferem com análises simples, porque se mostra muito difícil isolar o fenómeno climático dos demais, que numa primeira análise são muito mais relevantes.

    Vejamos: em Portugal, a população vulnerável – susceptível de ser afectada mortalmente por eventos associados às variações da temperatura e outras variáveis meteorológicas (chuva, humidade, vento, etc.) – foi modificando-se ao longo dos tempos quer por factores demográficos quer por factores associados à Saúde Pública e às condições sanitárias e médicas.

    Apenas a título de exemplo – e é algo que escapa à maioria das análises –, saliente-se que a mortalidade infantil ainda era elevadíssima há algumas décadas, e os óbitos de recém-nascidos tinham um peso imenso. Por exemplo, em 1970, morreram ainda 10.027 bebés com menos de um ano de idade, o que representou 10,8% do total dos óbitos desse ano. Se recuarmos para os anos 50 ou ainda antes, os números são ainda mais pavorosos. No ano de 2022, o número de mortes nesse mesmo grupo etário foi de 233, representando somente 0,02% do total.

    Verão em Portugal em 1951, imaginado pelo Midjourney.

    Assim, quando observamos, por exemplo, a mortalidade em meses de Verão nas primeiras décadas do século XX, salientam-se alguns picos significativos, mas não se devem a óbitos necessariamente relacionados com temperaturas extremas (letais agora para os idosos), mas mais à proliferação de doenças transmissíveis por água inquinada ou alimentos contaminados, e que causavam elevada mortalidade em bebés e crianças.

    Por outro lado, o grupo de idosos foi-se alterando de forma significativa, com todas as vulnerabilidades que tal implica. Além disso, por exemplo, alguém com 65 anos em 1970 já estaria a atingir a sua esperança de vida à nascença, quando agora uma criança que nasce pode ambicionar ultrapassar os 80 anos. Uma pessoa de 65 anos de há 50 anos não apresentava as mesmas condições físicas de uma que agora tenha essa mesma idade. E a ciência médica consegue mantê-la em boas condições por mais tempo.

    Acresce ainda que as condições de vida foram registando evoluções muito favoráveis, pelo que muitas doenças crónicas e agudas, antes bastante letais, são hoje raras e perfeitamente controladas.

    Inverno em Portugal em 2023, imaginado pelo Midjourney.

    Significa isto, de uma forma muito sintética, que a vulnerabilidade é um conceito muito fluído e dinâmico, e por isso devemos ter alguma prudência quando fazemos comparações ao longo do tempo em populações que, embora do mesmo país, não têm uma estrutura demográfica similar e muito menos um “quadro clínico” comparável. A população de Portugal de 2023 não é estruturalmente semelhante à do ano 2000 e muito menos à de 1975 ou de 1950…

    Em todo o caso, uma análise para apurar se há mais ou menos mortalidade numa determinada época do ano carece sempre de se saber qual o “comportamento” das outras épocas do ano. No caso concreto de Portugal, desde sempre – e pegando, por agora, nos valores mensais desde 1951 –, o Inverno (considerando os meses de Dezembro, Janeiro e Fevereiro) sempre foi, e continua a ser, muito mais mortífero do que o Verão (considerando os meses de Junho, Julho e Agosto), que, apesar de toda a histeria mediática em redor do aquecimento global, se mantém como a época do ano menos mortífera.

    Desde 1951, muito raramente o mês de Janeiro não é o mês mais letal – e se tal sucede, então é “substituído” por Dezembro, seguindo-se, normalmente, Fevereiro como o terceiro pior mês. Em média, o Inverno abrange 29,8% das mortes entre 1951 e 2022, variando dos 28,6% na década de 1950 até aos 30,7% da década de 1970. Na década mais recente (década de 2010), o Inverno englobou 29,6% das mortes.

    Inverno em Portugal em 1951, imaginado pelo Midjourney.

    Em 2021, por via da pandemia da covid-19 e de outros factores que causaram a ruptura do Sistema Nacional de Saúde, os meses de Inverno representaram 35,1% do total das mortes, sendo que 15,7% foi apenas em Janeiro (o valor mais elevado num mês desde 1951).

    No oposto, o Verão sempre tem sido historicamente a época do ano menos mortal, agregando 22,0% do total dos óbitos registados entre 1951 e 2022 – uma diferença, para menos, de 7,8 pontos percentuais, o que é muito significativo. As variações por decénio não são muito relevantes: 21,5% na década de 1950; 21,1% na década de 1960; 21,4% na década de 1970; 22,5% na década de 1980; 22,3% na década de 1990; 22,6% na década de 2000; e 22,3% na década de 2010. Mesmo estando a falar de grupos populacionais distintos entre 1951 e 2020, não se observa qualquer agravamento em termos médios.

    Na verdade, o Verão é a época do ano com menor taxa de mortalidade, independentemente de se considerar o período entre o solstício de Junho e o equinócio de Setembro, ou os meses de Julho a Setembro ou os meses de Junho a Agosto. Tem uma mortalidade inferior também significativamente à Primavera e ao Outono.

    Peso relativo (% em relação ao total do ano) dos meses de Inverno (Janeiro, Fevereiro e Dezembro) na mortalidade desde 1951 até 2022. Linha branca mostra tendência. Fonte: INE. Análise: PAV.

    Numa análise mais fina, pode-se tentar identificar eventuais acréscimos de mortalidade no período do Verão ao longo das últimas décadas, mas aí deparamo-nos com a tal situação de se comparar alhos com bugalhos. Por exemplo, se definirmos que entre Junho e Agosto (que nesta análise se considera a época de Verão) a ocorrência de um mês com mais de 8% das mortes no ano relevante, então contabilizam-se seis casos na década de 1950 (dos quais cinco em Agosto e um em Julho), apenas dois na década de 1960 (ambos em Agosto), nenhum caso na década de 1970, quatro na década de 1980 (um em Junho, dois em Julho e um em Agosto), dois na década de 1990 (um em Julho e outro em Agosto), três na década de 2000 (dois em Julho e um em Agosto), e três na década de 2010 (dois em Julho e um em Agosto).

    Na verdade, a maior prevalência de meses de Verão particularmente mortíferos na década de 50 não parece dever-se simplesmente a ondas de calor, mas sim a doenças potenciadas por problemas sanitários associados a temperaturas mais quentes.

    Na verdade, fazendo análises estatísticas um pouco mais complexas, até se poderia concluir que existe verdadeiramente um fenómeno de crescimento da mortalidade por causa das alterações climáticas, embora depois, provavelmente, constatar-se-ia que por “troca” de um Outono mais ameno. Aliás, esse fenómeno aparenta ser evidente numa análise estatística simples desde a década de 50: a mortalidade relativa dos meses de Outono (Setembro a Novembro) tem-se tendencialmente aproximado da dos meses de Verão (Junho a Agosto).

    Peso relativo (% em relação ao total do ano) dos meses de Primavera (Março, Abril e Maio) na mortalidade desde 1951 até 2022. Linha branca mostra tendência. Fonte: INE. Análise: PAV.

    Com efeito, na década de 50, os meses de Outono, com 26,2% do total das mortes, até eram mais mortíferos do que os meses de Primavera (algo que deixou de suceder logo na década seguinte), valor que contrastava com os 21,5% do total associados aos meses de Verão. Essa diferença – então de 4,7 pontos percentuais – foi-se atenuando até à década de 2010, não tanto por um crescimento do peso relativo da mortalidade no Verão (aumento de 0,8 pontos percentuais face à década de 1950), mas sobretudo pela diminuição da letalidade relativa do Outono (descida de 3,2 pontos percentuais face à década de 1950).

    É certo que se nota uma tendência de crescimento do peso relativo da mortalidade nos meses de Verão, e com alguns picos, mas não é assim tão relevante que salte à vista – e mereça parangonas constantes –, antes sim exigem medidas preventivas adequadas e oportunas para se reduzir o impacte potencialmente letal dessas ondas de calor.

    Aliás, para reforçar a necessidade de intervenção preventiva ou profiláctica – e deixar de considerar que nada se pode fazer –, exemplifiquemos com o relatado sobre os picos de mortalidade em alguns Verões da década de 1950: por certo que, com a situação sanitária e médica do século XXI, aquela mortalidade não teria sido tão elevada com as temperaturas então registadas. Portanto, criem-se condições “sanitárias” para que, independentemente das causas do aquecimento global ou dos seus efeitos, a letalidade não seja elevada quando chegarem ondas de calor.

    Peso relativo (% em relação ao total do ano) dos meses de Verão (Junho, Julho e Agosto) na mortalidade desde 1951 até 2022. Linha branca mostra tendência. Fonte: INE. Análise: PAV.

    Aliás, é olhando para o perfil da mortalidade interanual (ao longo dos anos) e intranual (ao longo dos meses) que melhor conseguimos apurar o grau de controlo que temos sobre o ambiente que nos rodeia, porque é isso que, ao fim e ao cabo, interessa saber.

