No acto da inscrição para a Jornada Mundial da Juventude, houve 354 mil peregrinos que pagaram ao Patriarcado de Lisboa verbas que incluíam um kit de transporte, e quem preparou os seus próprios percursos pagou os bilhetes do seu bolso. Mas ninguém explica agora se o Patriarcado pagou algum serviço ou se antes encaixou as verbas nos seus cofres; e nem se sabe se os operadores suportaram algum custo adicional. Só se sabe, sim, que um simples despacho do ministro Duarte Cordeiro mandou o orçamento do Fundo Ambiental às malvas e determinou que se concedesse um subsídio à empresa intermunicipal TML de até 3,3 milhões de euros. Mas esta empresa pública, que sobrevive de subsídios à exploração e já apresenta indicadores que podem levar à sua dissolução em breve, também ainda não deu sinal de si sobre esta matéria. Nem ao próprio Ministério do Ambiente. O apoio estatal concedido é superior ao custo do polémico altar-palco.
No âmbito da Jornada Mundial da Juventude, o ministro do Ambiente, Duarte Cordeiro, autorizou a transferência de 3,3 milhões de euros do Fundo Ambiental para a empresa pública TML – Transportes Metropolitanos de Lisboa, mas ninguém diz, em concreto, para que serviu nem qual a justificação.
A TML é uma empresa pública, criada em 2021 no seio das 18 autarquias Área Metropolitana de Lisboa (AML), com atribuições no planeamento e gestão de bilhética, como o Cartão Viva, funções antes atribuídas à OTLIS. Apesar de no ano passado, primeiro em pleno funcionamento, ter alcançado a venda de 15,6 milhões de euros, mostra, desde já, uma situação completamente deficitária, não tendo registado prejuízos colossais apenas porque sobretudo a AML lhe injectou 20 milhões de euros de subsídios de exploração.
Altar-palco foi palco de polémica e baixou de 4,2 milhões para 2,9 milhões de euros. Apoio do Fundo Ambiental para transportes, que foram pagos pelos peregrinos, foi superior.
O montante máximo a atribuir (3,3 milhões de euros) pelo Ministério do Ambiente decorre de um despacho de Duarte Cordeiro, publicado no final de Julho, que decidiu usar as verbas do Fundo Ambiental para, “mediante protocolo de colaboração técnica e financeira a celebrar” com a TML “para apoiar a aquisição de títulos de transporte público para os peregrinos que participam na Jornada Mundial da Juventude 2023”.
A atribuição da verba do Fundo Ambiental – um milionário fundo com receitas previstas este ano de 1,2 mil milhões, metade dos quais dos leilões das licenças de emissões de dióxido de carbono (CELE) – foi feito à margem do orçamento de 2023 aprovado pelo próprio Duarte Cordeiro em Março deste ano, que determinava que o destino das verbas só poderia ser revisto “caso a execução orçamental da receita apresente variações significativas face às receitas previstas ou perante eventuais alterações significativas à execução orçamental de compromissos assumidos.”
Porém, Duarte Cordeiro invocou uma cláusula de excepção do diploma que criou o Fundo Ambiental em 2016 que permite apoios pontuais por decisão do “membro do Governo responsável pela área do ambiente e da ação climática” quando se considerar que beneficia “a intervenções urgentes ou de especial relevância”. E o ministro do Ambiente assim fez, por considerar que se justificava “o apoio à disponibilização de títulos de transporte intermodais específicos para os peregrinos da JMJ, como forma de induzir e facilitar a opção de deslocações em transporte público, em detrimento de outras formas de mobilidade mais poluentes e penalizadoras do ambiente.”
Duarte Cordeiro gere o Fundo Ambiental com um orçamento anual de 1,2 mil milhões de euros. Por simples despacho, pôde contrariar o orçamento do multimilionário fundo e atribuir 3,3 milhões de euros para apoiar uma empresa deficitária, sem justificação fundamentada.
Porém, a justificação para esta operação de financiamento à TML não encaixa na realidade, porque os peregrinos que se inscreveram na Jornada Mundial da Juventude tiveram de pagar o transporte, que estava incluído explicitamente como contrapartida. Recorde-se que nos Pacotes Peregrinos, a Fundação JMJ Lisboa 2023 – criada pelo Patriarcado de Lisboa para a organização do evento que contou com a presença do Papa Francisco – estabeleceu diferentes valores de inscrições, desde os 95 até aos 255 euros, todos incluindo kits de transporte.
Pressupondo que uma parte das avultadas receitas do Patriarcado de Lisboa pelas cerca de 354 mil inscrições de peregrinos se destinaria, em princípio, para também custear passes de transportes, o PÁGINA UM questionou por duas vezes a Fundação JMJ para saber se houve algum pagamento de serviços, ou algum desconto pelos passes durante a Jornada Mundial da Juventude, quer à TML quer a outro qualquer operador, como a Carris e Metropolitano de Lisboa. Porém, do Patriarcado de Lisboa só veio silêncio – e, por agora, só Deus saberá a resposta…
Ou também a administração da TML – mas esta também não respondeu aos pedidos de informação do PÁGINA UM sobre o protocolo de colaboração técnica e financeiro previsto, nem deu explicações para o recebimento do apoio do Fundo Ambiental sabendo-se que, em princípio, os peregrinos pagaram o transporte no acto da sua inscrição.
Houve 354 mil peregrinos que pagaram inscrição, que incluía kit de transporte. Os restantes tiveram que pagar bilhete nos transportes. TML não explica se recebeu dinheiro do Patriarcado de Lisboa ou se teve suportar algum custo que não teve retorno financeiro positivo.
Apenas o Ministério do Ambiente, através do gabinete de imprensa de Duarte Cordeiro reagiu, embora ao estilo de Pôncio Pilatos, dizendo que aguardam que a “TML comunique o número de títulos usados para poder contabilizar o montante do Fundo Ambiental que será efetivamente necessário mobilizar, nos termos referido no despacho”, acrescentando, porém, que “o valor que a TML receberá será repartido pelos operadores da área metropolitana de Lisboa que aderiram, consoante o número de validações”, incluindo “a Carris e o Metropolitano de Lisboa”.
Na nota enviada pelo Ministério do Ambiente ao PÁGINA UM não surge qualquer referência sobre a noticiada comparticipação de 40% por parte do Governo aos passes dos peregrinos, através de um suposto acordo com a Fundação JMJ.
Em suma, cerca de um mês após o despacho governamental, ignora-se se o dinheiro recebido dos peregrinos pela Fundação JMJ acabaram no bolso da Patriarcado de Lisboa, e se os 3,3 milhões de euros não são mais um dos contínuo subsídios à exploração de uma empresa pública, nascida há apenas dois anos, que já está deficitária.
A TML gere, entre outros títulos, o passe Navegante dos transportes públicos da Área Metropolitana de Lisboa. No ano passado, as receitas de prestação de serviços só cobriram 44% dos custos. Resultado: sobrevive de subsídios de exploração para pagar sobretudo contratos externos e salários de 72 funcionários.
De facto, mostra-se surpreendente constatar, através do relatório e contas de 2022, que a TML, para obter no ano passado vendas de 15,6 milhões de euros, teve de contratar serviços externos no valor de quase 31,4 milhões de euros – sendo 27,7 milhões em subcontratos –, além de arcar gastos com pessoal da ordem dos 3 milhões de euros. Em média, o salário bruto dos 72 empregados aproxima-se dos 3.000 euros mensais. E os três administradores custaram ao erário público, em dois anos (2021 e 2022) quase 456 mil euros.
No recente relatório e contas, a administração da TML até já alerta para o incumprimento de indicadores estabelecidos por um diploma de 2012 relativo à actividade empresarial de municípios. Essa legislação obriga que as empresas municipais sejam extintas se, por exemplo, as vendas e prestações de serviços realizados durante os últimos três anos não cubram, pelo menos, 50% dos gastos totais dos respetivos exercícios, ou se o resultado líquido for negativo durante três anos. A continuar esta situação financeira, se os municípios retirarem parte dos subsídios à exploração, os prejuízos contabilísticos disparam.
Nos últimos cinco anos e meio, já foram autorizados abates de 13.163 sobreiros e de 72.433 azinheiras. Tudo serve como justificação, bastando que se invoque uma “imprescindível utilidade pública” em projectos sempre bem acolhidos pelo Governo. Entre centrais de energia renovável e ferrovias e rodovias, passando por pedreiras, um levantamento do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas para o PÁGINA UM contabilizou 44 projectos onde o machado brande forte. Em todos os cortes ficam previstas medidas de compensação, com o plantio de jovens árvores em outras zonas. Tudo boas intenções, como aquelas que, por vezes, se encontram amiúde no inferno.
Já foram consideradas árvores quase sagradas em território português, ainda no tempo da I República, e depois ao longo do Estado Novo. Mesmo nas primeiras décadas da democracias, só com a “queda do Carmo e da Trindade”, em ocasiões muito especiais, era autorizados cortes, mesmo se, à primeira oportunidade, havia quem corresse o risco de apanhar multas se os proveitos compensassem, sobretudo se estivessem em causa interesses urbanísticos.
Mas no século XXI, mais moderno, quis-se inovar. Primeiro, foi-se concedendo com maior facilidade a possibilidade de cortes de sobreiros e azinheiras no caso de “empreendimentos de imprescindível utilidade pública”, algo sempre de definição ambígua ou dúbia, mas que sempre acabava numa decisão ministerial polémica, mas choruda. Agora, o facilitismo é tanto que, com a recente simplificação dos licenciamentos ambientais (leia-se, maior facilidade de contornar restrições ambientais), os cortes destas árvores podem vir a ser acção corriqueira.
Não há machado que corte a raiz ao pensamento, assim canta o poema de Carlos Oliveira. Mas em Portugal há cada vez mais machados, ou moto-serras, a deceparem quercíneas. Muitos sobreiros (Quercus suber), mas ainda muitas mais azinheiras (Quercus ilex ou Quercus rotundifolia), uma sua “prima” menos rentável, por não ter cortiça. Em muitos casos, paradoxalmente, dizem-nos, o abate surge por razões ambientais, nos últimos tempos para projectos de painéis fotovoltaicos.
De acordo com um levantamento detalhado do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, a pedido do PÁGINA UM, desde 2017 foram emitidas 44 declarações de imprescindível utilidade pública (DIUP) que originaram o abate de 13.163 sobreiros e de 72.433 azinheiras, envolvendo 27 concelhos de 15 distritos. A área de corte – ou seja, a área total ocupada por aquelas árvores, geralmente em povoamentos muito mais dispersos do que os que ocorrem em pinhais e eucaliptais – foi de quase 367 hectares.
Ao contrário do que seria de imaginar – por ser aí que se concentram a maior extensão de montados de sobro –, o distrito com mais abates de sobreiros não se situa no Alentejo, mas sim na região Centro, mais propriamente em Aveiro. Nesse distrito houve já sete autorizações para o abate total de 2.786 sobreiros, dos quais 2.243 árvores desta espécie se concentram no lugar de São João, na freguesia de São João de Ver, no concelho de Santa Maria da Feira. Para lá está prevista uma central fotovoltaica de uma empresa de capitais estrangeiros (FFNEV Portugal I), com o corte de 471 sobreiros adultos e 1.772 sobreiros jovens em cerca de 20 hectares.
A autorização de abate, sem necessidade de avaliação de impacte ambiental, foi tomada em Fevereiro do ano passado pelo então ministro do Ambiente Matos Fernandes, e o abate foi solicitado por uma empresa unipessoal (Bosque) pertencente a João Carlos Gama Amaral, um engenheiro florestal que integra o Conselho Coordenador dos Colégios da Ordem dos Engenheiros.
Este abate no distrito de Aveiro supera assim o recente abate de 1.821 sobreiros autorizado por Duarte Cordeiro, no início deste mês, para a instalação de um parque eólico da EDP em cerca de 32 hectares dos concelhos de Santiago do Cacém e Sines, incluindo mesmo a freguesia de Porto Covo. No entanto, este projecto não consta ainda do levantamento feito pelo ICNF para o PÁGINA UM.
Excluindo o parque eólico da EDP, o segundo projecto com maior abate de sobreiros localiza-se no distrito de Évora, região onde desde 2017 se contabilizam oito autorizações de abate, envolvendo no total 2.552 árvores daquela espécie e ainda 6.166 azinheiras. O projecto em causa insere-se na ligação ferroviária projectada para ligar Évora e Elvas/Caia, sendo indicado pelo ICNF o corte de 1.596 sobreiros e 4.164 azinheiras.
Com mais de mil sobreiros abatidos destacam-se ainda um projecto de produção e transporte de energia nos concelhos nortenhos de Cabeceiras de Basto, Ribeira de Pena e Vila Pouca de Aguiar (1.145 árvores) e uma central fotovoltaica numa área de quase 15 hectares do concelho de Gavião (1.079 sobreiros, a que acrescem quatro azinheiras), esta última com autorização em Fevereiro do ano passado.
No caso das azinheiras, o maior desbaste é no distrito e concelho de Santarém, mais precisamente na freguesia de Alcanede. Uma pedreira da empresa Solancis, para extracção de calcário numa área de 5,6 hectares, levou a uma autorização de abate, em Julho de 2020, de um total de 34.608 azinheiras jovens.
No distrito da Guarda, uma das regiões ciclicamente mais afectadas pelos incêndios, três projectos rodoviários e ferroviários “limpam” também quase 30 mil árvores. De entre estes destaca-se a requalificação da linha ferroviária da Beira Alta, no subtroço Cerdeira-Vilar Formoso, tendo, por despacho de Maio do ano passado, sido autorizado o corte de 584 azinheiras adultas e 19.775 azinheiras jovens, além de 13 sobreiros adultos e 17 sobreiros jovens, em quase 18 hectares de povoamentos ao longo do percurso da obra, nos concelhos do Sabugal e de Almeida.
Neste último concelho já fora autorizado, em finais de 2019, um outro abate significativo (3.174 azinheiras adultas e 2.897 azinheiras jovens) para a construção do IP5 junto a Vilar Formoso.
