Etiqueta: A Deriva dos Continentes

  • Fim de citação

    Fim de citação

    Hoje em dia as pessoas sabem cada vez mais, e entendem cada vez menos.”

    Oscar Wilde (1890)


    Concluo hoje a minha série sobre a forma como as grandes ditaduras mantêm os seus povos reprimidos pelo isolamento e pela ignorância recorrendo ao golpe baixo de não lhes permitirem a aprendizagem do inglês – e de, assim fazendo, os impedirem de comunicar com o mundo. Faço-o no dia em que o grande Valete vai subir de novo ao palco do Coliseu de Lisboa para voltar a oferecer aos portugueses a qualidade incomparável da sua noção de métrica, a perfeição inventiva da sua criação de rima, e sim, no caso do Valete podemos mesmo afirmar isto sem ter medo de ninguém[1] – Valete vai, uma vez mais, oferecer-nos a urgência da sua mensagem. Mas, se não for por mais nada então que seja por uma questão de homenagem ao povo da Ucrânia, peço-vos que não se esqueçam de um pormenor nada despiciendo: Valete faz isto tudo porque é um grande artista, sem dúvida, mas também faz isto tudo porque pode. E é por isso que vos conto aqui a história de um outro artista, um amigo de há uns bons trinta anos, que uma noite subiu ao palco do mundo e quis cantar mas não pôde. Chamava-se André. A gente tratava-o por Andrushka.


    Estive em Petrozavodsk no final de 1991, quando as estátuas derrubadas de Estaline ainda jaziam aos pés dos seus pedestais, e, por cima das fábricas de aço agora fechadas onde os grandes letreiros em cirílico ainda anunciavam “ESTAMOS A CONSTRUIR O SOCIALISMO”, os artistas de rua do fim do mundo tinham pintado a vermelho, num inglês sempre com alguns erros como se tentassem acertar na ortografia certa sem conseguirem superar ao certo as suas próprias dúvidas, a palavra única “CUIDADO!”. Petrozavodsk não tinha muito mais de trezentos mil habitantes, e hoje ainda tem menos.

    É uma cidadezinha industrial encostada à fronteira com a Finlândia, onde na altura toda a indústria estava parada. Quando lá cheguei era indisfarçável estarem todos a viver o momento mais difícial das suas vidas de eternos servos de um regime cruel ou de outro. Nos dois primeiros dias, arroz muito empastado que se comia em três rações diárias ainda tinha misturados uns bocadinhos de carne; mas depois já era só mesmo arroz, seguido de arroz, seguido de cada vez menos arroz.

    Se alguém precisasse lá em casa dos serviços de um canalizador ou de um electricista, eles exigiam logo serem pagos à chegada em divisas líquidas ou nada feito – e por “divisas líquidas”, bem entendido, subentendia-se[2] o infame vodka de beterraba da Ucrânia, mais barato e mais rasca do que todos os outros mas mesmo assim vodka à mesma, que até eu já me tinha habituado a beber para não morrer de frio. E, quando eu lhes perguntava “e agora?”, os meus novos amigos respondiam-me, num tom absolutamente neutro de fazer gelar ainda mais o sangue nas veias, “agora em breve será sempre noite… e depois, em Março, se ainda cá estivermos, há de ficar tudo bem.

    CPC, mascarada de John Lennon na medida do possível, de partida para a fronteira com a Finlândia, com o seu parceiro S já disfarçado de Cão Vermelho.
    Se apanharem o comboio para Norte em Moscovo e durante os dois seguintes não virem mais nada que não seja florestas de bétulas, sempre todas iguais, estejam descansados que vão ter ao destino dos nossos intrépidos repórteres. Não se esqueçam é das vossas preciosas garrafas de litro de Vodka de Beterraba da Ucrânia, porque se pensam que está frio em Portugal, imaginem como está na Rússia, e nem sonhem que existe outra forma de aquecimento, pelo menos durante a viagem.

    A União Soviética acabou exactamente uma semana depois de me ter vindo embora, e nunca mais soube deles.

    Tinham todos, como eu, cerca de trinta anos. Embora naqueles dias inflamatórios do reinado de Boris Yeltsin já não corressem os riscos que corriam dantes, as caves afogadas em tabaco, com Músicas Ocidentais e bebidas escaldantes, onde queimavam as noites num tronco nu muito Freddie Mercury[3], entre miúdas de cara de anjo e pernas de dois metros, continuavam a ser todas clandestinas.

    Fui levada até esse submundo estranho[4] pelos dois únicos guias do burgo que falavam um certo inglês, aprendido em escolas da Finlândia com autorizações seladas do Politburo, destinado a ser arranhado o necessário e suficiente para mostrar a maquinaria saída de Petrozavods às delegações estrangeiras amigas da URSS, o  Miska e o Andrushka.

    O Miska abandonara há cerca de um ano o seu posto de dirigente da Juventude Comunista, logo a seguir deixara mesmo de ser militante, e era um homem triste, mais dado a confirmar as palavras dos outros com os seus silêncios do que a fazer ele próprio qualquer tipo de discurso a favor ou contra tudo o que se passava naquela mudança vertiginosa de tempos russos. Limitava-se a ouvi-los e a, por vezes, segredar-me em conclusão “e eu, enquanto fui capaz, fiz o que pude para não ver nada disto.”

    O Andrushka, pelo contrário, era um rebelde de longa data, com um romance acabado de escrever que já versava a corrupção na corte moderna onde Putin jogava às cartas com Yeltsin, e um historial bastante respeitável de guitarra-baixo em várias bandas “decadentes[5]” que nunca duravam muito tempo depois de uma série de eventos sinistros. Contou-me, obviamente, muitos filmes de terror. Mas, para mim, nenhuma história poderia ter sido pior do que a da noite em que, quando ele ainda vivia em Moscovo e ainda não tinha feito o seu curso finlandês destinado à propaganda, correu na cidade inteira a total consternação da notícia do assassinato de John Lennon.

    Primeiro pensámos que era mais um daqueles boatos comunistas que eram postos a correr de propósito para nos assustarem”, contou-me ele, com o rosto subitamente muito endurecido. “Depois acabámos por perceber que era mesmo  verdade. Ficámos desfeitos. Morrer um de nós, em Moscovo, era uma coisa. Estava sempre a acontecer. Mas morrer o John Lennon, aos quarenta anos, em Nova York, isso era intorelável. Fomos todos para a Praça Vermelha, tu viste o tamanho daquilo mas eu garanto-te que não cabia lá nem mais uma pessoa, e estávamos todos lá para lhe fazermos uma vigília à luz das velas. E, depois de acendermos as velas todas, queríamos cantar o IMAGINE. Queríamos mesmo, mas não podíamos. Nenhum de nós sabia a letra. Tu sabes o que é, quereres cantar e não poderes, e tu sabes cantar, mas nunca pudeste aprender a língua daquela canção, que, no entanto, é a língua de todas as canções? Cantámos em lalala, pronto, e estávamos a cantar e estávamos a chorar porque não podíamos cantar. E depois veio a polícia, e veio o Exército Vermelho, e em meia hora a Praça Vermelha estava deserta, e foi presa muita gente. E eu jurei que havia de mentir tudo o que tivesse que mentir – mas havia de aprender inglês.”

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Lá estou eu outra vez, não é? E ainda agora comecei.

    [2] Hã? Hã? “bem entendido”, vírgula, “subentendia-se”? Meu Deus, sou fixe e não  tenho qualquer vergonha!

    [3] Eram lixados, aqueles russos. Não conseguiam aceder a nada, pois não, mas conseguiam conhecer muitíssimo bem o número de tronco nu à Freddie Mercury. E também tinham a escola toda na arte do bem disfarçar. Freddie Mercury? Quem é esse, o Freddie Mercury? Sonsinhos.

    [4] Mais uma redundância do mais fino estilo, não acharam? Claro que um submundo, por decorrência, é estranho. Eu-sou-boa-nisto, amigos. Enfim, para quem gosta do género.

    [5] Leia-se “de hard-rock”, o que não era nada de fácil de montar, e muito menos de manter, num regime onde as guitarras eléctricas e as baterias eram sistematicamente apreendidas – e dizia-se oficialmente que destruídas, embora também se murmurasse que o Aparelho as levava para as suas datchas a título de entretenimento para os mais jovens, que ao menos assim tendiam a recusar-se menos a acompanhar os pais.

  • Nas ruelas escuras do medo e nos becos clandestinos do boato

    Nas ruelas escuras do medo e nos becos clandestinos do boato

    A educação é uma coisa maravilhosa, mas infelizmente ninguém

    pode ensinar-nos as lições mais importantes da vida”

    Oscar Wilde


    Isto só visto. Então agora o grandecíssimo filho da polícia[1] do mais cruel e mais sádico czar de todos os tempos[2] ameaça-nos com “catástrofes globais” se ousarmos continuar a apoiar a Ucrânia? Olha filho, caso ainda não saibas, o Trump também jurou desfazer em pó a Coreia do Norte com “fire and fury the likes of which the world has never seen[3]”; e o Saddam Hussein, depois de invadir o Kuwait, avisou os americanos que, se abrissem contra o país dele qualquer espécie de hostilidades, lançaria contra as suas tropas “the mother of all batles[4]”, e deixaria entregues aos abutres todos aqueles corpos de imperialistas derrotados. Quando tudo isto falhou, tu estavas onde e entretido com quê, para não estares sequer a olhar, mesmo que sejas incapaz de ler legendas? Just checking[5]. Mas OK, OK, OK, whatever[6], ninguém aqui é parvo. Desde que começaram os seus discursos bombásticos a propósito desta tragédia, a malta já percebeu que para aquele tinhoso vale tudo para conseguir restaurar a grandeza da antiga União Soviética – mas “catástrofes globais”, ó Vladimir? E nessas catástrofes globais, achas que acontecia o quê, morríamos nós e ao mesmo tempo também morrias tu, se é que estamos todos entendidos quanto às catástrofes que tens em mente? E o teu povo, o que é que o teu povo pensa destas tuas ameaças bombásticas? Ora, tu vives descansado porque sabes muito bem que o teu povo não pensa nada, pura e simplesmente porque o teu povo não sabe nada. O teu povo não acede à internet, não vê televisão por cabo, chega à escola e só aprende o alfabeto cirílico para ficar logo ali impedido de alguma vez vir a ler as notícias do mundo. E, ainda por cima, demonstrando tu uma curiosa devoção aos métodos implementados pela mão-de-ferro estalinista, proibes os teus servos de aprenderem inglês[7] para poderem entender o planeta em primeira mão.


