Etiqueta: A História Possível de Benguela

  • Um cemitério de ilusões

    Um cemitério de ilusões


    Artur Matos costumava acreditar que as dificuldades enfrentadas pelos navegadores portugueses na costa africana tinham sido, por si só, uma prova de resiliência e génio. Quer dizer, até começar a trabalhar com Elias Mukuba, para quem as “dificuldades” dos colonizadores eram um eufemismo irritante para descrever a brutalidade das expedições e o impacto devastador sobre as populações locais. Já se começara a habituar, mas continuava a ser um cabo de guerra constante: Artur tentava enfatizar os perigos da empreitada em tempos inóspitos, Mukuba insistia que o verdadeiro perigo fora trazido pelos próprios portugueses.

    O capítulo que Artur estivera a redigir durante mais de uma semana abordava o fracasso da colonização inicial de Benguela. Descrevera como as expectativas ambiciosas de Paulo Dias de Novais e, mais tarde, de Manuel Cerveira Pereira tinham dado lugar a uma realidade de desastres logísticos, doenças e conflitos com os sobas locais. Era uma narrativa que misturava tragédia e ironia, mas pressentia que Mukuba desejaria que fosse transformado numa lição de moral.

    Por isso, Artur não conseguia deixar de se sentir dividido enquanto escrevia. Parecia-lhe claro que a narrativa histórica, mesmo quando embasada em factos, teria sempre, pelo menos aos olhos do seu editor, um prisma interpretativo. E, como escritor, teria de encontrar um equilíbrio, mesmo se a responsabilidade de escolher as palavras servia também para moldar percepções. Havia dias em que sentia que estava apenas a esculpir sombras, contornos de verdades, mas nunca a totalidade.

    Chegou o dia daquilo que Artur começou a denominar “revisão”, ou seja, os encontros com o editor, após lhe enviar o manuscrito uns dias antes.

    – Matos, o seu texto faz com que estes homens pareçam heróis trágicos. – Mukuba disparou logo que Artur abriu a porta.

    Esticou-lhe o manuscrito. Estava densamente sublinhado; passagens com uma força exagerada da caneta vermelha, quase rasgando o papel.

    – Colocou os portugueses como se fossem mártires numa cruzada gloriosa. Já parou para pensar que os nativos eram aqui as vítimas, e não os seus patrícios os protagonistas desta tua epopeia de falhanços?

    Artur levantou o olhar. As palavras de Mukuba tinham um peso que ressoava, porque ele sabia que, em parte, eram verdadeiras. Mas sentia também que existia uma necessidade de olhar para os eventos com as lentes da complexidade, reconhecendo não apenas o sofrimento infligido, mas também os paradoxos dos que infligiam.

    – Elias, estou apenas a relatar os factos. – Artur tentava manter a calma, mas sentia o estômago a apertar. – Sim, eles enfrentaram doenças, dificuldades e hostilidade local. Isso é inegável. Não estou a dizer que foram mártires, mas também não posso ignorar que as condições eram extremamente adversas.

    – Adversas para quem, Matos? Para os homens que chegaram em navios armados e deixaram destruição por onde passaram? Ou para as populações que já estavam ali, a viver tranquilamente, até que apareceram os tais “exploradores”?

    Eis o dilema do historiador: descrever a História pelos factos, ou pela ética? Este pensamento rondava agora a mente de Artur Matos, desde que conhecera Elias Mukuba, como uma sombra persistente, mesmo se se esforçava para conciliar duas perspectivas irreconciliáveis: a dos vencedores, com as suas narrativas de poder e progresso, e a dos vencidos, cujas vozes muitas vezes se perdiam entre os escombros do tempo. Mas, afinal, quem são os vencedores e os vencidos?

    Artur sabia que os factos eram o ponto de partida inegável de qualquer narrativa histórica. Datas, nomes, eventos: eram pilares sólidos, ou pelo menos assim pareciam. Mas os factos raramente são neutros. A escolha de quais factos incluir, de como os enquadrar, de que voz privilegiar ao narrá-los; tudo isso é um acto de interpretação que inevitavelmente reflecte valores e prioridades. Mais do que descrever o que aconteceu, o historiador tinha de decidir o que significava.

