Etiqueta: Alfaguara

  • A maldição da casa assombrada

    A maldição da casa assombrada

    Título

    Caruncho

    Autora

    LAYLA MARTÍNEZ (tradução: Guilherme Pires)

    Editora (Edição)

    Antígona (Março de 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Carancho é, sobretudo, uma história de fantasmas enterrada num armário familiar carregado de esqueletos e pecados. As narradoras são uma avó e uma neta que se vão revezando capítulo, após capítulo. Mas há outras duas mulheres presentes na história, as mães de ambas que várias vezes são recordadas também por ambas.  Mas a personagem principal é a casa. Uma casa assombrada. Uma casa que respira. Uma casa que contém corpos e segredos. Uma casa que é visitada por fantasmas, por anjos que revestem o telhado como insetos e por santos que queimam os lençóis com as suas auréolas. As quatro gerações de mulheres estão presas à casa, cercadas de fantasmas e de anjos insectóides.

    A casa fica perto de uma aldeia presa pela pobreza, na aldeia muitas mulheres presas no purgatório da falta de poder e da violência contra os seus corpos e uma armadilha mortal: a raiva que se vai instalando nos seus corações, por vezes incontrolável, e que penetra nas entranhas e não deixa dormir nem as personagens, nem a nós, leitores que, de algum modo, nos sentimos presos na casa. Quando se começa a ler o livro também bate a porta atrás de nós prendendo-nos na narrativa claustrofóbica e perturbadora. “Quando passei a soleira da porta, a casa precipitou-se sobre mim. Este monte de tijolos e sujidade faz sempre a mesma coisa, lança-se sobre qualquer pessoa que atravesse a porta retorce-lhe as entranhas até a deixar som fôlego. A minha mãe dizia que esta casa nos faz cair os dentes e nos seca as vísceras. “

    Como diz Rachael Conrad, “este livro tem TUDO: traumas geracionais, maldições, assassinatos, bruxas, santos, anjos que parecem louva-a-deus, fantasmas, imagens profundamente perturbadoras que ficarão comigo por muito tempo e é, possivelmente, uma das casas mal-assombradas mais vingativas e furiosas, na literatura. Caruncho é profunda e maravilhosamente perturbador.”

    A avó e a neta são movidas a ódio. Na aldeia chamam-lhes bruxas. A forma como se tratam uma à outra é de uma violência incomodativa. “A avó não estava lá. Também não estava debaixo da mesa da cozinha nem dentro da despensa. (…) Velha de merda. Arrastei dali a velha, sentei-a na cama e sacudi-a pelos ombros. Algumas vezes funciona, outras não, desta vez não funcionou. Arrastei-a para o corredor, abri a porta do quarto, empurrei-a lá para dentro e tranquei-a. Nesta casa todas as portas podem ser trancadas pelo lado de fora.”

    É, pois neste tom que ambas as personagens nos vão fazendo uma novela de dimensão sobrenatural mas também nos fazem um retrato da guerra civil espanhola, e da posterior razia franquista “quando tudo se transformou em fome e poeira” e das recordações de ambas as protagonistas que são “coisas piores do que os mortos que surgem do nada”. Homens que vão para a guerra e não regressam, homens que não querem ir para a guerra e se escondem, uma família rica da aldeia, os Jarabos, que sofre com as maldições que a avó e os seus santos lançam sobre ela, e que espera, ainda que inconscientemente, a punição das mulheres da casa. O casamento da avó com o capataz dos Jarabos, Pedro, que termina com a sua misteriosa morte, e o emprego da neta como criada que tem um desfecho trágico com o desaparecimento de uma criança que apenas aprofunda a ruptura familiar, a má fama das mulheres e o drama de todos os que de algum modo são envolvidos na história e na maldição. Nós, leitores, somos alguns deles porque o livro cola-se-nos à pele e não o esquecemos facilmente.

  • A encarnação do inferno

    A encarnação do inferno

    Título

    A malnascida

    Autora

    BEATRICE SALVIONI (tradução: Ana Cláudia Santos)

    Editora (Edição)

    Alfaguara (Outubro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    O livro começa no fim e narra, logo ali, um acontecimento traumático: “É difícil tirar de cima o corpo de um morto. Descobri-o aos doze anos, com o sangue a escorrer-me do nariz e da boca e as cuecas enroladas à volta de um tornozelo. Os seixos da margem do Lambro, duros como garras, pressionavam-me a nuca e o rabo nu, as costas afundadas na lama. O corpo dele pesava-me na barriga, anguloso e ainda quente.

    Tinha os olhos brilhantes e vazios, saliva branca sobre o queixo, e a boca aberta exalava um cheiro mau. Antes de cair, olhara para mim com o medo a contorcer-lhe o rosto, uma mão metida nas cuecas e as pupilas dilatadas e negras, que pareciam dissolver-se até escorrerem pelas faces.

    Tombara para a frente, os seus joelhos comprimiam-me ainda as coxas, que ele conseguira manter abertas. Já não se mexia.” 

