“Torna-se cansativo deixar de poder acreditar na espontaneidade.”
António Cabrita
O mundo não tem pressa
Solo de saxofone.
Voz:
Jonas está agarrado ao seu saxofone/ A namorada deu-lhe com os pés pelo telefone/ E ele encontrou inspiração numa notícia de jornal/ Acerca de uma mulher que foi chamada a tribunal/ Por ter assassinado uma criança recém-nascida/ E o juiz era um homem que prezava muito a vida/ E a pena foi agravada por tudo se ter passado…
Três acordes de piano.
Voz:
DO LADO ERRADO DA NOITE...
… O que é que eu estou para aqui a fazer?
Pensei que fosse evidente. Estava a citar o Jorge Palma, não era? E estava a fazer a citação completamente de cor e salteado, porque foi isso mesmo que os outros senhores fizeram, e se eles podem eu também posso, porque também sou filha de Deus. Se a demagogia dos políticos já chegou ao ponto de andarem ao soco em público usando uns contra os outros as palavras de um homem que fugiu a salto para França no trilho por onde se escapava às garras do Antigo Regime, e que depois sobreviveu longos anos a cantar no metro, e que depois voltou a casa na euforia da Revolução mas ainda se passaram no mínimo três décadas até que as pessoas deixassem de considerá-lo um completo marginal…
… bem, deixem-me respirar, coitado do Jorge, que pouca vergonha…
… porque vocês viram, não viram? Ou fui só eu que vi? Aquela sessão inacreditavelmente penosa do Parlamento, em que tanto o nosso Primeiro como as bancadas da Oposição se desdobravam em mortais empranchados e flic-flacs à rectaguarda para começarem cada um dos seus discursos ocos com uma boa citação do Jorge Palma? Que horror. Era o António Costa, com aquele seu ar de pasha repimpado, todo confortável em cima da sua maioria absoluta que tem vindo a tornar-se cada vez mais desconfortável, a fechar qualquer coisa que não queria dizer nada com um sorridente…
“… e, citando o Jorge Palma, Enquanto houver ventos e mar/ A gente vai continuar…”
Para ser atacado pela bancada do PSD com um retumbante…
“… Ó Senhor Primeiro Ministro, se é para citar o Jorge Palma o senhor está éFrágil, está tão Frágil que já nem consegue ser ágil…[1]”
… seguido de qualquer outra coisa que também não queria dizer nada; para logo a seguir ser agredido por um deputado da direita que se apressou a bradar, sem sequer acrescentar a seguir mais qualquer coisa que não quisesse dizer nada…
“… e o Senhor Deputado escusa de fazer de conta que repudia as políticas do governo, porque, para citar o Jorge Palma, anda há imenso tempo a implorar-lhe Encosta-te a mim…”
… o que foi um desfecho verdadeiramente horrível, porque, de todas as grandes canções do Jorge Palma, este lean on me[2] em português é a única que pode considerar-se verdadeiramente foleira[3].
E é pena os Senhores Deputados irem todos para casa cedo, senão ainda poderíamos ter assistido a um encerramento operático, em que toda a gente, nas bancadas e na assistência, cantava em coro polifónico uma das verdadeiras grandes canções de Jorge Palma…
“… São sete da tarde e tá-se tudo a passar/ Uns andam em frente e outros querem virar…”
Uma vez mais, citado de cor.
Não se metam comigo no que toca a citar o Jorge Palma. Ao menos isso.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Citação, ainda por cima, neste caso feita de forma incorrecta para servir os propósitos dos oradores.
[2] Em português, “lean on me” traduz-se, literalmente, por “Encosta-te a mim”.
[3] Opinião que talvez seja só minha, mas esta crónica também é.
Agora já estou a receber pedidos de tudo quanto é desconhecido para explicar melhor porque é que é tão difícil ressuscitar um cérebro – ou, ao menos, por que é que um cérebro é um órgão de tal forma complicado que, depois de morto, já não voltamos a conseguir acordá-lo.