No lote de zonas com mais abates de azinheiras surge também Évora, onde diversos projectos sobretudo rodoviários e ferroviários, deitaram por terra 6.166 azinheiras, para além dos 2.552 sobreiros.
Por normas, as entidades públicas e as empresas privadas que obtêm essas autorizações de corte prometem, e ficam definidas, compensações, nomeadamente a plantação de novas árvores em outras áreas, mas não existe um controlo muito apertado desses compromissos. De acordo com o levantamento enviado ao PÁGINA UM pelo ICNF, a área de compensação é, por agora, largamente superior à da área total cortada (480,73 hectares contra 366,76), mas ainda falta serem definidos alguns deste projectos.
Fonte do ICNF sublinha que “alguns dos projetos de compensação estão previstos serem implementados em áreas públicas, nomeadamente: nos perímetros florestais do Barroso e de Cabreira, das Serras do Soajo e Peneda, de Conceição de Tavira; na Mata Nacional da Covilhã, no interior do Parque Natural da Serra da Estrela; na Reserva Natural da Serra da Malcata, na Área Florestal de Sines; e na Tapada Nacional de Mafra, abrangendo um total de cerca de 173 hectares, com uma plantação estimada de 80 000 árvores.” Veremos.
A ADENE, uma agência de energia controlada por entidades tuteladas pelo Ministério do Ambiente, pagou à TSF a emissão de 12 podcasts em ajuste directo por 19.995 euros. O contrato foi assinado por Nélson Lage, antigo adjunto de João Galamba na Secretaria de Estado da Energia, e por Bruno Veloso, ex-deputado socialista. O primeiro convidado foi o próprio ministro Duarte Cordeiro, que esta terça-feira teve um “direito de antena” de 35 minutos na TSF para promover o seu trabalho. A entrevista foi conduzida por Paulo Tavares, que apesar de ser apresentado pela ADENE (e por si próprio) como jornalista, não tem carteira válida por ser proprietário de uma empresa de consultoria política e assessoria de imprensa. Este é mais um lamentável episódio das promiscuidades e atropelos legais e deontológicos na imprensa mainstream, sob a cúmplice apatia da ERC, CCPJ e Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.
“Obrigado por ter aceitado o nosso convite” – foi assim que o entrevistador Paulo Tavares, presumido jornalista, agradeceu ao ministro do Ambiente e da Acção Climática, Duarte Cordeiro, a concessão de uma entrevista à TSF, emitida esta terça-feira, integrada num conjunto de podcasts desta rádio da Global Media, e apresentada como uma parceria com a ADENE.
Tudo fake. De facto, a entrevista, ou melhor, uma conversa descontraída com palco para exposição das políticas ministeriais, não foi conduzida por um jornalista acreditado. Não houve também propriamente um convite, porque a “parceira” do podcast da TSF, a ADENE é indirectamente tutelada por Duarte Cordeiro. E chamar “parceria” é abusivo, porquanto a relação entre a TSF e a ADENE é similar à aquisição de um serviço de relações públicas: a ADENE apenas deu dinheiro para, em contrapartida, ser-lhe feitos e emitidos os podcasts que desejava.
Verdadeiro, assim, apenas uma conversa de promoção das políticas do Ministério do Ambiente e da Acção Climática, mesmo se, aos ouvidos dos ouvintes, possa ter parecido que se tratou de uma entrevista com liberdade editorial – um pleonasmo, porque entrevista pressupõe a existência de liberdade editorial.
Mas comecemos por saber quem é a ADENE, suposta parceira da TSF.
Embora seja uma associação – que integra como sócios, por exemplo, a Galp e a EDP –, esta agência de energia é um dos braços da política energética do Governo, tendo como sócios principais a Direcção-Geral de Energia e Geologia (25,1% de participação), o Laboratório Nacional de Energia e Geologia (24,71%), a Agência Portuguesa do Ambiente (11,67%) – todas tuteladas pelo Ministério de Duarte Cordeiro – e as suas contas estão integradas no perímetro do Orçamento do Estado. Ou seja, apenas por entidades por si tuteladas, Duarte Cordeiro “controla” mais de 60%. Acrescentando a participação da Direcção-Geral das Actividades Económicas (11,67%) tem o Governo um controlo acima de 70%.
A ADENE assegura ainda a gestão da Academia ADENE, que “promove formação especializada na certificação energética de edifícios e reforço de competências nos domínios da eficiência energética, das energias renováveis, da eficiência hídrica e da mobilidade eficiente”.
Mas, na verdade, aquilo que poderá ter parecido, aos ouvintes, um conteúdo editorial independente, até porque a ADENE refere ser apresentado por um jornalista, é afinal mais um programa de conteúdos pagos.
Nélson Lage, presidente da ADENE, foi adjunto de João Galamba, quando o actual ministro das Infraestruturas era secretário de Estado da Energia. Transitou para a agência de energia, nomeado pela tutela, em Agosto de 2020.
Com efeito, em 18 de Abril, o actual presidente da ADENE, Nelson Lage – licenciado em Ciências Políticas e antigo adjunto de João Galamba, na secretaria de Estado da Energia – e o seu vice Bruno Veloso – ex-deputado socialista – assinaram um contrato com Marco Galinha, administrador da Global Media, no valor de 19.995 euros para a “aquisição de serviços associados ao desenvolvimento, produção e dinamização do ‘Podcast ADENE, Toda a Energia”. Acrescente-se que o valor de 19.995 euros não é um acaso: a partir de 20.000 euros os contratos deste género não podem ser feitos por ajuste directo.
Apesar do caderno de encargos não constar, como deveria, no Portal Base, em comunicado ontem divulgado a ADENE refere que serão transmitidas “12 emissões, cada uma com cerca de 15 minutos”, sob o comando do “jornalista Paulo Tavares”. Ou seja, 1.666 euros pagos por cada episódio.
Nesse comunicado era logo transmitido que o ministro Duarte Cordeiro seria o primeiro participante, no qual se abordaria “o significado da Política Energética, as suas diversas dimensões e a importância para o desenvolvimento do país”, acrescentando-se ainda que “ser[ia] explicado como os cidadãos podem contribuir para o sucesso e implementação da política energética.” O episódio foi, efectivamente já emitido ontem, tendo o ministro um bónus: a conversa ocupou um espaço de antena de 35 minutos e 34 segundos.
Duarte Cordeiro é “reincidente” ao beneficiar de cobertura mediática favorável em eventos que, afinal, envolvem prestação de serviços.
Além do pagamento de quase 20 mil euros por podcasts financiados por uma entidade associada ao Ministério do Ambiente, a entrevista – e depreende-se que a totalidade dos outros episódios – foi assumida por alguém que, na verdade, já não é jornalista, embora publicamente usurpe essas funções.
Com efeito, apesar da ADENE identificar Paulo Tavares como jornalista – e o próprio também o fazer na rede LinkedIN –, o entrevistador deste podcast não tem carteira profissional activa, tanto mais que exerce agora funções como consultor de comunicação, actividade incompatível de acordo com o Estatuto do Jornalista.
Apesar disso, Paulo Tavares continua a manter-se ligado à comunicação social de uma forma ambígua (assumindo-se como jornalista), através da sua empresa unipessoal, a PTS (iniciais de Paulo Tavares Sardinha), constituída em Dezembro do ano passado para a “prestação de serviços de consultoria política e assessoria de imprensa, e de consultoria editorial”, bem como “produção, gestão e apresentação de eventos” e ainda “produção e realização de programas de rádio e televisão” e ainda “edição de revistas e outras publicações não periódicas”.
Paulo Tavares conduziu “entrevista” ao ministro do Ambiente no podcast pago pela ADENE. Apesar de se apresentar como jornalista, não tem carteira válida por ser proprietário de empresa de comunicação, mas continua com ligações ambíguas com a Global Media.
No ano passado, Paulo Tavares – que foi efectivamente jornalista na TSF entre 1993 e 2016 e, mais tarde, director-adjunto do Diário de Notícias, entre 2016 e 2018 – chegou a exercer uma função ambígua (e inexistente) num evento pago (MobiSummit) por uma empresa municipal de Cascais à Global Media: “curador editorial”, ou seja, responsável pela cobertura mediática pelos órgãos de comunicação social do grupo de Marco Galinha.
Esta situação ilegal não teve qualquer intervenção conhecida da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.
Ouvindo a “entrevista” a Duarte Cordeiro, ressalta logo, pelas questões, a abertura de caminho para que o ministro do Ambiente pudesse publicitar e promover, sem quaisquer perguntas incómodas, as políticas em curso.
Aliás, não é a primeira vez que Duarte Cordeiro beneficia de entrevistas ou notícias feitas no âmbito de alegadas parcerias de entidades associadas ao Ministério do Ambiente com órgãos de comunicação social, mas que são, na verdade, prestação de serviços envolvendo publicidade travestida de conteúdos noticiosos.
Em Maio do ano passado, o PÁGINA UM relatou que o Instituto da Conservação da Natureza pagou 19.500 euros para a cobertura de um evento, tendo uma notícia escrita por um jornalista com carteira profissional sido colocada numa ambígua secção (Projetos Expresso), onde empresas públicas e privadas adquirem “serviços de jornalismo”.
Uma semana após o primeiro evento, o ministro teve direito a uma entrevista descontraída por três jornalistas do Expresso, onde até posou, sorridente, sentado na escadaria do edifício da Rua do Século.
Também no MobiSummit, em Setembro do ano passado, Duarte Cordeiro esteve envolto em polémica por recusar prestar declarações a determinados órgãos de comunicação social alegando ter exclusivo com os media partner do evento, os três periódicos do grupo empresarial da Global Media: Diário de Notícias, Jornal de Notícias e Dinheiro Vivo.
Entidade Reguladora para a Comunicação Social, Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas continuam a “fechar os olhos” a sistemáticas violações da Lei da Imprensa e do Estatuto do Jornalista.
Também nestes casos não houve intervenção conhecida da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, apesar das evidentes violações da Lei da Imprensa e do Estatuto do Jornalista.
O PÁGINA UM contactou o gabinete de Duarte Cordeiro questionando se o ministro do Ambiente “já concedeu outras entrevistas pagas a outros órgãos de comunicação social”, e se sim a quais, e também se considerava “esta prática aceitável, ou seja, financiar podcasts ou outros eventos através de entidades públicas tendo como contrapartida entrevistas ou artigos noticiosos favoráveis”. Não obteve ainda resposta.
Em Abril do ano passado, o Público anunciou uma forte aposta nos temas ambientais, destacando seis jornalistas, numa equipa de 10 pessoas, supervisionados por duas editoras de Ciência, e através de um modelo assente em parcerias ao estilo de mecenato. Assim nascia o Azul. Mas o único contrato que, entretanto, veio a público com um dos parceiros iniciais (Biopollis) é afinal uma prestação de serviços, envolvendo 90 mil euros em seis meses. Entretanto, na semana passada, o Público alargou os serviços do Azul: vai fabricar conteúdos editoriais para organismos estatais. A Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N) é o primeiro cliente e vai pagar 31 mil euros. E ainda trata o Público como “prestador de serviços”, exigindo prévia revisão dos podcasts a produzir.
Azul – assim se chama o projecto editorial do Público apresentado, em Abril do ano passado, como um modelo de jornalismo independente dedicado em exclusivo ao Ambiente.
Considerando “a crise climática como a grande causa política das novas gerações”, na verdade o Azul também mostra uma outra crise: a do jornalismo a transformar-se numa plataforma de conteúdos prêt-à-porter, onde se mercadejam “conteúdos comerciais” como informação, e onde até institutos públicos, como a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N), podem garantir, através de pagamentos, a execução de conteúdos controlados com prévia validação.
Desde a sua fundação, integrado na edição digital do Público, os responsáveis do Azul diziam, no respectivo estatuto editorial, ser um projecto de jornalismo de causas ambientais – com a biodiversidade, a sustentabilidade e a crise climática como bandeiras –, e que, estando aberto à sociedade civil, contava “com o apoio de parceiros comprometidos com agenda do ambiente para financiar a sua equipa e a sua operação”.
Na linha da frente, como parceiros, foram então destacadas quatro entidades: a Fundação Calouste Gulbenkian, a Biopolis – um consórcio da Universidade do Porto, da Porto Business School e da Universidade francesa de Montpellier –, a Lipor – a empresa pública de tratamento de resíduos do Grande Porto, cuja central de incineração é um dos focos mais importantes de emissão de dioxinas em Portugal – e a Sociedade Ponto Verde – uma das empresas gestoras de resíduos de embalagem.
Para garantir a execução do Azul, a direcção editorial do Público – então comandada por Manuel Carvalho – destacou, além de duas experientes jornalistas da área da Ciência, como editoras (Teresa Firmino e Andrea Cunha Freitas), uma equipa de 10 pessoas, das quais seis jornalistas, o que implicaria a impossibilidade de elaboração de conteúdos comerciais ou a subordinação a entidade externas.
Porém, apesar de o Público ter garantido que o Azul seguiria “um modelo de cooperação e mecenato cada vez mais frequente em projectos jornalísticos na Europa e nos Estados Unidos”, e que “os parceiros e o jornal reconhecem que uma condição crítica para o sucesso” deste projecto editorial “passa[ria] pela transparência e pelo respeito integral das regras profissionais e deontológicas do jornalismo consagradas na lei”, a realidade mostra-se bem diferente.
Com efeito, embora ainda sejam desconhecidos os protocolos com três dos alegados mecenas conhecidos do Azul – apesar de solicitados pelo PÁGINA UM à direcção editorial do Público –, sabe-se agora que a Biopolis fez afinal um contrato de prestação de serviços com a administração do jornal, pelo menos no período compreendido entre Março e Agosto deste ano.
Assinado nos primeiros dias de Março passado, este contrato estabelece a entrega pela Biopolis de 90 mil euros, mais IVA, a troco da “aquisição de serviços de divulgação e promoção da cultura científica, através da promoção de conteúdos subordinados aos temas da biosfera, sustentabilidade e crise ambiental”.