    Mas a ética, essa companheira incómoda, se lhe abrem a porta, não permite que o historiador se refugie na neutralidade aparente dos factos. Havia algo de perturbador em relatar a violência, o sofrimento, a exploração, sem uma perspectiva crítica. Artur sabia que a História estava cheia de horrores perpetrados sob a bandeira do progresso, mas como capturar a humanidade das vítimas sem cair na armadilha de demonizar todos os que estavam do outro lado?

    Esse dilema começara a manifestar-se em cada linha que escrevia sobre Benguela. Relatar as dificuldades enfrentadas pelos colonizadores portugueses poderia ser interpretado como uma tentativa de gerar simpatia por aqueles que, afinal, eram os invasores. Por outro lado, enfatizar apenas os horrores infligidos aos nativos corria o risco de reduzir os acontecimentos a uma batalha simplista entre bons e maus.

    Artur queria explicar esses dilemas a Mukuba, mas o editor continuava no ataque.

    – Olhe para isto. – Mukuba apontou para um parágrafo que descrevia a escolha de Cerveira Pereira de fundar São Filipe de Benguela num local que mais tarde se revelou insalubre. – Aqui, escreve: “Os sonhos de Cerveira Pereira foram afogados pelos pântanos e pelas febres.” Sonhos, Matos? Sonhos? Este homem chegou, queimou aldeias, matou nativos e roubou terras. E chama a isto sonho?

    – É uma figura de estilo, Elias. – Artur suspirou. – Não estou a glorificar o homem. Estou a descrever a ironia do fracasso dele.

    Mukuba inclinou-se para trás na cadeira e olhou para Artur com uma expressão que era metade exasperação, metade diversão.

    – Ironia, diz? A verdadeira ironia, Matos, é que eles achavam que estavam a civilizar, mas acabaram a construir a sua própria sepultura. Benguela tornou-se um cemitério de brancos porque eles não entendiam a terra, não respeitavam o clima, e, acima de tudo, porque estavam cegos pela ganância.

    Artur ficou em silêncio, reflectindo. Havia algo profundamente desconcertante naquela visão. Ele sempre vira os colonizadores como figuras de uma tragédia maior, mas Mukuba conseguia despir a narrativa de qualquer resquício de simpatia. Não havia tragédia em quem vê na exploração uma escolha deliberada. Esse ponto o perturbava mais do que queria admitir.

    Saiu da reunião pouco depois, com as folhas avermelhadas de sublinhados e nota para “reflexão”, vincara o editor. Artur passou as duas semanas seguintes a reescrever o capítulo, tentando encontrar um equilíbrio entre a crítica às acções dos colonizadores e a contextualização histórica das suas motivações, descrevendo como os portugueses, ao tentarem transformar Benguela num posto avançado lucrativo, enfrentaram uma resistência feroz dos sobas locais, além do confronto com a Natureza, ou melhor, com a malária que dizimava as tropas, alimentando os motins internos por força do desespero e da desorganização.

    Quando enviou, de novo o manuscrito, recebeu três dias depois um telefonema de Mukuba.

    – A parte dos motins contra Cerveira Pereira parece-me interessante, excepto a classificação: escreveu que ele foi “vítima de insubordinação.” Mas não menciona que essa insubordinação veio de soldados que estavam a morrer de fome e de doença, enquanto esse homem acumulava escravos e riquezas pessoais.

    – Está implícito – retorquiu Artur, embora sabendo que Mukuba não aceitaria esse argumento.

    – Implícito? Matos, esse é exactamente o problema. A História nunca é explícita sobre o que os poderosos fazem de errado. Está sempre tudo nas entrelinhas. E sabe quem é que nunca lê as entrelinhas? As pessoas para quem vocês, escritores brancos, escrevem.