    O morto é Tiziano Colombo, um jovem fascista, machista, filho de uma das mais influentes famílias de Monza, cidade italiana onde se passa a ação, nos anos 30; e a vítima Francesca, uma adolescente de 12 anos que é uma das protagonistas e a narradora, na primeira pessoa, desta história fascinante.

    Mussolini estava no poder, viva-se num clima opressivo de um país fascista onde ter a ousadia de pôr em causa o status quo requeria uma coragem enorme. Foi isso que fizeram Francesca e Maddalena, a partir do momento em que ficaram amigas. Contrariando a vontade da mãe, obcecada pelas convenções sociais burguesas, Francesca junta-se a um bando de amigos problemáticos, de que é líder Maddalena, a “malnascida”, ávida por descobrir um modo de vida em absoluta liberdade. 

    Como se lê no La Repubblica:

    «A “malnascida” que conhecemos ao longo desta história é uma pequena encarnação do inferno. Uma daquelas figuras incómodas que, na Idade Média, seriam atiradas à fogueira. […] Maddalena é uma personagem sólida e cálida, que se solta das páginas deste romance com um sopro quase percetível.» 

    A malnascida é, pois, um romance sobre duas amigas a viver aquele período difícil da vida, que muitas vezes se desvaloriza – a adolescência –, e retrata a amargura que é crescer, ver a vida a desenvolver-se, num pano de fundo cheio de matizes: a relação adúltera da mãe de Francesca com o pai de Tiziano, o relacionamento afetuoso com o seu pai, a gravidez escondida de todos e que levou à tentativa de suicídio de Donatella, irmã de Maddalena, a invasão da Abissínia por Benito Mussolini e a mobilização dos rapazes da cidade para a guerra, onde perde a vida um dos irmãos de Maddalena, a amizade com Noé, o filho do merceeiro que as ajuda em vários momentos apesar de agredido violentamente pelo próprio pai.

    Como pano de fundo, a amizade das duas raparigas que, cúmplices até ao fim, acabam por se ver envolvidas na morte descrita logo no prólogo. A narrativa é ágil e a leitura não se consegue largar. Um livro muito interessante.

  • O menino que amava o Senhor, seu pai

    O menino que amava o Senhor, seu pai

    Título

    Somos o esquecimento que seremos

    Autor

    Héctor Abad Faciolince (tradução: Margarida Amado Costa)

    Editora (Edição)

    Alfagura (Outubro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Este livro deve o seu título a um verso de um belíssimo poema de Jorge Luís Borges (associado a ele há uma polémica interessante que pode ser lida aqui) que o pai do autor trazia, em manuscrito, no bolso, juntamente com uma lista de ameaçados de morte na Colômbia da época, e que foi salpicado de sangue no dia em que o assassinaram, a sangue frio, na rua, quando se dirigia ao velório de um amigo.

    Somos o esquecimento que seremos é um retrato íntimo de uma família, e descreve uma relação onde pai e filho se idolatram mutuamente; onde o filho mais do que justifica a sua adoração pelo progenitor, mas que parece nunca perceber o que leva o pai a confiar e a gostar de si tão incondicionalmente. Em que o pai é personagem principal e o filho lhe presta um maravilhoso tributo por ter sido, como homem, a todos os títulos, um ser superior. Diz o autor, logo na primeira página:

    O menino, eu, amava o senhor, seu pai, acima de todas as coisas. Amava-o mais que a Deus. Um dia, tive de escolher entre Deus e o meu pai, e escolhi o meu pai.” 

    E, de facto, trata-se de um amor filial enorme em que o autor, único filho rapaz, numa casa cheia de irmãs e outras mulheres, desenvolve numa relação íntima, visceral, com o pai e que não é muito comum ver-se.

    Eu gostava do meu pai com um amor que nunca mais voltei a sentir até ao nascimento dos meus filhos. Quando estes nasceram, reconheci-o, porque é um amor igual em intensidade, embora diferente e, de certa maneira, oposto.

    A 25 de Agosto de 1987, o pai, o médico colombiano Héctor Abad Gómez é assassinado por paramilitares em Medellín, uns dias antes de umas eleições em que era um dos candidatos. Seis balas na cabeça puseram fim a uma vida de luta contra a opressão e a desigualdade social, num país amordaçado pelo narcotráfico e pela política suja.

    Este é, pois, um livro dedicado às memórias, ao pai e a uma época conturbada e de crescente violência política na Colômbia dos anos de 1970 e 80. Duas décadas depois, o filho, um dos mais prestigiados autores da Colômbia escreve esta obra-prima.

    Médico de profissão, o pai de Hector dedicou-se a lutar contra a falta de oportunidades iguais num país mergulhado em violência, desigualdades sociais e violação constante dos direitos humanos. Entre diversos episódios – uns caricatos, que arrancam sorrisos; outros comoventes, capazes de nos levar às lágrimas -, somos apresentados à sociedade colombiana e a outros modos de vida.

    O meu primeiro contacto com o sofrimento não foi em mim, nem em minha casa, mas nos outros, porque, para o meu pai, era importante que os filhos soubessem que nem toda a gente era feliz e afortunada como nós e parecia-lhe necessário que conhecêssemos desde crianças o padecimento, quase sempre devido a desgraças e a doenças associadas à pobreza, de muitos colombianos.