    E ainda há mais uma coisa, maldito carroceiro. A mim, pelo menos, escusas de vir com conversas tipo nada disto é bem assim. Tudo o que eu já disse, e também tudo o que ainda vou dizer, são pormenores que eu sei que são verdadeiros com toda a certeza – porque são pormenores que me aconteceram a mim, que estive na URSS há mais de trinta anos, quando as pessoas já sabiam que tu existias, e a maioria dessas pessoas já tinha medo de ti. Ouviste? Toma e embrulha. Ainda Boris Yeltsin fazia aqueles discursos de que os russos tanto gostavam, encharcado em vodka e na terminologia mais profana que pode arrancar-se à língua de Tolstoi[8], e já os amigos que fiz nessa altura tinham medo de um gajo que muitas vezes não conheciam de rosto nem de nome. Era o Director do Serviço Federal de Segurança, e sabia-se que Boris Nikolayevich, cansado da guerra, já o convidara para assumir o cargo de Secretário do Conselho de Segurança, a estrutura que coordena as agências de segurança a nível político em nome do presidente. E então, se tudo isto fosse verdade…

    Aqui era costume os meus interlocutores fazerem uma pausa, enrolarem na mortalha um tabaco muito escuro, voltarem a medir-me dos pés à cabeça obviamente a pensar se poderiam mesmo confiar em mim, acabarem por encolher os ombros naquele gesto inconfundível que significa sempre, no mundo inteiro, “ah, epá, olhem lá, que se foda, por favor, quer dizer, que se lixe mas aqui vai disto que vendo bem as coisas lixado já eu estou de qualquer maneira”, e, depois de assim pensarem, continuarem a contar-me o que constava nas ruelas escuras do medo e nos becos clandestinos do boato.

    Se aquele mesmo gajo que entrava a altas horas no Kremlin sem se dar sequer ao trabalho de parar no checkpoint da segurança, para a seguir passar horas perdidas a jogar com o chefe um poker onde circulavam pilhas obscenas de muitíssimo dinheiro…

    Clara e Sebastião preparados para enfrentar o Grande Norte da Mãe Rússia, onde os espera mais uma delicada missão de espionagem.
    Quem aqui entrar pela espada, pela espada sairá,” declara Alexandre Nevski no filme que o apresenta como um grande herói, libertador amável dos seus súbditos oprimidos, perseguidor incansável dos pérfidos cavaleiros teutões que em nome de Deus queimam os bebés russos em grandes fogueiras, e consolidador inquebrantável das enormes fronteiras da Pátria. E ah, sim, isto também é de uma importância crucial no que diz respeito a transformar um homem num herói: o filme de Eisenstein põe no papel de Nevski um borracho de perder a cabeça. Ai se eu e o Sebastião o encontrássemos no meio de tanta neve. Que grande espionagem eu não faria.

    … se esse gajo viesse a tornar-se ele próprio o chefe seguinte, as pessoas da Rússia iam sofrer na pele o castigo que lhes seria inflingido pelo seu infame pecado de serem russas. E, pior ainda, por nunca terem tomado a iniciativa de…

    Mais uma pausa, mais um segundo pensamento a meu respeito, mais um suspiro de “que se lixe.

    … por nunca terem tomado a iniciativa de recorrerem a qualquer um dos seus subordinados, que depois lhe passaria para as mãos metade do lucro, para fugirem a salto para a Finlândia. Ou mesmo para Portugal, porque não, o que é que custa, é um país barato e cheio de sol e com praias, claro que a fuga a salto é mais cara e a percentagem sobre os lucros da operação mais elevada, mas compensa, acreditem que compensa. O povo russo é apático. Não consegue tomar iniciativas.

    Esse amiguinho discreto que o Yeltsin pescara do KGB, certamente com os bolsos cheios de garrafas de vodka de beterraba da Ucrânia[9] já vazias às oito da manhã, gostava de “métodos de espionagem[10], tais como ir buscar criancinhas à escola, levá-las para sítios bonitos, deslumbrá-las com prazeres exclusivamente destinados a ricos, tais como carreiras de tiro para ganhar ursos de peluche enormes, rodas gigantes todas cheias de luzes a acenderem e a apagarem, passeios de gaivota em lagos magníficos seguidos de pic-nics na relva a ver os patos de todas as cores correrem entre os juncos da margem, e toda a sorte de guloseimas deliciosas em oferta inesgotável, para que finalmente os putos acusassem os pais de crimes que eles nunca na puta da vida tinham cometido.

    Dentro de uma semana, dias 3 em Lisboa e dia 4 no Porto, canta nos Coliseus o meu Incomparável Herói da Música Portuguesa Actual, o grande Valete. Em sua homenagem, vou então contar-vos a história de um rebelde russo que queria cantar e não podia. Mas, mesmo sob proibição governamental extremamente rigorosa de se meter nestas práticas dúbias, este rebelde cheio de garra não teve medo de me contar muitas das coisas que eu aprendi no extremo Norte do seu país durante aquele Dezembro gélido, uma semana precisa antes de a URSS chegar ao fim.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Belíssimo jogo de palavras, não é? Além do insulto mais difamatório subentendido na primeira sílaba da palavra “polícia”, o Putin, na sua qualidade de Grande Confessor do KGB, também já foi mesmo um polícia do pior género. Ha! E esta do “Grande Confessor”, acabadinha de meter extremamente a propósito, por acaso também está muito bem esgalhada, porque este gajo podia perfeitamente ser o Torquemada e andar pelo mundo a infernizar toda a gente com os seus autos-da-fé. “Infernizar”, topam? A propósito de queimar o pessoal na fogueira. Vá lá, confessem. Sou boa nisto ou quê?

    [2] Antes de mais nada, recorde-se que a História da Grande Mãe Rússia está literalmente pejada de czares, sendo que está bem que alguns eram sádicos e cruéis por se terem tornado completamente mongos depois de tantos casamentos entre primos, mas na sua esmagadora maioria estes detentores de enormes poderes absolutos eram figuras tais como Ivan o Terrível, Alexandre Nevski, e outros grandes heróis dos filmes magníficos do Eisenstein, daqueles que passavam o tempo a mandar os seus pobres súbditos esfomeados, gelados, e mal treinados, morrer e matar desse lá por onde desse, apenas porque “quem aqui entrar pela espada, pela espada sairá: assim foi e sempre será em Terra Russa”. Esta tirada podia ser do Putin, mas por acaso foi do seu ilustre predecessor Alexandre Nevski. E reparem que constitui, só por si, aquilo a que se chama tout un programe. Um programa catastrófico, bem entendido. Para os russos e para nós.

    [3]Fogo e fúria de uma dimensão que o mundo nunca antes viu”, numa versão portuguesa que melhora indecentemente as capacidades oratórias de Trump.

    [4]A mãe de todas as batalhas.” Sempre gostei especialmente desta, e da sua doce toada romântica, tão evocativa do nascer do sol num oásis. E tem, ainda, o valor acrescentado de ser o pré-aviso de guerra mais feminista de todos os tempos.

    [5]Era só para saber”. A pessoa começa com gracinhas em inglês e às tantas já está ela própria a fazer figura de parva.

    [6] Qualquer coisa como “quero lá saber”. Dá imenso jeito para acabar conversas sem ofender ninguém.

    [7] Trotsky dominava tão bem o inglês que até foi actor secundário em alguns filmes americanos, representando geralmente aquele tipo de papel em que um niilista russo era dotado de tal bondade que resolvia tudo a cinco minutos do fim. Durante o seu período mexicano, lia e sublinhava diariamente o NEW YORK TIMES logo pela manhã, para pôr o dedo na pulsação do mundo. Só para vos dizer: viu-se o que o Estaline fez ao único dirigente marxista-leninista que falava inglês..

    [8] Quando o tom da conversa pertence à categoria taxonómica pessoal da estiva, poucas outras línguas terão a pujança e a criatividade da língua russa. E a ordinarice, então, é de comprimir o estômago até a pessoas como eu, que qualquer leitor destas crónicas já percebeu certamente que não faço o género toca piano e fala francês (falo francês, mas qual é? – há azar?), mas o que é que querem, padeço de sindroma vertiginoso – e aquele nojo do russo ordinário, quando bate em cheio no verdadeiro ordinário, é mau de digerir, mas é que mesmo muito mau.

    [9] Este vodka não foi criado pela minha imaginação doentia, nem é mais um subentendido para descrever Yeltsin como um tal alcoólico que em breve estaria a beber o álcool dos frascos dos perfumes. É um vodka que existe mesmo, com uma cor preocupante entre o castanho e o cor-de-laranja; e, obviamente, é o mais barato de todo o infinito mercado soviético dos vodkas. Sem dinheiro para os aquecimentos nem lenha para as lareiras, os russos mantiveram-se quentes durante todo aquele Inverno a bebê-lo. E eu também, portanto suspendam o vosso julgamento se fazem favor. Viviam-se dias difíceis. Pelo menos naquela altura, o caos resultante da rapidez compulsiva da mudança, e a balda total instaurada no país exactamente pela velocidade dessa mudança, eram de tal ordem que tinham criado uma miséria extrema. Tão extrema que os meus amigos lá trataram das coisas um bocado a contragosto, e uma bela manhã bateram-me à porta do quarto do hotel, dito de luxo, mas com rachas nos vidros das janelas, uns jovens soldados e um jovem polícia. Vinham vender-me um uniforme do Exército Vermelho por quinze dólares, e um casaco de gala da Polícia Soviética por sete dólares e meio. Além desta transa, traziam-me ainda uma grande profusão de barretes de pele de urso ou de bonés de matéria dura, com uma estrela vermelha a encimar a foice e martelo dourados que cintilavam nas palas que desciam até aos olhos. Tudo isto enrolado dentro de folhas soltas de PRAVDAS, por seu turno enrolados dentro de sacos de plástico opaco. Quando o soldado saiu, o agente da autoridade ainda se lembrou de me vender um outro bem de consumo que só custaria vinte dólares, e que podia ficar disponível imediatamente caso eu tivesse interesse pela mercadoria. Tratava-se de um produto natural muito bem cuidado, e que fazia bem a tudo. Grande parte de tudo isto foi-me explicado por gestos e desenhos. O rapazinho estava podre de bêbado, e queria desesperadamente vender-me o seu próprio corpo.