A questão polémica nem estará tanto na imposição – como “obrigações gerais do Público”, de acordo com a cláusula 4º do contrato – de o jornal, perante o parceiro (uma entidade externa à linha editorial) ter de identificar temas e elaborar artigos noticiosos temáticos.
Na verdade, o contrato transcende a Lei da Imprensa – o próprio Estatuto do Jornalista – porque considera, como obrigação, “a publicação de 26 (vinte e seis) artigos editoriais, nos termos e condições definidos no Anexo I ao Caderno de Encargos [que não consta no Portal Base nem foi disponibilizado pelo Público]”.
O articulado desta obrigação é, aliás, muito sui generis, pois acrescenta que os 26 artigos obrigatórios, devem resultar “de uma escolha independente e sem qualquer condicionalismo ou ingerência por parte da Biopolis”, mas acrescenta a seguir que essa escolha tem de ser feita “entre os projectos científicos disponibilizados por esta [Biopolis], a fim de lhes ser dado o tratamento e enquadramento jornalístico necessário para posterior divulgação ao público” Ou seja, se a Biopolis indicar ao Público apenas 26 temas para artigos, o jornal assume que a sua escolha é completamente independente.
Mesmo que um editor do Azul até considere que todos os temas propostos pela Biopolis não têm interesse jornalístico, e que seria mais interessante que os jornalistas dedicassem tempo e recursos a outros assuntos, o Público tem sempre a obrigação de pegar em 26 temas indicados pelo consórcio universitário.
Saliente-se que um dos critérios das avaliações de projectos de investigação nas universidade é o impacte mediático e social. Portanto, a independência editorial do Azul logo aqui aparenta ser uma miragem.
O contrato ainda acrescenta que os textos publicados no âmbito deste contrato terão como referência o serem “promovidos pela Biopolis”, mas também aqui se usa uma falácia: um pagamento sob a forma de contrato, estipulando um número pré-definido de artigos, jamais pode ser rotulado como conteúdo “promovido” ou “patrocinado”. E, se assim fosse, existem fortes dúvidas de legalidade sobre se poderá ser escrito e assinado por um jornalista, uma vez que lhe estar vedado por lei a possibilidade de contribuir para a execução de contratos comerciais.
Além disso, o contrato da Biopolis estabelece o cumprimento de prazos – ou seja, se o consórcio universitário desejar que saia publicado determinado artigo em certo dia, tal terá de se verificar – e também a obrigação de o Público “prestar as informações e esclarecimentos solicitados pela Biopolis sempre que esta assim o requeira”. Em suma, fica assumida uma linha aberta entre um jornal e quem lhe paga serviços.
Na semana passada, quando contactada pelo PÁGINA UM, a direcção editorial do Público – então ainda liderada por Manuel Carvalho – garantiu, apesar do exposto, a independência do Azul, acrescentando ainda que a Biopolis é uma rede de cientistas, e que “em causa não está uma empresa vocacionada para finalidades comerciais”. Em todo o caso, saliente-se que a Universidade de Montpellier está associada à Agência Nuclear de Energia – ligada à OCDE – e à Agência Internacional de Energia Atómica, numa altura em que está em crescendo o lobby que apresenta a energia nuclear como “energia limpa” numa perspectiva de descarbonização da Economia.
Manuel Carvalho assegurou também que “nenhum dos outros contratos” com os outros parceiros “incluem qualquer tipo de obrigação”, embora o PÁGINA UM não tenha conseguido, até agora, ter acesso nem constem no site do Azul.
David Pontes, director do Público desde 1 de Junho deste ano.
Mas se este contrato com a Biopolis já é polémico, pior ainda é aquele assinado no passado dia 25 de Maio com a CCDR-N, e detectado na passada sexta-feira pelo PÁGINA UM no Portal Base. Além de ser uma “parceria” com um instituto público sob administração directa do Estado – tutelado pelo Ministério da Coesão Territorial em coordenação com o Ministério da Modernização do Estado –, as cláusulas constantes do caderno de encargos constituem, sem margem para eufemismos, um despudorado atropelo às elementares regras deontológicas e de independência jornalística.
De facto, a troco de 31.000 euros pagos pela CCDR-N no prazo de 60 dias, o Público obriga-se, de acordo com o caderno de encargos, a “produzir uma série de conteúdos editoriais [leia-se, conteúdos jornalísticos e feitos por jornalistas] relativos à temática do crescimento azul do Programa Espaço Atlântico”, de os publicar “nos websites Azul e Publico.pt e no podcast Azul”, mas com uma condição especial: o Público tem de proceder à entrega prévia dos conteúdos para a “respectiva validação” pela CCDR-N.
Aliás, na cláusula 5ª do caderno de encargos, a CCDR-N trata o Público como se fosse um mero departamento burocrático de comunicação, uma vez que exige, como “forma de prestação do serviço”, que “para o acompanhamento da execução do contrato, o Prestador de Serviços [o Público] fica obrigado a manter, sempre que solicitado, reuniões de coordenação com os representantes da Entidade Adjudicante [CCDR-N], das quais deve ser lavrada acta a assinar por todos os intervenientes da reunião”.
Isto para além de o Público ficar “também obrigado a apresentar” à CCDR-N, “sempre que solicitado, um relatório com a evolução de todas as operações objecto dos serviços e com o cumprimento de todas as obrigações emergentes do contrato”. E até há a nota de que todos os relatórios, registos, comunicações, actas e demais documentos “devem ser integralmente redigidos em português”.
Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero – que integra o conselho consultivo do Azul, e que, no ano passado, tinha elogiado a independência do projecto do Público, afirmando ser este factor “um elemento a valorizar” – diz-se surpreendido com este tipo de contratos. “Levanta-me dúvidas ver a existência de contrapartidas”, afirma este professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, para quem “se mostra fundamental haver uma clarificação”.
Por sua vez, Luís Simões, presidente do Sindicato dos Jornalistas, mostra-se estupefacto tanto com a tipologia dos contratos como com os termos usados. “A nossa prestação, como jornalistas, é para os nossos leitores, e não pode ser para entidades externas, através de prestação de serviços”, diz, acrescentando que “o mecenato é um instrumento fundamental no jornalismo, mas não pode é surgir depois sob a forma de contratos em que se exigem contrapartidas”. Para Luís Simões “há uma necessidade de reflexão sobre este tipo de contratos”.
O PÁGINA UM tentou, especificamente sobre o contrato do Público com a CCDR-N, ouvir David Pontes, o novo director do jornal do Grupo Sonae, desde o início do presente mês, mas não obteve resposta.
Também se expôs à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) os contratos assinados pelo Público, no âmbito do projecto editorial Azul, para obtenção de um comentário, mas apenas foi acusada a “boa recepção da sua mensagem”, com a promessa de ser dado “seguimento coma brevidade possível.”
Recorde-se que em Maio do ano passado, o PÁGINA UM compilou 56 contratos com sinais de promiscuidade e ilegalidades assinados entre grupos de media e entidades públicas mas não existe, até agora, conhecimento da conclusão de diligências.
Esta notícia foi objecto de um direito de resposta publicado a 24 de Outubro de 2023 por determinação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, cujo texto pode ser lido aqui.
O PÁGINA UM apresenta, em pré-publicação, o livro da autoria de Boštjan Videmšek, jornalista esloveno (que entrevistámos em Novembro passado), editado pela Perspectiva, pertencente à jornalista Patrícia Fonseca, também directora do jornal Médio Tejo. A obra é constituída por um conjunto de 10 reportagens da Noruega à Bolívia e da Escócia à China, com fotografias de Matjaž Krivic e prefácio de Filipe Duarte Santos, presidente do Conselho Nacional de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. A editora oferece um desconto especial de 20% e portes CTT aos leitores do PÁGINA UM, de forma directa e sem qualquer contrapartida para o jornal. Basta enviar um e-mail para perspectiva.livros@gmail.com com referência ao PÁGINA UM e a indicação da morada de entrega.
Ao final da manhã, as cores ficam mais bonitas, mais intensas. Até onde a vista alcança, o branco luminoso das maiores salinas do mundo mistura-se com o azul suave dos céus límpidos sobre o deserto alpino dos Andes bolivianos. O silêncio hipnótico, bom para aliviar o peso dos pensamentos, é quebrado a espaços pelo assobio de uma brisa suave, embora decididamente fria. Os picos em redor, alguns deles com quase cinco mil metros, refletem-se nitidamente na fina camada de água da chuva que caiu pela manhã e ainda não evaporou.
Num dia límpido, e visto de longe, o Salar de Uyuni parece uma miragem. De perto, é a constatação de um milagre. Mas poderá não permanecer assim por muito mais tempo.
Boštjan Videmšek, na Estufa Fria, em Lisboa, durante a entrevista ao PÁGINA UM em Novembro do ano passado. (Foto: Paulo Alexandrino)
Ao longo da margem sul do lago salgado, máquinas industriais rugem em intensa atividade. Centenas de camiões andam num vai-vem sobre a crosta salgada, chiando como animais de carga exaustos, alguns deles com trinta ou quarenta anos nas rodas. A fumaça do diesel infesta o ar fresco da montanha. No seu rasto, os camiões deixam marcadas linhas castanhas na brancura virgem do solo, fazendo com que as dezenas de quilómetros quadrados do lago pareçam uma tigela gigante de café com leite.
Os trabalhadores perfuram o sal com equipamentos gigantes, procurando a salmoura por baixo. Alojados sob quantidades colossais de magnésio e potássio, está seu objetivo: o lítio, a fonte de energia essencial para todos os gadgets do mundo; o componente chave para sustentar todo o século XXI.
Visualmente, a violação desta paisagem inocente e delicada tem um impacto brutal.
Os trabalhadores, vestindo as roupas vermelhas da empresa de mineração estatal Comibol, carregam os camiões com escavadoras. A salmoura é transportada para piscinas próximas, esculpidas no meio do lago. Algumas dessas piscinas têm mais de um quilómetro de diâmetro. Vista de cima, parecem campos de arroz alienígenas, ou obras de arte pintadas por cubistas depois de uma noite de absinto.
Para facilitar os complexos processos químicos necessários, a massa mineral é deixada ao sol durante pelo menos três meses. Quando está pronta, é processada na fábrica de lítio Planta Llipi, no que ainda é um projeto-piloto.
No seu primeiro ano de operação, em 2016, produziu cerca de vinte toneladas de carbonato de lítio. A quantidade produzida em 2017 foi três vezes maior.
Embora estas quantidades possam parecer insignificantes num panorama mais amplo, acredita-se que as profundezas das maiores salinas do mundo contenham as maiores reservas de lítio do mundo. Segundo algumas estimativas, os Andes bolivianos contêm 70% do lítio do planeta, e vários estudos têm sido feitos para corroborar essas alegações. De acordo com o mais otimista, 140 milhões de toneladas de lítio podem estar disponíveis no Salar de Uyuni, enquanto o mais pessimista – do Serviço Geológico dos EUA – considera existirem “apenas” nove milhões de toneladas.
Vastas quantidades de lítio também foram detectadas no fundo dos oceanos do mundo. Por isso o setor da mineração, uma das indústrias mais destrutivas do planeta, já anda a olhar para os mares à procura de novas oportunidades de investimento. Mas os planos de conquista marítima ainda estão longe de poderem concretizar-se.
Uma impressão semelhante – a de um longo caminho ainda a ser percorrido – pode ser sentida na fábrica piloto de lítio de Llipi. A central está localizada nas margens do Rio Grande, de cor castanho-avermelhada. A sua pedra inaugural foi colocada pelo ex-presidente da Bolívia, Evo Morales, derrubado num golpe de Estado com ligação aos negócios do lítio, em 2019.
O incendiário socialista lançou a obra com muita pompa e retórica visionária. Em 2010, Morales fez previsões de grande esperança para a Bolívia e o “petróleo do século XXI” inspira a sua visão, considerando haver na exploração do lítio uma oportunidade única para corrigir uma série de erros históricos.
Logo após a sua ascensão ao poder, Morales nacionalizou todos os recursos naturais – desde o petróleo, passando pelo gás natural, até todos os tipos de minerais existentes. Os recursos naturais, por tanto tempo classificados como uma maldição para o povo boliviano, iram ser finalmente uma grande vantagem, o motor da economia nacional e de todos os programas sociais que Morales prometia implementar.
No entanto, até agora essa visão idealista não se concretizou. Para começar, porque a Bolívia não tem pessoal suficientemente qualificado para explorar de forma optimizada as suas riquezas naturais. Por outro, a economia mundial tornou-se tão agressivamente globalizada que é impossível prosperar fora do sistema, pelo menos no que diz respeito aos mercados de metais, minerais e combustíveis fósseis.
“A Bolívia vê o lítio como um dos seus grandes projetos estratégicos. Estamos bem cientes do que uma expansão significativa do mercado nos pode trazer”, diz Miguel Parra, diretor de produção da fábrica de Llipi.
Parra recebe-nos no seu escritório, nas margens das grandes salinas, informando-nos que o projeto-piloto está prestes a terminar. Em abril de 2018 foi concluída uma nova fábrica de lítio, construída no próprio lago, e o colossal projeto governamental de extração de lítio entrou na sua segunda fase.
Era óbvio que os gestores da empresa estatal estavam com pressa. O mercado de carbonato de lítio está em crescimento acelerado e as previsões indicavam que poderia facilmente triplicar nos cinco anos seguintes. Compreensivelmente, o preço também continua a aumentar: o lítio ainda é o componente para baterias mais eficiente de todos, de longe. Não só alimenta os nossos telemóveis e laptops, mas também painéis solares, robôs e, claro, veículos elétricos. Especula-se, aliás, que o destino de toda a empreitada boliviana de exploração do lítio depende do sucesso dos carros elétricos.
Mas voltaremos a este ponto mais tarde.
“Este é um projeto do Estado”, explica Miguel Parra. “Tudo é dirigido a partir de La Paz. Concordo que estamos a progredir devagar. Mas não há outra forma. Já foi muito trabalho concluído, e ainda há muito mais a fazer. Todo o desenvolvimento da tecnologia mundial pesa sobre os nossos ombros. O processo de extração no Salar de Uyuni é muito mais complicado do que na vizinha Argentina ou Chile. Nesses países, os lagos salgados estão localizados em altitudes mais baixas, com um clima mais seco. E o lítio lá está ‘preso’ sob consideravelmente menos magnésio e potássio do que o nosso aqui”, explica.