    Artur ficou calado por um momento. Sentia na pele a cor da sua pele. O editor continuou:

    – Ok, Elias. O que sugere, então?

    – Sugiro que deixe os seus “sonhos” e “ironia” de lado e que sejas honesto. Escreva como foi: um grupo de homens que chegou para roubar terras, matar pessoas e falhou miseravelmente. É isso que quero ver neste capítulo.

    Telefone desligado, Artur Matos sentiu-se também derrotado, e assim despachou a versão final em três tempos, iniciando o capítulo com uma frase que sabia que Mukuba aprovaria: “Benguela tornou-se a tumba de quem chegou para transformar sonhos de conquista em pilhagem.”

    No manuscrito que, pouco depois, enviou ao editor, estava lá tudo: os detalhes das batalhas, das alianças instáveis com sobas locais e da doença que devastava tanto portugueses quanto nativos, destacando em detalhe episódios particularmente sombrios, como a destruição de libatas inteiras como represália por ataques aos soldados portugueses, mas também a resistência local e da terra.

    Quando reencontrou o editor, Artur estava confiante de que agradaria a Elias Mukuba:

    – Este capítulo tem potencial, Matos. Mas ainda falta uma coisa – disse-lhe um sorridente Elias.

    – O quê? – perguntou Artur, já receoso.

    – A voz dos que resistiram. Não basta dizer que resistiram; quero saber como. Quero ouvir o soba que enfrentou Cerveira Pereira. Quero que a resistência tenha um rosto.

    Artur sabia que já nem valia a pena argumentar, assentiu, pegou no manuscrito e regressou a casa. No dia seguinte, adicionou um diálogo ficcional entre Cerveira Pereira e um soba chamado Cangombe. No texto, o soba confrontava o governador português, dizendo-lhe: “Os vossos canhões podem derrubar as nossas casas, mas nunca vão compreender a nossa terra. E é por isso que ela vos vai devorar”.

    Poucas horas depois de ter enviado a última versão do terceiro capítulo, a secretária de Elias Mukuba ligou-lhe.

    – O doutor pediu-me para lhe dizer: “agora sim, agora estamos a chegar lá”.

    [continua…]


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  • A ingénua busca do Eldorado

    A ingénua busca do Eldorado


    Infiltrara-se em Artur Matos uma inquietação quase impercetível desde que aceitara a encomenda de Elias Mukuba. Não era apenas o peso da tarefa, ou as sugestões habilidosas do angolano que se impunham como exigências. Era algo mais profundo, uma sensação persistente, uma moinha incómoda que o observava com um olhar inquisidor e de desconfiança sempre que estava não apenas a escrever, mas também a respirar.

    Embora estivesse em África há mais de dois anos, somente na primeira conversa com Mukuba, e consequente início da feitura do livro, Artur sentiu que estar numa terra outrora subjugada pelos seus antepassados era uma forma de exílio peculiar. Não era exilado de um território físico, mas de um lugar onde a sua voz pudesse ser ouvida sem suspeição.

    Essa desconfiança, compreensível e desconfortável, andava agora a assombrá-lo. Reconhecia que, como português, carregava o fardo de uma História que nunca vivera, mas cuja sombra parecia inevitavelmente moldar a sua presença. Mais do que uma barreira de comunicação, era um abismo moral. Como alguém que herdou o privilégio e a memória selectiva de uma potência colonial, poderia ele contar a História de Benguela com a autenticidade que Mukuba exigia?

    A questão não era apenas intelectual; era visceral, uma colisão entre a vontade de narrar e a impossibilidade de o fazer sem ser julgado. Artur tentava racionalizar o paradoxo. Afinal, as palavras eram livres, não eram? A linguagem, pensava ele, constituía, assim com esse tom formal, a ferramenta universal para superar as barreiras da História e das identidades. Porém, esta certeza tremia, ou soçobrava mesmo, quando confrontada com a verdade de que as palavras que escolhia carregavam o peso das escolhas que outros fizeram antes dele.