    [10] Ou, pelo menos, ele chamava-lhes isso mesmo.

  • Doação universal

    Doação universal

    Não tem quem lhe mostre o que são os sonhos.

    João Paulo Borges Coelho

    AS DUAS SOMBRAS DO RIO


    Depois de várias semanas de protestos e manifestações, André Ventura convoca um debate parlamentar sobre a Educação em Portugal para dar ao CHEGA um destaque da mais absoluta infâmia[1]. E a seguir aproveita os holofotes e os microfones para espicaçar o povo contra a investigação da PJ às contas da Câmara Municipal de Lisboa, que, segundo ele, põem em causa o presente cargo do Ministro das Finanças. O que, mais tarde, leva a uma explicação em directo do dito ministro e ex-autarca este respeito[2]. Que nojo. Não tenho qualquer simpatia pela maioria socialista cheia de ligações perigosas, mas claro que ainda tenho menos pela minoria fundamentalista cheia de demagogias vergonhosas. Mas, mesmo assim, estou consciente de que, perante todos os sintomas de podridão política que possam incomodá-los, os cidadãos portugueses retêm o seu direito sagrado ao protesto. Todos temos livre acesso às notícias e aos debates políticos transmitidos ao vivo, por isso podemos estar fartos, podemos estar desiludidos, podemos estar que já não podemos, mas a verdade é que nunca somos nem silenciados nem enganados. Podemos saber tudo o que quisermos saber, porque vivemos em democracia, e portanto fazemos parte de um vasto banco de doação universal. Se vivêssemos sob qualquer espécie de pata ditatorial, a nossa capacidade de pertencermos a este grande banco estava seriamente restrita. E atenção, que talvez nunca déssemos por isso, mas essa restrição teria sido mais que deliberada pelo regime no poder desde os nossos dias na escola primária: nunca teríamos podido aprender inglês. Seria terminantemente proibido.


    Estive em Praga em 2002, num encontro de estudantes de Letras e Literaturas da Europa com escritores portugueses. Nessa altura, já Vaclav Havel tinha presidido, com toda a sua atenção de grande intelectual, sobre a Revolução de Veludo, que libertou de vez o seu país da presença armada da URSS e depois separou sem uma única lágrima a República Checa da Eslováquia. Notava-se o regresso de Praga à abertura do mundo nos menus em inglês dos bares e restaurantes, nos anúncios das colecções expostas nos museus, nos dizeres impressos nas T-shirts com Golems, na comunicação fluente dos guias que nos passeavam pelas alas fantásticas do Hradcany[3]. Na sala onde fiz a minha conferência principal estavam agentes literários dos dois novos países, que se falavam cordialmente sabe-se lá em que língua. Pedia-se que falasse em Português, suficientemente devagar para o préstimos do senhor da tradução simultânea. O Português não é uma língua lenta[4], o meu ainda o é menos, comecei rapidamente a ter a sensação incómoda de que ficavam para trás lacunas cada vez maiores do que eu dizia, os alunos eram vivaços e interessados, de maneira que as perguntas deles derivaram muito depressa para o debate, enfim – o que interessa é que acabou por haver ali um momento em que me passou pela cabeça um grande,

    – Ora, que se lixe!

    CPC, incógnito
    Já imaginaram o que seria termos que viver na clandestinidade a vida inteira para podermos dar-nos ao luxo de continuarmos a falar alto sobre as nossas opiniões?

    O Muro já caiu há onze anos. Desde pelo menos o Século XV que Praga é a capital europeia da arte, da cultura, e da ciência; e, passeando descontraidamente pelas ruas, vê-se logo que manteve até hoje o seu power de séculos.

    E mais!

    Eu era criança, mas ainda me lembro do entusiasmo dos meus Pais quando voltaram de uma semana passada nesta mesma cidade em 1968, gozando a liberdade da “Primavera de Praga”  dois meses antes de duzentas mil tropas do Pacto de Varsóvia e cinco mil tanques soviéticos invadirem a Checoslováquia e a fecharem ao mundo.

    Ou seja, se Praga sofreu o castigo de todas as cidades do Leste, onde as pessoas se viram brutalmente impedidas de aprender mecanismos universais de comunicação, há de ter sido, com toda a certeza, a cidade onde foi mais difícil implantar esse bloqueio, e onde esse bloqueio esteve implantado durante menos tempo. Vamos lá ver, concluí eu em pensamento, doida para conseguir comunicar em directo com os estudantes interessantíssimos da minha audiência – de certeza que, num contexto destes, muitos deles falam inglês, certo? A Revolução de Veludo ficou lá para trás, em 1989. Estes meninos, que nasceram e cresceram depois dela, e que ainda por cima gostam de letras e de literatura – Santo Deus, será mesmo possível que estes meninos não falem inglês?

    E falei-lhes então em inglês, devagar, com calma, com entusiasmo, malta, como é, não podemos nós prescindir da tradução simultânea e comunicar directamente uns com os outros?

    Foi horrível.

    Fez-se na sala um silêncio gelado. Os alunos, até ali tão cooperantes, olharam para mim com um ar pasmado e não disseram uma palavra. O senhor da tradução simultânea ainda fez um ar mais pasmado. Finalmente, uma das agentes literárias da Eslováquia presentes na sala veio até à mesa e segredou-me baixinho, em inglês, muito depressa, numa espécie de aflição mal contida, “fale português. fale português, que eles não entendem inglês!”

    Era a grande mão da besta que continuava a reinar muito depois da sua morte. Tinham passado 21 anos entre a entrada dos tanques soviéticos na Checoslováquia e a Revolução de Veludo; e 24 anos entre a Revolução de Veludo e aquela conferência. A segunda distância era maior do que a primeira, mas o estrago não estava consertado. Seria um bom tema para uma daquelas belíssimas canções das PUSSY RIOT, traduzidas por algum apoiante bilingue do russo em cirílico para o inglês no nosso alfabeto. Elas, sozinhas, também não podem ser dadoras universais. Estamos em 2023, mas a Rússia continua subjugada por um ditador sem escrúpulos. A luta continua.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Sim, claro, parece fazer algum sentido porque eram protestos e manifestações de professores. Mas Ventura, o mais acabado dos nossos demagogos com assento parlamentar, teria sacado este coelho da cartola a propósito de quaisquer protestos e manifestações que dessem nas vistas e agradassem ao povo. Não é propriamente a primeira vez.

    [2] Dizendo ao País que, basicamente, que agora é o Ministro das Finanças, e que, enquanto tal, não tem absolutamente nada a dizer a esse respeito – mas leva uns bons vinte minutos a oferecer esta explicação, o que parece dar por cumprido o seu dever perante o eleitorado.

    [3] Palácio fantástico onde Rodolfo II da Baviera instalou no século XV a corte do Sacro Império Romano, onde todos os conhecimentos, artes, e colecções, foram apadrinhados com faustosa generosidade.

    [4] Numa breve confabulação com o senhor enquanto estava a beber água, percebi que ele estava à espera que eu falasse brasileiro, conforme explicou. Desconhecia por completo “a minha língua”. Pois é, que desgraça, mas eu não ia pôr-me para ali a falar brasileiro, nem que fosse capaz de uma impostura dessas. Estava a representar as letras de Portugal, e a pessoa tem o seu orgulho, por muito que a maltratem.

  • Cirílico

    Cirílico

    Podes sempre esconder as coisas nas palavras””

    Aforisma de Jesse James antes do seu último assalto ao comboio

    1879


    Hoje vou prestar uma homenagem contente aos leitores despertos que conseguem ler as minhas notas de rodapé até ao fim[1]. E, de caminho, espero estar também a prestar algum serviço público, revelando sinais de vida aos que ainda são vítimas da tirania das palavras. Vamos lá ver, Pussy Riot[2]? Mas o que é que me deu, certo – Pussy Riot? Nem o tradutor do Office se atreve a oferecer uma proposta estúpida que seja[3]. Como aconteceu em tantas outras obras que produzem desde 2011 na sua impenitente luta artística contra Putin, estas feministas russas tiveram quem inventasse com elas o nome da banda, e têm sempre quem lhes traduza para inglês os títulos das canções que postam no YouTube, tais como PUTIN WILL TEACH YOU HOW TO LOVE. Às vezes, como acontece em POLICE STATE, conseguem cantar uma tradução do refrão – um polícia de choque começa por bater nas meninas da banda e depois bate-lhes no ursinho de peluche porque ainda não está satisfeito, acendem-se imensos vídeos e finalmente o zoom mostra Trump a apertar a mão a Putin, e entretanto elas cantam, num coro infantil perverso, “everybody’s happy, makes me happy”. Podem variar entre dez e vinte membros, e convidam todas as performers de protesto russas a entrar no barco. Conseguem nunca desistir, escapar, escorregar, entrar e sair da prisão sem desanimar, mudar de pele, reaparecer, sobreviver. Têm muitíssimo para nos dizer. Mas não conseguem falar connosco, porque nunca conseguiram aprender inglês.


    Quem não gostar de termos de usar o inglês, enquanto veículo de comunicação universal, que não goste[4], mas a realidade é o que é.  Plenamente conscientes dessa mesma realidade, todos os ditadores que vieram à superfície para lá da Cortina de Ferro fizeram toda a gente que escravizaram viver meio século sem nunca aprender inglês. E bastou as pessoas desconhecerem as palavras do Oeste para todas as coisas que floresciam para lá do Muro ficarem profundamente enevoadas. Agora que a União Soviética já não existe, no seu lugar existe a Grande Mãe Rússia, e no papel de Estaline está instalado o impensável ditador Vladimir Putin. Putin é uma daquelas pessoas que nos foram enviadas pelo Demónio para não podermos acreditar na bondade humana[5], e nesse sentido pérfido é obviamente muito sério no que toca a assegurar-se de que ninguém na sua terra fala inglês – o mesmo inglês que ele próprio, ostensivamente, não fala. O inglês, que o mundo inteiro fala mas por acaso também não se fala na China nem na Coreia do Norte, embora se fale fluentemente na Coreia do Sul, é uma arma de acesso à cultura que todos os maiores ditadores mantêm sabiamente afastada dos seus povos.

