Etiqueta: Alma dos Livros

  • O quarto que fecha por fora

    O quarto que fecha por fora

    Título

    A criada

    Autora

    FREIDA MCFADDEN (tradução: Carla Ribeiro)

    Editora

    Alma dos Livros (Junho de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Freida McFadden, a autora deste thriller psicológico, é médica e especialista em lesões cerebrais. Talvez, também por isso, o relato que faz de algumas personagens seja com conhecimento de causa, por mais inverosímeis que nos pareçam os seus actos. O cérebro humano é cheio de surpresas.

    Neste romance, a autora inventa cenários inesperados e fora do comum, que nos apanham sempre de surpresa. É uma história cheia de voltas e reviravoltas, daquele género de narrativas que não conseguimos largar, porque sabemos que a próxima página nos reserva sempre surpresas, e queremos sempre saber o que vai acontecer.

    O livro conta-nos a história de Millie, uma mulher recém-libertada da cadeia, por um crime que inicialmente desconhecemos, e que procura emprego. Mal acredita na sua sorte quando é contratada por Nina Winchester, como empregada doméstica interna. Millie dorme no carro e está em liberdade condicional, de forma que ter o seu próprio quarto e tratar, aparentemente, de funções domésticas sem grande dificuldade, lhe parece uma sorte incrível.

    A casa é maravilhosa, Nina recebe-a muito amistosamente, mas aquilo que inicialmente lhe parecia uma bênção foi aos poucos transformando-se num enorme pesadelo. A patroa parece deleitar-se em enlouquecê-la, criando situações de mal-entendidos e sujando e desarrumando a casa toda apenas para ver Millie a limpar e a arrumar. 

    Para piorar as coisas, conta mentiras estranhas sobre a sua própria filha, Cecelia, uma criança de nove anos, caprichosa e mal-educada e com quem Millie tem imensas dificuldades em lidar. O único que parece escapar a este cenário é Andrew, o marido de Nina, um perfeito cavalheiro, lindíssimo, sempre irrepreensivelmente vestido, com um grande emprego e um grande carro. Ama a mulher e trata-a, aparentemente, muito bem. O marido perfeito, em suma.

    A primeira parte do livro, dedicado a Millie, fala-nos, pois, das suas funções, na casa, do seu emprego e dos mau tratos que Nina lhe inflige, mas que ela vai suportando porque a última coisa que quer é voltar a dormir no seu carro e, sendo despedida, sabe que irá ter dificuldade em arranjar um novo emprego, com o cadastro que tem. Afinal, ter o seu próprio quarto, apesar deste ser um aposento onde só cabe uma cama e com um armário minúsculo, parece-lhe uma boa troca. Até descobrir que o quarto só se fecha à chave, do lado de fora. 

    Descobriremos, depois, terríveis segredos na segunda parte do livro, dedicado a Nina. 

    Se há uma coisa que a grande maioria dos thrillers têm em comum são as caracterizações claras dos vários personagens. Os protagonistas são invariavelmente os bons, enquanto que os maus são identificados com precisão e descritos de forma a atrair nossa antipatia, respeitando, assim, as convenções clássicas. Millie é inegavelmente a vítima, e Nina a vilã, que queremos que seja castigada. Assim, quando Millie se começa a apaixonar por Andrew, quase desejamos que a criada fique a viver com o patrão e a malvada patroa seja expulsa de casa. E isso acontece, mas, quando acontece, saber que aquele quarto só fecha do lado de fora começa a fazer todo o sentido. Ou não…  

    A maior parte do romance concentra-se nas relações entre estas três pessoas, altamente disfuncionais e atormentadas à sua maneira. Às vezes bem-humoradas, e outras vezes bastante terríveis e preocupantes, as interações que têm uns com os outros é o que faz mover a história. E McFadden sabe exatamente como aumentar, consistentemente, a perturbação que vamos sentindo à medida que o lemos sabendo, de antemão, que todas as personagens correm perigo, que não sabemos bem qual até à última página. 

    Do ponto de vista formal, o romance não traz nada de original, nem que mereça menção, mas o seu conteúdo não deixa o leitor indiferentes. Portanto, uma óptima leitura para o Verão.

