Etiqueta: Albatroz

  • Amar sem amarras

    Amar sem amarras

    Título

    Reflexões sobre a liberdade, identidades e famílias

    Autor

    VÁRIOS

    Editora

    Oficina do Livro (Agosto de 2024)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Não foi de propósito. Calhou assim, na mesma edição fazer recensão de um segundo livro que serve como ‘repelente’ de libertários e conservadores. A capa do livro é enganadora. Lendo o título, pensamos estar perante um daqueles livros das associações de famílias numerosas ou cristãs, das que defendem as chamadas famílias tradicionais, que, em Portugal, assumem tantas formas quanto o número de géneros inventados que já existem na comunidade LGBTxpto. Existe a ‘família tradicional’ sem amante, com amante. Com ‘afilhados’ e ‘afilhadas’. Com divorciados recasados. Com uniões de facto. Com casais que já não se amam há demasiado tempo. Etc. Etc. 

    Mas não é um livro desses, em defesa dos ‘valores’ das ‘famílias tradicionais’, dos ‘bons costumes’, nem do respeito pelos ensinamentos bíblicos. Só percebemos isso quando colocamos os óculos e lemos, à cabeça, o nome de Joana Mortágua na lista de coordenadoras da obra. Mais abaixo, saltam nomes como o de Fernanda Câncio, Catarina Furtado, Daniel Oliveira, Maria Leonor Beleza, Pedro Strecht, … É um daqueles livros que transpira a enganadora palavra ‘progressista’ quer queira, quer não. 

    Esteticamente, considero o livro feio e não me é fácil usar este adjectivo aplicado a um livro. Mas é. Por isso, achei que seria um desses livros ‘sóbrios’ para famílias cristãs, com fundo bege e letras garrafais em grená escuro e a palavra ‘famílias’ ali a rondar. Depois, está escrito com letras cinzentas. Sim, leu bem. Quando abri o livro até pensei estar com os óculos sujos e a ver desfocado, mas não. Era mesmo do livro e nem com anos de ioga ocular conseguiria ler melhor esta obra com letras desta cor. É como tentar compreender algumas etiquetas de roupa desbotadas, sendo que, inevitavelmente, após uns segundos de esforço, se decide colocar tudo junto a lavar na máquina, no programa para ‘algodão’, e rezar. 

    Debruçando-me sobre o conteúdo, os textos parecem mesmo ter sido escritos pelos autores mencionados, admitindo, aqui e ali, alguma ‘ajuda’ de escritores-fantasma ou de um jornalista ‘amigo’, que nem todos nasceram com o dom da prosa e alguns, tendo-a, têm mais o que fazer com o tempo (que é dinheiro). Quanto aos temas que aborda, considero-os pertinentes e relevantes. Vários textos abordam o tema da interrupção voluntária da gravidez, que, sendo-se a favor ou contra, é uma realidade na sociedade, que afecta muitas mulheres. Não falta a questão da inclusão e da comunidade LGBT+nãoseiquê. (O ser humano gosta de complicar o que é, por natureza, simples). 

    Nos dias que correm, a tolerância voltou a ser um tema no mundo ocidental, tal como a inclusão, nomeadamente direccionada para a comunidade transgénero. Mas, de fora, está, por exemplo, a defesa e protecção de meninas, raparigas e mulheres, que perdem privacidade e espaços seguros, perdem lugares em pódios e na meta, em nome de uma ideologia que mete impressão, sobretudo, às amigas lésbicas e amigos gay. Por outro lado, alguns destes nomes que escrevem palavras como ‘inclusão’ e ‘diversidade’, defenderam a segregação insana, anti-científica e criminosa durante a pandemia. Ou seja, defendem que a mulher é dona do seu corpo e cada um escolhe o género que quiser, desde que aceite ser forçado a tomar fármacos e a usar máscara facial, mesmo que a Ciência tenha uma palavra diferente a dizer. O consentimento, afinal, é só para a ‘cama’? Onde estão os direitos humanos quando há coacção e invasão do corpo? Ou quando se invade a privacidade e o ‘mundo interior’ de crianças e jovens com perguntas pornográficas nas escolas, sem conhecimento das famílias?