    Eu estava a trabalhar na UMass of Amherst em 2014, quando quatro das Pussy Riot conseguiram escapulir-se de Moscovo para uma série de gigs em salas de espectáculos americanas, acompanhadas pela sua Grande Mestra de tradução simultânea. Era uma miúda de Nova York ainda mais novinha do que as cantoras, ela própria de origem russa e apaixonada pela sua missão. A banda, notava-se logo, absorvera com avidez toda a grande qualidade que se aprende nas academias russas quando se tem uma autêntica veia artística. A sua presença em palco revelava uma imaginação cheia de arrojo e bom-gosto, com grandes jogos de cores, um sentido plástico magnífico e uma óptima música servida por grandes vozes bem trabalhadas, com arranjos que podem não ser os mais criativos mas não cometem nenhum erro[6]. Sozinhas à nossa frente, com a adolescente nova-iorquina aos pulos num canto agarrada ao microfone, as cinco felizes da vida e boas em tudo, transmitiam uma segurança que transbordava para a plateia e punha toda a gente ao rubro[7].

    No dia seguinte, no entanto, deram uma entrevista em directo na NPR[8] e aquela segurança contagiosa desapareceu, porque a adolescente entusiástica que as traduzia no gig também tinha desaparecido. Só estava em estúdio um funcionário público[9] que por junto arranhava umas coisas de russo. Elas conseguem cantar o refrão ou outro em inglês, mas isso não quer dizer que falem inglês. Não falam mesmo. Tentar entrevistá-las nestas condições precárias é apenas um jogo de enervar toda a gente e aquilo foi para lá de penoso. Repetiram várias vezes que não tinham medo. Eram quatro crianças assustadas. E a apresentadora, toda completamente cosmopolita de cima da sua uma longa carreira laureada, era uma burguesa paternalista e ignorante que não fora capaz de contratar a outra menina que falava russo para dar voz a quatro grandes artistas que têm imensa coragem e rios de talento mas só sabem ler e escrever em cirílico. Não percebes que estás perante todo o power de um outro alfabeto, you bitch?

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Hey, “poucos serão os eleitos”, certo? Não fui eu que disse isto.

    [2] Termo cuidadosamente enterrado dentro de uma notinha de rodapé na crónica sobre a boçalidade de Putin e a visita do nosso PR à Ucrânia, anunciada para este ano.

    [3] Pois, temos pena. Neste caso específico, nem eu vou traduzir. As jovens performers russas não podiam ter irritado mais o regime policial do seu país ao evocar em inglês uma grande revolta de partes privadas femininas, mas em 2011 eram mesmo jovens, não pretendiam ser mais que hard punk de protesto, e quanto mais cru fosse o nome da banda melhor. Entretanto o seu som sofisticou-se, os seus vídeos também, e até a sua linguagem se tornou muito mais metafórica. E, aliás, eu já nem sequer tinha idade para traduzir directamente o nome da banda na altura em que ela apareceu.

    [4] Dantes usava-se o latim para estes mesmíssimos efeitos, e o inglês tem a grande vantagem de ser muito mais simples. Foi exactamente esta simplicidade, e não a extensão do seu Império, que o levou a ganhar a taça da Comunicação Universal ao Francês e ao Alemão durante as batalhas coloniais e românticas do século XIX. E pronto. Já passaram dois séculos, e o esperanto foi um falhanço crasso. Querem espadeirar contra os moinhos? Eu tenho mais que fazer.

    [5] O último post das Pussy Riot no YOUTUBE chama-se PUTIN’S ASHES, e é um tributo ao povo da Ucrânia. O arranque, extremamente conseguido tanto do ponto de vista plástico como do ponto de vista musical, mostra-nos só um sudário com um botão vermelho onde poderemos neutralizar Putin se lá conseguirmos carregar. Está cortado a seguir, mas promete-se a versão integral para Janeiro. Estamos em Janeiro. Estas coisas metem nervos, a sério que metem.

    [6] Veja-se no YOUTUBE a canção PLASTIC, com um vídeo todo elaborado em torno do tema do conceito da boneca Barbie e plasticamente soberbo.

    [7] E há que ver: as audiências americanas são extremamente segregadas, e não é nada fácil pôr os brancos “ao rubro”: tendem a ficar sentados e sem movimentos nem ruídos, as faces imóveis, apenas uns gestos de dedos, uns sussurros para o lado, ou umas batidas de pés para mostrarem a sua alegria. Conseguem ser a companhia mais deprimente deste mundo. Naquela noite, no entanto, passaram-se todos dos carretos. Bom, OK, nem todos. Mas bastantes. Suficientes. Houve ali um calorzinho. É raro a pessoa sentir calorzinho no meio dos americanos brancos. Estou a falar a sério, e de experiência própria. Vivi com brancos, e vivi com pretos, porque na América sirvo para ambas as categorias, sobretudo quando acabo de chegar da praia e desde que comecei a cantar no coro de Gospel da Igreja Africana. Estou em condições de jurar que os dois grupos não se misturam, e que a vida de uns não tem nada a ver com a vida de outros. Os pretos são sempre mais solidários, têm sempre menos dinheiro, vivem sempre em bairros mais pobres, acolhem sempre muito mais pessoas em cada uma das suas casas, recebem salários inferiores para trabalhos idênticos exercidos com as mesmas qualificações, e sim, claro – é muito mais divertido ir aos concertos com eles.

    [8] Sigla da National Public Radio, de longe a melhor, mais intelectual, e mais ambiciosa de todas as rádios americanas.

    [9] Sem ofensa para os nossos funcionários públicos, nomeadamente médicos, professores, e bombeiros. A palavra esconde uma atitude assaz insultuosa por parte da maioria dos americanos.

  • Bonito e corajoso

    Bonito e corajoso

    Devemos trabalhar com o que é nosso porque só as coisas da

    nossa terra é que estão dentro da nossa compreensão.

    João Paulo Borges Coelho

    As duas sombras do rio


    Que lindo. E que bom. Que sensação tão agradável, esta, de termos orgulho nos nossos dirigentes. Acabámos de saber que o Presidente da República vai visitar a Ucrânia em 2023[1]. Enfim, claro, eu sei. Eu sei que este é um daqueles gestos relativamente fáceis de executar, e muito provavelmente também fáceis de programar para serem vistosos[2]. Mas que se lixe. A malta precisa. Pão e circo. A crise vai dura. Para todos os efeitos, estes gestos são tão bonitos, e vamos lá, por muito que possam ser demagógicos,[3] na verdade, na verdade temos de admitir que são também, antes de tudo o mais, tão indiscutivelmente corajosos que não é qualquer um que tem envergadura para eles[4]. É perante gestos destes que esperamos um eclipse momentâneo diante da vitória da Argentina no Campeonato do Mundo[5], e até um novo pico para a moral do esfalfadérrimo dirigente das Nações Unidas[6]. Mas, se o nosso PR quer visitar a médio prazo resistentes e heróis – não vai visitar já as nossas Urgências Hospitalares porquê? Eu sei que já falei nisso antes, mas entretanto o pesadelo não desapareceu. E há hospitais que nem Urgências têm. Sempre gostava de saber para onde é que os Bombeiros da região levam aquelas macas que estão sempre, sempre, sempre, sempre a chegar[7]. Enquanto houver Bombeiros, não é[8]?  Senhor Presidente?


    … Falei-vos de formas de acudir aos pacientes que não foram, como é evidente, nem da escolha nem da responsabilidade do pessoal hospitalar que as executa. Percebia-se muito bem pelo tom das dezenas de mensagens e perguntas que os leitores me mandaram que quase ninguém acreditou em mim. Ou estava a gozar, ou estava a inventar, ou pronto, para efeitos de encorajar à leitura estava a recorrer indecentemente a tudo quanto era figura de estilo excessiva. E claro, estava a falar de mim. Aquilo foi um fait-divers. Não aconteceu a mais ninguém.

    Mas sabem uma coisa?, a minha vida é minha e eu não sinto nenhuma espécie de interesse em andar para aqui a partilhá-la com centenas de pessoas que não conheço. E, se não gosto de falar da minha vida, ainda gosto menos de falar das minhas doenças. Só me faltava agora começar a despedir-me de toda a gente com o fatídico “então boas melhoras”. Não, eu só falo destas experiências quando percebo que elas estão a estender-se aos portugueses em geral. E ali, nas Urgências de Évora, onde ficávamos semanas a fio nas nossas macas à falta de camas nas enfermarias, os portugueses não eram só os que estavam doentes, como nós. Eram também os nossos cuidadores.

    Os médicos, enfermeiros e auxiliares faziam o seu trabalho com muito carinho. Mas debatiam-se com uma tal falta de meios, aquilo ali era tudo tão extremo, que todos os dias tinham de recorrer a uma corda feita de lençóis cortados em tiras para amarrar as mãos de uma senhora à maca. Era para a protegerem de si própria. Senão, ela arrancava a algália, tirava a fralda, coçava-se até fazer sangue, desaparecia – e não podia estar sempre alguém ali ao seu lado.

    Portanto, eles mantinham a máquina a funcionar com o que tinham à mão e sabiam usar.

    Pelo menos com uma senhora.

    Chegava a ser com duas ou três.

    No fim disto tudo, os turnos eram muito lentos. E ficavam muitas pessoas a dormir em hotéis. Quando se passam dez dias numa Urgência, ouvir os telefonemas dos outros transforma-se muito depressa numa rotina. E admirar a sua dedicação também. Desculpem, mas eu vim de lá a admirá-los, mesmo.