Há que ver que eu fiz o doutoramento em fertilização no mamífero, fiz o pós-doutoramento em clonagem no mamífero, e daí parti para Harvard para estudar História da Biologia sob a supervisão do genial Stephen Jay Gould. Até hoje, é sobretudo em História da Biologia, estreitamente associada à História das Ideias, que continuo a trabalhar. No que diz respeito ao cérebro, sei apenas todas as banalidades que todos os Profs que trabalham em Medicina, Biologia, Veterinária, ou assim, têm mesmo que saber para conseguirem dar aulas dignas desse nome e mais ainda – aulas animadas e interessantes. Portanto, explicar coisas destas às pessoas é para mim uma grande responsabilidade. Mas, pelo menos, tem desde já o mérito de confirmar a minha suspeita de sempre: as pessoas GOSTAM de saber as coisas, GOSTAM de entender o que está realmente em causa – desde que a gente faça o esforço de lhes falar numa linguagem que elas entendam…
… Bom. Antes de mais nada, e ao contrário da esmagadora maioria dos componentes do nosso organismo, já vamos ver que o cérebro é um órgão extremamente social. E isto acontece porque é feito de diferentes peças de um puzzle tramado. Enquanto os outros órgãos, incluindo o já tão falado coração, são constituídos por células mais ou menos banais, o cérebro é antes constituído por neurónios[2], todos eles com os seus axónios e as suas dendrites. Gostaram?[3] Vistos ao microscópio estes conjuntos parecem arvorezinhas, mais ou menos folhosas, com raízes mais ou menos pequenas e mais ou menos ramificadas. Da disposição correcta desta vegetação depende a passagem correcta dos impulsos eléctricos que transportam a informação de um lado para o outro, e, finalmente, a transmitem ao Sistema Nervoso Central.
E então vamos à parte social.
É ela que permite que tudo isto corra bem.
É durante a gravidez que o cérebro em formação vai pondo o seu puzzle na única ordem correcta possível, mas não pode fazer isto sozinho: organiza-se sempre em estreita ligação com as informações que vai recebendo do útero materno, e das informações que ele próprio faz sair para a barriga da mãe, que podem alterar em seu proveito as condições da gravidez.
E, para o cérebro, a gravidez engloba tudo o que o rodeia: vai de tudo o que acontece para mais tarde regular a duração dos ciclos hormonais até ao funcionamento cuidadosamente funcional do cordão umbilical. O que nós somos ao nascer é 50% genes do feto e 50% útero da mãe[5].
E não é tudo.
Para estar completamente pronto e activo, ao ponto de nos permitir executarmos funções que consideramos tão básicas como aprender a ler e escrever, ou mesmo contar, o nosso cérebro ainda precisa de todos os estímulos externos, de todos os pensamentos, de todos os sonhos, e de todas as tristezas e alegrias, que tivermos armazenado em memórias nos nossos primeiros quatro anos de vida. Ou seja, o cérebro só está pronto na altura em que começamos a lembrar-nos de nós próprios.
Pois é, pessoal.
Não há coincidências.
Nas Ciências Vivas não há, de certeza.
Agora continuam a achar que uma maquinaria destas se reanima, mesmo depois de já estar morta? Fixe. Como diria o saudoso Dirty Harry, Go ahead and make my day. É que, se alguém conseguisse, ia direitinho da publicação para o Nobel.
E, muito provavelmente, por trás desse Nobel existiria uma placa giratória que o projectaria para altos lugares – porque aquela pessoa é que sim – aquela pessoa, de um país que ninguém dá nada por ele, aquela pessoa é que compreende com toda a limpeza os mistérios incompreensíveis da actuação do cérebro.
E o resto da Academia arrancava em coro, por trás do orador, com a sua homenagem a Portugal muito bem estudada: Vou falar-vos dum curioso personagem: Jeremias, o fora-da-lei…
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] De vez em quando ponho estes comentariozinhos em francês, apenas para dar a mim própria, e certamente às minhas crónicas, um certo je ne sais quoi mais erudito. E ando a ler umas coisinhas em alemão para, mais tarde, alargar o ramalhete com passagens do Dr. Fausto. Boa?