Um observador crítico poderia notar que o processo de produção na central piloto estava a decorrer num ritmo bastante descontraído. Nem um único quilómetro das estradas à volta do Salar de Uyuni está sequer pavimentada. Durante a nossa visita, três jovens soldados e dois cães vadios constituíam a equipa de segurança que guardava o maior projeto estratégico da história daquele país. Com um pouco de coragem, seria possível dirigir um veículo todo-o-terreno pelas salinas e entrar pelas piscinas artificiais e as plataformas de teste. É verdade que seria um pouco mais difícil chegar à recém-construída central 2.0 – mas apenas por causa de toda a água que a circunda.
A central nova e melhorada é facilmente visível ao longe, em desarmonia com a beleza magnífica do lago. A área de produção pode ser alcançada através de uma longa estrada deserta, sem postos de controle, que se estende pelas pastagens das omnipresentes vicunhas, mamíferos típicos dos Andes. Juntamente com o grão de quinoa, rico em proteínas, estes ruminantes vivazes e sempre inquietos constituem ainda a base da subsistência da população local.
A fábrica de Llipi empregava 250 pessoas em 2017, a maioria trabalhadores manuais. Há poucos especialistas em processamento de lítio na central – quase não existem no país.
No entanto, o sentimento de sonho e irrealidade que envolve este projeto não significa que a Bolívia está adormecida. Pelo contrário: o parlamento boliviano criou a Empresa Pública Nacional Estratégica de Recursos Evaporíticos, com a missão especial de gerir a produção de lítio. O seu diretor está autorizado a assinar contratos com empresas privadas, nacionais ou estrangeiras.
O mercado boliviano de lítio está claramente a abrir-se ao mundo. Os chineses não são os únicos a manifestar interesse; japoneses, alemães, suecos, franceses, suíços, coreanos e canadianos foram rápidos a pôr-se em campo. Segundo as nossas fontes, a gigante elétrica americana Teslatambém quer participar no projeto boliviano. A bateria do Model S da Tesla requer cerca de 54 quilos de carbonato de lítio, semelhante ao que é necessário para alimentar cerca de 10.000 baterias de telemóvel.
No seu relatório de 2017, o fundo de investimentos Goldman Sachsdesignou o carbonato de lítio como “a nova gasolina”. Também previu que, até 2025, o mercado de lítio irá triplicar, com uma procura anual na ordem das 470.000 toneladas.
O relatório alerta corajosamente que o simples aumento de 1% na produção de veículos elétricos poderia aumentar a procura de lítio para mais de 40% do que existe disponível com a produção atual. A Bolívia pode entrar no mercado no momento ideal?
“A FMC, meus antigos empregadores, tentou explorar o Salar de Uyuni no final dos anos 80 e início dos anos 90”, lembra Joe Lowry, diretor da empresa Global Lithiume um dos maiores especialistas mundiais em lítio (apelidado pelos seus seguidores no Twitter como “Mr. Lithium”).
“O caos governamental e a infraestrutura precária apresentavam demasiados problemas e a empresa optou por criar explorações na Argentina. Trinta anos depois, a Bolívia ainda carece de infraestruturas básicas, bem como do tipo de governo com o qual os investidores possam sentir-se confortáveis.”
Embora cético em relação à possibilidade de a Bolívia ser uma história de sucesso na exploração do lítio, Lowry não duvida que os mercados de carbonato de lítio e baterias de lítio estão prestes a explodir. O aumento no consumo de baterias está fortemente ligado a um boom nos transportes elétricos, do qual os automóveis são apenas os precursores. “Grande parte da população mundial viaja diariamente em autocarros”, lembra Lowry, e os “bens de compras online também serão cada vez mais entregues por veículos elétricos automatizados”.
Joe Lowry prevê que o aumento da procura nos mercados de lítio terá sérias consequências geoestratégicas. Os conflitos armados não estão fora de questão. “Argentina e Chile continuarão a ser os dois principais players, com a Bolívia certamente a ter o seu crescimento também, mas o frenesim da produção de lítio vai-se espalhar por África.”
Até agora, os chineses foram os únicos que os bolivianos deixaram entrar no seu grande projeto nacional. A Bolívia e a China mantêm relações amigáveis há muito tempo e o presidente socialista da Bolívia vê a abertura de uma porta para Pequim como um movimento anti-imperialista.
Nos últimos quinze anos, a China tem vindo a acumular concessões para a exploração de riquezas naturais por todo o terceiro mundo. A agilidade ideológica da China casou com a ganância descarada de muitos líderes latino-americanos e africanos. O impacto no meio ambiente desta investida chinesa não foi menos ruinoso do que o das corporações americanas e europeias.
Em setembro de 2016, a China foi destinatária da primeira entrega de exportação de lítio da Bolívia. Uma remessa simbólica, de 15 toneladas de carbonato de lítio que, segundo as nossas fontes, foi vendida por 9.200 dólares por tonelada.
Miguel Parra, diretor de produção da central de Llipi, diz-nos que cerca de 90% da produção de lítio é vendida para a China. Uma pequena quantidade é enviada para a Suécia, e o restante é entregue numa fábrica chinesa de baterias de lítio, em Potosi. Miguel Parra não prevê que a proporção da distribuição mude muito nos próximos anos.
A parte central da Alemanha Oriental foi o centro mineiro da antiga República Democrática Alemã. A par do impacto da indústria química, séculos de mineração devastaram o meio ambiente e degradaram centenas de quilómetros quadrados de solo, que deixaram de poder ser utilizados para a produção de alimentos.
Um bom quarto de século após a reunificação da Alemanha, a área em redor de Sondershausen, onde costumava operar a maior mina de sal do mundo, está quase deserta. Nas cidades e vilarejos da região vivem sobretudo idosos, muitos deles mineiros aposentados. As gerações mais jovens partiram para as grandes cidades ou para a Alemanha Ocidental. As aldeias desta zona, com as suas excursões organizadas às minas fechadas, emanam um bafo de nostalgia comunista.
O local e o ambiente não poderia ser mais diferente dos Andes bolivianos. No entanto, os dois lugares têm algo em comum: à medida que as pessoas foram embora, a indústria das energias renováveis tomou conta deles, em grande estilo.
Intermináveis quilómetros quadrados de prados e lotes de fábricas abandonadas estão agora repletos de painéis solares. As turbinas eólicas tornaram-se um elemento omnipresente na paisagem.
“Esta região está a viver uma revolução tecnológica, embora isso possa não ser óbvio a olho nu”, explica Heiner Marx na sede da empresa K-UTEC, em Sondershausen. Marx é diretor administrativo e proprietário maioritário da empresa que se considera herdeira do que, antes da queda do Muro de Berlim, era um dos maiores conglomerados de mineração e indústria química da Alemanha Oriental.
Nesses tempos, empregavam 24.000 pessoas. Hoje – após a sua privatização em 1992, e a sua transformação em empresa pública em 2008 – a empresa tem apenas 100 trabalhadores, a maioria engenheiros e cientistas altamente qualificados. Em comum com o ex-gigante da mineração só mesmo a sua localização, e a tarefa de fechar aquela que chegou a ser a maior mina de potássio do mundo (o processo envolve o enchimento das gigantescas câmaras escavadas e que se estendem por quilómetros intermináveis, num submundo totalmente degradado).
Atualmente, a K-UTEC é uma empresa que investiu em engenharia e no desenvolvimento de tecnologia de mineração e química, consolidando a sua presença no comércio global de carbonato de lítio.
É a única empresa europeia a ter participado ativamente na pesquisa para a escavação e extração de carbonato de lítio dos Andes bolivianos. “Em 2012, as autoridades bolivianas iniciaram uma licitação pública para um parceiro de engenharia na área da pesquisa e produção de lítio. Decidimos candidatar-nos e acabámos por vencer”, explica Heiner Marx.
Cinco anos depois, com o comércio global de lítio a aquecer, os projetos bolivianos estavam ainda muito atrasados. Apesar de todas as projeções otimistas e do crescimento do mercado global, quase não avançaram.
“Os bolivianos pediram-nos ajuda e demos-lhes alguns conselhos. Em novembro de 2015, apresentámos ao presidente Evo Morales o plano de formação do pessoal-chave de engenharia. A Bolívia tem uma escassez crónica de quadros e, com a nossa proposta, o governo alemão arcaria com todas as despesas de educação. No entanto, até agora não recebemos resposta de La Paz. Acho isso muito difícil de explicar. Enquanto esperamos por uma palavra da Bolívia, estamos a tentar otimizar o processo de evaporação utilizado no Salar de Uyuni”, revela o empresário e cientista alemão.
Depois de várias visitas aos Andes bolivianos, Heiner Marx acredita que a Bolívia precisaria de pelo menos cinco anos de preparação antes de poder transformar-se num grande player nos mercados globais de lítio.
“É como se os bolivianos estivessem a tentar chegar à Lua ainda antes de construirem um foguetão”, ironiza o alemão, abanando a cabeça. “Para fazer qualquer coisa, vão precisar de pelo menos 700 a 1.000 pessoas altamente qualificadas no Salar de Uyuni. Concordo que é uma oportunidade maravilhosa para eles e por isso mesmo não deveriam desperdiçá-la! Aquela área não é apenas rica em lítio, não esqueçamos o magnésio e o potássio… O potencial é realmente incrível.”
Quanto a preocupações ambientais com os avanços da extração de lítio no Salar de Uyuni, considera-as infundadas, no nível em que a Bolívia consegue atualmente trabalhar. “A produção está limitada à parte menor e ao sul do lago salgado e não exigirá grandes quantidades de água de outras indústrias. Pelo menos por enquanto.”
A K-UTEC pretende continuar a desenvolver a tecnologia para a produção de carbonato de lítio, independentemente do que aconteça na Bolívia. A empresa já está presente em sessenta países diferentes, participando em praticamente todos os grandes projetos de lítio no mundo: incluindo na Austrália, atualmente o maior produtor no planeta, Estados Unidos, China, além da Argentina e Chile – ambos rivais diretos da Bolívia.
O mundo avançou na direção da mobilidade elétrica e já não há volta atrás. Neste contexto, não pode haver progresso sem lítio. “É claro que também estão a ser desenvolvidas soluções alternativas. Mas vão ser precisos muitos anos até que o lítio venha, porventura, a ser destronado”, garante Marx.
“O planeta tem lítio de sobra para responder às necessidades, principalmente se for levada em conta a possibilidade de reciclagem. O mais difícil é tirar os projetos do papel. Depois disso, fica tudo muito mais fácil. O processo de extração de carbonato de lítio precisa de ser otimizado e o custo tem de ser reduzido. Existe uma correlação direta com os preços dos carros elétricos, que ainda são proibitivamente altos. A infraestrutura necessária também é um problema – sobretudo no que diz respeito ao carregamento de baterias, que permanecem relativamente pesadas e não são assim tão eficientes. E depois temos também a questão da vontade política… A guerra pela sobrevivência dos ainda lucrativos projetos de combustíveis fósseis está sempre presente. Mas as fontes renováveis de energia vão acabar por prevalecer: na Europa, na China, nos Estados Unidos. Todos vamos ser forçados a aceitá-lo”, prevê o empresário alemão.
Boštjan Videmšek com o fotógrafo Matjaž Krivic.
Até porque a economia verde vai ser também um domínio dos gigantes globais da energia que até hoje lucraram com a produção de combustíveis fósseis. Há novos atores no mercado, mas o negócio vai continuar a ser controlado pelos “antigos senhores”. Tal como na indústria automobilística, mesmo em parceria com alguns fabricantes chineses e coreanos, serão as maiores empresas de hoje a dominar o mercado de carros elétricos amanhã.
A maioria dos habitantes dos pueblos nas vizinhanças do Salar de Uyuni não conhece o projeto nacional que ali está em andamento. Isolados do resto do mundo, vivem num vácuo informativo quase perfeito. Da melhor forma que podem, cuidam das suas vidas humildes e despretensiosas. Cultivam quinoa e levam lamas a pastar, sendo a desumanidade das suas condições de vida apenas aliviada com grande resiliência e espírito positivo.
“Vivemos a algumas centenas de metros do lago e a poucos quilómetros do local onde o lítio é produzido”, constata Luisa Flores de Laso, uma mulher tradicionalmente vestida, na sua pequena cozinha desarrumada. “Mas ninguém veio alguma vez dizer-nos o que estava a acontecer, nem o que a produção de lítio pode significar para nós. Definitivamente, não estamos ansiosos pelo sucesso da produção. Temos a certeza de que, como sempre, a população local não vai sair realmente beneficiada.”
Esta alegre e robusta mulher de cinquenta anos costumava administrar um hotel na pobre Villa Candelaria. Agora, com o marido Eustácio, sobrevive com biscates na construção civil. Ambos temem o impacto da nova fábrica na população local, cuja sobrevivência depende quase inteiramente da agricultura.
“Não vemos chuva há dois anos!”, dizem-me vários aldeões. “Isso custou-nos a safra de quinoa deste ano, cujo preço já está abaixo do que era há quatro anos. Os lamas também sofreram muito. A agricultura é tudo o que temos… Os jovens foram embora. O que será de nós se a produção de lítio poluir os nossos terrenos?”
Os filhos de Luísa e Eustácio trabalharam algum tempo para a Comibol, no projeto de lítio. Para sermos mais precisos, foram contratados por uma das muitas empresas privadas subcontratadas pela empresa estatal. O mais velho dos irmãos ainda ganha a vida a preparar refeições para os funcionários da fábrica-piloto. O mais novo, soldador das sondas de perfuração, atirou a toalha ao chão há dois anos, desanimado com um ordenado inferior a 400 euros por mais de 12 horas de trabalho diário.
“Os chineses pagam mais – 1.200 euros por mês”, explica Luisa Flores de Laso. “Mas não têm trabalho para os meus filhos, para mim ou para o meu marido. Só estão interessados em ‘especialistas’.”