    E a considerar que mereciam ser condecorados pelo PR, seriamente.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Reparem que eu escrevi “vai visitar”, e nunca na vida “tenciona visitar”. Já ninguém duvida da seriedade do PR quando ele nos transmite as suas intenções.

    [2] Reparem que, mesmo assim, nunca escrevi “demagógicos”. É evidente que o nosso PR já há muito que conquistou o nosso respeito.

    [3] Pronto, lá saiu o palavrão. Para esta frase fazer  sentido, tinha mesmo que sair.

    [4] E pronto, está reposta a justiça.

    [5] Vamos lá ver, eu gosto imenso de bola, e o Campeonato do Mundo é pura adrenalina. Mas sobrelotar as notícias com a vitória da Argentina – porquê? Temos alguma ligação especial com a Argentina que eu não esteja a ver, na minha imensa ignorância? Esta vitória é bastante mais simpática do que a alternativa de ter ganho a França, mas, insista-se: a Argentina é um país com o qual não temos nenhuma relação de proximidade que justifique tanta berraria portuguesa. E está bem que todos os directores de informação têm necessidade de encher os chouriços dos seus canais, mas neste momento o Mundo está cheio de notícias grosseiras que se vêem muito bem, e reparem que ainda nem o Eduardo Cabrita nem a mãe da pequena Jessica, dependendo do gosto de quem está a ler-me, começaram sequer a ser adequadamente fustigados na praça pública.

    [6] António, vá lá. Então? É preciso repetir-lhe que não está sozinho? Não está, mesmo. Nenhum de nós gosta do Putin. É uma praga do Egipto ainda pior do que o Trump, nenhum deles há de ir embora tão cedo, e na realidade ninguém sabe o que é que aconteceu às Pussy Riot. Vamos lá, homem. Lidere-nos. Peitaça para fora.

    [7] Estão mesmo. É um sufoco. Vamos concentrar-nos em resolver este dilema, ou quê? Somos ou não somos uma Nação?

    [8] Foram os Bombeiros que arrombaram a minha porta e me levaram já inconsciente para o Hospital de Évora. Se o Governo, na sua total frieza de maioria absoluta, escolher mesmo começar a deixar de financiá-los, quem é que vai acudir às pessoas como eu?

  • Este é o corpo de Cristo

    Este é o corpo de Cristo

    Jesus Maria Corcovan era uma vereda que ia dar ao humanitarismo. Tentava aliviar o sofrimento, procurava mitigar a dor, compartilhava a felicidade. Não existia nenhum Jesus Maria endurecido, ou com pensamentos negros. O seu coração estava sempre disponível para quem dele quisesse fazer uso. A sua energia e o seu engenho estavam abertos a todos os que, nestes dons, fossem menos ricos do que ele.

    John Steinbeck

    Tortilla Flat


    Pois então, ora muito bem.

    Sendo a realidade aquele monstro incontornável que mais cedo ou mais tarde nos apanha a todos nas curvas, também eu acabo de passar pela experiência sui generis de já estar extremamente doente em casa, acabar por ser socorrida pelos bombeiros, e depois ficar a receber o tratamento para a minha colite em cima de uma maca, nas Urgências de um grande hospital, durante os oito dias consecutivos que contribuiram para instalar a minha pneumonia. E atenção, nem imaginam a quantidade de velhinhas como eu que para ali estavam. Exactamente como eu, reitere-se: de batinha aberta atrás e  cabelo empastado, de fraldinha e algália, algumas de nós em prantos e outras de nós em brados, todas nós com a nossa dignidade a esquivar-se para cada vez mais longe.

    Agora, eu sei que esta descrição confere com todos os horrores que nos contam a propósito do Sistema Nacional de Saúde, mas mete-se-me pelos olhos dentro que seria criminoso deixar a descrição ficar por aqui depois de ter sido pessoalmente chamada a fazer parte integrante de um pesadelo desta envergadura.

    Acontece que todas as ladainhas das desgraças da Saúde, tantas vezes recitadas aos ouvidos cansados dos Portugueses, têm um outro lado da moeda, e é absolutamente inacreditável que ainda ninguém tenha dito uma palavra a seu respeito. Porque, desse lado da moeda, de noite e de dia, estão a compaixão, o carinho, a paciência, de todo aquele pessoal encarregue de zelar por nós: auxiliares, enfermeiros, medicozinhos fresquinhos acabadinhos de sair do curso, e ainda maqueiros, bombeiros, meninos sangradeiros – toda aquela gente nos tratava como Jesus tratou os pobres, os pescadores, e as prostitutas. Toda aquela gente levava muito a sério o seu Juramento Hipocrático. Toda aquela gente, por muito que se estafasse, estava impecavelmente organizada para nos acudir. E, depois de percebermos isso, já podíamos respirar fundo e entregar-nos nas suas mãos. Com um alívio imenso, pelo menos do tamanho das nossas dores e maleitas…


    … Não estou a brincar, nem a inventar, nem a exagerar. Fiz mesmo o número das velhinhas, 100% by the book: passei tanto tempo naquela minha maca que deu para perceber que as histórias das outras senhoras mal se distinguiam da minha.

    E então a narrativa é mais ou menos assim, no que diz respeito às partes que eu recordo[1]:

    Comecei por ficar fechada em casa porque seria de loucos ir às Urgências por causa de uma mera intoxicação alimentar. Depois comecei a deixar cair tudo das mãos, e a espalhar cacos por todos os meus cantos. Depois comecei a tropeçar, e depois comecei mesmo a cair. Depois comecei a ter períodos de inconsciência, ao que consta cada vez mais prolongados.

    E depois, por fim, um dos meus melhores amigos, a quem eu nunca mais atendia o telefone, assustou-se. Não esteve para mais meias medidas, e chamou logo os bombeiros. Os bombeiros, profissionais de salvar velhinhas, arrombaram-me logo a porta e vieram em meu socorro.

    Ainda me lembro de estar a vê-los subir a escada.

    E, depois disto, não me lembro de mais coisíssima nenhuma.

    Entrei inconsciente no Hospital de Évora, recuperei os sentidos já em cima da tal maca, demorei um bocado a perceber onde estava e a lembrar-me do nome da cidade onde vivo, ainda meti água da primeira vez que me perguntaram a idade[2], e a seguir começaram a passar dias e dias e dias, todos iguais e todos perfeitamente amparados pela tenacidade e pela dedicação das equipas que se iam sucedendo à cabeça do serviço.

    Ouvimos dizer que este era o Corpo de Cristo. CPC esteve infiltrada e investigou.

    Todos os dias vinha sempre uma dupla de uma auxiliar com uma enfermeira, de peso e altura muito bem calibrados, para evitar desequilíbrios, fazer-nos os chamados posicionamentos. Ou seja, nós torcemo-nos todas a tentar dormir, e a dupla repõe-nos direitinhas dentro dos confins complicados da nossa maca, para evitar mais dores musculares. E vêm ter connosco sempre de cara alegre, embora muitas vezes o nosso peso bruto as obrigue a verdadeiros trabalhos forçados. Mais: vêm sempre a tratar-nos por querida, vizinha, meu amor, princesa, e outra coisas assim. Coisas mesmo boas de ouvir no caos aparente de uma Urgência.

    Todos os dias vinha sempre um médico muito querido fazer-nos o update da nossa situação clínica com voz de veludo, e explicar-nos, uma vez mais, que só estávamos ainda ali nas Urgências porque não existia, mesmo, qualquer espécie de vaga na Medicina Interna. Isto está assim em todos os hospitais. Não há mais espaço, e não há mais pessoas. Mas os portugueses, abalados pela crise da COVID, e logo a seguir pela crise da Guerra da Ucrânia, andam cada vez mais deprimidos. O que quer dizer que ficam cada vez mais doentes. Mas agora não se preocupe, e tente mesmo descansar.

    Todos os dias íamos fazer um ou outro exame, e depois o especialista punha-nos a mão no braço com muito cuidado, e dizia, com toda a sinceridade, então as suas melhoras.

    Todos os dias alguém nos levava até à casa de banho, a empurrar a maca com imenso jeitinho. E, depois de lá estarmos dentro, a pessoa lavava-nos e dava-nos um banho. Tal e qual como a Madre Teresa quando lavava as chagas dos párias de Mumbay. Este é o corpo de Cristo.

    Todos os dias aparecia por lá o maqueiro Ricardo, que nos brindava com piadas eruditas, tipo, confie em mim que eu sempre fui um homem muito à frente e até tirei logo a carta de condução em 1652 que era para ficar despachado.

    O que a Comunicação Social nos diz é uma tanga descarada ao pior estilo tuga da esperteza saloia.

    É muito fácil apupar, denegrir, e deitar abaixo tudo o que ainda estiver em pé. Entretanto, em absoluto anonimato e subjugado por faltas de condições orçamentais que o ultrapassam, o Serviço Nacional de Saúde continua a funcionar com a maior abnegação deste mundo. Num País nada espartano e muito pouco dado a heróis, estas pessoas que acumulam horas, e dormem em hotéis para conseguirem acudir-nos a todos por igual, são a verdadeira definição de tudo quanto é estóico e de tudo quanto é heróico.

    Então e o nosso Presidente, que gosta tanto de condecorar os seus súbditos? Nem sequer lhes dá uma medalha?

    Isto é tudo uma vergonha, uma vergonha, uma verdadeira vergonha![3]

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Disseram-me que houve várias outras, mas a questão parece-me despicienda. Foram todas partes gagas de velhinha.

    [2] De certeza que foi por causa do romance que acabei agora mesmo de escrever. A principal protagonista tem 53 anos. Foi isso mesmo que eu comecei por dizer ao medicozinho Emanuel Noivo, quando, na realidade, estou quase a fazer 63. Em troca da gaffe, ele mediu-me a tensão e a temperatura. Sem comentários. Não se pergunta a idade às senhoras.

    [3] Estava sempre a repetir a Dona Isilda, que passou cinco dias na maca ao lado da minha.

    Nota: O título da crónica “Este é o corpo de Cristo” remete para a máxima que os frades e freiras da Ordem dos Missionários da Caridade (criada por Madre Teresa de Calcutá, em 1950) repetem uns para os outros e para si próprios enquanto lavam os corpos esqueléticos, imundos, e lacerados dos Intocáveis.