    Do relato verídico contado na primeira pessoa, tecem-se considerações detalhadas (e polémicas) sobre o papel da religião católica na América Latina. Também as correntes políticas — comunismo, socialismo, liberalismo e conservadorismo — têm um destaque primordial, bem como os conceitos de «esquerda» e de «direita», essenciais para a compreensão de todos os factos descritos por Héctor.

    É uma história densa e comovente, desprovida de lugares-comuns. É a história de uma dor que cicatrizou, mas que prevalece. De uma memória que permanece pela força das palavras e que quer evitar o esquecimento de um humanista que viveu em prol dos outros, e para uma sociedade mais livre e justa. E ainda o principal responsável pelo filho que educou e que sempre incentivou:

    Creio que o único motivo por que fui capaz de continuar a escrever todos estes anos e de entregar os meus escritos à imprensa foi saber que o meu pai teria desfrutado mais do que ninguém com a leitura destas páginas minhas que nunca pôde ler. Que não lerá nunca. É um dos paradoxos mais tristes da minha vida: quase tudo o que escrevi foi escrito para alguém que não me pode ler.

    É um belíssimo livro que não se esquecerá facilmente. 

  • A cláusula familiar

    A cláusula familiar

    Título

    A voz das mulheres

    Autora

    MIRIAM TOEWS (tradução: Ana Maria Pereirinha)

    Editora (edição)

    Alfaguara (Setembro de 2023)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    “O que se segue é fruto da imaginação feminina” – frase do início do filme inspirado neste livro.

    A história, arrepiante, passou-se numa comunidade religiosa rural, de menonitas, em Manitoba, na Bolívia. Trata-se de um acontecimento real que Miriam Toews ficciona após a prisão dos agressores sexuais, de um grupo indeterminado de mulheres (fala-se em várias centenas), que violaram, repetidamente, e ao longo de anos, depois de as adormecerem com recurso a uma substância química, usada como anestesiante de bovinos.

    O livro desenvolve-se através de uma série de diálogos transcritos por August Epp, um professor recentemente readmitido na colónia depois da excomunhão, anos antes, dos seus pais por terem feito circular literatura proibida pelos líderes religiosos.

    A narrativa anda à volta do relato dos ataques levados a cabo durante a noite, por parte do que alguns membros da comunidade afirmaram serem fantasmas ou demónios. Outros culpavam a “imaginação feminina selvagem” – até que vários dos homens por trás dos ataques são descobertos e detidos. O irónico é que essa detenção serve, não para os punir, mas sim para os proteger da fúria de algumas mulheres.

    Enquanto os homens se dirigem à cidade para resgatar os acusados, oito mulheres– entre elas, Ona Friesen, grávida do filho do seu violador, e a adolescente Neitje, cuja mãe se suicidou – reúnem-se, secretamente, num palheiro para decidir como responder aos acontecimentos. Elas têm apenas dois dias para decidir o que fazer antes dos homens regressarem.

    É Ona que convida o pária da cidade, para servir como escrivão. Ela quer que o encontro seja registado para a posteridade e, na comunidade, apenas os homens podem aprender a ler e escrever. E August fá-lo em inglês, uma vez que depois da excomunhão os pais emigraram para Inglaterra.

    Miriam Toews explora um universo de pensamentos revelador sobre género, justiça, liberdade e poder. No entanto, o seu objetivo não é tanto o trauma dessas mulheres, mas a sua capacidade de sobrevivência e resiliência. Numa entrevista, a autora diz: ‘Eu precisava de escrever sobre essas mulheres. Eu podia ter sido uma delas’. De facto, ela própria nasceu numa comunidade menonita do Canadá.

    Em vez de insistir nos crimes, Toews confere um poder extraordinário às suas protagonistas, enquanto elas discutem sobre a melhor forma de permanecer fiéis a um sistema que as traiu tão brutalmente. O resultado improvável é uma lição magistral de ética e, surpreendentemente, dado o título, A voz das mulheres, ser narrado por um homem, acrescenta-lhe uma ironia inesperada. Depois de tudo o que passaram, as ideias das mulheres passam a ser o centro, e elas conseguem fazer com que um homem escreva aquilo que elas pensam e dizem.

    A voz das mulheres funciona assim como um diálogo socrático. Elas tornam-se construtoras do seu próprio futuro. À medida que o romance avança, tornam-se cada vez mais conscientes desse futuro. Discutem acaloradamente sobre a escolha das palavras, procurando não apenas clareza, mas também precisão.

    Ao ouvir as mulheres falarem, August pensa: “Lembro-me de como o meu pai me disse que os pilares gémeos que protegem a entrada do santuário da religião são a narrativa e a crueldade”. No celeiro, que se torna o santuário destas mulheres, contar histórias é um ato coletivo de libertação e de catarse mas também de clarificação. Sócrates ficaria satisfeito. 