    Com este aparte, recomendo a leitura deste livro, sobretudo se se discordar do direito à interrupção voluntária da gravidez ou do direito a assumir o género que se quiser. Ouvir versões da realidade diferentes das nossas e outras visões do mundo é uma forma de nos mantermos despertos e atentos, conscientes, e activar o botão do diálogo e a ponte para a empatia. Do mesmo modo, quem se preocupa com questões como inclusão e tolerância, vale a pena ler alguns dos textos que integram esta obra.  As letras do livro até podem ser cinzentas e estar desbotadas, mas o mundo também não é a preto e branco. (Nem feito de unicórnios e arco-íris de manhã à noite).

  • O fim da submissão

    O fim da submissão

    Título

    Como construir um barco

    Autora

    ELAINE FEENEY 

    Editora

    D. Quixote (Julho de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Peguei no livro e saí a correr. Só mais tarde, quando me sentei para o ler, me dei conta do equívoco. Pensava que era um livro sobre como construir um barco. Literalmente. Daqueles livros práticos sobre ‘como fazer sozinho’. Não era. Não sei porque me equivoquei. Afinal, bastava olhar para a capa com reduzida atenção para perceber que se trata de uma obra de ficção. A etiqueta que diz que a obra foi nomeada para o The Booker Prize de 2023 era outra pista esclarecedora. Não estou a ver um livro que ensine a construir um barco a ser nomeado para um prémio do género (por muito que adore livros práticos sobre como fazer coisas). Adiante, ultrapassado o meu espanto (parvo) causado pela desatenção, aceito a situação: tinha um romance pela frente para ler.

    A capa era auspiciosa. Além da etiqueta de nomeação para o tal prémio, tinha uma recomendação de um vencedor do The Booker Prize, Douglas Stuart. Diz que se trata de “um romance cheio de esperança e de humanidade”. Na contracapa, prossegue: diz que é uma “daqueles raros livros que nos fazem sentir menos sós” e que se trata de “uma história inspiradora sobre uma comunidade e as pequenas coisas que podem mudar uma vida.”

    Não consegui ler o livro sentada, sossegada. Mexi-me muitas vezes no meu lugar no sofá. Para alguns, será talvez menos fácil de ler. (Percebi, depois, que a autora publicou também obras de poesia e teatro, o que explica alguns dos caminhos que percorreu para contar esta história.) Alguns parágrafos ganham vida e as palavras escorregam para as linhas seguintes, em sequência, exigindo atenção e abertura mental. Reli algumas partes para ver se tinha compreendido bem (mas admito que possa ser, também, feitio meu e da minha ocasional parca concentração). Acredito que cada um, seja neurodivergente ou neurotípico, ‘ouve’ as palavras que lê de forma única e compreende (ou não) e vivencia de modo próprio cada história, cada linha. 

    Posto isto, acabei a marcar várias páginas para as mencionar ao leitor desta recensão. Só tinha o marcador que vem com o livro e uma caneta. Acabei por marcar as restantes páginas com as caixinhas compridas de incenso que tinha comprado e que ainda aguardavam na almofada do sofá para ir para o armário. O resultado foi um livro gordo (mas sem páginas dobradas) e com as páginas devidamente seleccionadas.

    A obra tem como personagem central um rapaz, Jamie O’Neill, com 13 anos, que tem dois desejos ou sonhos. Mas seria muito redutor dizer que é disto que o livro trata. Entre histórias de personagens paralelas e o percurso do rapaz, há muitas enseadas, ondas, mergulhos, marés baixas e altas e redemoinhos.  O leitor é confrontado consigo próprio e com a sua vida (eu, pelo menos, fui). Simples frases levam-nos em viagens por novos mares, que não os do enredo do livro. Como no parágrafo que fala que a construção de um barco não é um processo aleatório, “tem muitas fases, vamos eliminar todas as irregularidades” e, “se alguma coisa estiver mal feita, a camada seguinte vai revelá-lo”. Como a vida? Ou o parágrafo que diz que “tudo o que é bom começa com um bom impulso”. Ou aquele que garante que “para criar é preciso sentir-se e estar desconfortável, e por vezes sentir-te-ás desacompanhado”. (Fico por aqui e, afinal, não precisava usar todas as caixinhas de incenso como marcador.) 