[2] Descoberto por Ramon y Cajal quando trabalhava em Lisboa com Egas Moniz, no Instituto Rocha Cabral, mesmo em frente à Capela do Rato. Já alguém vos tinha contado isto? É do mais irritante que há, não é? Fazemos de propósito para que não se saiba nada dos nossos grandes feitos. Desculpem, mas citar as Descobertas não vale: foram o empreendimento mais anárquico de todos os tempos, que, em consequência, “deixou o país de tanga” (qual deles é que disse isto?), conquistado facilmente pelos espanhóis.
[3] Peço desculpa, mas isto é uma crónica, não é uma sebenta de Histologia e Embriologia no Segundo Ano de Medicina. Quem quiser informar-se melhor, tem isto tudo muito bem explicadinho no Google.
[4] “Princesa de Portugal” era uma das frases amorosas com que os meus filhos me recebiam assim que eu entrava em casa, pelo meio de muitos beijos nas mãos – “Mãe, és bela como a Princesa de Portugal!” – durante os quatro meses assaz penosos do seu período edipiano. E o Dick, em vez de me ajudar a tirar-me os melgas de cima, ficava cheio de ciúmes e saía logo da sala…
[5]Paciência, pais. Quando o embrião começa a formar-se, assim que o ovo se divide em duas células, vocês apenas contribuíram com uma célula minúscula… que entra para dentro da maior de todas as células! Não trouxeram quase nada, à excepção do vosso ADN, o mais compactado que imaginar se possa, para conseguir nadar mais depressa pela canal vaginal acima. Mas vá. Vão poder transmitir imensas doenças (AQUI É PARA METER UM EMOJI QUE DEIXE BEM CLARO QUE ISTO ERA UMA GRACINHA __ EMBORA SEJA ABSOLUTAMENTE VERDADEIRA!). E vão ser muitíssimo importantes dos quatro anos em diante. Até lá, também, quem é que alguma vez poderá cobrar-vos por não sentirem grande interesse por aquele tubo digestivo que não está ali a fazer grande coisa que não seja acordar-vos de noite a berrar? Paciência, pais. Deitem isto tudo para trás das costas, e esperem por melhores dias.
O que é bom na nossa absoluta ignorância do Além é que nada nos impede de acreditarmos que, durante esta última semana, num lugar que nenhum de nós pode sequer imaginar, aquela senhora de 93 anos, que morreu aqui em Estremoz, e o homem que vinha de muito longe, ao encontro dela, conseguiram, por fim, encontrar-se. E agora, para serem felizes, têm toda a eternidade pela frente. Passamos a vida a fazer dela um bicho de sete cabeças, mas, honestamente, a eternidade não tem nada de especial. Tem apenas a paz luminosa de nunca precisarmos de estar com pressa…
Agora, uma coisa é respeitarmos a nossa ignorância do Outro Mundo, e outra, muito diferente, é sermos mantidos deliberadamente na ignorância Deste Mundo. Essa é uma ignorância que toda a gente sabe que se mantém de geração em geração perpetrada pela mão criminosa do mesmo velho bando de hienas que se autoperpetua à custa de milhões de carcaças, porque é a incapacidade de pensar das enormes maiorias que sustenta no poder as minúsculas minorias.
E, para um bom exemplo de como a Comunicação Social nos vende com grande afinco tudo o que seja jogo sujo de Não Pensar, vamos lá respirar fundo e voltar à morte do pequeno Archie.
Ora então – coitado do puto, que não há nada de mau de que não tenha sido exemplo – a título de segunda descasca…
… Ora então muito bem.