  • O passado que nos assombra

    O passado que nos assombra

    Título

    As mães

    Autora

    BRIT BENNETT (tradução: Eugénia Antunes)

    Editora

    Alfaguara (Maio de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    O livro começa no final. Numa comunidade negra e cristã no sul da Califórnia, Nadia Turner, uma jovem bonita, obstinada e ainda a sofrer pelo recente e inexplicável suicídio da mãe, envolve-se com o filho do pastor de uma das igrejas da localidade, Luke Sheppard.

    Aos 21 anos, Luke é um ex-atleta que trabalha como empregado de mesa num restaurante, depois de ter sofrido uma grave lesão numa perna que o afastou do campo de futebol, onde estava a ter uma carreira brilhante, e que o impede de seguir para a universidade, como pretendia, com uma bolsa de estudo.

    Dessa relação, resultou um segredo que vai marcar todo o romance e que dita o fim do relacionamento. Depois do afastamento dos dois, aparece a figura da doce Aubrey Evans, completando o conflituoso triângulo amoroso. Após o afastamento de Luke, Nadia e Aubrey tornam-se as melhores amigas, mas quando Nadia deixa a cidade para ir para a Universidade, Aubrey e Luke envolvem-se sem que Aubrey saiba do segredo do passado do namorado e da melhor amiga.

    As ramificações que se seguem vão acompanhar as três personagens, desde o fim da adolescência até o início da vida adulta, exercendo um impacto e ondas de choque capazes de influenciar as suas trajetórias de vida durante muito tempo, mesmo depois de passados os seus anos de juventude. Anos depois, eles ainda vivem à sombra das escolhas da juventude e da insistente dúvida: e se tivessem agido de forma diferente? As possibilidades dos caminhos não escolhidos tornam-se uma sombra implacável.

    Mas o que dá nome a este livro não é nenhuma destas personagens, e sim um grupo peculiar de senhoras que frequentam a Upper Room, a Igreja. Elas aparecem no livro em capítulos intercalados, quase como um coro grego a reforçar as opções ou não-opções das personagens e formam, como uma entidade, uma personagem em uníssono: os trechos em que elas aparecem são narrados na primeira pessoa do plural, e esse “nós” traz-nos a sensação de que elas são todas, mas também nenhuma.

    A história de Nadia é, assim, emoldurada por esse coro de vozes das alcoviteiras anciãs da igreja que servem de polícia da moralidade da comunidade:

    “Nós já fomos jovens. Embora não pareça. É claro, quem nos vê hoje nem imagina como éramos – a flexibilidade e o vigor já se foram, a pele do rosto e do pescoço caiu. É o que acontece quando envelhecemos. Tudo cai, como se o corpo estivesse a aproximar-se de onde veio e para onde vai voltar. Mas já fomos novas e bonitas, e isso significa que já amámos homens de merda. Não há maneira cristã de dizer isso. Existem dois tipos de homens no mundo: homens de verdade e homens de merda.” 

    Observadoras, contam-nos, nas suas narrativas, factos que muitas vezes ainda não eram muito claros para nós, leitores, ou revelam partes do passado das personagens, recordando-as enquanto conversam.

    Na pequena comunidade onde todos sabem da vida de todos, As mães sabem-na melhor que ninguém. As mães acompanham a história da mãe de Nadia sem compreender o seu suicídio; acompanham a ida de Nadia para a Universidade, assim como a sua longa ausência; acompanham o relacionamento de Luke e Aubrey e o seu desejo de terem um filho, e assim vão entrelaçando os fios das histórias de todos numa história extremamente profunda e comovente. 

    As mães é um livro sobre as consequências das nossas escolhas e a forma como estas moldam os nossos caminhos.

  • Sonho de um triângulo amoroso

    Sonho de um triângulo amoroso

    Título

    O homem sentimental

    Autor

    JAVIER MARÍAS (tradução: Salvato Teles de Menezes)

    Editora (Edição)

    Alfaguara (Janeiro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Como recentemente aqui o descrevemos, Javier Marías, desaparecido no final de 2022, é considerado um dos maiores escritores contemporâneos.

    Nascido em Madrid (1951), o autor espanhol ganhou uma série de prémios e distinções pela sua vasta obra, sendo disso exemplo, o Prémio Giuseppe Tomasi di Lampedusa e Prémio Qué Leer, com Assim começa o mal e Os enamoramentos; Prémio da Crítica, Prix l’Oeil et la Letre e IMPAC Dublin Literary Award, com Coração tão branco; Prémio Fastenrath, Rómulo Gallegos e Prix Fémina Étranger, com Amanhã na batalha pensa em mim. Todos publicados, em Portugal, pela Alfaguara.

    Membro da Real Academia Espanhola e da Royal Society of Literature, desde 2011, Javier Marías, além de escritor, foi professor na Universidade de Oxford e na Universidade Complutense de Madrid, e tradutor, tendo obtido o Prémio Nacional de Tradução em Espanha (1979), com a sua tradução de Tristram Shandy.

    O homem sentimental, agora reeditado, é uma viagem onírica, a descrição de um sonho, escrita de uma assentada. Um sonho sobre eventos que decorreram quatro anos antes desta redacção e cuja verosimilhança causa, no leitor, a dúvida sobre o que é sonho e o que realmente aconteceu.