    E é aqui que quero levar a água ao moinho: é, na verdade, no Inverno, e não propriamente no Verão, que reside o nosso maior problema “sanitário” – e, ironicamente, um aquecimento global pode ajudar-nos indirectamente, por os meses de Dezembro a Fevereiro passarem a ser menos agrestes.

    De facto, esperando que a todos seja já evidente – até pelo que acima se referiu – que os meses de Inverno são mais letais do que os de Verão, porque o ambiente nesses meses em Portugal, que aqui deve incluir Setembro (o mês menos mortífero), é mais propício para não se ser afectado por doenças e afecções.

    Ora, um objectivo fundamental da Saúde Pública será sobretudo o de evitar que o ambiente externo – que inclui agentes biológicos, químicos e físicos – não constitua um factor agravante da condição e natureza humana, e de cada indivíduo (e das suas opções de vida). Daí que conseguiremos uma vitória absoluta sobre os elementos quando a distribuição do peso da mortalidade padronizada (em função da idade) nos diferentes meses e ao longo dos anos for cada vez mais homogénea. Isso ainda está longe de suceder, mas não é por “culpa do Verão”, mas sobretudo por “culpa” da nossa incapacidade (não apenas portuguesa, mas muito portuguesa) em controlar o que sucede nos Invernos.

    Senão vejamos.

    Peso relativo (% em relação ao total do ano) dos meses de Outono (Setembro, Outubro e Novembro) na mortalidade desde 1951 até 2022. Linha branca mostra tendência. Fonte: INE. Análise: PAV.

    O Inverno não é apenas a época do ano onde mais se morre – é aquela que regista uma maior variabilidade interanual, porque, de quando em vez, os agentes meteorológicos associados aos agentes biológicos e virais se mancomunam ainda mais para causarem maiores mortandades. E isso sucede não apenas pela maior capacidade de destruição dos “inimigos”, do seu “armamento”, ou da “ferocidade” maior ou menor em cada investida, mas sobretudo pela maior ou menor capacidade de defesa do ponto de vista individual e de Saúde Pública. Dir-se-ia que há similitudes com a área militar.

    Podendo-se fazer essa análise simples também para Dezembro e Fevereiro, exemplifique-se, por economia de tempo, com a situação do mês de Janeiro, como já dito o mais mortífero do ano. Em termos médios, entre 1951 e 2022, constata-se que 10,8% do total das mortes concentraram-se neste mês (Janeiro tem 8,5% dos dias de um ano). Vistas década a década, as médias não são muito diferentes, variando entre 10,3% na década de 2000 e o0s 11,2% da década de 1970.

    Contudo, analisando ano a ano observam-se porém grandes variações, com picos associados sobretudo a período de gripe associados a condições meteorológicas mais agrestes, às quais os mais vulneráveis não ficaram protegidos. E quanto mais idosa se tem tornado a população mais estragos “causam” os Janeiros mais inclementes.

    Earth with clouds above the African continent

    Assim, para Portugal, se consideramos como fasquia definidora de um Janeiro particularmente letal um peso relativo superior a 12%, detecta-se um ligeiro agravamento da mortalidade ao longo das últimas décadas, o que sendo expectável, não é o desejável. Assim, com mais de 12% do total das mortes não encontramos nenhum Janeiro na década de 1950, temos dois na década de 1960 (1965 e 1970), mais três na década de 1970 (1973, 1976 e 1978), mais um na década de 1980 (o Janeiro de 1990), mais dois na década de 1990 (1997 e 1999), nenhum na década de 2000, e dois na década de 2010 (2015 e 2017).

    Se acrescentarmos o Janeiro de 2021 (15,7% das mortes, por via da pandemia e ruptura do Serviço Nacional de Saúde, até porque a mortalidade não-covid foi também elevada), verificamos que nos últimos 25 anos contabilizam-se cinco Janeiros registando uma mortalidade com peso superior a 12% do total anual. No período de 1951 a 1975 (também 25 anos), contam-se três Janeiros nestas condições.

    É certo que a estrutura etária é bastante distinta, mas aquilo que se pretende mostrar é que os Invernos são tão ou mais agrestes no presente do que no passado, mesmo se temos melhor tecnologia e melhores cuidados médicos e sanitários.

    windmill on grass field during golden hour

    Obviamente, a manutenção da maior vulnerabilidade aos Invernos deve-se, em grande parte, à crescente prevalência de idosos, mas, se assim é, então não se compreende que seja dado um enfoque exclusivo à protecção dos idosos contra as potenciais ondas de calor no Verão. Qual é, afinal, o motivo para se dar tão pouca importância à desprotecção deste grupo etário nos meses de Inverno?

    Por isso, esta análise ao aquecimento global, tem como objectivo principal um alerta: para que se cuide melhor da saúde dos vulneráveis no Inverno – é nessa época do ano que há ainda muito a ser feito. Muito mais. E não se tem feito, do ponto de vista político, quase nada.

  • Raio X à pandemia: uma análise descritiva e gráfica

    Raio X à pandemia: uma análise descritiva e gráfica

    Nascido em 2019, o SARS-CoV-2 deixou, até agora, muito mais do que as cerca de 5,45 milhões de mortes. Ao entrar pelo quarto ano da sua existência confirmada (2019, 2020, 2021 e 2022), a covid-19 transformou o Mundo em algo diferente, atulhado em pânico e medo, em medidas cada vez mais autoritárias mesmo em países democráticos, acentuando a falta de solidariedade dos países ricos com os pobres, e a Ciência – esse outrora bastião do conhecimento dinâmico e do perpétuo questionamento – por bolandas anda agora, ora demonstrando ser a solução, ora rodando ao sabor dos interesses financeiros, ora rodopiando pelos circunstancialismos políticos.

    No novo mundo distópico, o ano 2022 anuncia-se incerto, e despediu-se de um ano de 2021, que terminou paradoxal. O PÁGINA UM mostra como, através de uma análise detalhada à situação pandémica na Europa, incidindo sobre os países da União Europeia, onde também se incluiu, neste lote o Reino Unido.

    Quase com dois anos completos de uma pandemia em pleno, que já atingiu 290 milhões de pessoas, mesmo com vacinas supostamente milagrosas a proteger 48% da população mundial, os últimos dias de 2021 mostraram novos recordes de casos positivos. A culpa – pelo que argumenta a esmagadora maioria dos políticos – justifica-se pelos não-vacinados e pela nova variante Ómicron, mas a evidência mostra outras realidades.

    black and silver magnifying glass beside teal textile

    A vacina acabou por não apresentar o desempenho prometido – e muito menos na inicialmente prometida capacidade de criar imunidade de grupo. A duração da protecção também se mostrou demasiado curta. Por outro lado, a suposta elevada transmissibilidade da variante Ómicron trouxe o resto: o ritmo de testagem subiu para níveis quase estratosféricos na última semana. Em Portugal, por exemplo, o máximo de testes por dia em 2020 foi ligeiramente inferior a 60 mil. Ao longo dos 11 primeiros meses de 2021 nunca superou a centena de milhar. No passado dia 30 de Dezembro foram feitos 402.756 testes.

    Mais testes sempre darão mais casos em termos absolutos, sabendo-se que uma parte significativa das pessoas infectadas não apresenta sequer sintomas, pelo que somente uma testagem massiva a apanharia. A nível mundial, em termos de média móvel de sete dias, o dia 31 de Dezembro passado registou 1.323.362 casos positivos– um valor jamais antes alcançado desde o início da pandemia. Fogo fátuo, mesmo tendo em conta o desfasamento entre casos e eventuais desfechos fatais. Com efeito, nesse dia, os óbitos contabilizados à escala mundial foram apenas de 5.919 – o valor mais baixo desde 24 de Outubro de 2020 –, evidenciando a consistente tendência decrescente da mortalidade por covid-19 desde finais de Agosto. Em contra-ciclo com aquilo que ocorrera no ano anterior.

    De facto, em contraste com o dia homólogo de 2020 (com 11.768 óbitos), o último dia de 2021 registou metade do número de mortes. Mais relevante se mostra essa tendência decrescente por ocorrer com a chegada do Inverno no Hemisfério do Norte – onde vive 87% da população mundial.

    Taxa de vacinação e óbitos por covid-19 em 28 de Dezembro de 2021 (padronizada à população portuguesa, e média móvel de 7 dias). Fontes: Worldometers e Our World in Data.

    Recorde-se que o Inverno de 2020-2021 registou um padrão muito similar ao que ocorre com as épocas gripais, independentemente de mostrar um maior impacte. As infecções e a mortalidade por covid-19 começaram a subir, de forma consistente, a partir de Outubro, e agravou-se em Janeiro de 2021, com o pico de óbitos a nível mundial a ser atingido a 28 daquele mês (14.815, em média móvel de sete dias).

    Analisando a situação dos países da União Europeia – incluindo, neste lote, ainda o Reino Unido –, e tendo como referência a média móvel de sete dias em 28 de Dezembro, confirma-se, de uma forma ainda mais marcante, a falta de “sintonia” entre casos de infecção e mortes, o que pode, afinal, evidenciar a transição da pandemia para a endemia. Ou seja, mais infecções por um vírus menos letal.