Concluída que está a primeira série de impropérios relativa ao desperdício de informação servido aos portugueses numa bandeja aquando da morte do pequeno Archie, permitido que vos foi respirar fundo e fazer rir os outros com o urso polar de patas para o ar do Mário Castrim, recordemos que a minha primeira descasca teve a ver com a total ausência de debate sobre permitir ou não que existam redes assassinas como o TikTok – e que os pais achem normal deixarem os filhos sozinhos em casa com acesso total àquela arma mortífera.
Falta passarmos à segunda descasca, tão ou mais grave ainda do que a primeira: ninguém, em canal nenhum, a hora nenhuma, se deu ao trabalho de convidar um bom neurologista, ou qualquer outro bom especialista do cérebro – temos vários, todos muitíssimo bons, e todos de linguagem muito clara quando estão a falar para audiências desprevenidas – que esclarecesse as hostes perplexas sobre se quem tem o coração a bater, mas tem o cérebro morto, está morto ou não está morto.
Se ao menos toda a gente tivesse ficado esclarecida a este respeito, graças ao jovem Archie evitavam-se, a partir deste Verão, imensas angústias sobre desligar ou não “a máquina”.
Em poucas palavras, é possível voltar a fazer funcionar um coração morto. Mesmo assim, para que ele continue a funcionar “sozinho”, assim que recomeçar a bater há que ligá-lo à tal “máquina”.
Mas um cérebro morto, em contrapartida, a partir do momento em que morre, está irremediavelmente morto – e, como é óbvio, o seu portador morre com ele.
Não era importante ter explicado isto aos portugueses?
Grandessíssimos cães da pradaria, que deviam estar todos de férias[1].
Pelo meio de toda a saga melosa do jovem Archie, com os pais sempre a implorarem que não lhe desligassem a máquina porque o seu coraçãozinho continuava a bater, a nossa Comunicação Social ainda teve a baixa moral de fazer aos portugueses mais um desfavor vergonhoso: a lata de equiparar um coração que bate a uma pessoa que está viva. O que não podia ser um erro mais grosseiro[2]. Palavra de honra, é que conversas destas… eu sei que não são…, mas é que PARECEM mesmo, mesmo, e mesmo-mesmo, compostas de propósito para estupidificar ainda mais os espectadores incautos. Que, obviamente, são quase todos. E, à mulher de César, não lhe basta ser honesta.
É verdade que o coração humano – um dos primeiros órgãos que se formam no embrião, e que, a partir daí, asseguram a possibilidade do seu restante desenvolvimento – nos alimenta, nos oxigena, e nos limpa. Mas o seu mecanismo de funcionamento, que começou muito cedo, estendeu a sua teia de capilares através de todo o embrião muito antes da formação da vasta maioria dos outros órgãos, já está todo formado à nascença, e tem um mecanismo básico de razoável simplicidade – a mesma simplicidade que lhe permitiu manter vivo o embrião, e depois o feto, desde a mais tenra idade do desenvolvimento. É por isso que as manobras de reanimação de um coração que parou de bater são tão simples. É por isso que foi possível oferecer ao nosso grande herói Salvador[3] um transplante de coração, assim como é possível fazer operações de bypass, ou instalar pacemakers; ou, como no caso do Archie, ligar o coração a uma máquina, com a certeza absoluta que essa máquina asseguraria a continuação do seu batimento pelos séculos dos séculos, se fosse caso disso.
… … …
Esta mudança, o meu verdadeiro padrão da pobreza, foi desencadeada pela insolvência, logo seguida, ao fim de trinta anos de paz e amenidade, pela súbita ordem de despejo que a D. Laura decidiu fazer-me chegar por uma advogada “porque ela quer ver se pode subir a renda para o dobro e ganhar muito dinheiro com a casa, compreende, porque, de repente, a vida se tornou muito difícil para todos nós”… e, para completar o quadro, pela expulsão dos meus filhotes da América[5], o que fez de mim, por muitos e bons anos, e literalmente, A MÃE DOS BANDIDOS[6].