    O narrador descreve, então, o sonho e/ou os acontecimentos ocorridos como se estivesse numa poltrona a assistir a um filme a preto a branco, eventualmente mudo, tendo, por isso, necessidade de incluir as falas. Um narrador autodiegético e omnisciente, narrando na primeira pessoa e como participante, que tem o domínio de todos os acontecimentos. Motivo que nos conduz à dúvida.

    Entre o sonho e a realidade de anos atrás, fica uma descrição minuciosa e profunda do que a personagem percebe, só então, ter vivido e, sobretudo, sentido. “Agora que vos conto este sonho e história, creio ter-me abstido de pensar durante quatro anos” (p. 46).

    A solidão é o primeiro e mais forte sentimento, o que um cantor lírico em ascensão sente, só comparável à de um caixeiro-viajante. Alguém que vive de cidade em cidade, tendo na mala de viagem a sua única e permanente companhia, sem criar raízes. O que talvez ajude a compreender o registo onírico. Registo que acontece como um porto seguro, como se o narrador quisesse agarrar esse reduto por intermédio da sua escrita.

    É assim mesmo que se inicia esta trama psicológica, com as semelhanças entre um e outro viajante. É de tal modo pesada que, perpassando as diversas personagens da história onírica, a solidão é, ela mesma, uma figura narrativa.

    É a mesma que permite a contemplação e observação das vidas dos outros, por parte do cantor lírico, León de Nápoles.

    A descrição do sonho começa com uma viagem de comboio, durante a qual, o narrador tem oportunidade de observar as personagens que o acompanham no sonho, aquelas que integram o triângulo amoroso, Natalia Manur, o seu marido banqueiro, Hieronimo Manur, e ainda o assistente pessoal do casal, Dato. Mas esta informação só a obteria posteriormente.

    Durante a viagem, León detém-se nas mãos das três pessoas. A partir da sua observação, imagina e cria a história de cada uma das personagens que viria a conhecer num hotel de Madrid, cidade onde se desenrola o antes e o depois de triângulo amoroso.

    Madrid, onde o cantor tem uma série de ensaios para a estreia de Otello, de Verdi, e com os quais somos confrontados com a ascensão e a queda de outro cantor lírico, numa clara alusão ao envelhecimento e à angústia que a perda de protagonismo pode conduzir.

    Ao descrever os acontecimentos passados com outro cantor, o narrador acaba por visualizar a sua própria decadência num futuro que espera longínquo. Não é este o resultado da morte e envelhecimento dos outros sobre nós? O de nos lembrar que também nós somos finitos…

    O sonho em relato também engloba a história de um outro amor passado, que integrava outros vértices de um duplo triângulo amoroso, só na aparência, mais complexo que o usual.

    Como afirma no primeiro epílogo, o escritor espanhol Juan Benet, não há nada de novo no tema, apenas e tanto, a profundidade do sentimento de um homem que paira entre o sonho e a realidade (para o leitor, também onírica).

    No segundo epílogo do livro, do próprio autor, Javier Marías, o leitor obtém mais elementos para compreender o desfecho quase inusitado que poderá, até, provocar uma espécie de ‘água na boca’, um à espera do resto. Só que não.

    A provocação sublime do autor é esta mesma, a de nos transportar ao longo de uma viagem contada por intermédio de um sonho refletido e reflexivo. De tal modo que, como na plateia, observamos o enredo sem nunca alcançar o verdadeiro acontecimento do triângulo amoroso. A imaginação será o nosso apoio e co-participação… se quisermos.

  • Crimes em Hollywood

    Crimes em Hollywood

    Título

    Os domínios do lobo

    Autor

    JAVIER MARÍAS (tradução: Ana Maria Pereirinha)

    Editora (Edição)

    Alfaguara (Novembro de 2022)

    Cotação 

    16/20

    Recensão

    Desaparecido no ano passado, Javier Marías foi um escritor espanhol que nasceu em Madrid em 1951 e morreu sem o maior reconhecimento literário mundial – o Prémio Nobel –, apesar de integrar a lista de candidatos por várias vezes. Não obstante, prémios não faltam a um dos maiores escritores contemporâneos.

    Com efeito, prémios e distinções foram vastos para grande parte das suas obras, como por exemplo, Assim começa o mal, Os enamoramentos (Prémio Giuseppe Tomasi di Lampedusa e Prémio Qué Leer), Coração tão branco (Prémio da Crítica, Prix l’Oeil et la Letre e IMPAC Dublin Literary Award), Amanhã na batalha pensa em mim (Prémio Fastenrath, Rómulo Gallegos e Prix Fémina Étranger). Todos estão publicados em Portugal pela Alfaguara.

    O autor espanhol ganhou, ainda, diversos prémios pelo conjunto da sua obra, como o Prémio Literário Europeu em 2011. Note-se que Javier Marías chegou a rejeitar o Prémio Nacional (de Espanha) da Literatura em 2012, por considerar não ser da responsabilidade do Estado a atribuição desse tipo de galardão.