Eustácio, de 51 anos, explica que no início não se opunha à produção de lítio e defendia que os moradores deveriam ser envolvidos no projeto e ter ali trabalho na construção e na manutenção da fábrica.
“Percebo bem a necessidade de especialistas!”, diz agora, com veemência. “Mas poucos podem ser encontrados neste lugar triste e abandonado por Deus. Há muito trabalho manual para ser feito, e os locais deviam ser os únicos a fazê-lo. Também acho que os representantes da empresa deveriam vir aqui e explicar-nos os riscos ambientais da produção de lítio.”
Eustácio Laso conta que pessoal da Comibol já esteve em Villa Candelaria – mas com o único objetivo de levar a sua água. “Vieram aqui há seis meses e disseram-nos que precisavam de água para a fábrica. Fizeram alguns testes e informaram-nos que estavam prontos para começar a bombeá-la. Bem dissemos que mal temos água suficiente para nós… Mas não quiseram saber. Responderam que a água não era nossa, mas do Estado.”
Eustácio cerra os punhos com indignação. “Se perdemos a água, perdemos tudo! Podemos ser forçados a deixar as nossas casas. Não podemos permitir que isso aconteça!”
A charmosa vila de Colcha-K é a capital da província de Nor Lipez, no sul do Salar de Uyuni. É também a sede local da produção de carbonato de lítio.
Se tudo correr como planeado, em poucos anos o dormente pueblo de hoje irá transformar-se numa espécie de Dubai ou Doha, numa versão mais pequena e menos ostensiva. Passeando pelas suas ruas de pedra, cumprimentando estudantes e velhos pacatos, é difícil imaginá-lo. No entanto, “o combustível do futuro” vai deixar marcas indeléveis no desenvolvimento de toda a região.
Atualmente, destacam-se três lugares na pitoresca vila, localizada perto de uma importante base militar: a igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, o campo de futebol com relvado artificial e a sede do governo regional – o maior e mais brilhante edifício num raio de 100 quilómetros. O gigantesco prédio do governo é encimado pela estátua de um flamingo, celebrando o pássaro místico de pescoço comprido que tradicionalmente passa vários meses por ano no Salar de Uyuni. Mas desde que começaram as grandes obras no lago, a presença das emblemáticas aves cor-de-rosa na região sofreu uma queda alarmante.
“Até os pássaros perderam a sensação de paz!”, desabafa um dos moradores, revoltado. Mas este é apenas um prenúncio do que está por vir.
“Olhamos para o lago e ficamos com medo”, diz Grover Baptista Ali, secretário-geral da província de Nor Lipez. “Vemos todas as escavações e perfurações, camiões por todo o lado… e a beleza de Salar a perder-se, a ficar irreconhecível.”
Como membro do partido da oposição, o escritório de Baptista Ali – diferente de quase todos os outros onde entrei na Bolívia – está totalmente despido da parafernália de Evo Morales. É tão raro que salta à vista. Através de todas as espécies possíveis de bustos, retratos, posters, grafittis e outros subgéneros da arte de rua, o impetuoso presidente socialista está omnipresente em todo o lado. Afinal, é este o homem que vaticinou um novo amanhecer para toda a América Latina. No entanto, doze anos depois, os primeiros raios de sol só alcançaram ainda alguns (poucos) afortunados.
O partido de oposição de Baptista Ali detém o poder na região de Nor Lipez. “Nem me passa pela cabeça contestar que o lítio representa uma grande oportunidade para toda a economia boliviana. É uma oportunidade que não podemos perder. Mas não devemos deixar que o governo de La Paz roube todos os lucros. As receitas do lítio devem ser distribuídas igualmente, como as receitas geradas pela produção de chumbo e zinco nas proximidades de San Cristobal. De acordo com a lei, a comunidade local tem direito a uma percentagem de quinze por cento. O resto vai para o governo regional de Potosí e, claro, para as autoridades centrais, e dez por cento devem ser reservados para limpeza ambiental. Em 2016, a Bolívia faturou cerca de 1,2 milhão de euros com as vendas de lítio. E nós aqui não vimos nem um único centavo! Nem um centavo!”
Baptista Ali expressa de forma veemente a sua opinião: em suma, que o projeto de produção de lítio tem sido, até agora, apenas um dreno para a região.
É difícil ignorar a sensação de que o jovem político fala de forma muito menos entusiasta sobre as consequências ambientais da exploração de lítio do que sobre todas as receitas ainda não direcionadas para a comunidade de Colcha-K. Mas isso não é imperdoável – a região permanece escandalosamente subdesenvolvida e como poderia, certamente, utilizar essas verbas para construir escolas, hospitais, estradas e outras infraestruturas básicas.
“Assim não temos motivos para nos entusiasmarmos com o lítio… Estas novas empresas têm pouca necessidade do nosso pessoal, estão interessadas quase exclusivamente em especialistas. Então porque que não investir num instituto especial, onde a população pudesse ser formada para trabalhar nas fábricas de carbonato de lítio? Por que não abrir uma ‘zona industrial’ diferente? Precisamos de dar um passo à frente! Somos totalmente dependentes da agricultura e do turismo. A nossa agricultura precisa de água, e há cada vez menos, a cada ano que passa. A região está a secar rapidamente por causa das alterações climáticas. Produzimos cada vez menos quinoa, e outros fatores também fizeram com que o seu preço caísse. O mesmo vale para os lamas”, explica o secretário-geral.
Como praticamente todos com quem conversei, Baptista Ali é peremptório: a água é absolutamente chave em tudo.
“Já deveria ter soado algum tipo de alarme”, diz. “A fábrica de Llipi está a entrar no Rio Grande, que praticamente já secou. A água que resta está completamente poluída. Mal ouso imaginar o que pode acontecer quando o projeto for ampliado.”
A cada três meses, as autoridades locais recebem um relatório da empresa estatal de produção de lítio. “Informam-nos sobre o que estão a fazer e como isso está a impactar o meio ambiente. Mas é mais ou menos uma formalidade burocrática, desprovida de qualquer significado real. Eu espero que, no final, toda a Bolívia possa lucrar com isto – mas tenho muito medo que a história se repita novamente. Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para evitar que isso aconteça. Em breve, os 45 representantes do governo local da região do Salar de Uyuni vão reunir-se. Depois de nos organizarmos, vamos direto para La Paz!”
Nem todos se sentem deixados para trás pelo governo central. A pouco menos de dez quilómetros da fábrica de Llipi fica a pequena cidade de Rio Grande, que vive um verdadeiro florescimento – se é que esse termo pode ser aplicado ao local frio e basicamente acimentado que serve de posto avançado para camionistas.
Rio Grande tem aproximadamente 650 moradores e 500 camiões. Muitas das famílias locais possuem dois camiões, que é o limite legal. Praticamente todos os homens adultos da aldeia conduzem pesados. Unidos sob a bandeira da cooperativa local DELTA Rio Grande, estão a colaborar com a Comibol.
Tudo nesta cidade estranhamente monótona e estéril – na verdade, pouco mais que um enorme estacionamento para camiões – é adaptado às necessidades da produção de lítio. O único estabelecimento que oferece hospedagem aos visitantes chama-se “The Lithium Hostel”.
Juan Carlos Ali, 44 anos, é um dos 250 camionistas que passaram os últimos cinco anos a transportar “ouro branco” para o governo. Até 2015, o seu trabalho consistia basicamente no transporte de material de construção e terra. Depois a Comibol começou a cavar piscinas de evaporação… e o futuro começou a parecer ainda mais brilhante para os condutores.
“Estou a dar-me bem, muito bem”, diz o robusto e atarracado Juan Carlos, ao lado da sua camioneta azulada e ferrugenta. “Estou a ganhar mais dinheiro do que em qualquer outro lugar. Há muito trabalho para os camionistas aqui. E os turnos são distribuídos de forma justa entre nós. A cooperativa está a cuidar bem das nossas necessidades. Se fosse com uma empresa privada, as coisas seriam diferentes.”
Perguntei ao homem bem-disposto e falador se percebia o quão importante o lítio poderia tornar-se para a sua terra natal. Mas Juan Carlos apenas balançou a cabeça, sem vontade de responder. “Eu não sei nada sobre isso. Só sei que a fábrica de Rio Grande é uma verdadeira benção. Enquanto os trabalhos continuarem a dar de comer a quem aqui vive, por mim está tudo bem. Só espero que as coisas venham a ser assim nas outras cidades e vilas por todo o Salar.”
O sol flamejante põe-se lentamente sobre as maiores salinas do mundo. Vastas e negras sombras, de aparência ameaçadora, descem sobre o chão branco resplandecente. Um vento gelado começa a ganhar força, cortando até ao osso.
“A nossa derrota esteve sempre implícita na vitória dos outros; a nossa riqueza sempre gerou a nossa pobreza ao nutrir a prosperidade de outrosimpérios. Na alquimia colonial e neocolonial, o ouro transforma-se em sucata e a comida em veneno.”
As palavras do grande escritor uruguaio Eduardo Galeano, descrevem o que tem acontecido ao seu continente, no livro “América Latina: Cinco Séculos de Pilhagem”.
Como será o Salar de Uyuni daqui a cinco anos? O que irá o “ouro branco” fazer da Bolívia?
A organização de uma conferência de dois dias para celebrar o primeiro aniversário da secção de Ambiente do jornal Público esteve assente num contrato de prestação de serviços, onde se estipulou não apenas a escrita de notícias e outros conteúdos como a possibilidade de uma empresa municipal do Porto poder avaliar o desempenho com base em oito critérios. Se o Público tiver entre 86 e 100 pontos no Índice de Qualidade do Fornecedor será “Aprovado” e considerado de “elevada confiança”. Não deve ser difícil: basta (continuar a) portar-se bem.
O Portal Base continua a espraiar, em todo o esplendor, a mercantilização da imprensa portuguesa, mas um contrato ontem divulgado naquela plataforma da contratação pública faz tudo ascender até níveis de bizarria jamais vistos: o jornal Público predispôs-se, através do estipulado no caderno de encargos de um contrato de prestação de serviços com a Empresa Municipal de Ambiente do Porto (Porto Ambiente), a ser “objeto de avaliação de desempenho” com critérios como qualidade, prazo, requisitos de facturação, flexibilidade, disponibilidade de contacto, capacidade de resolução de problemas, assumpção de código de conduta e promoção de requisitos sustentáveis.
O caderno de encargos do denominado “procedimento pré-contratual de ajuste directo, segundo o regime geral, para a participação da Porto Ambiente na Conferência Internacional Cidade Azul”, acompanha um contrato assinado em Maio, mas somente esta segunda-feira tornado público.
Empresa municipal do Porto pagou 15.000 euros ao Público para conferência que teve a abertura de Rui Moreira, presidente da Câmara Municipal do Porto.
Em termos concretos, o contrato de prestação de serviços foi a forma de a autarquia do Porto apoiar uma conferência do Público para celebrar o primeiro aniversário do projecto editorial Azul, um suplemento supostamente jornalístico mas associado a polémicos contratos de prestação de serviços, conforme já revelado pelo PÁGINA UM. Mas, em vez de ser um patrocínio ou apoio com contrapartidas meramente publicitárias, a Câmara Municipal do Porto quis mais.
E assim, a empresa municipal Porto Ambiente pagou 15.000 euros para se associar, de forma dissimulada, à conferência organizada nos passados dias 11 e 12 de Maio, no Pavilhão Rosa Mota, mas com contrapartidas sob a forma de notícias. Com efeito, nos “requisitos técnicos” do caderno de encargos ficou estabelecido que o Público, além de diversas acções de promoção da autarquia do Porto, organizaria a conferência e teria a responsabilidade pela cobertura da conferência em vídeo e textos.
No caderno de encargos ficou previsto “1 (um) conteúdo alusivo à Porto Ambiente de forma institucional e 1 (um) conteúdo alusivo ao Pacto do Porto para o Clima”, além da “inclusão de artigos no suplemento encartado do jornal Público, sobre projetos da Porto Ambiente – Pacto do Porto para o Clima, bioresíduos e sensibilização” e ainda de uma “visita à ilha de compostagem em Paranhos”.
No segundo dia da conferência, esteve presente o Presidente da República.
Embora neste último caso, o texto tenha sido publicado na ambígua secção Estúdio P, mas sem referência a ser publicidade da Porto Ambiente, a cobertura do evento, pago com dinheiros municipais, foi feito na secção Azul pela jornalista Aline Flor. Na sessão de abertura estiveram presentes o então director do Público, Manuel Carvalho – que não fez referência ao apoio financeiro, como contrapartida de prestação de serviços, por parte da Câmara Municipal do Porto – e o presidente desta edilidade, Rui Moreira, o financiador, que não foi assim identificado. O autarca teve seis minutos de intervenção, sem referência ao contrato de prestação de serviços.
Na página da conferência, com a lista dos oradores, surge a referência à Porto Ambiente como co-organizadora apenas com um minúsculo logótipo, mas nenhuma referência é feita em duas notícias assinadas pela jornalista Aline Flor, tanto na do primeiro dia, como na do segundo dia, onde se destaca a presença do Presidente da República. No entanto, o “branding” estava implícito na associação entre a secção Azul, do Público, e a cidade do Porto, uma vez que a conferência foi baptizada de Cidade Azul.
Porém, cinco dias depois, a 17 de Maio, o Público colocaria, como um artigo noticioso normal, um texto da jornalista estagiária Maria José Coelho, mas editado pela jornalista Ana Fernandes, onde se elogiou o trabalho da empresa municipal Porto Ambiente na reciclagem de resíduos durante as festas académicas na cidade.
Caderno de encargos elenca oito critérios de avaliação do desempenho do Público na prestação dos serviços contratados pela Porto Ambiente, interferindo na linha editorial do jornal.
Contudo, onde efectivamente se mostra a bizarrice deste acordo comercial é na cláusula 7ª sobre a “avaliação de desempenho do Contraente Privado”, isto é, do Público, cujo resultado “será divulgado anualmente”, e do qual resultará um “Índice de Qualidade do Fornecedor”, utilizando os critérios ponderados. E, aparentemente, a Porto Ambiente exige elevada excelência.