    Com efeito, para o período de referência, observa-se que apenas a Espanha, Suécia, Roménia, Letónia, Hungria e Eslovénia apresentavam uma menor incidência (percentagem de casos positivos na sua população) em 2021 do que em 2020. Em alguns casos, a subida foi enorme. Por exemplo, a Grécia tinha uma incidência de 0,07% em 2020 e era de 1,0% em 2021, enquanto na Irlanda aumentou mais de 10 vezes: passou de 0,34%, em 2020, para 3,74%, em 2021. No entanto, a Finlândia – que é, de entre os países da União Europeia, aquele com menor impacte da pandemia em termos de mortalidade – registou nas últimas semanas um aumento muito significativo dos casos positivos. Se em 2020 este país escandinavo tinha, no período em análise, apenas 0,16% da sua população infectada, agora está com 3,48%, sendo apenas ultrapassada pela Irlanda.

    Em termos gerais, quase todos os países em análise registavam, no final de 2021, mais de 1% da respectiva população infectada. As únicas excepções eram a Suécia (0,98%), a Eslováquia e a Lituânia (0,91%, ambas), a Alemanha (0,86%), Eslovénia (0,80%), a Espanha (0,58%), a Letónia (0,57%), a Croácia (0,55%) e a Áustria (0,32%). No outro extremo, cinco países contabilizavam 3% ou mais da população infectada: Chipre (3,79%), Finlândia (3,48%), Irlanda (3,74%), Reino Unido (3,21%) e Bélgica (3,00%). Ao invés, em período homólogo de 2020, apenas a Espanha (2,11%) tinha mais de 2% da população infectada, registando-se mesmo 21 países com menos de 1%, dos quais nove abaixo dos 0,5% (Finlândia, Grécia, Malta, Roménia, Áustria, Croácia, França, Alemanha e Irlanda).

    Incidência cumulativa desde o início da pandemia e mortes por covid-19 em 28 de Dezembro de 2021 (padronizada à população portuguesa, e média móvel de 7 dias). Fontes: Worldometers e Our World in Data.

    Embora haja um desfasamento temporal entre um pico de casos e a ocorrência de um pico de óbitos – geralmente, duas semanas –, a “agressividade” do SARS-CoV-2 aparenta agora ser francamente menor.

    Note-se, porém, que se deve ter em consideração que a política de testagem de assintomáticos tende, em princípio, a diminuir a taxa de letalidade, sobretudo se se concentra em população jovem, onde a gravidade da doença foi sempre estatisticamente irrelevante.

    Com efeito, padronizando os óbitos de todos os países da União Europeia (mais Reino Unido) à população portuguesa – de modo a se ter uma melhor percepção comparativa da actual situação pandémica na Europa –, constata-se uma redução quase generalizada, e muito significativa, das mortes no final de 2021 em relação ao final de 2020. De facto, apenas a Grécia, a Polónia e a Hungria apresentavam nos últimos dias de 2021 uma situação pior do que em período homólogo de 2020.

    A norma foi uma descida muito significativa. A maior redução relativa registou-se no Luxemburgo, um pequeno país de 630 mil habitantes. No final de 2020, os óbitos diários (padronizados à população portuguesa) foram 84; no final de 2021 nenhum. Outras reduções muito relevantes (superiores a 60%) observam-se em Portugal (71 óbitos em 2020 vs. 14 em 2021), no Reino Unido (70 vs. 11), na Suécia (95 vs. 2), Bélgica (81 vs. 23), Áustria (86 vs. 20), Itália (78 vs. 24), Malta (66 vs. 21), Eslovénia (148 vs. 40).

    Note-se, porém, que em alguns destes países, sobretudo no Leste europeu, verificou-se um pico muito relevante de mortalidade em Novembro, seguido de uma descida abrupta.

    Em todo o caso, aparentando ser um padrão sobretudo regional, a mortalidade atribuída à covid-19 ainda atingia valores elevados no final de 2021 na parte oriental da Europa.

    Incidência cumulativa e taxa de mortalidade por covid-19 desde o iníco da pandemia. Fontes: Worldometers e Our World in Data.

    Numa altura em que os óbitos por esta doença em Portugal se situavam nos 14 por dia (média móvel de sete dias), três países superavam os 100 óbitos diários (padronizados à população portuguesa): Croácia (129), Hungria (126) e Polónia (111). Mais cinco registavam mais de 50 óbitos: Bulgária (97), Eslováquia (96), Lituânia (77), Grécia (70) e Letónia (59).

    A influência directa da vacinação na letalidade da covid-19 nos diversos países europeus tem sido uma discussão recorrente nos últimos meses. Ou seja, será que os países com maior taxa de vacinação automaticamente registarão uma menor mortalidade?

    Essa suposta evidência colocou-se sobretudo durante o mês de Novembro do ano passado, quando o Leste europeu foi “varrido” por um número inusitado de casos, enquanto os países ocidentais continuavam num Outono bastante ameno em termos de infecções e mortes.

    Porém, nessa “evidência” havia sempre um aspecto esquecido: a partir de níveis razoavelmente elevados de taxa de vacinação – dir-se-ia acima dos 60% da população do país –, mostra-se admissível supor que a quase totalidade das pessoas idosas e vulneráveis estarão já vacinadas. Recorde-se que, por norma, entre 25% e 30% da população de um país europeu tem mais de 65 anos, e é esta a faixa etária mais vulnerável à covid-19 e com prioridade na vacinação.

    Se se considerar os últimos dias de 2021, a relação directa entre a taxa de vacinação (com duas doses) e os óbitos por covid-19 (padronizados à população portuguesa) já não parece muito evidente. Na aparência os países com menor taxa de vacinação têm mais óbitos, mas existe também, de uma forma bastante clara, um padrão regional: Leste europeu tem mais mortes do que o Oeste europeu. Qual o factor que conta mais?

    Além disso, existem muitas excepções. Por exemplo, a Roménia, o Chipre e mesmo a Eslovénia estavam, no final de 2021, com níveis de mortalidade relativamente baixos, mas ainda com taxas de vacinação da população abaixo dos 65%. A Roménia, apesar de ter apenas 40,1% da sua população vacinada, apresentava mortalidade abaixo de seis países com taxas de vacinação superiores a 70%.

    Um outro aspecto interessante de observar é a evolução da pandemia na Europa desde 2020, e de como a maior ou menor incidência cumulativa nos diversos países se repercutiu em termos de mortalidade acumulada e actual por esta doença.

    Convém notar que estas comparações devem ser observadas com algumas reticências, por três razões. Primeiro, a incidência da covid-19 dependeu das distintas medidas não-farmacológicas adoptadas pelos diversos países, e da sua verdadeira eficácia, e também das respectivas estratégias de detecção das infecções (maior ou menor testagem de assintomáticos). Segundo, a introdução da vacinação, e a sua eficácia, pode ter alterado, de uma forma mais ou menos significativa, a taxa de letalidade ao longo do período pandémico. Terceiro, ignora-se ainda, em grande medida, a relevância de factores ambientais ou mesmo populacionais (ou sociais) que possam determinar uma menor ou maior mortalidade.

    Ponderado tudo isto, uma coisa parece certa: uma menor incidência cumulativa não constituiu, até agora, uma garantia de baixa mortalidade na população, nem ao longo da pandemia nem em relação à situação mais recente.

    Mas antes de dissecar esta questão, talvez seja mais importante relevar primeiro que o SARS-CoV-2 atingiu de forma muito distinta o continente europeu. Considerando a população respectiva dos 28 países em análise, a incidência vai desde os 4,3% na Finlândia até aos 23,1% da República Checa (ou seja, quase um em cada quatro checos tiveram covid-19 em menos de dois anos). Portugal regista 12,9% – isto é, quase 1 em cada 8 pessoas teve um teste positivo. Em todo o caso, a maioria dos países apresenta incidências relativamente próximas: 18 países estão com este rácio entre os 12,5% e os 18,5%.

    O senso comum diria que uma menor incidência resultaria, de imediato, numa menor mortalidade. O caso da Finlândia aparenta indiciar isso. Com apenas 4,3% da sua população com teste positivo desde o início da pandemia, a taxa de mortalidade por covid-19 é, até agora, a mais baixa da União Europeia: 2,8 por 10.000 habitantes. Porém, este país escandinavo é uma excepção.

    Taxa de vacinação e incidência em 28 de Dezembro de 2021 (média móvel de 7 dias). Fontes: Worldometers e Our World in Data.

    De facto, alguns países com incidência cumulativa relativamente baixa (em comparação aos outros países) apresentam taxas de mortalidade muito mais elevada. São os casos, sobretudo, da Roménia (terceiro país com menor incidência, mas quarto com maior taxa de mortalidade), da Bulgária (sexto país com menor incidência, mas com a pior taxa de mortalidade) e da Hungria (décimo com menor incidência, mas a segunda pior taxa de mortalidade).