    Além de escritor, ainda foi professor na Universidade de Oxford e na Universidade Complutense de Madrid. Era membro da Real Academia Espanhola e da Royal Society of Literature, desde 2011. Foi também tradutor, sendo de destacar a sua tradução de Tristram Shandy, de Laurence Sterne, que lhe valeu o Prémio Nacional de Tradução em Espanha em 1979.

    Para quem é admirador e leitor habitual de Javier Marías, é provável que esta sua primeira obra de 1971, reeditada em 2007 – e, agora finalmente publicada em Portugal pela Alfaguara, com tradução de Ana Maria Pereirinha – seja, para muitos, um mero exercício de escrita, um primeiro romance, quase juvenil, tal é a inocência e dedicação.

    Porém, convém referir que este livro foi, à época, um marco pelo afastamento do realismo social de Espanha. Por ser um dos primeiros autores da sua geração a distanciar-se dos temas da ditadura de Franco, Javier Marías gerou algum desconforto, o que lhe terá valido fortes críticas e mesmo censura.

    De facto, Marías desloca-se para outros espaços, tempos e realidades. Uma ode ao cinema de Hollywood de então, poder-se-á dizer, dada a manifesta influência que o autor admite ter sentido na Cinémathèque de Henri Langlois, em Paris, para onde fugiu aos 17 anos. Foi nessas salas que passou uma temporada, “o único lugar do mundo em que podia estar em contacto permanente com esse material” (pág. 18).

    O que é de salientar é a qualidade da escrita, apesar da juventude do autor – escreveu-o com 17-18 anos (e publicou-o aos 19). A intensidade da narrativa é um vislumbre do que se seguiria. Um livro que pode ser visto como um ponto de partida para ler e conhecer a profunda obra de Javier Marías.

    Os domínios do lobo resulta de uma série de histórias que se podem ler isoladamente, mas que estão ligadas entre si, pelo desmoronamento da família Taeger, uma família abastada de Pittsburgh, na Pensilvânia. O livro começa com os primeiros problemas, em 1922, sendo possível compreender alguns dos desenlaces em diversas histórias posteriores.

    A estética da tela cinematográfica caminha a par e passo com a crueldade descritiva em alguns momentos, como cruéis foram os tempos da guerra civil estadunidense (ou da Secessão) e da escravatura e da tentativa da sua abolição, entre 1861 e 1865.

    Dos cowboys aos gangsters, da Lei Seca até à mulher fatal do cinema mudo, o livro combina o cinema negro com a tragicomédia que provoca, no leitor, um entusiasmo que só um escritor talentoso consegue transmitir.

    É, pois, uma leitura recomendada para os amantes do cinema de Hollywood, em particular da sua época áurea. Mas igualmente a todos os leitores que querem conhecer ainda melhor a vasta e excelente obra de um dos autores ibéricos mais reconhecidos.

  • As estradas que Bandini tece

    As estradas que Bandini tece

    Título

    Estrada para Los Angeles

    Autor

    JOHN FANTE (tradução: Vasco Gato)

    Editora (Edição)

    Alfaguara (Março de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Estrada para Los Angeles foi escrito em 1933, e é o primeiro de quatro volumes hoje conhecidos como The Bandini Quartet. Os outros são: A Primavera há-de chegar, Pergunta ao Pó, do qual já fizemos recensão, e Os sonhos de Bunker Hill.

    Arturo Bandini tem, neste romance, 18 anos, perdeu o pai e, vivendo com a mãe e a irmã adolescente, Mona, não tem outro remédio senão começar a trabalhar em empregos duros e mal pagos, que ele vai abandonando por vontade própria, ou porque o despedem, uma vez que o seu sonho é ser escritor.

    Entretanto, vai lendo livros da Biblioteca, de autores que não compreende – como Nietzsche e Schopenhauer –, mas que cita a torto e a direito para grande espanto, quer da família, quer dos colegas de trabalho, na sua maioria latinos e asiáticos, que mal sabem falar inglês. Em casa tem uma relação conflituosa com as mulheres da família que não o entendem:

    “ – Onde está a Mona? – perguntei.

    A minha mãe disse-me que ela estava na Igreja e eu disse: – A minha própria irmã reduzida à superstição da prece! Sangue do meu sangue. Uma freira, uma adoradora de Deus! Que barbaridade!

    – Não te ponhas outra vez com essa conversa – disse ela. – Tu não passas de um miúdo que lê demasiados livros.

    – Isso é o que tu pensas – disse eu. – É muito evidente que tens uma obsessão.

    A cara dela empalideceu

    – Uma quê?

    – Esquece – disse eu. – Não vale a pena falar com brancos, saloios, broncos e imbecis. O homem inteligente emprega certas reservas na escolha dos seus ouvintes.”

    E refugia-se no quarto, onde tem uma coleção de revistas pornográficas “Artistas e Modelos”, com fotos de mulheres nuas a quem trata pelo nome e com quem tem grandes conversas: “Passei uma hora a falar com elas, subi às montanhas com a Elaine e fui aos mares do Sul com a Rosa e, por fim, reunido com todas elas espalhadas à minha volta, disse-lhes que não tinha favoritas e que cada uma delas teria a sua oportunidade à vez.”