    Concluindo, tirando-se os inúmeros “foda-se” e “merda”, que detesto (distraem-me na leitura como uma mosca a ziguezaguear junto aos olhos), é um livro a ler. Com calma e paciência, devagar. O ‘slow reading‘, que é avesso ao consumo de papa-livros de Verão para mostrar, depois, nas redes sociais, a foto da pilha de obras lidas). Mas também esses leitores o lerão bem. Com asneiras e tudo (ou, sobretudo, porque as asneiras talvez ainda estejam na moda, não só na capa de livros, como no seu interior).   

  • Iscas com batatas cozidas (e laranja com açúcar no fim)

    Iscas com batatas cozidas (e laranja com açúcar no fim)

    Título

    Conhece-te a ti próprio

    Autora

    NICOLE LePERA (tradução: Maria do Carmo Figueira)

    Editora

    Albatroz (Junho de 2024)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Olhando para a capa, compraria este livro só pela promessa de ter meditações guiadas. Depois, vejo no topo da capa que o livro vem recomendado por alguém que se chama Inês Gaya. Torço o nariz. Soa-me a uma daquelas pessoas ‘namasté’, que amam todos, mas fazem compras na Shein e mudam o nome porque traz boas vibrações. (E, se calhar, não é nada disto e estou a projectar, só que não compro na Shein nem mudei de nome… ainda). Desconfio desse tipo de gente como das pessoas que “adoram animais”, menos ao sábado de manhã no talho. Há que haver coerência.

    Depois, pergunto-me: será que todos se deveriam conhecer a si próprios? Será seguro? Há pessoas que começam com um livro para se conhecerem melhor a si próprias e a seguir divorciam-se e acabam a frequentar as feiras de roupa vintage, a pensar que isso é ‘cool’, sobretudo com o cheiro a mofo e os preços proibitivos das calças à Bee Gees (e eu gosto de Bee Gees).

    Para piorar, na capa diz que a autora é ‘bestseller’ e tem mais de oito milhões de seguidores. Há muita gente de que me consigo lembrar que tem muitos seguidores, mas isso não é bom.

    Na contracapa, anuncia que o livro é interactivo e oferece um roteiro prático para a autocura. E diz que a autora é uma psicóloga holística. Apesar dos clichés, resolvi dar uma hipótese ao livro, até porque tinha esta recensão para escrever.

    Ao melhor estilo ‘New Age’, resolvi abrir o livro numa página ao calhas e ver o que me saía na rifa. Fui cair na página 212: “Conheça a sua dependência emocional”. Caramba. “As nossas narrativas, os nossos comportamentos, e as nossas respostas autónomas são desencadeadas por ciclos de activação do sistema nervoso”.

    Decido tentar outra, a ver se me sai uma menos difícil. Abro na página 158: “Conheça o seu ego”. Afinal, prefiro a outra anterior.

    Este livro é para trabalhar. Vai dar trabalho. As meditações era só como aquela laranja com açúcar que a mãe prometia se comesse as iscas todas, com as batatas cozidas e tudo. Era engolir, fechando as narinas, para não sentir o sabor. 

    Acabo a tentar uma terceira página e caio na 153: “Ferida da criança interior”. Continuo a preferir a da dependência emocional (apesar de estar tudo ligado, como no Universo).

    Tirando o tom ‘namasté’ da capa e o texto cliché da contracapa, é um livro para partir pedra interior. Ou desentupir canos mentais e emocionais. O faça você mesmo, mas sem tutorial no Youtube. Sem bonecos para pintar, nem cartas de deusas e de arquétipos para responder às nossas perguntas e nos guiarem.

    Fazer tudo o que propõe este livro, levaria anos e anos. Décadas. Uma vida. Melhor orar e pedir a Jesus para ajudar a libertar os fardos, curar a criança interior a acabar com as dependências emocionais. O pior é se Jesus envia este livro para a nossa mesa de cabeceira. (Caramba…)

  • Não pensar: a via para a iluminação

    Não pensar: a via para a iluminação

    Título

    O caminho do Zen

    Autor

    ALAN WATTS (tradução: Alexandra Guimarães)

    Editora (Edição)

    Albatroz (Setembro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Alan Watts foi um filósofo britânico, reconhecido por ter sido um dos primeiros a interpretar a sabedoria do Oriente, incluindo o budismo zen e o taoísmo, contribuindo para a sua divulgação no mundo ocidental. Nascido em 1915 em Chislehurst, Inglaterra, faz 50 anos, a 16 de novembro, que morreu em 1973 nos Estados Unidos.