    Por exemplo, como explicar, sem paternalismo, sem nostalgia ou heroísmo, o avanço dos portugueses pela costa africana? Como descrever sem cair no erro de romantizar o roubo ou de demonizar a sobrevivência? Cada linha que escrevia parecia uma ponte frágil sobre águas tumultuosas.

    E havia ainda a questão da vontade própria. Mukuba, com a sua presença imponente e as críticas afiadas, tinha um poder que não era apenas editorial. Ele era o filtro entre Artur e o público. Seria possível encontrar a verdade na História de Benguela sem essa verdade relatada por um escritor alóctone passar pelo crivo de um editor autóctone? Artur já se conformara que, ali, não se livraria de responder, ou corresponder, a vontades alheias, tanto as de Mukuba quanto as da História maior que pairava sobre ambos.

    E foi nesse estado de espírito que Artur escreveu, reescreveu, reformulou, poliu e refinou o segundo capítulo da História de Benguela, embora ciente de que qualquer palavra arriscaria ser palco de uma batalha entre o que queria dizer e o que seria aceite.

    Os portugueses foram, de facto, os primeiros a olhar para a costa africana com os olhos gulosos de quem procura tesouros onde antes havia apenas lendas”. Esta frase inicial, tão cuidadosamente pensada, permanecia no texto, mas já lhe parecia carregar uma intenção com diversas leituras. Artur sabia que as palavras não podiam apenas relatar os factos; precisavam de reconhecer as nuances, os desalinhamentos de poder e as perspetivas que eram frequentemente varridas para debaixo do tapete.

    Portanto, na reunião semanal, foi ali logo que Mukuba encalhou.

    – “Tesouros onde antes havia apenas lendas”? – começou, pousando o manuscrito com uma leveza que desmentia o peso das suas palavras. – Parece-me, Matos, que continua a escrever com os olhos cobiçosos dos seus antepassados, de quem chegou para explorar, e não de quem sofreu a exploração.

    Artur, já habituado às críticas, manteve a compostura. Sabia que responder impulsivamente seria um erro.

    – É uma forma de enquadrar a perspectiva europeia sem a endossar – argumentou, controlando a voz. – Não digo que havia apenas lendas, mas que era assim que os navegadores viam a costa. Para eles, era um mapa em branco, mesmo que não fosse. Acreditavam que a seguir ao Bojador, o abismo os engoliria…

    Mukuba inclinou-se para a frente, os olhos semicerrados como se tentasse avaliar até onde Artur acreditava naquilo que dizia.

    – Muito bem, mas pergunto: e para os que viviam aqui? Acha que o “mapa em branco” não tinha já marcas de sangue, comércio e pertença? É isso que tem de mostrar, Matos. Senão, o seu texto será só mais um a perpetuar a história de uns indignos vencedores.

    Artur não tinha resposta imediata, mas percebias as razões de Mukuba. A dificuldade estava, porém, em encontrar a forma de equilibrar a narrativa, que mostrasse, sem ofender mais, que existiam diferenças de tecnologia, de avanço entre europeus e africanos naquelas épocas. Manteve-se calado, a escutar enquanto o editor dissertava.

    – Matos – continuou Mukuba, já num tom de quem conversa com um adolescente preguiçoso –, “tesouro” não é apenas ouro, prata e pedras preciosas. Para os povos que aqui viviam já, o tesouro era a terra. Ou acha que as conchas, o peixe, os zimbos, e até o sal não tinham valor? Tem de abandonar a lente do navegador europeu.

    Artur respirou fundo. De todas as frases que ouvira até então, esta era a que mais o enervava. “A lente do navegador europeu” era quase um insulto, e Mukuba detinha um talento especial para atingir nervos expostos. Artur viu-se a reagir.

    – Elias, desculpe dizer-lhe, mas se a tarefa é contar a História de Benguela, tem de se começar com os navegadores. Foram eles os primeiros a registar, em escrita, o que encontraram.