Com efeito, para o Público ser “Aprovado”, precisa de uma classificação entre 86 e 100 pontos, de modo a ser considerado um “fornecedor de elevada confiança”, com um “risco de falha diminuto com base num histórico de desempenho isento ou quase isento de falhas”, Entre uma pontuação de 71 e 85, há lugar a um raspanete, com referência a “Sugestões de Melhoria”. Se o Público tiver esta classificação será considerado um “fornecedor de confiança”, com um “risco de falha baixo com base num histórico de desempenho regular”.
Extracto do caderno de encargos entre o Público e a empresa municipal Porto Ambiente com a fórmula de cálculo do Índice de Qualidade do Fornecedor.
Já se tiver menos de 70 pontos, então o Público ficará “Reprovado”, sendo considerado um “fornecedor de risco”, uma vez que o “risco de falha é elevado com base num histórico de desempenho irregular que não oferece confiança no cumprimento das obrigações”.
O contrato, que teve como gestora por parte da Porto Ambiente, a sua coordenadora de Comunicação e Imagem, tem outras cláusulas pouco ortodoxas para a linha editorial de um jornal, como seja a necessidade de reuniões com representantes da empresa municipal “sempre que necessário”, e através de uma “convocatória escrita” e como uma “agenda prévia contendo os assuntos a debater”.
Por outro lado, o Público ficou com o dever de “guardar sigilo sobre toda a informação e documentação, técnica e não técnica, comercial ou outra, relativa à Porto Ambiente, de que possa ter conhecimento ao abrigo ou em relação à execução do contrato”, excepto aquela que já for pública.
O PÁGINA UM apresenta, em pré-publicação, o livro da autoria do jornalista esloveno Boštjan Videmšek (que entrevistámos em Novembro passado), editado pela Perspectiva, pertencente à jornalista Patrícia Fonseca, também directora do jornal Médio Tejo. A obra é constituída por um conjunto de 10 reportagens da Noruega à Bolívia e da Escócia à China, com fotografias de Matjaž Krivic e prefácio de Filipe Duarte Santos, presidente do Conselho Nacional de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. A editora oferece um desconto especial de 20% e portes CTT aos leitores do PÁGINA UM, de forma directa e sem qualquer contrapartida para o jornal. Basta enviar um e-mail para perspectiva.livros@gmail.com com referência ao PÁGINA UM e a indicação da morada de entrega.
Em várias ocasiões, prometi aos que me são mais próximos, tal como a mim mesmo, que as minhas botas de reportagem de guerra estavam arrumadas para sempre. Eu era um dos mais jovens jornalistas quando comecei. Quando senti que bastava, era um dos mais velhos.
Fui despojado de todas as ilusões e fiquei compreensivelmente confuso perante recorrentes tragédias sem sentido. Além das minhas ilusões, as guerras que cobri custaram-me vários amigos. Também ficou muito claro que já tinha usado todos os meus ‘cartões de saída da cadeia’, e ainda mais alguns.
“Basta”, repetia uma e outra vez, sobretudo devido à crescente desilusão com o poder da minha vocação.
Boštjan Videmšek, na Estufa Fria, em Lisboa, durante a entrevista ao PÁGINA UM em Novembro do ano passado. (Foto: Paulo Alexandrino)
Para mim, o jornalismo nunca foi apenas um trabalho. Quando comecei, aos 16 anos, era um estilo de vida – ou mesmo a própria vida. Isso fez com que fosse muito mais difícil para mim aceitar que o meu trabalho havia perdido rápida e irreparavelmente o seu valor numa sociedade que, aparentemente, não se importava de se afogar na sua própria loucura.
A ordem pós-factual que se impôs da noite para o dia é um sistema onde excêntricos como eu e os meus colegas de profissão são tolerados, na melhor das hipóteses. A ascensão das (anti) redes sociais, câmaras de eco de opiniões pré-mastigadas com base em zero competência, deu início a uma nova era que ainda não tem oficialmente um nome, mas está a ficar mais poderosa a cada milissegundo. A melhor descrição que encontro para este estado atual – e possivelmente final – da evolução da nossa espécie é “A Ditadura do Nada”.
Neste novo e cada vez mais poderoso reino, há pouco lugar para os jornalistas. E também, já agora, para os cientistas.
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Muitas das guerras que cobri nunca terminaram. Apenas ficaram dormentes, em rescaldo. A maioria – Iraque, Afeganistão, República Democrática do Congo, Síria, Líbia, Somália, Darfur – continuam a arder em fogo lento até hoje, e as suas brasas vão-se espalhando e provocando regularmente explosões de violência nunca antes imagináveis. Nas ainda resplandecentes cidades do Ocidente, os refugiados que essas guerras provocaram são cada vez mais vistos e tratados como lixo nuclear.
A sociedade aberta e livre que sonhámos na Europa, e pensámos ter como herança segura para as gerações futuras, está agora repleta de muros, torres de vigia, arame farpado e insígnias paramilitares que exalam o fétido ressurgimento do racismo, xenofobia e fascismo radical. Todas as velhas divisões ideológicas foram reforçadas. E novas estão a erguer as suas cabeças revoltantes a cada dia que passa.
A nossa memória histórica parece ter-se esfumado e a nossa capacidade de sentir vergonha acabou eutanasiada nas trincheiras do anonimato garantido pela internet. A dor dos outros é agora, na melhor das hipóteses, uma categoria de negócios.
Se o que fazemos tem pouco ou nenhum efeito sobre o mundo, o nosso papel fica, quanto muito, reduzido ao de um observador participante. Podemos ser muito bons nisso, e até vistos como “um sucesso” por outros jornalistas; no entanto, isso apenas acelerou a minha percepção de que muitas saídas em reportagem não eram mais do que safaris do ego.
No Outono de 2016 regressei de Mossul, onde cobri os confrontos selvagens entre as forças do governo iraquiano e o autoproclamado Estado Islâmico. Naquele momento, estava determinado a mudar de profissão. Sentia-me tão cansado e farto da escuridão que me rodeava e ameaçava engolir-me que decidi ser o meu próprio desprogramador, para lenta mas seguramente libertar-me do culto da minha velha e derrotada religião: o jornalismo.
Mas e depois? O que iria fazer? Como poderia reinventar-me neste mundo onde meros reflexos são adorados como reis, onde nada consequente tem qualquer consequência, e onde muitos dos seus membros mais augustos agem como se não houvesse qualquer problema se o sol não voltar a nascer?
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“Olha, já vai sendo tempo de fazermos alguma coisa juntos outra vez! Vamos encontrar-nos para um café? Vamos… não me digas que não tens tempo, como sempre! Só preciso de dez minutos para te apresentar uma ideia. Acredita, vais gostar!”
Este foi, em resumo, o telefonema que recebi do meu amigo e fotógrafo Matjaž Krivic, numa manhã especialmente cinzenta de Outono. Por respeito ao leitor, omiti os palavrões que pontuaram cada frase, e que são quase a sua imagem de marca.
A minha resposta instintiva foi um suspiro profundo. Mais um projeto, mais uma obrigação que vai consumir-me. Eu não tinha acabado de prometer a mim mesmo um intervalo (extremamente necessário), uma hipótese de sair do jogo e ter algum tempo para descansar no banco e refletir?
Mas, por mais que eu o repetisse, o mantra para parar não funcionava. Nunca funcionou.
“Diz lá, então”, respondi um pouco bruscamente. Naquele momento, eu não pensava ceder ao “mestre da persuasão” que o Matjaž consegue ser, com um poder inigualável para destruir barreiras físicas e metafísicas. Nunca encontrei, nos quatro cantos do mundo, alguém que tão infantilmente não quisesse mesmo saber o significado da palavra ‘Não!’
“Regressei agora da Bolívia”, disse-me com um sorriso enigmático, a bebericar o café que acabámos por combinar.
“Salar de Uyuni, no topo dos Andes. O maior salar do mundo – e um dos lugares mais mágicos que já vi, lindo! Perto de 70% das reservas mundiais de lítio estão ali. Aquele lugar está a alimentar os nossos veículos elétricos e praticamente todos os nossos dispositivos eletrónicos, agora e nas próximas décadas! Então, vamos lá: vamos fazer uma história sobre o lítio. Que dizes? Vamos abordá-lo como deve ser, em profundidade, desde a fase da extração até à fabricação dos carros elétricos.”
Foi praticamente tudo que eu precisei de ouvir para ser convencido. Até porque sabia que o Matjaž é uma espécie de diabo, uma equipa de assalto de um homem só, um profissional do fotojornalismo da velha escola, cuja abordagem não convencional e estética única já lhe renderam todos os prémios relevantes no seu campo altamente competitivo.
“Vamos a isso. Quando começamos?”, respondi simplesmente, sem precisar de três segundos para refletir sobre as implicações do que acabara de aceitar.
“Ah sim…?” O Matjaž pareceu ficar mais chocado com a minha resposta do que se eu tivesse insultado brutalmente a sua mãe. Durante alguns segundos ficou a olhar para mim, em silêncio, como que a avaliar-me. E depois sussurrou: “O mais depressa possível.”
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Desde o início, percebemos que o lítio, a força motriz do século XXI, era apenas a nossa porta de entrada para uma história muito maior – o tipo de história que os dois procurávamos há algum tempo. Já havíamos viajado juntos por todo o mundo e fomos vendo as consequências terríveis das alterações climáticas a cada passo.
Sem o sabermos, estávamos ambos à procura de uma forma para contar esta história, que deveria estar na ponta da língua de todos, todos os dias.
Com a ajuda do Matjaž, encontrei sem esforço a minha nova linha de frente. A crise climática é nada menos que uma guerra global, total e abrangente. É a guerra da Humanidade contra si mesma – uma guerra contra as gerações futuras, contra ecossistemas inteiros e contra a própria ordem natural. É um ataque frontal e brutal ao próprio planeta que tão generosamente fornece o nosso sustento. É uma guerra contra o equilíbrio, contra a coexistência. É, em suma, uma guerra contra o próprio conceito de futuro.
A crise climática é a principal e mais crucial linha da frente do nosso tempo. E as nossas perspectivas de vencer esta guerra estão longe de ser boas.
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A Terra está a aquecer mais rapidamente do que os especialistas mais pessimistas previram. Até as estimativas habitualmente conservadoras do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) o confirmam.
A meta estabelecida na Cimeira Climática de Paris em 2015 – limitar o aumento da temperatura a 1,5 graus Celsius até 2100 – já perdeu a validade. O verão de 2021 registou dois dos meses mais quentes na história da medição de temperaturas. Em Verkhoyansk, oficialmente a cidade mais fria da Sibéria, o termómetro fixou um recorde de 37,8 graus Celsius no final de junho de 2020. Não era de admirar, por isso, que Matjaž e eu pudéssemos observar glaciares a derreter na Islândia, quando aquele país insular foi surpreendido por um verão com temperaturas noturnas que facilmente chegavam aos 25 graus Celsius. Aquela era uma nova Islândia, cada vez mais sem gelo, onde os agricultores tiveram que passar a trabalhar à noite, quando o calor permitia recuperar o fôlego – tudo isto nas imediações do Círculo Polar Ártico.
Boštjan Videmšek com o fotógrafo Matjaž Krivic.
No porto de Akureyri, no norte do país, pudemos observar navio após navio a regressar do Ártico – todos eles cheios de rostos chocados e manchados de fuligem, de investigadores que testemunharam incêndios quando deveriam estar a congelar até a morte.
O Alasca, a Gronelândia e a Sibéria começaram a arder todos ao mesmo tempo. O permafrost estava irremediavelmente a derreter – e continua a derreter neste preciso momento. No entanto, todos os especialistas e decisores políticos parecem querer desvalorizar este facto gritante.
O metano, um gás de efeito estufa muito mais devastador para o clima do que o dióxido de carbono, continua a infiltrar-se na atmosfera. Pequenos lagos estão a brotar em toda a camada de gelo, que já não é permanente. Quando, inevitavelmente, o oxigénio é introduzido na equação, o resultado natural são detonações violentas.
Este é um mero vislumbre do que o futuro nos reserva.
É bom que acreditem: esta é uma linha da frente, e não apenas num sentido figurativo. É mesmo uma guerra.
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Enquanto escrevia este livro, acabávamos de viver os meses de janeiro e fevereiro mais quentes de sempre. A nível global, o Inverno parece ter sido praticamente inexistente. À medida que os gerentes dos resorts de esqui na Europa finalmente descobriam que os seus negócios não teriam mais viabilidade, vastas áreas da Austrália iam ardendo. Mil milhões de animais morreram em poucas semanas – uma informação que foi descartada como um mero dano colateral, se tanto.
A Austrália, vale a pena lembrar, é o continente mais exposto às alterações climáticas.
Este cenário apocalíptico surgiu logo após os incêndios na floresta amazónica. Num piscar de olhos, ficámos acostumados a imagens de tal forma devastadoras como se fossem tão irreais como os clímax dos reality shows ou de outros programas e espetáculos medíocres, nos quais grande parte da população vai encontrando refúgio.
A lista continua, e continua.
A sexta extinção em massa está aí, e está diretamente ligada às ações e aos efeitos da Humanidade no planeta. Neste momento, a Terra suporta apenas metade da vida selvagem que existia em 1970. A raça humana representa trinta por cento de todos os vertebrados existentes. Sessenta e sete por cento são animais de criação, enquanto os vertebrados que vivem em estado selvagem estão reduzidos a uns míseros três por cento.
Que dizer da morte da Grande Barreira de Corais da Austrália, ou do desaparecimento de 80% dos insetos do planeta? E sobre os oceanos letalmente quentes? De acordo com um estudo de 2015 publicado no The Journal of Mathematical Biology, a taxa de aquecimento atual levará a que, em 2100, a produção de oxigénio pelo fitoplâncton possa acabar, porque as temperaturas mais elevadas vão perturbar o processo de fotossíntese. Isso ditaria a mortalidade em massa de animais e humanos.