    Em 1951 mudou-se para São Francisco, onde começou a ensinar estudos budistas, e em 1956 começou o seu popular programa de rádio, “Way Beyond the West”. No início dos anos 1960, já a viver em São Francisco, as suas palestras, na rádio, eram transmitidas a nível nacional e o movimento da contracultura adoptou-o como porta-voz espiritual.

    A sua abordagem única à filosofia e espiritualidade fez dele um dos pensadores mais populares e amados do seu tempo, sendo este O caminho do Zen um dos seus principais contributos. Esta obra, agora publicada pela Albatroz (original de 1957), é uma leitura muito útil para quem está interessado em aprender sobre a filosofia do Zen e, porventura, a iniciar-se nesse caminho.

    Tendo em conta que o livro foi publicado na década de 1950, poderá parecer, em alguns momentos, desactualizado. Não tanto pelo tema, ancestral, mas eventualmente pelo interesse que um leitor submerso numa vida pautada pelos valores da produtividade, o trabalho como condição humana, ou pelo flagelo do imediatismo e pragmatismo da contemporaneidade, lhe possa consignar. Nada disto tem lugar no Tao – uma das grandes influências da prática Zen, ainda que pouco ou nada se possa afirmar sobre esta filosofia, pois

    “Aqueles que sabem não falam; Aqueles que falam não sabem” (pág. 13).

    Pese embora a sua manifesta cautela, Alan Watts explora a tradição filosófica e religiosa chinesa que se concentra no entendimento e na harmonia com o Tao, ou o Caminho, com o objectivo de resgatar a sua influência na prática do Zen – uma escola de pensamento e prática budista que se desenvolveu a partir do Mahayana.

    O autor inicia este ensaio histórico-filosófico descrevendo e explicando o Taoísmo e o Budismo Mahayana. Sempre com a ressalva de que

    “O Tao é algo turvo e indistinto, Tão indistinto! Tão turvo! (…)

    A qualidade das fontes a que o autor recorre e o seu trabalho exaustivo sobre a filosofia e espiritualidade orientais tornam esta obra especialmente valiosa. Está bem evidente, ao longo de todo o livro, que Alan Watts tem, como principal objectivo e até mesmo como missão, o desejo de que o leitor sinta curiosidade em pesquisar e pôr em prática alguns dos preceitos do Zen.

    Antes disso, porém, é necessário que nós, leitores ocidentais, ultrapassemos um dos grandes obstáculos à nossa própria compreensão, nomeadamente o pensamento dualista e a linguagem eminentemente classificatória. É neste contexto que o autor contrasta o pensamento oriental com o ocidental, salientando que o taoísmo está relacionado com a espontaneidade e o desapego, tão difícil ao conhecimento convencional do Ocidente.

    Watts aborda, então, a importância do paradoxo e da não dualidade no Zen, realçando que, muitas vezes, as respostas para as questões mais profundas não podem ser explicadas verbalmente, podendo ser compreendidas somente pela experiência directa. Isto significa que o caminho do Zen não pode ser descoberto pela aquisição de conhecimento ou pelo pensamento, na medida em que é algo que está além da existência material, por isso, indizível – um dos paradoxos do Zen.

    Assim, ter como objectivo o “despertar” ou ser iluminado é, paradoxalmente, deixar de tentar alcançar o Caminho – tão-somente por se ter pensado nisso de forma convencional. Para saber o que é o Zen e, sobretudo, o que não é, a única alternativa é a sua prática, a sua experienciação.

    É na parte final do livro que Alan Watts dá exemplos de práticas do Zen e de como a sua vivência e experiência directa – fundamental neste caminho – podem conduzir a uma certa ‘ideia’ de iluminação, independentemente das crenças religiosas. O autor enfatiza, ainda, a importância da meditação como uma prática central no Zen – uma forma de acalmar a mente e alcançar uma compreensão mais profunda da realidade.

    Algumas das artes descritas pelo autor, e por intermédio das quais se pode experimentar o Zen, são o haiku, a caligrafia, a jardinagem, a cerimónia do chá, a pintura e o tiro com arco. Fica o convite.