    Mukuba apoiou-se na cadeira, os dedos entrelaçados em frente ao rosto, os olhos semicerrados como se fosse um professor cansado das desculpas de um aluno.

    – E os que já estavam lá, Matos? Não percebe que a História já estava escrita, mesmo que não com a sua preciosa tinta europeia? – Mukuba inclinou-se ligeiramente, os dedos a tamborilar na mesa. – Cada sulco no chão, cada canção que ecoava nas libatas, era já uma linha dessa história. Vocês, europeus, só chegaram e rasgaram as páginas.

    Artur abriu a boca para ripostar, mas Mukuba levantou a mão num gesto que dizia, sem palavras, que ele ainda não tinha acabado.

    – E já agora, se vai usar o termo “temeridade”, explica-me isto: o que é mais temerário, Matos? Navegar mares desconhecidos ou sobreviver ao saque e à pilhagem de invasores que chegam com armamento que nunca viram na vida?

    Caiu um silêncio na sala. Elias gostava de pausas dramáticas, mas Artur não lhe queria dar o prazer de o sentir intimidado. Ajustou os papéis que tinha à frente como quem afirma que ainda detém o controlo.

    – Concordo que sobreviver é bastante temerário nessas circunstâncias – concedeu Artur, sabendo que, em situações como aquela, a diplomacia era uma excelente maneira de salvar o pouco de auto-estima que ainda tinha, sentindo que os dólares lhe faziam falta se não os tivesse. – Mas isso não anula o feito de desafiar o Cabo Bojador. A História tem de reconhecer que havia coragem e ousadia no gesto dos portugueses.

    Elias soltou uma gargalhada seca.

    – Claro. Coragem e ousadia. Foi isso que motivou Gil Eanes e os seus patrícios – ironizou Mukuba, com um riso seco. – Coragem e ousadia. Não foi a vontade de agradar ao rei nem a ganância de ser o primeiro a trazer boas novas. Não, foi coragem pura, e a límpida ousados, virtudes desinteressadas, quase angelicais.

    Artur não respondeu, desviou o olhar, ajustando os papéis à sua frente. Começara a habituar-se àironia afiada de Elias. Em vez de contra-argumentar, quis que ele avançasse para os parágrafos seguintes, onde nenhum tom apologético sobressaía. Artur mergulhara em relatos precisos sobre as primeiras viagens de Diogo Cão, que em 1483 avistara a foz do rio Congo. Era impossível, julgava, não se fascinar com os detalhes: os padrões erguidos nas praias, as trocas hesitantes entre marinheiros e nativos, e até a audácia de levar reféns para Portugal, como se fossem amostras de uma terra distante. Era História pura, com todas as suas contradições.

    Mas, claro, Mukuba tinha as suas opiniões.

    – A sua narração parece um diário de aventura, Matos. – Ele apontava com o lápis para o parágrafo onde Artur descrevia os “encontros cautelosos” de Diogo Cão com os nativos. – “Cautelosos” é uma palavra gentil, não acha? Especialmente quando sabemos que esses encontros acabavam com reféns e pilhagens.

    – Elias, tentei equilibrar o tom. Se for demasiado crítico ou cáustico, ninguém vai ler isto sem pensar que é propaganda.

    – Propaganda, Matos? Chamar as coisas pelo nome é propaganda? Se os portugueses capturaram pessoas, então escreva: capturaram. Não diga “acolheram” ou “receberam”. Escreva: roubaram.

    Artur saiu da reunião com mais um maço de dólares, e enfiou-se em casa. E assim os padrões deixaram de ser símbolos de progresso para maculados marcos de uma posse ilegítima. E as viagens, que antes soavam como jornadas heróicas, tornaram-se episódios de exploração mascarados de descoberta.

    Dias depois, enviada a versão revistas, Mukuba ligou-lhe.

    – Vê, Matos? Nem eles encontraram o ouro que procuravam até Angola, e isso porque estavam cegos pela ganância. A verdadeira riqueza de África sempre esteve nas pessoas, na terra, na cultura. Mas isso nunca foi suficiente, pois não?