    Portugal – com uma incidência de 12,9% (12º maior no grupo de 28 países em análise) e uma taxa de mortalidade de 12,9 óbitos por 10.000 habitantes (17ª posição) – encontra-se numa situação intermédia.

    Existem muitos factores que podem explicar a ausência de relação directa entre incidência e mortalidade causada pelo SARS-CoV-2. Por um lado, a incidência pode ser muito distinta entre grupos etários, o que produz efeitos muito distintos. Ou seja, enquanto 1.000 casos positivos no grupo dos mais idosos pode resultar em muito mais de 100 óbitos, o mesmo número em jovens terá consequências irrelevantes, ou mesmo nulas.

    Nesse aspecto, a maior ou menor incidência da doença nos idosos, e particularmente nos lares, é um aspecto determinante para o impacte da doença em cada país. Além disso, cada país – e mesmo nas distintas regiões de um mesmo país – registaram-se níveis distintos de resposta à pandemia, incluindo ao nível do tratamento hospitalar, com efeitos directos muito relevantes na mortalidade.

    Por fim, a incidência cumulativa desde o início da pandemia não aparenta ser relevante nos níveis de mortalidade por covid-19 no período mais recente. Com referência aos óbitos de 28 de Dezembro de 2021 (média móvel de sete dias), e padronizados à população portuguesa, não se observa de forma directa um padrão de menor mortalidade nos países com maior incidência cumulativa desde o início da pandemia.

    A Croácia é o país que apresenta maior mortalidade na União Europeia (129 óbitos padronizados no dia 28 de Dezembro), mas contava já com 17,3% da sua população com teste positivo à covi-19. A República Checa, o país com maior incidência cumulativa na União Europeia (23,1%), apresentava mesmo assim o 9º valor mais elevado de mortalidade (58 óbitos).

  • Vacinar idosos e não vacinar jovens: a (mesma) opção lógica com base numa análise comparativa

    Vacinar idosos e não vacinar jovens: a (mesma) opção lógica com base numa análise comparativa

    Imaginemos, por absurdo, que os governos mundiais decidiam implementar uma política de redução da taxa de afogamentos para níveis próximos de zero. Nessa linha, impunham que toda e qualquer pessoa, em qualquer circunstância, teria de usar braçadeiras e bóias. No limite, mesmo que não estivesse próxima de algum espaço aquático, não fosse, por exemplo, uma conduta de água rebentar acidentalmente e causar uma inundação. Mesmo um Michael Phelps seria obrigado a usar bóia e braçadeiras; todos os nadadores, mesmo em provas olímpicas. Quem não aceitasse, seria discriminado.

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    No final, a avaliação desta política revelaria, por certo, uma diminuição considerável das mortes por afogamento das pessoas que não sabiam nadar. Porém, para o extenso grupo de pessoas que sabia nadar, a aplicação destas medidas nenhum benefício traria; e talvez mesmo causasse transtornos e prejuízos. Acidentes, até. Não será, por certo, fácil conduzir um carro com braçadeiras e bóia.

    Imaginemos também, por absurdo, que os governos mundiais decidiam implementar uma política de redução da incidência de melanomas para níveis próximos de zero. E decretavam então que todos as pessoas, desde os mais esbranquiçados celtas até aos negros do Senegal, tivessem obrigatoriamente de usar protector solar factor 50, tanto no Verão como no Inverno, tanto nas chuvosas terras de Albion como na arizonense Yuma, conhecida por ser a mais soalheira cidade do Mundo. Quem não aceitasse, seria discriminado.

    No final, a avaliação desta política revelaria, por certo, uma diminuição considerável dos cancros de pele, mas introduziria um desperdício de recursos económicos incomportável e desnecessário. Sem contar, tendo em conta o uso massivo e intenso desses produtos, com os efeitos adversos, desde a simples irritação e acne até outros problemas dermatológicos mais graves.

    Agora, por fim, imaginemos que os governos mundiais decidiam implementar uma política de redução, para níveis próximos do zero, da taxa de mortalidade de uma certa infecção viral, que se manifesta(va), em termos de agressividade, de formas muito distintas. Ou seja, a maior ou menor susceptibilidade depende da idade, do sexo, das comorbilidades associadas e até das condições vivenciadas nas diferentes comunidades.

    Ora, dever-se-ia, nesse caso, depois de se fabricar um fármaco em tempo recorde, inocular toda e qualquer pessoa? Forçar todas pessoas a tomarem uma vacina, acenando ser voluntária, mas recorrendo depois a mecanismos pouco ortodoxos de coacção e discriminação?

    A resposta a estas perguntas deveria ser dada enquanto ainda se reflectisse sobre os exemplos das bóias e do protector solar.

    O risco e a incerteza

    As vacinas contra a covid-19 são, tecnicamente, medicamentos profilácticos que protegem cada pessoa inoculada de desenvolver doença grave ou de morrer. Não concedem imunidade de grupo. São como a bóia para quem não sabe nadar; o protector solar para quem é caucasiano. Talvez sejam um pouco mais: reduzem a transmissibilidade se o vacinado ficar infectado – embora num período muito curto –, mas trazem consigo uma desvantagem: a incerteza sobre os efeitos a longo prazo.

    Em Saúde Pública – que é uma vasta área que depende de muitas especialidades, e talvez, na verdade, até mais de Ciências Sociais do que de Medicina (no sentido de prática clínica) –, importam sobretudo dois aspectos fundamentais: a prudência e os custos-benefícios-incerteza, estando estes todos associados de forma íntima. E importa também, no meio de tudo isto, uma adequada gestão de recursos financeiros. O dinheiro, parecendo, não é elástico.

    Manda sempre a prudência – aplicada tantos aos cuidados de saúde como à gestão do quotidiano – que se pondere se uma solução no presente não se transforma num problema futuro. Note-se que a prudência tem em conta tanto o risco como a incerteza – que, muitas vezes, de forma equívoca, são considerados sinónimos. Não são. Muito pelo contrário.

    man standing on rock in the middle of clip

    Um risco constitui uma probabilidade conhecida em relação ao futuro. A incerteza mede o grau de ignorância sobre o futuro. O risco é uma probabilidade; tem sempre um número a si associado. Se não tem, é uma falácia. Quanto à incerteza, não se consegue quantificar, e muitas vezes nem se sabe muito bem o que seja ou possa vir a ser. É um buraco negro, mesmo se desconfiarmos daquilo que tenha dentro.

    Por exemplo, podemos hoje conhecer, com base no passado, qual o risco de ataque cardíaco de uma pessoa de determinada idade que andou a comer fast food durante anos. Por uma simples razão: existe um histórico; sabe-se que, no passado, X pessoas de um grupo de Y com maus hábitos alimentares tiveram essa consequência.

    No caso das vacinas contra a covid-19 – ainda mais por a maioria usar uma tecnologia nunca aplicada em larga escala em humano – , esse histórico é pequeno, demasiado curto. Tem pouco mais de um ano. Ou seja, no curto prazo até podemos estimar, com razoabilidade, uma razão custo-benefício muito favorável ao benefício, mas o longo prazo é uma incógnita absoluta.

    A história das outras vacinas não conta. Em Ciência, como na teologia, o hábito não faz o monge. Não houve tempo suficiente de observações empíricas. Ponto. O longo prazo é, assim, incerto. Pode ser nada; pode ser tudo. É como se aceitássemos um benefício (não ter doença grave ou evitar a morte numa certa probabilidade) por troca da compra de um bilhete para se jogar roleta russa no futuro, não se sabendo sequer se haverá revólver, se existe gatilho ou se afinal, dramaticamente, o carregador está cheio de balas. Há quem aposte, se o benefício em causa for relevante; outros não, se o ganho potencial poder ser muito menor do que a perda hipotética. A Psicologia e a Economia têm tratados sobre o assunto.

    Além de tudo isto, devemos enquadrar o conceito de longo prazo. Em Economia, o longo prazo são cinco anos. Em Saúde, ou em Demografia, aos 85 anos de idade, o longo prazo já nem quase faz sentido. Ultrapassado o limiar da esperança de vida, cinco anos pode ser muito. Para um adolescente de 15 anos, o longo prazo mede-se por década, podem ser 20, 30 ou até 70 anos. “Que se tenha noção”, como diria o outro.

    Perante isto, mas reconhecendo uma emergência sanitária decorrente desta pandemia (ou já endemia), que fazer se se tem um fármaco disponível, como as actuais vacinas, e impactes muitos distintos da covid-19 nos diferentes grupos populacionais? E que fazer quando a incerteza de longo prazo não aconselharia uma vacinação massiva?

    Ora, dever-se-ia olhar para os seus benefícios, analisar o custo-benefício, ponderar com prudência sobre as incertezas. Tudo em função do custo e do benefício, das opções individuais, mais ainda após se constatar que a imunidade de grupo se tornou uma quimera. Enfim, raciocinar e debater.