  • Da obediência à (pretensa) liberdade

    Da obediência à (pretensa) liberdade

    Título

    Não obedeças mais

    Autor

    GUSTAVO SANTOS

    Editora (Edição)

    Alma dos Livros (Outubro de 2022)

    Cotação

    9/20

    Recensão

    Nascido em Lisboa, em 1977, Gustavo Santos é o autor de vários livros de desenvolvimento pessoal, nomeadamente, Agarra o agora (2013, Esfera dos Livros), A força das palavras (2015, Esfera dos Livros) e O caminho (2015, Pergaminho), entre outros.

    Antes de se dedicar à escrita e ao coaching, esteve ligado ao entretenimento: foi bailarino e pertenceu a uma boys band, a Hexa Plus, participou no reality show, “Big Brother Famosos” (2002) e apresentou o programa “Querido, mudei a casa!” (entre 2010 e 2020, primeiro na SIC, depois na TVI). Como actor, entrou em várias telenovelas e outros programas de entretenimento, como por exemplo, “Floribella” e “Espírito Indomável”.

    “O livro-sensação do ano” – lê-se na capa –, Não obedeças mais, e que tem como mote “a tua verdade é a tua liberdade”, publicado pela Alma do Livros, resulta de um conjunto de 100 textos, que, nas palavras do autor, são “sem censura”, “sobre liberdade” e “pela liberdade”.

    À semelhança de outros livros de desenvolvimento pessoal, a escrita desenvolve-se num tom intimista, tratando o leitor por tu, como alguém próximo, como quem desenvolve uma conversa frente a frente. O discurso também pode ser entendido como aquele preparado para uma plateia a participar num curso de desenvolvimento pessoal ou de coaching, tão em voga, nos últimos tempos.

    É disso que se trata, de uma palestra escrita, um monólogo, em que o autor discorre sobre o que entende ser a liberdade. Para si, algo que resulta da capacidade de pensar, dizer e fazer o que bem entende, sem que os outros tenham alguma coisa que ver com o assunto.

    Os outros que, como dizia Jean Paul-Sartre, são o inferno, mas que em Gustavo são o S.I.S.T.E.M.A. – “grupo restrito de gente autora de uma Agenda perigosa que visa o fim da Liberdade do povo em prol de mais poder, mais controlo e maiores receitas” (p. 11), mais concretamente, “Soberania Idiota, Sinistra e Tirana de Egos Mercenários e Assombrados” (título do capítulo dois, p. 18).

    Para o autor, este S.I.S.T.E.M.A. é aquele a quem devemos desobedecer se queremos lutar pela liberdade. Para tal, em cada capítulo, Gustavo Santos apresenta um conjunto de ideias com o objetivo de motivar as pessoas a despertarem e a não se deixarem manipular, dado que esse é o propósito do método “C.H.O.N.É. (conversão em série de humanos em ovelhas de nádegas escancaradas)” – título do capítulo quinze (p. 56).

    De página em página, Gustavo Santos mostra-se corajoso e um homem forte, recorrendo a Jesus, Gandhi, Mandela ou Luther King, para mostrar que, como eles, ele também faz. Ele, Gustavo, também tem impacto e, provavelmente, ficará na História. Com efeito, as palavras escritas de Gustavo podem ter algum impacto, mas como ele próprio reclama, também ele se quer impor sem mostrar factos:

    Não me peçam factos, por favor.

    Não sou uma mosca para estar em reuniões secretas nem agente infiltrado de coisa nenhuma. Sou homem de coração agitado, livre por natureza, e isso basta” (p. 105).

    Só que não. Se Gustavo Santos reclama pela verdade e luta pela liberdade e quer combater a seita, então talvez seja melhor ir além do que sente e pressente e procurar, e pelo menos tentar, apresentar factos que demonstrem a sua verdade.

    Os jogos de palavras são uma constante. Além dos já mencionados, destaquem-se os títulos “Comuni«coação» social” e  “Edu«coação» escolar”, que sendo profícuos, são, em nosso entender, mal aproveitados. Tão-só pela vacuidade. Os temas da propaganda ou da liberdade poderiam ser aprofundados, mas ficam limitados à conversa de café. Pouco mais que uma série de lugares-comuns, pese embora o autor se outorgue como o salvador da pátria.

    Deixamos alguns finais de capítulo como exemplos de um discurso, na nossa opinião, estéril:

    “Não obedecer é ser diferente” (p. 55).

    “Não obedecer é marimbares-te para o que te dão à condição e trocar tudo isso, que é quase nada, por algo conquistado por ti” (p. 81).