E que dizer do ‘holocausto negro’ perpetrado em todo o mundo pelos lobbies dos combustíveis fósseis, cuja sede de lucro continua a ser a maior força motriz por trás do cenário da nossa morte iminente? Ou das correntes marinhas, que mudam subitamente, ou das emissões cada vez maiores de dióxido de carbono para a atmosfera?
E que dizer dos ursos polares, que precisam de nadar em média 200 quilómetros sem parar para encontrar um pouso firme, enquanto o seu habitat natural continua a derreter à sua volta, e precisam já de caçar baleias para sobreviver?
Ou, para os mais frios entre nós: que dizer do custo de tudo isto para a economia global, estimado em 1,2 triliões de dólares em 2018?
Que tal vos parecem as flores de primavera brotando em janeiro no cume dos Alpes? E as hordas de refugiados provocados pelo clima, que vão influenciar dramaticamente o nosso futuro muito próximo? Segundo estimativas de 2018 do Banco Mundial, os efeitos das mudanças climáticas vão afastar 143 milhões de pessoas das suas casas em 2050, só na Ásia, África e América Latina.
Esta é também a história de um mundo a secar rapidamente. Um mundo cujo destino está a ser cada vez mais determinado por uma série de guerras pela água. Um mundo que pensávamos conhecer e que agora está a desintegrar-se rapidamente, enquanto continuamos a dormitar na frente à televisão.
Eu poderia continuar ad nauseam, citar dezenas de cientistas, listar centenas de números, consolidar factos, explicar o que deveria ser claro para qualquer aluno do terceiro ano (e vivemos numa época em que muitos alunos do terceiro ano são realmente mais conhecedores destes perigos do que os seus pais). Mas temi que persistir na invocação dessas provas fosse em vão. Afinal, já foi tudo dito: interminavelmente, incessantemente, enquanto o tempo médio de atenção – a principal vítima desta Era –, encolheu até restar quase nada.
A ciência é clara. No entanto, na maior parte do primeiro mundo, os efeitos das alterações climáticas ainda são arquivados na categoria de ‘algo que acontece a outras pessoas’. Algo longe de uma ameaça real, existencial e que, portanto, dificilmente merece uma resposta contundente.
Vamos colocá-lo sem rodeios: esta crise que avança rapidamente é algo para a qual a nossa evolução nos deixou muito despreparados. Pior ainda, os nossos mecanismos de sobrevivência parecem continuar a dividir-nos, quando não deveríamos olhar a custos para nos unirmos.
Por isso, em vez de recitar números e vomitar ainda mais previsões apocalípticas, o Matjaž e eu decidimos destacar as comunidades e os indivíduos que estão a enfrentar corajosamente esta calamidade. É hora de somar os esforços de todos estes visionários, a verdadeira elite do homo sapiens, homens e mulheres que escolheram não ser arrastados pela onda de indiferença e arrogância que varre o mundo.
A nossa ambição era transformar este livro num monumento a esses intrépidos soldados na linha da frente, que estão a acumular o conhecimento, a experiência e a tecnologia de que precisamos, se quisermos ter alguma chance de lutar pela nossa salvação.
De Tilos, a primeira ilha auto-suficiente em energia no Mediterrâneo, à Islândia geotérmica e completamente orientada para o futuro. Dos promissores desenvolvimentos de energia marítima nas Ilhas Orkney, no nordeste da Escócia, onde a energia excedente já está a ser convertida em hidrogénio “verde”, até à cidade austríaca de Güssing, centrada na biomassa há um quarto de século, e cujos habitantes já conseguiram reinventar como um pólo tecnológico fundamental para o desenvolvimento e produção de energia renovável. Aqui estão todos eles, pedindo humildemente a sua consideração.
Da empresa Climeworks, com sede na Suíça, que captura dióxido de carbono diretamente do ar para injetá-lo no submundo da Islândia, a várias aldeias escandinavas autossuficientes, em plena transformação holística. Do lítio que viaja constantemente entre as salinas bolivianas e as fábricas chinesas de carros elétricos. Da fábrica de incineração de resíduos na Noruega, que planeia armazenar o CO2 capturado em cavernas submarinas, a todos os indivíduos e comunidades que estão por trás desses projetos, levantando as suas vozes para nos lembrar que devemos manter a esperança, a todo o custo.
A tarefa deles – e a nossa – é excepcionalmente difícil. Mas se não estivermos todos à altura da ocasião, iremos desperdiçar a nossa última hipótese.
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Eu entendo como pode ser difícil para algumas pessoas acreditar que o cataclismo iminente ainda pode ser evitado – ou que os seus efeitos podem pelo menos ser mitigados.
A evolução da Humanidade ficou marcada, entre outras coisas, por guerras, genocídio, ecocídio, racismo, ganância e todas as formas imagináveis de violência. Depois de mais de duas décadas a cobrir os incontáveis pontos críticos do globo, recebi uma sucessão de insights medonhos sobre o funcionamento da economia global. Um grito de esperança, como o que é apresentado aqui, pode parecer uma forma de dissonância cognitiva. Muitas vezes também eu tenho dificuldade em sentir-me otimista e acreditar que, de facto, algo ainda pode ser feito.
“Um escritor não deve esperança a um leitor”, escreveu o lendário ativista ambiental Bill McKibben no livro ‘Falter’ (Ed. Henry Holt and Co., Nova Iorque, 2019).“A sua única obrigação é a honestidade – mas quero que quem pegue neste livro saiba que o seu autor vive num estado de envolvimento, não de desespero. De outra forma, não me teria dado ao trabalho de escrever o que se segue.”
Não poderia concordar mais com estas palavras.
Se há mensagem que eu e o Matjaž queremos transmitir com este livro, é esta: existem pessoas que estão a ser capazes de controlar o cinismo e o medo, focando a sua energia na busca ativa de soluções.
Mesmo que já estejamos no prolongamento e a perder por 4-0, estes bravos guarda-redes e médios-defensivos continuam a correr, a atacar e a deixar o seu coração em campo. E assim vão continuar, até ao apito final.
Este é um livro sobre esta equipa especial, e sobre os indivíduos heróicos que a constituem. Se eles falharem, a esperança não será a última a morrer. Os últimos a morrer serão os nossos filhos e os nossos netos.
A polémica estalou quando se soube que o ministro do Ambiente, Duarte Cordeiro, recusou falar com jornalistas alegando que tinha um “exclusivo” com a Global Media, o media partner do Mobi Summit, que se realizou na semana passada. Mas por detrás destas parcerias mediáticas há todo um mundo de promiscuidades, com a mediatização a ser paga a preço de ouro, com garantia de ser favorável, e escrita por jornalistas que saltitam impunemente entre a imprensa e a comunicação empresarial. O PÁGINA UM escalpeliza os meandros do Mobi Summit, onde nem sequer falta um “curador editorial” para filtrar a “informação” que deve sair como “notícias”.
A Global Media já recebeu 600 mil euros desde 2019 de uma empresa municipal de Cascais para promover o Mobi Summit, um evento anual sobre mobilidade. Além da choruda verba, os jornais daquele grupo empresarial – Diário de Notícias, Jornal de Notícias e Dinheiro Vivo – conseguiram exclusivos com os participantes, incluindo até o ministro do Ambiente, Duarte Cordeiro.
A polémica estalou na semana passada, quando jornalistas de outros órgãos de comunicação social não conseguiram chegar à fala com Duarte Cordeiro quando este participou naquele evento na quarta-feira passada. O ministro alegou que “apenas fazia declarações aos media partners” do Mobi Summit. O ministro, no início do seu discurso, fez uma saudação específica ao chairman da Global Media, Marco Galinha, logo após ter cumprimentado os presidentes das Câmaras Municipais de Cascais e Lisboa, Carlos Carreiras e Carlos Moedas, formalmente os organizadores deste evento.
Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente, alegou ter exclusivo com os órgãos de comunicação social da Global Media para recusar prestar declarações aos outros jornalistas após a sua apresentação na Mobi Summit.
A postura do governante levou esta sexta-feira a Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas a emitir um comunicado sobre “parcerias mediáticas” onde salienta que “a confirmarem-se as queixas e também as notícias, entretanto veiculadas por alguns órgãos de informação, dando conta do ocorrido, este caso configura um grave atentado à liberdade de imprensa e ao dever de equidade dos responsáveis governamentais para com todos órgãos de informação jornalísticos.”
Apesar desta posição crítica da CCPJ – que também relembra no seu comunicado que “o jornalismo patrocinado, ou seja, trabalho que é executado em troca de um patrocínio comercial ou de qualquer outra forma de pagamento, é expressamente proibido pelo Estatuto do Jornalista” – esta entidade tem sido bastante branda em termos práticos.
A CCPJ não tem, aliás, agido sobre diversas revelações do PÁGINA UM sobre as promiscuidade nos contratos entre grupos de media e entidades públicas ou privadas (incluindo farmacêuticas), onde jornalistas surgem a executar acções de marketing. E mesmo “compra” de entrevistas ou a produção de revistas corporativas por jornalistas. Há mesmo jornalistas que se assumem como partners de empresas de comunicação empresarial, escrevendo notícias e conteúdos pagos em simultâneo para os mesmos jornais, não ficando clara a distinção para os leitores.
A Mad Brain, gerida pelos jornalistas Fátima Ferrão (CP 6197) e Francisco de Almeida Fernandes (CP 7706), é um dos casos mais emblemáticos, sem intervenção da CCPJ. Estes jornalistas escrevem, de forma despudorada, tanto notícias como conteúdos comerciais, sobretudo para publicações da Global Media e Impresa (jornal Expresso), produzindo em simultâneo a revista Energiser, da Galp.
Marco Galinha, chairman da Global Media, durante a sua apresentação no Mobi Summit.
O PÁGINA UM tentou, aliás, saber em concreto, sobre a participação do director do Público, Manuel Carvalho, se a CCPJ tinha já concluído um processo de averiguações que garantira ter iniciado em Dezembro do ano passado, mas a entidade agora liderada pela jurista Licínia Girão tem recusado dar quaisquer informações.
Na verdade, como o PÁGINA UM tem vindo a revelar, mais do que a obtenção de exclusivos com os participantes de eventos com “parceria mediáticas”, é a promiscuidade entre jornalismo e marketing que mais choca. Ou seja, além de “prostituir” o jornalismo – que não pode, por lei, fazer acções de comunicação empresarial ou de marketing –, a media partner pode passar a constituir, se envolver comparticipação económica relevante, a forma mais eficaz de uma entidade comprar cobertura mediática especializada, dócil e orientada. Além disso, criando uma dependência económica, a independência de um órgão de comunicação social arrisca a estar em causa para não se perder um futuro patrocinador.
Cobertura mediática do evento, com garantia de entrevistas aos participantes, foi um exclusivo dos órgãos de comunicação social da Global Media.
O caso da promoção e cobertura mediática da Mobi Summit – que vai já no quarto ano de organização pela Global Media, com uma contrapartida de 150.000 euros por ano – é um dos casos mais paradigmáticos da promiscuidade entre grupos empresariais e imprensa mainstream, envolvendo jornalistas com carteira profissional, que ora escrevem para as plataformas de comunicação do evento quer para o próprio jornal que integra os media partners.
Jornalistas a exercerem esta dupla função encontram-se vários na última edição do Mobi Summit. O PÁGINA UM detectou quatro jornalistas em funções à margem da lei. Rute Coelho (CP 1893) é o caso mais evidente, pela quantidade de textos similares que foram publicados tanto no Diário de Notícias como no site do Portugal Mobi Summit.
Esta jornalista, com mais de 20 anos de experiência, é também, aliás, um dos casos evidentes de “mercantilização” do jornalismo, impedido por lei, uma vez que oferece serviços de relações públicas e consultoria em marketing no LinkedIn.
Embora Rute Coelho assuma a autoria de diversos artigos de cobertura do Mobi Summit onde as fronteiras entre jornalismo e marketing são muito fluídas, a esmagadora maioria dos textos no site do evento e nos jornais da Global Media não estão assinados, embora seja facilmente identificável um estilo jornalístico. Se foram escritos por jornalistas sob anonimato – como muitas vezes sucede – ou por antigos jornalistas ou por pessoas sem ligação à imprensa, ignora-se.
Em todo o caso, ao longo dos dois dias deste evento – pomposamente denominado Grande Cimeira do Portugal Mobi Summit –, a cobertura mediática foi também feita, assumidamente, pelas jornalistas Elisabete Silva (CP 4391), Ana Meireles (CP 2808) e Carla Aguiar (CP 739), que foi a autora da peça sobre a intervenção do ministro Duarte Cordeiro. Esta jornalista do Jornal de Notícias fez também pelo menos uma entrevista a um participante do Mobi Summit antes da realização do evento.
A profunda envolvência directa da Global Media neste evento, usando jornalistas para funções de comunicação de marketing, ficou também no destaque dado a Marco Galinha, chairman deste grupo de comunicação social. Foi ele, aliás, quem deu “o pontapé de saída da edição deste ano do Portugal Mobi Summit”, conforme consta do próprio site produzido por “jornalistas da casa”.
Produção de contéudos sem fronteiras entre jornalismo e comunicação empresarial, incluindo a oferta de serviços de relações públicas por jornalistas, é cada vez mais frequente, sem que a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista tome medidas efectivas. Já nem sequer as ofertas são feitas de forma discreta.
O resumo da participação de Marco Galinha acabou publicado no Diário de Notícias no passado dia 28 de Setembro, sem assinatura do autor, mas no site do evento o mesmo texto aparece como sendo da autoria da jornalista Ana Meireles.
A participação activa de responsáveis editoriais das publicações do grupo liderado por Marco Galinha também se destacou no Mobi Summit.
Quase todos os debates foram moderados por directores das publicações da Global Media, demonstrando a forte ingerência de jornalista num evento comunicacional. Com efeito, Rosália Amorim (directora do Diário de Notícias, CP 1788), Joana Petiz (directora-adjunta do Diário de Notícias e directora do Dinheiro Vivo, CP 4449) e Pedro Cruz (director executivo da TSF, CP 1611) moderaram três debates, cada um. Pedro Ivo Carvalho, director-adjunto do Jornal de Notícias, CP 3104) moderou dois e Jorge Flores (editor executivo do Motor 24, sem registo de carteira profissional) um.