  • As hienas, de novo

    As hienas, de novo

    As hienas não merecem respeito algum e falam inglês com sotaques

    que soam vagamente a nativos do Médio Oriente.”

    Binyavanga Wainaina

    Conselhos ao Jovem Escritor Africano


    Não deixa de ser intrigante, isto das mentiras de uns longevos dirigentes socialistas um tanto ou quanto metidos a hienas. Com todo o devido respeito, note-se. Mas quer dizer, pois se formam grandes bandos, se organizam as suas manobras a coberto do escuro[1], se a gente as ouve rir sem conseguir vê-las, se se alimentam do trabalho que os outros fizeram[2], se nos enganam tão bem que nem sequer conseguimos distinguir os machos das fêmeas[3]

    …isto é assim: o que parece uma hiena costuma ser uma hiena.

    Mas até as hienas assumem logo ali que metem nojo e passam à frente[4]: só mentem na imitação de escroto que caracteriza estas fêmeas e mais nenhumas, que é para deixarem bem claro que naqueles bandos são elas quem manda[5], e mais: são sempre elas as últimas a rir[6]...


    … É verdade que, na nossa cultura, começámos por memorizar imensos preceitos, mínimos e sensatos, que nos permitissem conviver sem nos comermos vivos logo todos uns aos outros. É por isso que decorámos na escola[7] regras básicas tais como não matarás, ou não cobiçarás a mulher do próximo [8], e tal. Mas por favor, reparem neste detalhe: é certamente um bocado assustador não constar, nem ao menos nos Dez Mandamentos, nada que nos diga, com toda a clareza, não mentirás[9].

    Eu, pelo menos, acho mesmo que é um bocado assustador.

    Ou então podemos considerar que existiam nesse tempo certas atenuantes.

    Se calhar, como na altura em que Moisés viu a sarça ardente existiam muito menos pessoas, com muitíssimo mais espaço para se manterem afastadas umas das outras, mentir não estava sequer na ordem do dia. Aliás, bem vistas as coisas, de que é que serve mentir, quando os herdeiros das supramencionadas regras básicas de convívio ameno passam quarenta anos às voltas no deserto,[10] e entretanto Deus os conforta com imensos milagres[11]?

    Ou então, também pode ser que as pessoas ainda nem sequer estivessem conscientes das potencialidades aliciantes deste privilégio humano, certamente engendrado pelo fruto da Árvore da Sabedoria, uma vez que mais nenhum outro animal sabe mentir.

    Enfim.

    Aceitemos que ninguém sabe como foi que isto aconteceu – mas a verdade é que isto aconteceu mesmo. E, onde ainda em pleno século XX tínhamos excepções horrorosas de quem era fácil não gostar, como por exempplo o Estaline ou o Pol Pot, agora a excepção passou a ser a regra, e sabe esconder-se muito melhor.

    A meio do século passado, o grande Churchil bem pode ter dito que a democracia é o pior sistema político que existe, à excepção de todos os outros. Este aforisma genial ainda nem fez cem anos, e já ninguém se lembra dele. Com a passagem dos milénios, uma classe profissional inteira especializou-se magistralmente na perfeição de mentir sem qualquer sinal visível de vergonha, e conseguiu chegar ao ponto de ganhar todas as eleições democráticas do mundo.

    E aqui está o resultado que ninguém  viu chegar a tempo de lhe pôr os travões a fundo.

    Entramos no século XXI e já ninguém sabe quem era esse gajo, esse Churchill: em vez dele, temos antes o Trump, o Putin, o Kim Jong-un, o Xi Jinping, a COVID-19 a tornar tudo ainda mais suspeito – para não falar de uma data de sobas africanos tão ricos que até dói, ou de um enxame de chefes tribais do Médio Oriente de cujas mãos escorre o petróleo que move o mundo. E mais todo o ruído de fundo que nos rosna às canelas de dentro da grande destilaria de veneno vinda da internet. Todos eles nos mentem. A gente ouve-os, e sabe que eles estão a mentir. Mas em 2022 a verdade é esta, e é horrível: agora, já não podemos fazer nada.

    Aqui podemos ver a Prof.ª Doutora Clara Pinto Correia considerando cada vez mais seriamente a sua nova carreira política. Como também podemos ver, a Prof.ª tem vindo a fazer progressos. Progressos pequenos, sem dúvida, mas significativos, nevertheless. Primeiramente, já aprendeu a parecer uma senhora que frequenta assiduamente os croquettes do Ministério da Cultura. E seguidamente, mais importante que tudo, até já consegue sorrir de forma perfeitamente credível. No entanto, o que realmente ainda não conseguiu decidir foi que bancada é que vai escolher para continuar a citar o Jorge Palma: o seu coach impede-a de chegar a essa fase, porque continua a considerá-la uma das piores mentirosas que alguma vez lhe passaram pelas mãos. “E ó Professora, a senhora por favor enxergue-se enquanto ainda vai a tempo. Ou acha mesmo que sobrevive no shark-tank se vai aparecer assim nas festas do seu partido?” – “Aaaah… assim como, mister?” – “Ó senhora, pela sua rica saúde… assim sempre sem sutiã, com a gaita! Ou o que é que acha? Acha mesmo que alguém se vai dar sequer ao trabalho de ouvir as intervenções de uma gaja de 62 anos que nunca usa sutiã?” – “Mas, mister…” – “Mas my ass! Não lhe bastou aquilo do orgasmo?”

    O que nos traz de volta ao Primeiro Ministro a falar ao País pela televisão, sorrindo, fitando de frente a câmara, e garantindo a todos nós que em Outubro 99% dos reformados ia receber mais 50% da sua pensão.

    Ficámos na parte em que eu, espertíssima, vi logo que o grande ilusionista estava outra vez a mentir: se já não eram todos os reformados mas apenas 99% , então de certeza que entretanto iam fazer-se para ali uns truques e os laissés pour compte[12] acabavam aí nos 50 ou 60%.

    O que vale é que, de facto, já quase ninguém acredita nos políticos. Pelo menos, nenhuma pessoa com quem eu tenha falado aqui em Estremoz, e toda a gente com quem estive ao telefone para todos os quadrantes do País. Isto é horrível em si mesmo, mas é o que tem que ser: a única arma de defesa que ainda resta e é de graça: a gente não quer voltar a aleijar-se, e portanto a gente nem os ouve. Esqueçam os vossos mitos urbanos: os alentejanos são super-rápidos e ultra-espertos. Ó Clarinha, e logo a Clarinha que é tão inteligente. Então está-me a dizer a mim que ele disse isso? Pois com certeza, quando é só para dizer eles dizem todos muita coisa.

    E depois eles ficam-se a rir, porque eles são como as hienas.

    Não há nada que o povo de Estremoz não saiba há já muitos séculos[13].

    Daí a quinze dias, misteriosamente, metade das pessoas que percebem profissionalmente de dinheiro, como por exemplo os contabilistas, ainda repetiam 50%. Mas, entretanto, já corria outro rumor, vindo sabe-se lá de onde, segundo o qual todos nós, fosse qual fosse a nossa pensão, íamos receber por igual 125 euros. Já ninguém percebia, mesmo, onde estava a verdade. E, sobretudo, nenhum de nós conseguia descobrir quando é que essa verdade entraria nas nossas contas.

    E assim se passou todo o mês de Outubro, sem que nunca, mesmo nunca, a contar até dia 31, tivesse entrado fosse que ajuda do governo fosse nas finanças magras dos habitantes daqui do fundo da vaza[14].

    E a parte mais espantosa? Pelo menos para mim, que ainda gostava de saber o que é que hei de fazer pela Lua[15]? É que as nossas hienas nem se deram ao trabalho de fazer para ali uns malabarismos que justificassem o incumprimento da promessa. Nada, não disseram nada. Limitaram-se a deixar chegar o dia 1 de Novembro. E pronto. Daqui a mais dois ou três dias já é Natal.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Palavra que consabidamente pode ter um número impressionante de segundas intenções – e nunca são boas.

    [2] Mas vocês julgam o quê, que caçar herbíboros é um hobby? Perguntem ao chita, aquele felino lindíssimo que é o animal mais rápido do mundo, capaz de atingir 114 km/h no sprint final atrás da gazela. Assim que a apanha, a primeira coisa que faz é fugir com a presa nos dentes para um lugar seguro. Sabe perfeitamente que, se ficar ali uns minutinhos a mais que seja, vem logo de lá um bando enorme de hienas ridibundas, que…

    [3] Força de expressão. Qualquer biólogo os distingue. O macho, coitadinho, é mais raro, é mais pequeno, tem o pêlo mais ralo, e o seu escroto é menos visível. O escroto das fêmeas é só um disfarce, mas vê-se muito bem.

    [4] Claro, chatas e barulhentas, todas a falarem inglês com os seus sotaques do Médio Oriente como se quisessem obrigar-nos a ver a Al-Jazheera o dia inteiro, mas pronto: o que interessa é que não escondem que são hienas.

    [5] Eu sei, dá uma péssima imagem do meu próprio género. Mas isto é biologia, não é política.

    [6] Por acaso também há aquela canção do Jorge Palma que… ná, esqueçam. Coitado do Jorge. Cantava aquilo como se estivesse realmente apaixonado pelo seu tal de Anjo Mau.

    [7] Eu estava num colégio de freiras, mas isto era assim em toda a Metrópole e em todas as Colónias: os Dez Mandamentos decoravam-se nas aulas de Moral e Religião Católica da primeira classe. E, nesse tempo, não havia cá modernices tipo cadeiras opcionais. QUANTAS VEZES É QUE EU TENHO QUE REPETIR QUE ISTO É UMA DITADURA EM GUERRA CONTRA OS COMUNISTAS DAS COLÓNIAS, SEUS PALERMAS?