    Artur não respondeu logo. No outro lado da linha, fechou os olhos por um momento, tentando não explodir.

    – Elias, este livro tem de ser um diálogo entre o que sabemos hoje e o que foi feito na altura – retorquiu Artur, controlando a voz –. Não posso mudar o passado. Só posso contar a História.

    – Mas a História tem sempre duas faces: uma História certa e a uma História errada, Matos. E a História certa não é só a dos conquistadores; é a de quem resistiu.

    No final, mais uns dias transcorridos, o segundo capítulo tornou-se uma narrativa de desencontros. Relendo o texto antes de o enviar a Mukuba, Artur sentia um desconforto crescente, como se cada frase cedida fosse também uma concessão da sua integridade enquanto escritor. Era verdade que o texto estava mais equilibrado, mais sensível às vozes e sensibilidades de quem resistira, mas a sensação de perda da sua autonomia permanecia.

    Ele questionava-se: onde terminava a honestidade histórica e começava a imposição de uma narrativa alheia? Seria ele um escritor genuíno ou apenas um escriba a soldo, como constava terem sido os cronistas de antanho, moldando as palavras para agradar à crítica do poder e às expectativas de uma leitura contemporânea? Cada linha parecia agora carregada de um peso que não lhe pertencia inteiramente, como se a sua voz fosse agora somente um fino eco moldado pelas vontades alheias.

    Ao ceder à inclusão do diálogo ficcional entre Diogo Cão e o soba, Artur sentiu-se especialmente vulnerável. Não que o diálogo fosse desonesto ou inverosímil – pelo contrário, ele sabia que trazia vida à narrativa –, mas a sensação de ter sido forçado a imaginar aquelas palavras fazia-o questionar a fronteira entre História e ficção.

    No entanto, outra parte de si sentia-se estranhamente orgulhosa. A versão final, por mais distante que estivesse da sua visão inicial, parecia mais completa, mais fiel à complexidade dos eventos que narrava. Era como se o conflito com Mukuba fosse uma espécie de cadinho literário, onde a sua escrita era testada, desafiada e, no fim, refinada. A questão primordial se mantinha, porém: até que ponto essa, diga-se assim, maturidade não era, na verdade, uma capitulação? Enquanto imprimia o manuscrito, Artur sentiu-se dividido entre a sensação de ter criado algo de valor e o receio de que, ao fazê-lo, tivesse traído algo de essencial em si mesmo. “Talvez escrever História não seja diferente de navegá-la”, pensou, um sorriso cansado surgindo no canto dos lábios. “Ambos exigem que nos adaptemos às marés, mesmo quando elas nos afastam da rota que julgávamos certa.”

    Artur terminara o capítulo com a chegada dos portugueses à região de Benguela, ainda esperançosos de ambição, mas prenunciando hostilidades e desilusões. Tudo isto se tornara um compromisso desconfortável, mas necessário. E quando recebeu nova chamadade, Artur não conseguiu evitar perguntar, ao telefone, quando o editor lhe anunciou a aprovação:

    – Está feliz agora?

    Mukuba respondeu-lhe apenas:

    – Não, Matos… Mas está melhor.

    [continua…]


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  • O Novo Velho Mundo

    O Novo Velho Mundo


    Artur Matos ajeitou a gola da camisa pela terceira vez, como se o gesto pudesse aliviar uma ansiedade que insistia em instalá-lo na condição de réu. Não fazia calor; o nervosismo era mais interno, fruto de uma convocatória inesperada que chegara na véspera. Passara toda a tarde procrastinando a escrita de um ensaio ambicioso sobre os mistérios da Ordem de Cristo, projecto trazido de Lisboa, que ninguém pedira, que se destinaria, por certo, à prateleira dos esquecidos. Entretivera-se no YouTube, assistindo a cenas de gatos em situações hilariamente patéticas, como se aí encontrasse um reflexo de si mesmo, preso num ciclo de adiamento e auto-ironia.