    Algo que jamais sucedeu quando se decidiu implementar os programas vacinais contra a covid-19. A politização da ciência e a ciência política dominaram e, hélas, tiraram aquilo que mais nobre tinha a Ciência: o permanente debate e questionamento.

    gray monkey under sunny sky

    A gravidade da covid-19 sempre foi apresentada – pelas autoridades de saúde, seus peritos, e pela imprensa mainstream – como se fosse similar para qualquer pessoa. Como se o risco fosse quase semelhante. Não é, nem nunca foi. Nesta, e em qualquer outra doença.

    A iliteracia científica permitiu, em parte, esta situação. Achou-se que, se qualquer pessoa podia ser infectada pelo SARS-CoV-2, então qualquer pessoa pode morrer de covid-19. E pode: só que entre o pode e o não vai morrer surge um fosso enorme quando olhamos individualmente as pessoas ou os grupos etários.

    Na verdade, felizmente, a covid-19 não apresenta um padrão extraordinário. A sua taxa de letalidade mostra uma perfeita diferenciação em função da idade, do sexo e das comorbilidades (que entram em linha com a idade e o sexo). Entre países haverá, por certo, idiossincrasias, talvez por razões genéticas, também porventura por motivos meteorológicos. E há também razões sociais: basta olhar para as taxas de mortalidade diferentes nos Estados Unidos entre brancos, hispânicos e negros. Ou entre os Estados mais ricos do Brasil e os mais pobres.

    Porém, em cada país ou região, há padrões facilmente identificáveis. A covid-19, em termos globais, de impacte, não é surpreendente, nem registou uma evolução que cause espanto. Aliás, como todos os outros vírus, o SARS-CoV-2 adaptar-se-á aos seres humanos; não os extinguirá nem matará uma franja significativa da população. Esquecemo-nos que vivemos na melhor época da Humanidade para enfrentarmos uma pandemia. Graças à Ciência.

    Portanto, nesse aspecto, se colocarmos a letalidade da covid-19 por idade ao lado do quociente de mortalidade no prazo de um ano também por idade, veremos curvas praticamente paralelas. A covid-19 tem-se mostrado, neste aspecto, muito previsível. Quase não mata população jovem; mata que se farta pessoas muito, muito idosas. Mata sobretudo pessoas que ultrapassaram a expectativa de vida. Há um sem-número de outras doenças e afecções com padrões similares, garanto.

    Em Portugal, no caso de um idoso de mais de 80 anos, sabe-se hoje que a taxa de letalidade atribuída à covid-19 ronda os 15% (em cada 100 casos positivos, morrem 15). Convém referir que, antes da pandemia, a probabilidade de morte nessas idades era praticamente semelhante. Uma pessoa de 90 anos tem um risco de morte de 20% no prazo de um ano.

    Voltando à covid-19. No grupo etário dos 70 aos 79 anos, a taxa de letalidade já anda pelos 5,6%. E baixa ainda mais à medida que se caminha para os jovens e crianças. Na faixa dos 30 aos 39 anos é somente de 0,027%. Nos 20 aos 29 anos é de 0,07%. E mais se reduz nos menores de 20 anos. Neste grupo não é um risco que se veja. A pneumonia, sendo rara nestas idades, chega a ser mais perigosa.

    A probabilidade de morte (risco) por covid-19 de um idoso com mais de 80 anos é, assim, mais de 4.000 vezes superior ao de um menor de 10 anos. E chega a ser superior a 9.500 vezes se confrontada com o grupo dos 10-19 anos. São dados nacionais, oficiais, indesmentíveis. Já escrevi sobre isto.

    Significa então que o risco é zero nos mais jovens? Não. Como nunca houve com nenhuma outra doença anterior à pandemia.

    A vida abre a possibilidade de se ficar morto – eis a célebre verdade do senhor de La Palice, cujos soldados cantaram a sua morte dizendo que ele ainda respirava antes mesmo de ficar morto. Mas a probabilidade de tal suceder é incomensuravelmente diferente em função da idade ou de outras características. Actualmente, a probabilidade do Michael Phelps morrer afogado não é zero, mas é tão improvável que seria estúpido obrigá-lo a munir-se de uma bóia na piscina. Mas se calhar, quando ele tiver uns 100 anos, porventura já será uma ideia a ponderar, embora talvez não seja eticamente muito correcto forçá-lo a tal.

    Uma análise comparativa

    Vou agora assumir uma premissa temerária para justificar a razão do título deste texto, porque necessito da argumentação das autoridades de saúde, dos muitos peritos e da imprensa mainstream. Fiz então um exercício académico, mas útil, assumindo ser a vacina eficaz, e a única causa para se registar agora uma variação muito favorável na mortalidade por covid-19 entre o ano de 2020 e o ano de 2021. E assumo também que esse efeito é global e se estende, por igual, a todos os grupos etários.

    Não vou sequer, portanto, sugerir que haja agora uma menor virulência do SARS-CoV-2, nem que há factores meteorológicos explicativos nem que a população potencialmente de maior vulnerabilidade, sobretudo idosos, foi em parte fatalmente “eliminada ao longo” de dois anos de pandemia, marcada também por um excesso na mortalidade por todas as causas. E nem sequer irei discutir se foram alterados os critérios para se “decretar” a covid-19 como causa de morte.

    Para esse exercício, não me bastou assim analisar e comparar valores absolutos. Morrer uma pessoa num grupo de 10 é pior do que morrerem 10 num grupo de um milhão. Por isso, além de desagregar os óbitos por covid-19, por grupo etário e sexo (porque o impacte desta doença é muito distinto entre homens e mulheres), procedi a uma padronização. Essa operação permite criar uma taxa de mortalidade, tendo como unidade o número de óbitos por 100.000 habitantes em cada um dos grupos. Isto possibilita assim comparações diacrónicas, entre grupos etários e entre sexos.

    Peguei assim nas estimativas da população, por grupo etário e sexo, feitas pelo Instituto Nacional de Estatística para os anos de 2019 e 2020, e apliquei-as, respectivamente aos anos de 2020 e 2021, para determinar, com base no número de óbitos por covid-19, as taxas de mortalidade desta doença. Em cada um dos anos e em cada grupo etário e sexo. Fiz isso para três períodos distintos: 13-26 de Dezembro (duas semanas), Dezembro (26 primeiros dias) e Novembro (30 dias).

    Taxa de mortalidade por covid-19 por grupo etário e sexo em Dezembro (até dia 26) de 2020 e 2021 (unidade: óbitos por 100.000 habitantes do grupo etário) – Fontes: INE e DGS.

    Ora, este “trabalho” – que demora não demasiado tempo – permite logo fazer luz sobre uma evidente, mas “escamoteada”, verdade: a vacina pode até ser eficaz e justificar-se em idades mais avançadas, mas um programa vacinal massivo nas populações mais jovens constitui um desperdício de recursos. E também introduz uma incerteza desnecessária.

    Os resultados que obtive para os três períodos são proporcionalmente similares, por isso decidi somente apresentar e escalpelizar o mês de Dezembro (até ao dia 26).

    Desde logo se constata, muito facilmente, uma acentuadíssima descida da taxa de mortalidade por covid-19 entre 2020 e 2021, mas somente nos grupos dos maiores de 65 anos.

    No caso dos homens de mais de 80 anos, em Dezembro de 2020 registaram-se 265 óbitos em cada 100.000 habitantes (nesse grupo etário) – ou seja, 0,265% –, enquanto em 2021, no período homólogo, se contabilizaram apenas 50. É uma redução relativa superior a 80%, o que é muito – e é muito bom. São 215 óbitos a menos por cada 100.000 pessoas.

    No grupo das mulheres desta faixa etária, a diferença também se mostra muito relevante, embora inferior: de quase 178 no ano de 2020 passou-se para 28 óbitos por 100.000 habitantes em 2021, ou seja, uma redução de 150 vidas por 100.000 habitantes.

    No grupo dos 70 aos 79 anos, tanto no caso dos homens como nos das mulheres, a redução foi inferior, embora ainda significativa, também porque a letalidade é muito menor. Entre 2020 e 2021, para o período analisado do mês de Dezembro, os óbitos nos homens desceram de 63 para apenas 17 por 100.000 habitantes; nas mulheres de 26 para 8.

    Nas faixas etárias subsequentes, a diferença começa a ser cada vez menos expressiva. Nos homens entre os 60 e 69 anos, a variação entre 2020 e 2021 foi quase de 13 mortes por 100.000 habitantes, sendo de apenas 1,7 no grupo dos 50 aos 59 anos. No caso das mulheres, este rácio ainda é mais baixo: entre os 60 e os 69 anos a diferença entre os dois anos foi apenas de 4,2 por 100.000 pessoas, e desceu para 1,7 entre os 50 e 59 anos.

    Abaixo dos 40 anos, a diferença entre 2020 (ainda sem vacina) e 2021 (com vacina) é estatisticamente nula, ou seja, nem sequer chega à unidade por 100.000 habitantes. No grupo dos 20 aos 29 anos, bem como nos menores de 10 anos, tanto nos homens como nas mulheres, a diferença é mesmo zero: quer em 2020 quer em 2021, durante o mês de Dezembro (até ao dia 26) não morreu ninguém por covid-19.