    [8] OK, OK, OK, eu também adoro citações por extenso, sei perfeitamente que, da mesma forma, não podemos cobiçar-lhe nem a casa, nem os servos, nem, sobretudo, e claro que esta é a minha preferida, nem o seu boi ou o seu jumento. O que, quando se é uma menina malcriada, dá logo vontade de perguntar às freiras se ao menos a gente pode cobiçar-lhe o cavalo. Depois entra-se na adolescência e perde-se a graça. Só nos ocorre aquele previsível “ó Irmã, mas então eu posso cobiçar os maridos das minhas próximas, certo?”

    [9] Peço desculpa, mas Não prestarás falso testemunho contra o teu próximo é uma referência à mentira extremamente restritiva.

    [10] Isto, ao menos, percebe-se logo que foi por culpa do Moisés. Está certo que falava com Deus, mas que diabo, era um gajo. Enquanto tal, de certeza que se recusou a perguntar o caminho fosse a quem fosse, porque é isso que todos os gajos fazem. E NINGUÉM que seja guiado por Deus demora quarenta anos para atravessar aquela faixazinha dispicienda de deserto que vai do Egipto à Palestina. Tenham dó.

    [11] Estão a ver aqueles filmes todos de seu nome A BÍBLIA, antigos e modernos, cheios dos efeitos que cada época permite? O Mar Vermelho a abrir-se para o Povo Eleito e a fechar-se sobre as poderosas  quadrigas dos Egípcios? O direito diário àquele famoso maná que vem do Céu e alimenta o corpo e a alma? Ora bolas, assim também eu.

    [12] O País continua assim, e eu, da próxima vez, escrevo mesmo os damnés de la Terre. Ah! Adoro exibir alarvemente toda a minha inesgotável erudição.

    [13] Incluindo que Olivença é nossa. Oiçam falar os  amantes de arquivos que estudaram o apoio da cidade às tropas liberais: de repente, faz tudo sentido.

    [14] Mais outra expressão de biólogo: aplica-se às tainhas, por exemplo. que se alimentam da porcaria toda que se junta no fundo das águas salobras. Mas depois são muito boas quando as fritam em vinagre, acreditem.

    [15]A gente já não sabe o que há de fazer pela Lua” é uma das minhas citações repentistas do Jorge Palma, utilizada, ali, mesmo a matar, na crónica anterior.

  • Necrófagos

    Necrófagos

    “O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente,

    pelo que os grandes homens são quase sempre homens maus.”

    Lord Dalberg-Acton

    in THE RAMBLER, 1859


    Ó Mãe, mas tu vais ficar zangada… Ó Mãe, mas não foi de propósito… Ó Mãe, mas eu gosto muito de ti… E, se eu os deixasse, os meus filhos continuariam nestes preliminares durante uns bons vinte minutos[1] antes de me confessarem a última grandessíssima porcaria que tinham cometido no caminho mínimo da escola para casa.[2] De maneira que eu cortava imediatamente a choraminguice com o meu já bem conhecido e deveras sonoro: Ó FILHOS! A ÚNICA COISA QUE A MÃE NÃO ACEITA QUE VOCÊS FAÇAM É MENTIR, PORQUE MENTIR É QUE METE MESMO NOJO! OK? E não os endoutrinei assim só por total falta de paciência para preliminares[3]. Foi mesmo porque há que horrorizar as criancinhas com o asco de mentir tão cedo quanto possível. Senão, elas vão mesmo mentir o mais que puderem, porque toda a gente que vêem na televisão ou está a mentir ou imita muito bem, o que é particularmente chato a partir do momento em que as pessoas inventam a democracia. Porque depois descobre-se, com grande horror, que não há ninguém neste mundo que minta mais do que os políticos. Sobretudo quando se apanham de posse do poder absoluto. E então… A gente já nem sabe o que há de fazer pela Lua[4]!


    … Este é um exemplo dessas mentiras que fez muita gente passar mal durante o mês de Outubro, portanto tenho a certeza de que não há pensionista que não se identifique. Pelo menos aqui em Estremoz, onde me fartei de fazer sondagens sobre o assunto a toda a gente com idades iguais ou superiores à minha. Uma vez mais, a história começa com António Costa a fazer o seu sorriso de proprietário da maioria absoluta. A gente percebe logo que vem lá bazuca.

    Desta vez, o Primeiro-Ministro veio explicar à Nação, em directo e ao vivo no noticiário das 20, que sente no próprio peito a aflição que o povo português está a sentir por causa da perda do poder de compra resultante da guerra na Ucrânia. E que, tendo em conta essa aflição que não pára de crescer, como o seu governo bem gostaria, mas, na realidade, não consegue mesmo ajudar toda a gente[5], decidiu pelo menos ajudar os reformados. E portanto, já em Outubro, cada reformado vai receber mais 50% da sua pensão.

    Eles são mesmo bons nisto. Conseguem fazer as pessoas deixar de pensar. As declarações de António Costa foram tão ambíguas que muitos reformados quase que dançaram em pontas, imaginando que iam viver substancialmente melhor daí a quinze dias[6]. Devemos ter sido tantos que o chefe dos necrófagos voltou ao noticiário logo no dia seguinte, compelido a explicar a todos estes analfabetos funcionais, a estes reformados como nós, que a sua generosidade, nunca vista, se aplicava exclusivamente ao mês de Outubro. Mas fiquem descansados, ó pobres mexilhões[7]: posso garantir-vos que pelo menos 99% dos reformados vai mesmo receber em Outubro os seus 50% adicionais.

    Olhem. Eu, pelo menos, recomecei a pensar logo ali no acto.

    Olha que pena. Afinal o senhor até já está a preparar o caminho para uma justificaçãozinha burocrática da treta que vai transformar esses 1% aí nuns bons 50%. É mais forte do que eles, só pode ser: este político, tão experimentado e tão hábil, já está outra vez a mentir. Que tristeza. Vou mas é ignorar as notícias, mudar completamente de canal e de agulha, e ver ou um bom bocado de FAMILY GUY ou um bocado de THE BIG BANG THEORY ainda maior, que isto não é propriamente a melhor fase do campeonato para nos darmos ao luxo de ficar clinicamente deprimidos.

    Raios me partam, que sou mesmo ingénua.

    Ali a imaginar que já tinha topado o golpe quando ainda nenhum de nós sabia nem da missa a metade.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora

    Profª. Doutora Clara Pinto-Correia considerando a sua nova carreira na política. Por enquanto ainda não tomou decisões sobre a bancada a seleccionar para poder ao menos espadeirar citações do Jorge Palma em tudo iguais ao original, excepto na honestidade: ainda não vale a pena gastar neurónios nessa selecção, porque o seu coach de bem mentir continua a recusar-se a conceder-lhe o devido e indispensável diploma. A Professora ainda nunca conseguiu mentir sem abrir logo ali o jogo mostrando-se visivelmente desconfortável. Ó Professora, sabe porque é que precisa de esforçar-se mais do que os outros? É simples. Foi doutorar-se para a América em vez de ir fazer o tirocínio das Jotas. Sua tontinha. Vamos lá tentar outra vez: “adoro ter que partilhar casas com completos desconhecidos que, tal como eu, sozinhos nunca conseguiriam pagar uma renda de Lisboa”. E mostre um bocado mais de entusiasmo, se faz favor. Ou acha que é pedir muito?

    [1] No mínimo. Quando jogávamos aos preliminares durante as viagens de carro eles chegavam a estar uma hora inteira nisto sem nunca se repetirem.

    [2] O que não impede que tivessem cometido outra cinco minutos antes.

    [3] Quer dizer, preliminares de filhos que estão com medo do castigo da Mãe, entenda-se.

    [4] Citação do Jorge Palma, uma vez mais feita de cor. Ha!

    [5] Porquê, mas porquê, mas porquê? É que ELES, esta parte, nunca explicam.

    [6] Eu, por exemplo. A minha reforma nem chega a atingir o salário mínimo.

    [7] Para quem já não conheça os provérbios portugueses: “Quando o mar bate na rocha quem se lixa é o mexilhão.”

  • … E tá-se tudo a passar…

    … E tá-se tudo a passar…

    “Torna-se cansativo deixar de poder acreditar na espontaneidade.”

    António Cabrita

    O mundo não tem pressa


    Solo de saxofone.

    Voz:

    Jonas está agarrado ao seu saxofone/ A namorada deu-lhe com os pés pelo telefone/ E ele encontrou inspiração numa notícia de jornal/ Acerca de uma mulher que foi chamada a tribunal/ Por ter assassinado uma criança recém-nascida/ E o juiz era um homem que prezava muito a vida/ E a pena foi agravada por tudo se ter passado…

    Três acordes de piano.

    Voz:

    DO LADO ERRADO DA NOITE...


    … O que é que eu estou para aqui a fazer?

    Pensei que fosse evidente. Estava a citar o Jorge Palma, não era? E estava a fazer a citação completamente de cor e salteado, porque foi isso mesmo que os outros senhores fizeram, e se eles podem eu também posso, porque também sou filha de Deus. Se a demagogia dos políticos já chegou ao ponto de andarem ao soco em público usando uns contra os outros as palavras de um homem que fugiu a salto para França no trilho por onde se escapava às garras do Antigo Regime, e que depois sobreviveu longos anos a cantar no metro, e que depois voltou a casa na euforia da Revolução mas ainda se passaram no mínimo três décadas até que as pessoas deixassem de considerá-lo um completo marginal…

    … bem, deixem-me respirar, coitado do Jorge, que pouca vergonha…

    … porque vocês viram, não viram? Ou fui só eu que vi? Aquela sessão inacreditavelmente penosa do Parlamento, em que tanto o nosso Primeiro como as bancadas da Oposição se desdobravam em mortais empranchados e flic-flacs à rectaguarda para começarem cada um dos seus discursos ocos com uma boa citação do Jorge Palma? Que horror. Era o António Costa, com aquele seu ar de pasha repimpado, todo confortável em cima da sua maioria absoluta que tem vindo a tornar-se cada vez mais desconfortável, a fechar qualquer coisa que não queria dizer nada com um sorridente…

    “… e, citando o Jorge Palma, Enquanto houver ventos e mar/ A gente vai continuar…

    Para ser atacado pela bancada do PSD com um retumbante…

    “… Ó Senhor Primeiro Ministro, se é para citar o Jorge Palma o senhor está é Frágil, está tão Frágil que já nem consegue ser ágil[1]

    … seguido de qualquer outra coisa que também não queria dizer nada; para logo a seguir ser agredido por um deputado da direita que se apressou a bradar, sem sequer acrescentar a seguir mais qualquer coisa que não quisesse dizer nada…

    “… e o Senhor Deputado escusa de fazer de conta que repudia as políticas do governo, porque, para citar o Jorge Palma, anda há imenso tempo a implorar-lhe Encosta-te a mim

    … o que foi um desfecho verdadeiramente horrível, porque, de todas as grandes canções do Jorge Palma, este lean on me[2] em português é a única que pode considerar-se verdadeiramente foleira[3].