    “Não obedecer é acreditar no bem, e contra isso não há quem” (p. 156).

    “Não obedecer é deixar de ser um brinquedo” (p. 173).

    “Não obedecer é cagar no filtro e dar o litro” (p. 198).

  • Do ócio existencial

    Do ócio existencial

    Título

    Tudo o que não precisa de saber sobre a vida

    Autor

    JEROME K. JEROME (tradução: Francisco Silva Pereira)

    Editora

    Alma dos Livros (Janeiro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Tudo o que não precisa de saber sobre a vida, tendo como subtítulo “reflexões divertidas para uma vida sem preocupações é um livro de Jerome K. Jerome (1859-1927) dedicado ao amigo e companheiro das horas de ócio: o seu cachimbo! Esta dedicatória anuncia o tom humorístico, satírico e, inevitavelmente, divertido do conjunto de ensaios que compõem esta obra original de 1886, agora publicada pela Alma dos Livros.

    Com uma nota prévia no prefácio, Jerome Klapka Jerome alerta os leitores que esperam que um livro lhes eleve o espírito, que “este livro não elevaria sequer o espírito de uma vaca”. Como tal não o recomendaria (ao contrário de nós), dado não lhe reconhecer qualquer utilidade, a não ser a de passar algum tempo nesta leitura, depois de se ter cansado de ler “os cem melhores livros de sempre” (p. 7).

    Em “Tudo o que não precisa de saber sobre a vida” o autor discorre acerca de situações da vida quotidiana de uma forma que tanto nos faz sorrir, como reflectir. Os assuntos são prosaicos, mas a vida é sublimada por isso mesmo.

    A partir de temas como o ócio, o amor, a vaidade (ou a sua pretensa ausência), a timidez, o vestir e o estar, o comer e o beber, os cães e os gatos, os bebés, os apartamentos mobilados, entre outros, Jerome K. Jerome apresenta-nos, com humor, uma reflexão acutilante sobre a burguesia inglesa de finais do século XIX.

    Uma das marcas da sua ironia é o, agora compreendido como, sexismo, mas que na época era generalizadamente prevalecente. Não será estranho, por isso, que algumas leitoras se possam sentir ofendidas em algumas passagens, como quando o autor se refere aos homens como os “representantes do sexo intelectual” (p. 82).

    Outro tema do autor é a penúria, mostrando com leveza o poder que esta circunstância pode ter como estímulo à criatividade, não apenas na escrita, mas no modo de se observar e compreender os episódios mais ou menos imprevistos do quotidiano. A diferença entre uma pessoa que tem um ou dois pences no bolso e aquela que não tem qualquer pensamento sobre as questões monetárias, é disso exemplo.

    Um guarda-chuva automático é, também ele, alvo de cogitações – o insólito é outra das características deste livro. Com o tema da memória, o autor transporta-nos para a infância, relatando as conversas que tem com o seu antecessor: o rapaz de 14 anos frívolo que foi.

    Foi com esta idade que Jerome K. Jerome abandonou a escola, altura em que começou a trabalhar nos caminhos-de-ferro. Posteriormente, trabalhou como professor, actor e jornalista.

    Antes deste conjunto de reflexões escreveu peças de teatro e outros livros, sendo que este agora editado em Portugal e “Três homens num barco” têm sido continuamente traduzidos e publicados. Entre 1892 e 1897, editou a revista satírica The Idler, da qual foi um dos fundadores, e que reunia escritores da sua época, como seja Mark Twain.

  • Do contágio à imbecilidade humana

    Do contágio à imbecilidade humana

    Título

    A psicologia das massas

    Autor

    GUSTAVE LE BON (tradução: Maria Albuquerque Caiado)

    Editora (Edição)

    Alma dos Livros (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    O ensaio clínico, A psicologia das massas, finalmente publicado em português europeu pela Alma dos Livros, é um original de 1895. É, por isso, de ressalvar que, à época, os modos de escrita de Ciência eram distintos, em particular, tratando-se de um ensaio. Um tipo de publicação que tendencialmente se realiza sem a revisão dos pares.

    Não significa que esta avaliação não se concretize ou não tenha sido vivenciada pelo próprio autor. Com efeito, Gustave Le Bon (1841-1931) terá sido amplamente ignorado e até difamado por parte da academia francesa por causa da sua visão política.