    Diferença de número de óbitos (por 100.000 habitantes), em Dezembro (até dia 26), entre os anos de 2020 (sem vacinas) e 2021 (com vacinas). Fontes: INE e DGS.

    Se considerarmos os valores absolutos em Dezembro de 2020 e 2021, o risco de morte por covid-19 antes dos 40 anos é ínfima, para não dizer praticamente improvável, sobretudo quando comparado com o risco em idades mais velhas.

    Por exemplo, no mês de Dezembro de 2021 (até ao dia 26) morreram por esta doença 70 homens com mais de 80 anos, sendo que este é um grupo constituído por cerca de 243 mil pessoas. No caso das mulheres – que são mais resistentes –, é certo que morreram em maior número absoluto neste período (99), mas também são muitas mais (cerca de 436 mil pessoas), portanto o risco relativo até foi bastante inferior ao dos homens da mesma idade.

    No total, nos 26 primeiros dias de Dezembro de 2021 morreram, no conjunto, 169 idosos com mais de 80 anos, numa população de mais de 681 mil pessoas. Significa isto que, em quase um mês, se registou uma taxa de mortalidade de 0,025%. No mesmo período de 2020, a taxa foi de 0,202%. Ou seja, sem dúvida, a situação no período “com vacina” foi claramente melhor do que no período “sem vacina”.

    Vamos então assumir que isto sucedeu apenas por causa da vacina, e sigamos na análise.

    Se, para o mesmo período, confrontarmos então estes números dos mais idosos com, por exemplo, os adultos entre os 30 e 39 anos, já olharemos para o impacte das vacinas com outros olhos. Neste grupo de jovens adultos apenas se registaram três óbitos por covid-19 em Dezembro de 2020 (até dia 26) e no mês de Dezembro de 2021 apenas um óbito. Isto tudo num grupo constituído por cerca de 1,2 milhões de pessoas, o que dá assim uma taxa de mortalidade atribuída a covid-19 de 0,00024% em Dezembro de 2020, e de 0,00008% no mesmo período de 2021.

    Foi por causa da vacinação que se passou de 0,00024% para 0.00008%? Se sim: bravo!

    Não valerá muito a pena “massacrar” com os valores para os grupos etários ainda mais jovens, porque apresentar as taxas de mortalidade quer em 2020 quer em 2021 necessitaria de muitas casas decimais antes de surgir um outro algarismo que não o zero para as quantificar. Em alguns grupos etários até é zero para ambos os anos.

    man standing in the middle of woods

    Enfim, julgo que este exercício servirá sobretudo para uma conclusão.

    Se se defende que a vacinação contra a covid-19 é o principal motivo para a descida acentuada da mortalidade dos mais idosos – e, pessoalmente, julgo que contribui, mas não é o factor único –, então dever-se-ia concluir, seguindo a mesma linha de raciocínio, não ser sequer razoável, do ponto de vista da Saúde Pública (e mesmo de protecção individual), um processo massivo de vacinação da população mais jovem.

    De facto, sendo certo que há sempre vidas que se podem salvar da covid-19 – mas nos menores de 40 anos poucas serão, porque poucas estiveram efectivamente em risco mesmo antes das vacinas –, também não é menos verdade que os custos de toda a ordem para potencialmente se salvar tão poucas vidas (de jovens) não compensa. E essa ausência de benefício nada tem a ver com a desconsideração pelas vida perdidas para a covid-19. Não, não e não. Tem a ver com as vidas suplementares que se podem salvar se os investimentos financeiros para a Saúde forem reorientados para onde possam alcançar melhores resultados. Mais vidas mantidas.

    Sejamos claros: vacinar ou não vacinar não é um acto “inócuo”. Estou, desta vez, a falar em Economia. E em Saúde. Vacinar massivamente tem custos enormes. Brutais. Por exemplo, se os montantes dispendidos nos programas de vacinação contra a covid-19 em menores de 40 anos, em situação saudável, fossem destinadas para outras áreas da saúde em défice, garanto que se salvariam mais vidas, dar-se-iam mais anos de vida a muita gente, e de uma forma mais sustentável.

    Não se está a ser demagógico, mas sim realista. Os menores de 40 anos são um grupo populacional de 4,25 milhões de pessoas, mais de 40% da população portuguesa. Quase a sua totalidade sobreviverá à covid-19 sem vacina – e aquelas que estão em risco, por comorbilidades prévias, podem e devem ser vacinadas. A vacina, para este vasto grupo, apenas constituiu uma despesa pública inútil, e nunca um investimento de protecção da vida e da promoção da Saúde Pública. Os custos de internamento por covid-19 dos menores de 40 anos são uma gota de água, porque os doentes que são internados são extremamente minoritários. Convinha, em todo o caso, o Ministério da Saúde mostrar-nos a “factura”, jogar o “jogo da transparência democrática”.

    Imaginem assim que se desviava, suponhamos, o dinheiro de seis milhões de vacinas – ou seja, neste grupo etário, não se inoculavam três milhões de pessoas – para outros sectores de Saúde, desde a pediatria até à geriatria. Não estou a contabilizar a poupança em termos logísticos. O processo de vacinação, incluindo pagamentos a empresas que forneceram pessoal de enfermagem, custou muitos milhões de euros.

    Deste modo, teríamos assim à “disposição”, assumindo um preço de 20 euros por dose, pelo menos 120 milhões de euros. Isto sem falar em doses de reforço. Que “milagres” se poderiam concretizar com 120 milhões de euros no sector da Saúde?

    Talvez dar médicos de família a muita gente que ainda não tem. Talvez reforçar os exames e cirurgias que deixaram de se realizar durante a pandemia. Talvez humanizar mais os lares de idosos. Talvez abandonar as políticas discriminatórias e de aberrante autoritarismo que envergonham a Democracia. Talvez decidir que, afinal, o Michael Phelps não precisa de bóia para entrar na piscina. Talvez começar a pensar com racionalidade. Talvez viver sem pânico.

  • Como se perde cedo demais (mas cada vez menos) o “milagre da vida” em Portugal

    Como se perde cedo demais (mas cada vez menos) o “milagre da vida” em Portugal

    Nunca é tema fácil, mas acaba por ser reconfortante saber que a perda prematura de bebés, crianças e adolescentes é cada vez mais rara. A evolução médica e das condições de vida transformaram um triste “hábito” ancestral – pais a assistirem à morte de filhos – numa raridade. No momento em que, muito por pânico, dezenas milhares de pais anseiam por vacinar as suas crianças contra a covid-19 – que ainda não matou nenhuma em Portugal –, o PÁGINA UM analisa um tema pouco apetecível mas necessário para um debate sobre Saúde Pública, e onde se revela que a gripe e as pneumonias, apesar de muito pouco frequentes, já causaram mais “baixas” nos mais jovens do que o SARS-CoV-2.


    Neste fim-de-semana, os pais de cerca de 77 mil crianças portuguesas correram a vacinar os seus filhos contra a covid-19. Correram, em sentido literal, porque a esmagadora maioria acha que estão em perigo de vida.

    Uma questão inquietante, no meio deste movimento social de forte pendor psicológico, e que levou muitos progenitores à beira de um ataque de pânicos, ou de nervos, deve ser colocada: esse perigo, decorrente de um risco, é real?

    A resposta é fácil: não.

    Neste momento, o risco de uma criança dos 5 aos 11 anos de morrer por covid-19 é zero, porque o risco é uma probabilidade. Até agora, desde a chegada do SARS-CoV-2 ao território nacional em Março de 2020, a pandemia não matou qualquer criança (entre os 5 e os 11 anos), o grupo agora prioritário no programa vacinal. As taxas de internamento situam-se em números baixíssimos: 0,2% dos casos positivos, segundo dados da Direcção-Geral da Saúde.

    Não há, porém, risco zero absoluto. Donde existe uma incerteza quanto ao futuro. E pode sempre dizer-se que pode (ou não) ocorrer mortes de crianças dos 5 aos 11 anos, se até já se registaram três mortes de menores de idade: dois recém-nascidos e um bebé de quatro anos. Mas todos com gravíssimas comorbilidades.

    Poder, pode sempre. Ou não. Na verdade, pode sempre especular-se, mas até aí deve fazer-se com algum critério científico. Uma doença não deve ser olhada apenas em si mesma, mas também na pessoa que “ataca”, sobretudo porque a incidência e a letalidade variam. Por exemplo, no caso da covid-19 não é a mesma coisa estar a investir para se evitar uma infecção em crianças ou em idosos. Mil infectados com mais de 85 anos não-vacinados resulta, segundo dados oficiais, em 15% de mortes; no caso de menores de idade é necessário usar três casas decimais para evitar o 0%.

    Sendo certo que uma vida é uma vida, outra questão mais perturbadora tem, em todo o caso, e obrigatoriamente, que se colocar: deve lutar-se com todas as “armas”, a todo e qualquer custo, para salvar mais de 600 mil crianças de um desfecho fatal que é um pouco mais do que hipotético?

    A resposta é também deveria ser simples, mas foi complexificada com a covid-19. Uns defendem que sim; outros que não. Qualquer que seja, tem que haver sempre um “mas”.