    E é pena os Senhores Deputados irem todos para casa cedo, senão ainda poderíamos ter assistido a um encerramento operático, em que toda a gente, nas bancadas e na assistência, cantava em coro polifónico uma das verdadeiras grandes canções de Jorge Palma…

    “… São sete da tarde e tá-se tudo a passar/ Uns andam em frente e outros querem virar…”

    Uma vez mais, citado de cor.

    Não se metam comigo no que toca a citar o Jorge Palma. Ao menos isso.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Citação, ainda por cima, neste caso feita de forma incorrecta para servir os propósitos dos oradores.

    [2] Em português, “lean on me” traduz-se, literalmente, por “Encosta-te a mim”.

    [3] Opinião que talvez seja só minha, mas esta crónica também é.

  • Casos gritantes, exasperantes, e muitíssimo inquietantes da péssima comunicação social: 3ª parte

    Casos gritantes, exasperantes, e muitíssimo inquietantes da péssima comunicação social: 3ª parte

    Bem, bem.

    Ça se complique[1].

    Agora já estou a receber pedidos de tudo quanto é desconhecido para explicar melhor porque é que é tão difícil ressuscitar um cérebro – ou, ao menos, por que é que um cérebro é um órgão de tal forma complicado que, depois de morto, já não voltamos a conseguir acordá-lo.

    Há que ver que eu fiz o doutoramento em fertilização no mamífero, fiz o pós-doutoramento em clonagem no mamífero, e daí parti para Harvard para estudar História da Biologia sob a supervisão do genial Stephen Jay Gould. Até hoje, é sobretudo em História da Biologia, estreitamente associada à História das Ideias, que continuo a trabalhar. No que diz respeito ao cérebro, sei apenas todas as banalidades que todos os Profs que trabalham em Medicina, Biologia, Veterinária, ou assim, têm mesmo que saber para conseguirem dar aulas dignas desse nome e mais ainda – aulas animadas e interessantes. Portanto, explicar coisas destas às pessoas é para mim uma grande responsabilidade. Mas, pelo menos, tem desde já o mérito de confirmar a minha suspeita de sempre: as pessoas GOSTAM de saber as coisas, GOSTAM de entender o que está realmente em causa – desde que a gente faça o esforço de lhes falar numa linguagem que elas entendam…


    … Bom. Antes de mais nada, e ao contrário da esmagadora maioria dos componentes do nosso organismo, já vamos ver que o cérebro é um órgão extremamente social. E isto acontece porque é feito de diferentes peças de um puzzle tramado. Enquanto os outros órgãos, incluindo o já tão falado coração, são constituídos por células mais ou menos banais, o cérebro é antes constituído por neurónios[2], todos eles com os seus axónios e as suas dendrites. Gostaram?[3] Vistos ao microscópio estes conjuntos parecem arvorezinhas, mais ou menos folhosas, com raízes mais ou menos pequenas e mais ou menos ramificadas. Da disposição correcta desta vegetação depende a passagem correcta dos impulsos eléctricos que transportam a informação de um lado para o outro, e, finalmente, a transmitem ao Sistema Nervoso Central.

    E então vamos à parte social.

    É ela que permite que tudo isto corra bem.

    Clarinha em péssimo estado.                                               
    Em relação a esta foto, devo dizer que as pessoas nunca perceberam mesmo nada. Fazia parte de uma qualquer campanha, das muitas que houve na altura, sobre a cultura portuguesa imediatamente antes de nos juntarmos à União Europeia. Eu nesse dia estava doente, mas mesmo, mesmo doente – com 39 graus de febre, dores no corpo todo, hemorragias, suores frios que me molhavam a roupa toda, o cardápio inteiro do que devia ser um desses acessos de paludismo que eu tenho de vez em quando e no dia seguinte já passaram. Mas não quis deixar ficar mal os escritores do meu País e fui à mesma – porque o corpo podia estar numa miséria, mas o cérebro continuava a funcionar perfeitamente. E, desde que o seu cérebro trabalhe, qualquer pessoa doente pode ir dar entrevistas à confiança.
    Mas não estava de todo à espera de um dos resultados dessa entrevista feita exclusivamente de cérebro. A conversa e as fotos acabaram por ser publicadas nem sei onde, e ouvir os comentários subsequentes das pessoas é que foi estranho, mas a sério, foi mesmo estranho – e, ainda por cima, durou várias dias.
    Era tudo, sempre, mais ou menos assim, Fosse gajo ou fosse gaja,
    E isto porque o Rainbow ainda não existia à altura:
    Naquela foto fantástica, eu estava tão misteriosa… tão sensual… tão impossível de não olhartão incomparávelvia-se logo, tão inteligente e ao mesmo tempo tão vulcânicatão impossivelmente interessantetão diferente dos outros… nada a fazer, reconhecia-se logo ali que eu era, mesmo, a Princesa de Portugal[4]
    … Não, oiça, é um mal-entendido, eu estava era cheia de febre…
    … Ah, por favor, não desrespeite o dom que lhe foi atribuído por Deusestá-lhe no sangue, não brinque com isto.
    E nada a fazer, eu apenas tentava acabar delicadamente a conversa o mais depressa possível.

    É durante a gravidez que o cérebro em formação vai pondo o seu puzzle na única ordem correcta possível, mas não pode fazer isto sozinho: organiza-se sempre em estreita ligação com as informações que vai recebendo do útero materno, e das informações que ele próprio faz sair para a barriga da mãe, que podem alterar em seu proveito as condições da gravidez.

    E, para o cérebro, a gravidez engloba tudo o que o rodeia: vai de tudo o que acontece para mais tarde regular a duração dos ciclos hormonais até ao funcionamento cuidadosamente funcional do cordão umbilical. O que nós somos ao nascer é 50% genes do feto e 50% útero da mãe[5].

    E não é tudo.

    Para estar completamente pronto e activo, ao ponto de nos permitir executarmos funções que consideramos tão básicas como aprender a ler e escrever, ou mesmo contar, o nosso cérebro ainda precisa de todos os estímulos externos, de todos os pensamentos, de todos os sonhos, e de todas as tristezas e alegrias, que tivermos armazenado em memórias nos nossos primeiros quatro anos de vida. Ou seja, o cérebro só está pronto na altura em que começamos a lembrar-nos de nós próprios.

    Pois é, pessoal.

    Não há coincidências.

    Nas Ciências Vivas não há, de certeza.

    Agora continuam a achar que uma maquinaria destas se reanima, mesmo depois de já estar morta? Fixe. Como diria o saudoso Dirty Harry, Go ahead and make my day. É que, se alguém conseguisse, ia direitinho da publicação para o Nobel.

    E, muito provavelmente, por trás desse Nobel existiria uma placa giratória que o projectaria para altos lugares – porque aquela pessoa é que sim – aquela pessoa, de um país que ninguém dá nada por ele, aquela pessoa é que compreende com toda a limpeza os mistérios incompreensíveis da actuação do cérebro.

    E o resto da Academia arrancava em coro, por trás do orador, com a sua homenagem a Portugal muito bem estudada: Vou falar-vos dum curioso personagem: Jeremias, o fora-da-lei…

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] De vez em quando ponho estes comentariozinhos em francês, apenas para dar a mim própria, e certamente às minhas crónicas, um certo je ne sais quoi mais erudito. E ando a ler umas coisinhas em alemão para, mais tarde, alargar o ramalhete com passagens do Dr. Fausto. Boa?

    [2] Descoberto por Ramon y Cajal quando trabalhava em Lisboa com Egas Moniz, no Instituto Rocha Cabral, mesmo em frente à Capela do Rato. Já alguém vos tinha contado isto? É do mais irritante que há, não é? Fazemos de propósito para que não se saiba nada dos nossos grandes feitos. Desculpem, mas citar as Descobertas não vale: foram o empreendimento mais anárquico de todos os tempos, que, em consequência, “deixou o país de tanga” (qual deles é que disse isto?), conquistado facilmente pelos espanhóis.

    [3] Peço desculpa, mas isto é uma crónica, não é uma sebenta de Histologia e Embriologia no Segundo Ano de Medicina. Quem quiser informar-se melhor, tem isto tudo muito bem explicadinho no Google.

    [4]Princesa de Portugal” era uma das frases amorosas com que os meus filhos me recebiam assim que eu entrava em casa, pelo meio de muitos beijos nas mãos – “Mãe, és bela como a Princesa de Portugal!” – durante os quatro meses assaz penosos do seu período edipiano. E o Dick, em vez de me ajudar a tirar-me os melgas de cima, ficava cheio de ciúmes e saía logo da sala

    [5] Paciência, pais. Quando o embrião começa a formar-se, assim que o ovo se divide em duas células, vocês apenas contribuíram com uma célula minúscula… que entra para dentro da maior de todas as células! Não trouxeram quase nada, à excepção do vosso ADN, o mais compactado que imaginar se possa, para conseguir nadar mais depressa pela canal vaginal acima. Mas vá. Vão poder transmitir imensas doenças (AQUI É PARA METER UM EMOJI QUE DEIXE BEM CLARO QUE ISTO ERA UMA GRACINHA __ EMBORA SEJA ABSOLUTAMENTE VERDADEIRA!). E vão ser muitíssimo importantes dos quatro anos em diante. Até lá, também, quem é que alguma vez poderá cobrar-vos por não sentirem grande interesse por aquele tubo digestivo que não está ali a fazer grande coisa que não seja acordar-vos de noite a berrar? Paciência, pais. Deitem isto tudo para trás das costas, e esperem por melhores dias.