    E, logo de seguida desilusões: “Porém, daí por um bocado, fiquei extremamente cansado, sentindo-me cada vez mais idiota, até que comecei a odiar a noção de que elas não passavam de fotografias, planas, só com um lado e tão semelhantes na cor e no cheiro. E todas elas cheiravam a puta. (…) Mas que belo super-homem me saíste! E se o Nietzsche te pudesse ver agora? E o Schopenhauer? O que pensaria ele? E o Spengler? Ah! Como o Spengler havia de berrar contigo!”

    É, em suma, um revoltado, auto-proclamado génio literário, ateu, diz-se simpatizante do comunismo russo, tortura caranguejos na praia com uma arma de pressão de ar, e moscas na casa de banho, arrancando-lhes as asas.

    Tem um discurso que, por vezes, raia a loucura ou, pelo menos uma perturbação bipolar e, como escreve na primeira pessoa, temos acesso a essa loucura dentro da cabeça da personagem, enquanto desenvolve discursos megalómanos ou revoltas existenciais. E humor. Muito humor.

    No final do livro, Bandini foge de casa e vai procurar a glória em outras paragens. Deixa-nos os títulos dos livros que sabe que irá escrever, e que lhe vão dar a glória. Faz-nos acreditar nisso. Fante, o autor, deu-lhe razão.

  • O cãozinho riu! De que ri, Bandini?

    O cãozinho riu! De que ri, Bandini?

    Título

    Pergunta ao pó

    Autor

    JOHN FANTE (tradução: Rui Pires Cabral)

    Editora (Edição)

    Alfaguara (Março de 2022)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Arturo Bandini é uma fraude. Arturo Bandini é um fiasco. Arturo Bandini é um sedutor de quem não conseguimos deixar de gostar.

    Trata-se do alter ego do autor John Fante e Pergunta ao pó é um romance semi-autobiográfico. Bandini é um jovem escritor frustrado que conseguiu publicar, numa revista, o conto “O cãozinho riu”, que teve um moderado sucesso e que durante algum tempo lhe alimentou o ego e a vaidade.

    Convencido que teria sucesso como escritor mudou-se do Colorado para um hotel de Los Angeles onde rapidamente cai numa espiral de falta de imaginação, de falta de dinheiro e fome e arrasta-nos com ele:  “nasceste pobre, filho de camponeses depauperados, empurrado para aqui e para ali porque eras pobre, fugido do teu Colorado natal porque eras pobre, e agora erras pelas sarjetas de Los Angeles porque és pobre e esperas escrever um livro que te faça rico, pois aqueles que te odiavam no Colorado deixarão de te odiar se o escreveres”.

    Nessa vertigem o estilo de escrita é avassalador e, por vezes, aqui e ali temos dificuldade em manter o pé porque o autor arrasta-nos para o seu imaginário e temos dificuldade em o distinguir da realidade vivida. “Apavorado por lugares altos também e por sangue e por terremotos; fora isso, bastante corajoso, excetuando a morte, exceto o medo de que eu vá gritar numa multidão, exceto o medo de apendicite, exceto o medo de problemas cardíacos, a tal ponto que, sentado no seu quarto segurando o relógio e apertando a veia jugular, contando as batidas do coração, ouvindo o ronrom e o zunzum do seu estômago. Fora isso, bastante corajoso.”

    Mas o que nos é narrado em Pergunta ao pó não se resume a um relato das privações e agruras sentidas pelo jovem escritor. Que o diga Charles Bukowski, autor do prefácio: “Eu era novo, passava fome, bebia e tentava ser escritor. Fazia a maior parte das minhas leituras na Biblioteca Pública de Los Angeles, no centro da cidade, mas nenhum desses livros parecia ter qualquer relação comigo. (…) Até que um dia, ao abrir um certo livro, encontrei o que procurava. Fiquei ali, de pé, por uns momentos, a ler. Depois, como um homem que descobre uma pepita de ouro, numa lixeira, levei o livro até uma das mesas. As frases corriam ligeiras pela página fora, havia como que um fluir. Cada uma delas tinha uma espécie particular de energia e era seguida por outra semelhante. (…) Eis ali, finalmente, um homem que não temia as emoções. (…) O começo daquele livro foi para mim um violente, um enorme milagre.”

    Faz, de facto, um retrato vívido e vibrante da América dos anos 30. Uma América cheia de contrastes, rica em cores e culturas, mas também de muita miséria, e muito preconceito. Bandini vive intensamente tudo isso. Apaixona-se perdidamente por Camilla Lopez, uma mexicana empregada num café, que frequenta, e tem com ela uma ligação de amor e ódio numa relação conflituosa e desequilibrada, enquadrada por um triângulo amoroso com Sammy, um colega de Camilla.