    Agora, caminhava pelas ruas de Benguela, com o aroma pesado da cidade a invadir-lhe os sentidos: um misto de maresia, poeira e carne grelhada. Por entre edifícios coloniais, que ainda guardavam ecos de um passado nunca completamente resolvido, abeirou-se de uma construção de linhas rígidas, um testemunho do pragmatismo da arquitetura lusa. Era apenas a fachada. Procurou pela placa que indicava a editora AfroHistórias. Quando a encontrou, hesitou por instantes, a cabeça cheia de imagens difusas de historiadores coloniais e o peso de vozes críticas que ele próprio evitava ouvir.

    Enquanto subia a escadas reparou que o interior se modernizara, mesmo mantendo-se europeu, e tocou a uma campainha que trouxe o condão de lhe abrir a porta. O espaço da editora era uma síntese do pragmatismo contemporâneo: linhas limpas, decorações minimalistas e uma recepção dominada por cartazes coloridos com títulos como ‘Revoltas Submersas’ e ‘Nzinga: A História Não Contada’. O logotipo na porta de vidro fosco – o contorno de África coroado por uma águia imperial – parecia sugerir que aquele era um espaço para narrativas que alçavam voo sobre verdades negligenciadas.

    Ao entrar, Artur encontrou uma secretária baixa, em madeira polida, onde uma jovem de cabelos entrançados falava ao telefone num tom de autoridade natural. Não precisou de palavras para ser ordenado a aguardar; o gesto seco da mão foi suficiente para deixá-lo com a sensação de estar numa sala de espera de um dentista ou de um julgamento iminente. Não passara dez minutos, e a secretária, mascando pastilha, e quase sem o olhar, apontou uma porta. Entrou.

    Era uma sala de reuniões austera, quase monástica, com quadros de figuras históricas africanas que pendiam das paredes em poses heróicas. Amílcar Cabral, num canto, parecia olhar directamente para Artur, não com o desdém de quem despreza, mas com a severidade de quem espera. Quando Elias Mukuba entrou na sala, trouxe consigo uma aura de precisão e autoridade. Fácil se mostrou a Artur que era o editor – homem alto, de pele retinta e olhos penetrantes, que pareciam ter o poder de desarmar qualquer tentativa de dissimulação.

    – Matos, agradeço por ter vindo. – A sua voz era quente, mas desprovida de desperdício.

    Artur levantou-se, respondendo ao cumprimento com um aperto de mão. – O prazer é meu – disse, com a casualidade mal ensaiada de quem sabia que aquele não era o seu terreno.

    Mukuba não perdeu tempo.

    – Preciso mesmo de alguém para escrever ‘A História Verdadeira de Benguela’. Queremos uma narrativa que transcenda a tradição paternalista e colonial, mas que, ao mesmo tempo, respeite os factos. O seu nome foi-me recomendado, mas, confesso, hesitei quando soube que era… branco.

    A observação caiu na sala como uma granada silenciosa. Artur piscou os olhos, tentando avaliar se aquilo era uma armadilha ou apenas um teste. Mukuba não desarmou, sustentando o olhar como quem aguardava uma reacção.

    – Imagino que seja uma hesitação natural – respondeu, com um leve sorriso que escondia o desconforto. – Afinal, quando o assunto é História, todos preferem a voz de quem não tem culpa dos desastres.

    Mukuba riu, mas um riso seco, como uma faca que encontra resistência.

    – Não se trata de culpa, Matos. Trata-se de legitimidade.

    Os olhos do editor mantinham-se fixos, inabaláveis, como quem esperava uma confissão. Artur hesitou, não por falta de argumentos, mas por saber que não havia resposta que fosse suficiente.

    – Contudo – continuou Mukuba –, acredito que a legitimidade pode ser conquistada, desde que o trabalho seja feito com honestidade e rigor. Quero que escreva este livro, embora sem metáforas que disfarcem massacres como progresso. Sem paternalismos. Consegue fazer isso sendo português?