    Este repúdio não impediu que tivesse obtido, em 1879, o Prémio Godard da Academia Francesa de Ciências, nem que as suas obras influenciassem uma série de figuras públicas, como por exemplo os políticos Roosevelt e Hitler e autores como Freud e Ortega y Gasset. Em relação aos primeiros, a defesa da existência de uma raça superior, a ariana, terá sido “música para os ouvidos” de Hitler.

    Quanto à influência sobre Sigmund Freud, o determinismo social, que Gustave Le Bon resgatou de Charles Darwin, foi um forte motivo para que Freud escrevesse um livro sobre a obra que aqui apreciamos: A psicologia das massas e a análise do eu.

    Mas a sua influência foi muito mais além, dado ser considerado um dos fundadores da Psicologia Social, para a qual esta A psicologia das massas muito terá contribuído – ainda hoje, esta obra é uma referência para a compreensão do funcionamento e poder dos grupos e multidões.

    Gustave Le Bon, além de apaixonado pela escrita, foi uma pessoa muito observadora e curiosa, características imprescindíveis aos cientistas. No seu caso, o interesse era vasto, e incluía a Psicologia, Medicina, Física, Sociologia e Antropologia, sendo que as viagens com fim investigativo muito colaboraram para aumentar a sua mundividência e compreensão dos modos de organização dos diferentes povos.

    A sua experiência como médico oficial do Exército francês, aquando da guerra Franco-Prussiana, também lhe proporcionou a oportunidade de observar o comportamento dos militares sob condições de forte stress e sofrimento. Valeu-lhe ainda a nomeação de Cavaleiro da Legião de Honra.

    Outras vivências terão enriquecido o seu repertório investigativo, como por exemplo, a Comuna de Paris, durante a qual não lhe faltaram situações que, posteriormente, usaria para a redacção desta obra, sobre o funcionamento psicológico das multidões.

    Neste livro, o autor começa por descrever as principais características das massas, destacando a “impulsividade, irritabilidade, incapacidade de raciocinar, ausência de julgamento e espírito crítico, exagero de sentimentos”. Caracteres especiais que concorreram para que Le Bon teorizasse a “Lei Psicológica da Unidade Mental das Massas”.

    É provável que o uso de certos termos e conceitos, como o de raça ariana, incomode os leitores contemporâneos, mas serviu, como referido, para a posterior reivindicação e pseudo-investigações do Instituto dirigido Heinrich Himmler, como aliás, já aqui se recenseou.

    A linguagem colide, igualmente com o que hoje temos como politicamente correcto. Com efeito, para demonstrar que a composição de um grupo ou multidão pouco ou nada influencia as decisões por si tomadas, seja o grupo constituído por ilustres intelectuais ou por básicos operários, Le Bon, afirma que “as decisões de interesse geral tomadas por uma assembleia de pessoas ilustres, mas de diferentes especialidades, não são sensivelmente superiores às que uma reunião de imbecis tomaria. Só apresentam em comum aquelas qualidades medíocres que todos possuem. Nas massas, é a estupidez e não a inteligência que se acumula” (p. 33).

    Este excerto ilustra o tom de grande parte da obra. Reitera-se, por isso, a necessidade de enquadrar o texto ao contexto sociocultural de então.

    É de reforçar, porém, que algumas das teorias formuladas pelo autor continuam a ser um recurso para a compreensão da temática, em particular a teoria do contágio: “O contágio é tão poderoso que impõe às pessoas não apenas certas opiniões, mas também certas formas de sentir (…) É sobretudo pelo contágio, nunca pelo raciocínio, que se propagam as opiniões e as crenças das massas” (p. 107).

    Este mecanismo, complementado pela afirmação e repetição é, para Le Bon, o meio de acção dos líderes, que sabendo do efeito do anonimato do indivíduo quando inserido na multidão, encontra aqui a estratégia de influência hipnótica. Isto, porque como observou Le Bon, o indivíduo perde-se, para formar a tal unidade mental das massas.

    Ainda que os termos e expressões possam ferir susceptibilidades actuais, a verdade é que esta obra é uma ferramenta deveras interessante para compreender o efeito da publicidade (quer comercial, quer de propaganda) que actua por intermédio da afirmação, repetição e contágio. O que tem como consequência que a multidão assuma vida própria que, com o exagero dos sentimentos e emoções que lhe é característico, induza à irracionalidade – outro caractere particular das massas.