    Quando recebe algum valor pela publicação de um conto, esbanja-o em roupas caras, bons restaurantes e bares de striptease. E depois tem momentos desconcertantes de sentimentos de ternura, de desespero e de muito humor: “Arturo Bandini sentado em frente à máquina de escrever dois dias seguidos, ininterruptamente, determinado a vingar. Mas não resultou; sofreu o mais longo cerco da mais dura e implacável determinação de toda a sua vida, e não escreveu uma única linha, mas apenas uma palavra, repetida pela página inteira, de cima a baixo, uma palavra só: palmeira, palmeira, palmeira, uma batalha mortal entre a palmeira e eu, e a palmeira ganhou: vi-a lá fora, a balouçar sob o ar azul, a ranger docemente sob o ar azul. Ao fim de dois dias de batalha, a palmeira levou a melhor e eu esgueirei-me pela janela e sentei-me debaixo dela.”

    O romance termina tragicamente na procura de um amor que nunca foi correspondido, e que o fez sofrer, mas também lhe deu alento.

    A tradução de Rui Pires Cabral é irrepreensível. O livro: uma obra-prima.

  • Uma noite em que se descobre o sentido da escrita

    Uma noite em que se descobre o sentido da escrita

    Título

    O perfume das flores à noite

    Autora

    LEÏLA SLIMANI (tradução: Isabel Castro Silva)

    Editora (Edição)

    Alfaguara (Março de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    “Anna Karénina partiu. Estou à espera que volte” – é o que Liev Tolstói terá dito ao seu editor, durante um inquietante período em que a inspiração do escritor russo escasseava. N’O perfume das flores à noite, Leïla Slimani fala-nos sobre como o bloqueio criativo de Tolstói lhe serve de consolo nos momentos em que a autora é assombrada pelo temido writers block. Confidencia-nos os sacrifícios a que obrigam a sua arte. Tece engenhosos argumentos para nos provar que a felicidade não está destinada aos fazem da escrita a sua vida.

    Leïla Slimani, que tem dupla nacionalidade – nasceu em Marrocos, mas rumou a Paris com 17 anos para estudar Ciências Políticas e Estudos Mediáticos –, estreou-se como romancista em 2014, com a obra No jardim do ogre, sendo-lhe logo atribuído o Prémio marroquino La Mamounia. Foi, porém, com o seu segundo romance, Canção Doce, que conseguiu prestígio internacional, com o prémio literário francês Prix Goncourt de 2016. O país dos outros, publicado no ano passado, foi igualmente bem recebido pelos leitores e pela crítica, e valeu-lhe o Grand Prix de l’Héroine Madame Figaro.

    Neste ensaio auto-reflexivo somos engolidos para a intimidade de Slimani, que nos conduz pelos periclitantes caminhos de um romancista. Vislumbramos um universo literário permeado pela solidão e pelo isolamento. A autora não se pinta, contudo, como uma vítima. Pelo contrário. As suas palavras não evidenciam sinais de autocomiseração, mas de resignação. Uma anuência ao que, frequentemente, se chama os ossos do ofício.

    O seu desejo de clausura leva-a a aceitar um convite inusitado para passar uma noite, só e trancada, no Punta della Dogana, um museu de arte em Veneza. E é aí que se desenrolam muitos dos pensamentos que partilha com o leitor. Pelo meio, evoca outros autores, como Virginia Woolf, Haruki Murakami e Emily Dickinson.

    Descobrimos os seus medos e fobias, os seus anseios, as suas idiossincrasias. Desde o receio que a acompanha quando sai de casa, porque o perigo espreita em cada esquina, às injustiças de que o seu pai foi vítima. A inadequação que sente por ser fruto de duas culturas tão diferentes, e não se sentir verdadeiramente parte de nenhuma.

    Ao longo das suas 135 páginas, este ensaio concretiza, sobretudo, a ideia de que a arte é parida a partir do sofrimento. O seguinte trecho evidencia-o bem: “(…) Não acredito que alguém escreva em busca de consolo. Não penso que os meus romances logrem a superação do sentimento de injustiça que vivi. Pelo contrário, um escritor está doentiamente preso às suas dores, aos seus pesadelos. Nada seria mais terrível do que curar-se deles.”

    Aos desabafos e divagações da romancista, juntam-se memórias da sua infância e juventude. Os seus relatos transportam-nos para a adolescência rebelde que viveu na capital marroquina, Rabat. Percebemos que os seus traços eremitas já vêm consigo desde que era criança. Compreendemos, também, como a concepção da mulher como um ser inferior ao homem na cultura misógina em que cresceu, a moldou e contribuiu para que hoje se assuma feminista.

    A história e a autoanálise da autora permite ao leitor uma reflexão. É difícil não vermos um bocadinho de nós em Leïla Slimani. A natureza complexa e paradoxal do ser humano é algo que, inevitavelmente, nos une.

    Para além de escritora, Slimani já foi jornalista, e em 2017 somou outra conquista profissional: foi nomeada representante pessoal do presidente Francês, Emmanuel Macron, como embaixadora para a Francofonia.

    Leïla Slimani será, decerto, uma mais-valia como diplomata. E terá sido, com certeza, também uma excelente jornalista. Contudo, o seu novo livro demonstra o seguinte: faça o que fizer, jamais deve deixar de articular palavras. O Mundo perderia uma brilhante escritora.