    Com efeito, qualquer decisão para um programa vacinal deveria ter em consideração não apenas o risco absoluto de uma doença, mas também o seu risco comparativo em relação a outras doenças. Ora, a covid-19 até pode hipoteticamente matar, mas será a única com “capacidade” de tirar uma vida a quem agora começou essa “viagem”? Ou seja, será que, tendo em consideração as limitações da vacina contra a covid-19, se justifica priorizar a vacinação quando existem outras doenças que até matam, e onde haveria melhor retorno (em vidas) com maior investimento?

    Para haver esse debate teria de se conhecer melhor um tema tabu: as mortes dos recém-nascidos, bebés, crianças e jovens adolescentes, para em seguida saber qual a margem de melhoria que se tem. E o que é necessário fazer, se for possível.

    Uma evolução espectacular

    Não é um tema particularmente delicioso e atraente, confessa-se. Mas é necessário conhecer-se, saber-se. Até para enquadrar a covid-19 na sua verdadeira dimensão em relação aos mais jovens. E para saber se se justifica todo o pânico criado nos últimos meses junto dos pais e da sociedade em geral.

    Mas o PÁGINA UM meteu mãos à obra neste pouco apetecível tema, e foi desvendar como tragicamente podem morrer as crianças em Portugal, e também como tem sido a evolução nas últimas décadas e nos anos mais recentes.

    Comece-se então por uma boa notícia: nunca como nos últimos anos – e anos desta pandemia incluídos – se perderam tão poucas vidas de bebés, crianças e adolescentes jovens.

    Na verdade, seguindo a feliz tendência de decréscimo da mortalidade nestas faixas etárias, fruto da melhoria dos diagnósticos de detecção de malformações, da evolução da medicina – incluindo a proliferação de programas vacinais eficazes e comprovadamente seguros – e da melhoria das condições de vida, Portugal apresenta invejáveis indicadores de saúde. Encontra-se no clube dos países, quase todos europeus, com melhores indicadores de saúde, medidos por taxas de mortalidade. Neste aspecto, Portugal consegue estar muito melhor do que países mais ricos, como os Estados Unidos.

    Evolução da taxa de mortalidade (óbitos por 1.000 nascimentos) neonatal e infantil em Portugal entre 1970 e 2019 (Fonte: UNICEF)

    Por exemplo, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o nosso país apresentou em 2019 uma taxa de mortalidade neonatal de dois óbitos por 1.000 nascimentos. Os Estados Unidos tinham praticamente o dobro (3,7) e o Brasil quatro vezes mais (7,87). Países como a Índia e Angola estavam noutro “desgraçado campeonato”: no país asiático morreram quase 22 em cada 1.000 bebés, enquanto no país africano 28.

    Nas idades subsequentes, esta relação mantém-se similar. Os últimos dados da UNICEF colocam Portugal também no “primeiro mundo”, com taxas muito baixas de mortalidade infantil (3,05 óbitos até aos 5 anos por 1.000 nascimentos) e de crianças e jovens adolescentes (0,78 óbitos entre os 5 e os 14 anos por 1.000 crianças com 5 anos). Neste último indicador, os Estados Unidos apresentam quase o dobro desta taxa (1,37) e o Brasil três vezes mais.

    Se os pais portugueses com crianças e adolescentes podem dormir mais descansados do que os norte-americanos, e ainda mais em comparação com os dos países menos desenvolvidos, então nem vale a pena recuar para o tempo dos respectivos pais e avós. E muito menos olhar para passados longínquos. Em finais do século XIX, por exemplo, a taxa de mortalidade infantil chegava a ultrapassar os 30% – ou seja, havia 300 mortes em cada 1.000 nascimentos. O risco de um bebé morrer naquela altura era pelo menos 100 vezes superior ao dos nossos dias. Eram outros tempos.

    Porém, mesmo nos tempos modernos, chamemos assim, a morte esteve bem mais presente sobre os berços e pequenas camas do que hoje. Em Portugal, a taxa de mortalidade neonatal era em 1970 de 23,7 em 1.000 nascimentos, ou seja, 12 vezes superior à de 2019. No caso da taxa de mortalidade infantil, a descida foi ainda mais acentuada: em 1970 situava-se nos 55,7 óbitos por 1.000 nascimentos – significando que quase 6 em cada 100 crianças sucumbiam antes de perfazerem 5 anos –, enquanto agora está em aproximadamente três óbitos em 1.000 nascimentos.

    Evolução da taxa de mortalidade (óbitos por 1.000 crianças com 5 anos) no grupo etário 5-14 anos em Portugal entre 1900 e 2019 (Fonte: UNICEF)

    Embora a UNICEF não apresente dados anteriores a 1990 para a taxa de mortalidade no grupo etário dos 5 aos 14 anos, a evolução nas últimas três décadas impressiona: passou de 3,9 óbitos em 1.000 crianças (com 5 anos) para apenas 0,8. Estamos a falar de uma descida de 80% numa taxa de mortalidade já então bastante baixa em 1990.

    Em Portugal, a pandemia da covid-19 trouxe, quer directa quer indirectamente, praticamente zero impacte na sobrevivência de bebés, crianças e jovens adolescentes. Ou mesmo talvez tenha trazido um paradoxal benefício. Com efeito, em 2019 morreram 265 bebés com menos de um ano, e no ano passado apenas 214. Este ano, até 17 de Dezembro, foram registados 183 óbitos, devendo assim ser o ano menos mortífero em termos absolutos desde que há registos estatísticos.

    O número de óbitos na faixa etária seguinte – entre 1 e 4 anos – deverá em 2021 ser ligeiramente superior ao ano passado (53 mortes), mas ainda inferior a 2019. Nesse ano registaram-se 87 mortes neste grupo, enquanto este ano, até 17 de Dezembro, já se registaram 53.

    Apenas no caso do grupo etário das crianças entre os 5 e os 14 anos se verificará previsivelmente um ligeiro agravamento em relação ao período de 2019. Neste momento, os anos de 2021 e 2019 contabilizam o mesmo número de desfechos fatais em crianças, o que significa que, pelas lamentáveis leis na probabilidade, o presente ano terminará com um pouco mais de 90 óbitos neste grupo etário. Em todo o caso, no primeiro ano da pandemia, em 2020, tinha-se registado um número bastante baixo de óbitos (apenas 75).

    Enfim, mesmo num período distópico em que nunca se falou tanto em morte, “que se tenha noção” – como diria, embora noutra circunstância, o jornalista da SIC Rodrigo Guedes de Carvalho – de que se antes era frequente os pais verem filhos morrer, agora esses pais, como avós, raramente assistem a um desfecho fatal dos seus netos.

    Sempre más, mas raras

    Sigamos para a parte mais lamentável deste longo artigo: as causas das sempre e mais compreensivelmente tristes mortes de bebés, crianças e jovens adolescentes. Defenda-se, contudo, desde já que sendo certo serem todas as horas de vida importantes para todas as pessoas de todas das idades – como defendeu o vice-almirante Gouveia e Melo –, a razão dirá, se não se quiser ser populista ou demagógico, que as muitas e muitas horas já vividas por um idoso a morte não as tirará. Porém, ceifando a morte uma criança, muitas e muitas horas de vida, e de esperança, serão perdidas por aqueles que mereciam chegar a velho, tendo uma vida plena. Triste não é ser velho: triste é não chegar a velho.

    Não por acaso, aliás, os estatísticos – sempre classificados de insensíveis – usam um indicador aparentemente frio, mas que mostra bem o estado das políticas de saúde de um país: a taxa de anos perdidos por 100.000 habitantes. Quem deixa morrer as suas crianças, por um lado tem menos gente a chegar a velha, e a que chega maltratada será até à morte.

    Enfim, mas afinal, vejamos, em concreto, quais são as malfadadas doenças e enfermidades que ainda matam, por ano, algumas centenas de bebés e várias dezenas de crianças e jovens adolescentes – ao contrário da covid-19, que, em abono da verdade, e apesar do alarme social ceifou três vidas de menores de idade em quase dois anos.

    De acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), nos últimos cinco anos com registos (2015-2019) faleceram 1.314 bebés com menos de um ano. A parte substancial destas mortes são derivadas de afecções originadas no período perinatal (775) – que corresponde ao período entre as 22 semanas de gestação e a primeira semana após o nascimento – ou de malformações congénitas de anomalias cromossómicas (313). Por causas mal definidas foram reportados 41 óbitos.

    Em todo o caso, estas mortes – que se diriam quase inevitáveis – têm registado um decréscimo acentuado, em parte como reflexo da melhoria na detecção de malformações em ecografias e outros diagnósticos complementares durante as gravidezes, mas também pela evolução da medicina.

    girl and boy playing on bed

    Com efeito, os óbitos perinatais eram ainda bastante elevados há algumas décadas. Por exemplo, em 1989 contaram-se 1.919 óbitos perinatais, segundo dados do INE, mas desde 1997 baixaram a fasquia dos mil. Em 2019 já foram apenas 104, o que representa uma evolução positiva espantosa.