    Houve um silêncio carregado. Artur sabia que a questão não era apenas sobre História. Era sobre um peso que ele, na verdade, nunca carregara. Ainda assim, a alternativa era retornar ao conforto desconfortável do seu escritório e ao vazio do manuscrito inacabado.

    – Aceito – disse, sabendo que acabara de entrar numa arena onde o fracasso seria recebido com um júbilo silencioso.

    A quantia prometida, acrescido de um bom adiantamento, choruda, era irrecusável para Artur, ainda mais paga em dólares e sem recibo. E com uma única condição: teria de enviar o manuscrito inicial de cada capítulo na véspera de cada reunião semanal.

    Embrenhou-se, sem mais perda de tempo – os Templários foram engavetados – na complexidade dos documentos que foi vasculhando nas raquíticas bibliotecas de Benguela, nas pesquisas cibernéticas, páginas digitalizadas enviadas de Lisboa. Começou a escrever sobre as primeiras viagens de Diogo Cão, quando a costa africana era ainda um mistério habitado por monstros mitológicos, até à consolidação de São Filipe de Benguela como um pqueno posto avançado daquilo que nomeou ser a violência lusitana. Mas mesmo com esses detalhes linguísticos, cada momento se revelava um labirinto de interpretações possíveis como se a voz de Elias Mukuba lhe sussurasse nos neurónios. Artur sentia-se, por vezes, como Diogo Cão ao desembarcar pela primeira vez em terras africanas: perdido, vulnerável e consciente de que a sua presença não era bem-vinda.

    A tarefa revelou-se assim uma odisseia de desafios históricos e psicológicos. Cada linha escrita se impunha como uma luta entre a tentação de perpetuar a narrativa heróica e a obrigação de expor a crueza dos factos. E viu logo na primeira reunião que, apesar dos seus escrúpulos na escrita, Mukuba não lhe iria facilitar a vida.

    – “Os portugueses avançaram com temeridade”? – disparou Mukuba, logo à entrada desse primordial encontro entre autor e editor, impondo um tom que carregava o peso da crítica. – Temeridade? E o genocídio que acompanhava esses avanços, Matos?

    – Não se pode simplificar assim – rebateu Artur, ainda nem sequer se sentara. – Esses homens enfrentaram mitos e monstros imaginários. Isso é temeridade, não acha?

    Mukuba ergueu uma sobrancelha, impiedoso.

    – Não, Matos. Isso é o poder a subjugar vidas humanas. São narrativas como essa que mascaram tragédias.

    Artur sentiu-se numa corda bamba, tentando equilibrar a factualidade e a sensibilidade. Não ia correr nada bem esta aventura, cogitou. Manteve-se calado, enquanto o editor lhe foi fazendo comentários aqui e ali, mas a discussão atingiu o clímax quando sugeriu adicionar uma citação fictícia para dar voz a um soba local.

    – Não posso fazer isso. Seria inventar História.

    – História inventada, Matos? E o que acha que significa “descobrir”? Os seus antepassados “descobriram” uma costa que já tinha sido habitada por séculos.

    Artur saiu da reunião desanimado, por um lado, animado, por outro. Mukuba acrescentara-lhe mais um pequeno adiantamento, que disse ser extra.

    – Envie-me o manuscrito alterado, e dou-lhe uma resposta antes de avançar para o seguinte.

    Mesmo deixando cicatrizes no ego, Artur refez o texto e o tom, desconstruindo o mito do Mar Tenebroso e mostrando como a História tinha sido, desde sempre, um jogo de manipulação. E deixou o manuscrito na editora. Dois dias mais tarde, recebeu um telefonema de Mukuba, aprovando a versão, mas acrescido de um comentário final que lhe pareceu mais uma adaga:

    – Ficou aceitável, Matos. Para um escriba europeu, não está mal.

    No momento em que desligou o telefone, Artur sentiu que acabara de sobreviver a uma batalha, mas não à guerra.

    [continua…]


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