Rosália Amorim, directora do Diário de Notícias, é habitué na moderação de eventos comerciais onde a Global Media é media partner. No Mobi Summit moderou três debates em dois dias.
Além destas participações, a Global Media montou uma forte cobertura comunicacional, incluindo a emissão integral das intervenções de todos os participantes através da TSF.
Na verdade, a cobertura do evento acabou por ser coordenada não pelas editorias dos órgãos de comunicação social da Global Media, mas sim por Paulo Tavares, denominado “curador editorial” do Portugal Mobi Summit 2022. Embora se assuma ainda como jornalista na rede LinkedIn, Paulo Tavares é, desde Fevereiro do ano passado, consultor de comunicação e marketing. No jornalismo teve uma longa passagem, a partir de 1993, na TSF, tendo depois transitado para o Diário de Notícias, onde chegou a ser director-adjunto entre Setembro de 2016 e Agosto de 2018.
Em termos concretos, como nem sequer existe a figura de “curador editorial” na Lei da Imprensa, e não sendo Paulo Tavares agora jornalista, aquele cargo revela sobretudo que as notícias “vazadas” para os órgãos de comunicação social da Global Media durante o Mobi Summit foram decididas e “filtradas” previamente sem um independente controlo editorial.
Paulo Tavares, antigo jornalista, foi nomeado “curador editorial” do Mobi Summit. Esta função não existe na Lei da Imprensa nem os jornalistas podem estar sob a alçada de pessoas sem carteira profissional de jornalista ou equiparado.
Pelos “serviços de mediatização” da edição deste ano do Mobi Summit, a Global Media recebeu 150.000 euros, em contrato assinado em Junho passado com a Cascais Próxima, uma empresa municipal daquela vila, constando no Portal Base, mas sem o caderno de encargos.
Este contrato veio no seguimento de outro, assinado em Maio de 2019, no valor de 450.000 euros, mas para a organização e promoção mediática do Mobi Summit para três anos. Nenhum destes contratos foi alvo de concurso público. A autarquia de Cascais decidiu sempre por ajuste directo. O evento contou ainda com os patrocínios da EDP, Brisa, Fidelidade e Lidl.
Quase 20% das famílias portuguesas está a receber descontos na factura da electricidade por ter rendimentos muito baixos. Uma análise detalhada do PÁGINA UM identificou as regiões e concelhos com as maiores carências, quase todas no Norte e Centro do país, onde faz mais frio no Inverno. Será que as famílias mais carenciadas aguentarão a prevista escalada de preços por força da galopante inflação?
Uma em cada cinco famílias estará a beneficiar de tarifa social de electricidade (TSE) – um apoio automático do Estado que, na verdade, revela uma situação de grande debilidade financeira que coloca a população portuguesa numa das piores situações europeias em relação à denominada pobreza energética. Com a aproximação do Inverno e a galopante taxa de inflação, a probabilidade de um impacte na Saúde Pública pode ser brutal, tendo em conta que os internamentos e a mortalidade aumentam com o frio.
De acordo com cálculos do PÁGINA UM, 19,3% das famílias portuguesas encontram-se abaixo de um limiar de rendimentos que as levam a necessitar de apoio estatal.
A situação mostra-se mais grave nas regiões Norte e Centro do país, atingindo os 32,4% – quase uma em cada três famílias – no distrito de Vila Real, e estando acima dos 20% nos distritos de Bragança (27,9%), Viseu (25,0%), Guarda (24,5%), Viana do Castelo (23,0%), Braga (21,2%) e Porto (20.9%).
As regiões com menor percentagem de aglomerados familiares com direito a TSE são, curiosamente, o Alentejo (Évora, Beja e Portalegre), e os distritos de Lisboa e de Faro.
Face ao desconhecimento do número de contratos de consumo doméstico por concelho por parte da Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), o PÁGINA UM considerou, para o cálculo das estimativas, o número de contratos beneficiários de TSE – disponibilizados para o mês de Junho – e o total das famílias apuradas pelos Censos de 2021.
Por concelho, três integrados no distrito de Vila Real se destacam em termos de percentagem de famílias a necessitarem de apoio estatal para pagar as contas de electricidade: Boticas (60%, com 1.225 contratos de TSE num total de 2.057 famílias), Montalegre (52%, com 2.042 contratos de TSE num total de 3.943 famílias) e Valpaços (48%, com 3.079 contratos de TSE num total de 6.472 famílias).
Acima dos 33% encontram-se ainda 15 municípios: três do distrito de Viseu: Vila Nova de Paiva (44%), Sátão (39%) e Resende (38%); mais três de Vila Real: Mondim de Basto (38%), Chaves (35%) e Santa Marta de Penaguião (33%); quatro de Bragança: Vila Flor (36%), Alfândega da Fé, Vimioso e Macedo de Cavaleiros (todos com 34%); um de Braga: Celorico de Basto (35%); três da Guarda: Sabugal (35%), Aguiar da Beira (34%) e Vila Nova de Foz Côa (33%); e ainda um do Porto: Baião (34%).
De entre os concelhos com menores percentagens de família com TSE salientam-se Castanheira de Pêra (9%), Penela (10%), Odemira e Alcoutim (ambos com 11%) e Arronches, Figueiró dos Vinhos, Santiago do Cacém, Estremoz, Coruche e Alcácer do Sal (todos com 12%).
Dos concelhos de maior dimensão, Lisboa tem 14% das famílias com TSE (34.944 contratos em 242.618 famílias), Sintra conta 21% (32.174 contratos em 153.234 famílias), Vila Nova de Gaia 20% (24.305 contratos em 121.311 famílias), Porto tem 18% (18.316 contratos em 102.227 famílias) e Cascais 16% (13.783 contratos em 86.497 famílias).
Recorde-se que desde Julho de 2016, o acesso ao benefício da tarifa social da energia eléctrica e também de gás passou a ser concretizado por um mecanismo de reconhecimento automático, através da Autoridade Tributária e Aduaneira e da Segurança Social.
São beneficiários os titulares de contratos domésticos que recebam complemento solidário para idosos, rendimento social de inserção, prestações de desemprego, pensão social de velhice ou invalidez ou o agregado familiar com um rendimento anual igual ou inferior a 5.808 euros, acrescido de 50% por cada elemento que não tenha qualquer rendimento, até ao máximo de 10.
No caso da TSE, o benefício consiste, actualmente, num “desconto de 33,8 % sobre as tarifas transitórias de venda a clientes finais de eletricidade, excluído o IVA, demais impostos, contribuições, taxas e juros de mora que sejam aplicáveis”.
Apesar da perda generalizada de rendimentos durante a pandemia, até houve uma redução global de beneficiários do TSE. De acordo com os dados da DGEG, a TSE reduziu-se de 780.255 contratos no final do primeiro trimestre de 2020 para 766.930 em Junho deste ano, ou seja, uma diminuição de 1,7%.
Em 25 de Agosto passado, Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente e Acção Climática, anunciou, a pretexto do aumento do preço dos combustíveis e electricidade, um conjunto de medidas de mitigação da inflação, nomeadamente a possibilidade de transição para o mercado regulado, a colocação de um preço máximo do gás doméstico e do apoio da Bilha Solidária. Além disso, O Governo alterou o IVA da electricidade de 23% para 6%, mas apenas para os primeiros 100 KWh, o que, de acordo com a DECO, resultará “numa poupança média mensal de 1,08 euros”.
O impacte nos próximos meses da subida do preço da electricidade pode ser significativo se o Inverno for particularmente frio, agravando assim os efeitos da denominada “pobreza energética” de Portugal, com consequências tanto no conforto como mesmo da taxa de mortalidade.
Nos últimos anos, de acordo com uma análise de Luísa Schmidt e Ana Horta, investigadoras do Instituto de Ciências Sociais, os preços da eletricidade para os consumidores domésticos em Portugal têm sido dos mais elevados da União Europeia, muito por via dos impostos.
Em 2019, o Eurostat indicou que os impostos e taxas incluídos nas faturas da eletricidade dos portugueses constituíram 55% do preço final. “Assim, num contexto sociocultural em que se considera normal ter frio em casa no inverno, muitos portugueses optam por reduzir ao mínimo os custos com aquecimento”, salientam as duas investigadoras.
Alguns dos indicadores compilados pelo Instituto de Ciências Sociais mostram que Portugal se encontrava já numa situação complexa do ponto de vista do conforto energético, com 18,9% dos portugueses incapazes de manterem a casa adequadamente quente, valor que confronta com 7% na União Europeia. As investigadoras consideraram também que, além do problema de rendimento das famílias, também se coloca o óbice da “literacia” energética, ou seja, as pessoas ignoram, em muitas situações, quais os tarifários mais adequados e outras medidas de poupança e de eficiência energética.
O maior incêndio deste ano, reactivado ontem, dois dias após ser considerado controlado, vem mostrar sobretudo as crónicas falhas no combate e na gestão florestal, sobretudo em zonas sob gestão do Estado. As áreas protegidas continuam a ser as zonas mais fustigadas ano após ano. Na Serra da Estrela, metade da área foi atingida pelas chamas desde 2017. No presente século, pouco ou quase nada não foi passada pelo fogo. Mas não é um exclusivo. O PÁGINA UM apresenta um retrato de uma triste realidade que atinge as nossas áreas (des)protegidas.
O Parque Natural da Serra da Estrela não é apenas a maior área protegida do país. Com o violento incêndio da última semana – acrescido de reacendimentos que vieram reavivar as crónicas deficiências do sistema de gestão florestal e de combate aos fogos –, também já é aquela com maior superfície ardida desde o início do século em função da área total.
Embora ainda seja prematuro estabelecer a dimensão final, por ainda estar em curso o incêndio que começou no dia 6 – e que ontem se reactivou –, estima-se que já tenham sido destruídos 22.343 hectares este ano na Serra da Estrela, de acordo com valores avançados pelo Público.
Considerando este valor, os incêndios nesta área protegida – que ocupa 89.132 hectares no centro do país, quase nove vezes a cidade de Lisboa – já lavraram cerca de 85 mil hectares desde 2001, segundo os registos do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) consultados pelo PÁGINA UM.
Embora algumas partes da Serra da Estrela – como sucede noutras regiões – tenham sofrido mais do que um fogo ao longo das últimas duas décadas, a área ardida acumulada nesta área protegida é agora de quase 96%. Ou seja, são poucas as zonas desta região que não “sentiram” o fogo no presente século.
Os incêndios deste mês fizeram assim que o Parque Natural da Serra da Estrela ultrapassasse aquele que era então a área protegida mais vulnerável ao fogo: o Parque Natural do Alvão, com 84,2% da área ardida acumulada desde 2001.
Contudo, esta área protegida de reduzidas dimensões – com apenas 7.238 hectares, localizada nos municípios de Mondim de Basto e Vila Real, e que tem as Fisgas de Ermelo como principal atracção – tem sido poupada aos fogos nos últimos anos.
Desde o início do século, quase toda a área ardida no Parque Natural do Alvão se concentrou em 2001 (6.094 hectares) e em 2013 (3.154 hectares).
Ao invés, o Parque Natural da Serra da Estrela regista sistematicamente fogos com dimensão relevante. Desde 2001 contabiliza nove anos sempre com mais de 2.000 hectares ardidos, sendo que em três se superaram os 10 mil hectares: 2003 (11.593 hectares); 2017 (20.202) e este ano, onde já se terá superado os 22 mil hectares.
A situação dramática da Serra da Estrela é apenas o reflexo supremo do estado calamitoso das áreas protegidas do país que, embora naturalmente de maior risco de incêndios pela abundância vegetal, se mostram, na prática, completamente desprotegidas. Na verdade, ardem mais do que as áreas não-protegidas, apesar de ocuparem apenas 742 mil hectares, ou seja, cerca de 8% do território português.
De acordo com uma análise do PÁGINA UM, os incêndios dentro das 48 áreas classificadas em Portugal Continental – sendo 32 geridas pelo ICNF, 15 por municípios e uma por privados – afectaram, desde 2001, um total de 229.559 hectares, ou seja, 31% do total. Convém referir, contudo, a existência de recorrências em determinadas áreas.
Zonas protegidas classificadas com área total e área queimada (em hectares) e área afectada (em percentagem) entre 2001 e 2022 (dados provisórios). Fonte: ICNF.
Embora a destruição em 2022 em áreas classificadas esteja já próxima dos 30 mil hectares, o pior ano continua ainda a ser 2003. Nesse ano, os incêndios afectaram 40.717 hectares, dos quais 20.139 hectares no Parque Natural de São Mamede e 11.5593 hectares na Serra da Estrela.
Há cinco anos, em 2017, os fogos dizimaram mais 34.608 hectares de áreas protegidas, com destaque para os 20.202 hectares também na Serra da Estrela e os 9.986 hectares no Parque Natural do Douro Internacional.
Destaque-se, de igual modo, os anos de 2010 e 2016 com vastas zonas de áreas protegidas fustigadas por incêndios. No primeiro ano ardem 16.225 hectares e no segundo 16.695 hectares.
Porém, o fenómeno dos incêndios não é homogéneo por todas as zonas classificadas, tanto mais que uma quantidade substancial é de pequena dimensão, de carácter menos rural e/ ou integrando sobretudo ecossistemas menos propensos ao fogo (zonas húmidas, por exemplo).
Assim, de acordo com os registos do ICNF, 98% de toda a área ardida desde 2021 concentra-se em apenas 14 zonas protegidas.
Além da Serra da Estrela e do Alvão, as áreas protegidas mais fustigadas são a Área de Paisagem Protegida do Corno do Bico (70% da área afectada), o Parque Nacional da Peneda-Gerês (46%), os Parques Naturais da Serra de São Mamede (39%), do Douro Internacional (38%), da Serra de Aire e Candeeiros (31%), do Montesinho (24%), da Ria Formosa (16%) e de Sintra-Cascais (11%).