    Por outro lado, torna-se notório que algumas afecções graves já não matam agora tantos bebés como no início do século XXI, mesmo se os primeiros 12 meses de vida continuam a ser “delicados”. Na verdade, a taxa de mortalidade nestes “primeiros passos” é similar à das pessoas com 51 anos.

    Se se comparar as causas dos óbitos infantis em 2002 com os registados em 2019 constata-se uma redução muito significativa naqueles associados à duração da gravidez e ao crescimento fetal (passaram de 83 para apenas oito), à hipoxia intra-uterina e asfixia ao nascer (passaram de 49 para 3) e a uma infinidade de outras enfermidades ou malformações congénitas. Segundo os dados do INE, os óbitos infantis entre aqueles dois anos reduziram-se de 580 para 255. Convém referir, no entanto, que no início do presente século nasciam ainda mais de 110 mil crianças por ano, cerca de 40% superior ao número que se registará este ano. De facto, tendo em conta os nascimentos até Outubro, nascerão este ano menos de 80 mil bebés, o valor mais baixo desde que meados do século XIX.

    Se excluirmos as causas decorrentes de malformações e doenças congénitas fatais nos primeiros meses, os óbitos de bebés com menos de um ano são cada vez mais uma raridade. No quinquénio 2015-2019, as doenças do sistema nervoso e dos órgãos encabeçam o grupo de enfermidades mais fatais, embora com um número muito baixo: 36 óbitos, o que representa cerca de sete por ano. Seguem-se as doenças do aparelho respiratório (29, no quinquénio), das quais 16 por pneumonia. Isto é, a pneumonia causou, em média anual, a morte de três menores de um ano – um valor muito baixo, mas superior ao registado para a covid-19 na mesma faixa etária.

    As causas externas – grosso modo, ferimentos de origem diversa – são outra relevante causa de morte, no período analisado, com 41 óbitos. Destes, 23 deveram-se a acidentes (ou suas sequelas), dos quais quatro foram acidentes de transporte. Houve também três mortes por agressão.

    Ultrapassado o primeiro ano de vida – em que as malformações mais graves acabam lamentavelmente por levar os mais infelizes na “sorte da vida” –, os óbitos decaem bastante na faixa etária até aos quatro anos: apenas 300 registos no quinquénio 2015-2019. E começam então a ganhar preponderância relativa outras causas, embora seja importante não esquecer que este grupo etário não pode ser comparado directamente com os bebés menores de um ano, uma vez que agregando crianças de 1, 2, e 4 anos – ou seja, é um grupo etário de quatro vezes superior. E há outro factor: os menores de um ano são muitíssimo mais frágeis. Mas mesmo muito mais.

    2 girls sitting on floor

    Se seguirmos as tábuas completas de mortalidade do INE, em cada 100.000 crianças nascidas nos anos mais recentes, 99.703 ultrapassaram o primeiro ano de vida – ou seja, a taxa de mortalidade é de 0,30%. Já entre o primeiro e o segundo ano de vida, essa taxa desce muito: em 100.000 bebés com 1 ano, 99.968 completam o segundo ano de vida – ou seja, a taxa de mortalidade já só é de 0,032%. E continua a descer até estabilizar em redor dos cinco anos, aumentando a partir daí, mas até à próximo da idade da reforma com grande suavidade.

    Por exemplo, aos 20 anos, a probabilidade de se chegar aos 21 anos continua a ser quase total: 99,98% alcançam essa meta, o que significa uma taxa de mortalidade de 0,02%. Aos 30 anos essa taxa continua quase inalterada, situando-se em 99,96%. E aos 40 anos é de 99,91%. Somente a partir dos 67 anos, a taxa de sobrevivência ao fim de um ano fica abaixo dos 99%, embora no caso das mulheres essa fasquia ocorra em idade mais avançada. Os homens, apesar dos músculos, são na verdade o sexo fraco em termos de sobrevivência.

    Depois dos 70 e sobretudo dos 80 anos, convenhamos que a vida começa então a andar para trás. Por cada 1.000 idosos com 80 anos haverá cerca de 38 que não chegam aos 81. E por aí fora, crescendo abruptamente à medida que se ultrapassa a esperança média de vida. Dos felizardos que chegam aos 100 anos – na verdade, apenas 0,62% das pessoas que nasceram há 100 anos –, as probabilidades já são muito tramadas: um pouco mais de metade (52%) não vai festejar o próximo aniversário.

    Mas voltemos à infância. E às malfadadas mortes dos mais pequeninos, até aos quatro anos. Embora praticamente já todos sobrevivam, o INE ainda contabilizou 300 mortes ao longo de todo o quinquénio 2015-2019. Todas contam, apesar de, em abono da verdade, constituírem eventos trágicos muito raros face ao período (cinco anos) e à população abrangida (cerca de 425 mil pessoas).

    Sendo certo que nesta faixa etária (1-4 anos) as malformações e outras causas congénitas ou mal definidas continuam, em conjunto, a ser o principal risco de morte – embora com apenas por 70 óbitos no quinquénio em análise –, os tumores infantis sobressaem. Entre 2015 e 2019 sucumbiram 57 neste grupo etário. No caso de leucemias – sempre uma temida e mediática doença nestas idades, mas muitíssimo rara – registaram-se 21 mortes neste período.

    Os acidentes e suas sequelas seguem atrás: 55 óbitos no quinquénio – ou cerca de 10 por ano. De entre estas, o INE reporta 17 mortes por acidentes de transporte e cinco por agressões. As doenças do sistema nervoso e afins causaram, neste grupo, 32 mortes, enquanto as doenças do aparelho respiratório provocaram 20 óbitos.

    Curiosamente, três dessas mortes no quinquénio foram directamente por gripe (influenza) e 10 por pneumonias. Mesmo considerando-se que estamos perante um período de cinco anos – e os “danos” destas doenças respiratórias são baixíssimos em termos relativos –, estramos perante números superiores aos da covid-19. Recorde-se que nunca houve qualquer programa intensivo de vacinação contra a gripe em crianças, sendo que apenas em casos especiais (comorbilidades graves se recomenda, sem alarido, a toma de vacina). E relembre-se ainda que em quase dois anos, a infecção causada pelo SARS-CoV-2 foi considerada como responsável pela morte de uma única criança de quatro anos.

    silhouette of man carrying child

    Os desfechos demasiado precoces da vida de crianças e jovens adolescentes (grupo etário dos 5 aos 14 anos) são também, felizmente, muito escassos. O INE aponta 452 óbitos entre 2015 e 2019, ou seja, menos de uma centena por ano. Os tumores representaram 30% do total. As leucemias causaram 42 mortes nestes cinco anos, embora este grupo etário ronda as 850 mil pessoas.

    Os acidentes, embora também muito raros, constituem um risco relevante nestas idades. No período em análise, faleceram 99 crianças e adolescentes deste grupo etário, dos quais 38 de acidentes de transporte e sete de agressões. Embora com um valor estatisticamente residual, impressiona saber-se que entre 2015 e 2019 houve seis crianças e/ou adolescentes desta faixa etária que morreram por “lesões autoprovocadas intencionalmente”.

    Por outro lado, as malformações congénitas como causa de morte perdem peso neste grupo, o que se mostra compreensível, uma vez que os casos mais graves têm desfechos fatais em idades mais jovens. Em todo o caso, os dados do INE revelam a ocorrência de 45 óbitos resultantes deste tipo de afecções naquele quinquénio.

    Menos letais neste grupo etário são as doenças do aparelho respiratório. Em cinco anos, e para uma faixa etária de 10 anos, apenas originaram 16 mortes, sendo cinco por gripe (influenza) e oito por pneumonias. Embora trágicos para as vítimas, familiares e comunidade próxima, estes valores são bastante baixos do ponto de vista de Saúde Pública, e sobretudo reflectem uma excelente evolução da medicina e da Ciência.

    Poderiam ser mais baixos? Claro que sim. É para isso que as políticas públicas servem. Aliás, a evolução das últimas décadas, que aqui se retratou, demonstram que pode sempre melhorar-se quando o risco, mesmo que baixo, se pode reduzir ainda mais. Com investimento e estratégias adequadas.

    Porém, no caso da covid-19, pouco ou nada se pode baixar, em parte devido a uma relativa benignidade do SARS-CoV-2 nas idades mais jovens. Porém, mesmo assim, o Governo preferiu investir um programa de vacinação de muitos milhões de euros – talvez mais de 10 milhões (não foram ainda tornados públicos os contratos com a Pfizer) – para afinal combater uma doença que não matou qualquer pessoa no grupo etário jovem que neste fim-de-semana começou a ser vacinado.

    Será que não haveria outras prioridades em sectores onde se pudesse obter melhores desempenho do ponto de vista do investimento por redução potencial de mortes? A resposta parece, mais uma vez óbvia: sim, havia. Como parece lógica.

    Mas a pandemia causada pelo SARS-CoV-2 já nos mostrou à saciedade que a lógica é já uma batata. Podre.