Apesar de todos os esforços e boas intenções do Dick, é evidente que, a bem dizer, curtiram os dois ferozmente a bandidagem lá do sítio, fizeram todos os piores amigos que dois adolescentes estrangeiros conseguem fazer em menos de um mês, engataram miúda atrás de miúda, e chegaram (bem, foi só o Ricky, a quem nós chamávamos desde pequenino, porque estava mesmo na cara, o TRICKY RICKY), a dar-se ao desplante de ir mandar quecas para a cama do Pai, enquanto três “amigos pretos[7]” ficavam a controlar entradas e saídas, enquanto batiam “nuns tambores[8]” a acompanhar “um daqueles raps do Eminem a dizer aquelas porcarias todas sobre a mãe[9]”.
“Passei-me,” continuava ele no Skype, embora já me tivesse contado aquela história várias vezes. “Passei-me. Subi os degraus a correr, entrei no quarto, vi o Ricky com a miúda na minha cama[10], gritei “RICKY!!! WHAT THE FUCK DO YOU THINK YOU’RE DOING?????”, Clarinha, ouve, eu disse mesmo WHAT THE FUCK! E atirei um para cada lado e chamei a polícia. E foram todos presos por B&E, e eu fui com eles para apresentar a minha queixa. E nisto perdi UM DIA INTEIRO. É horrível. Tenho visto muito bem o que é que acontece aos Pais de Filhos Criminosos que são apanhados nesta teia de aranha de Polícia, Prisão, Psicólogo, Papeladas, reuniões de Pais Anónimos…”
Era o maior terror do Dick, ainda eu vivia no Penedo, ainda os nossos filhos estavam de novo na Prisão de Menores, cada vez mais ricos de vender toda a coca limpíssima, que por vezes alguns visitantes insuspeitos lhes passavam nas visitas, aos guardas que depois a vendiam aos presos, e às vezes até ao enfermeiro de serviço, um rapaz sólido como um rochedo mas sempre cansado, porque fazia turnos consecutivos de 18 horas para conseguir amealhar o suficiente para assegurar à noiva o casamento de conto de fadas que ou era mesmo de conto de fadas ou não havia casamento, a certa altura constou que até a namorada se tinha metido no consumo, porque fazia directa atrás de directa para ultimar absolutamente tudo no enxoval perfeito do casal perfeito que eles tinham absolutamente que ser:
“Clarinha, please, tu estás bem a ver a gravidade disto? PEOPLE LOSE THEIR JOBS!!! As pessoas têm que ir a tantas reuniões, a tantas prisões, a tantas identificações, a tentar explicar tantas más intenções, que acabam por ser chamadas à chefia e postas na rua. Entendes? Já vi Pais de Bandidos, como eu, perder os empregos por terem que andar o tempo todo atrás dos filhos!”
Ter que ouvir aquilo era extremamente ofensivo para mim, abandonada à triste vida de Mãe Solteira desde o 11 de Setembro.
Claro que o Dick nunca perdeu o emprego, pelo amor de Deus. Tinha tenure no Amherst College, um pilar chiquérrimo do ensino superior, onde, entre outras Grandes Figuras, estudou o Príncipe Carlos do Mónaco, visitado pelas duas irmãs na festa que assinala o final de cada ano lectivo, para grande felicidade de todos os rapazes e todos os velhotes presentes. O que a questão do tenure queria dizer era que tinha um contrato para a vida até à idade da reforma, numa posição semelhante à de um catedrático em Portugal. Numa instituição tão perfeitamente Ivy League como o College, tinha de certeza um óptimo ordenado e imensos benefícios colaterais. Francamente. Vir-me chorar no meu ombro que “people lose their Jobs”…
Há que ter um cérebro absolutamente vivo, e muito bem musculado, para lidar com tudo isto.
Há que manter o sentido de humor mas ser firme.
E, antes mesmo de os principezinhos endiabrados desembarcarem em Lisboa, havia que comprar tudo o que eu conseguisse comprar em segunda mão, e arranjar um transporte à altura das minhas posses que a bem dizer não existiam, para pôr a casa de Xabregas toda bonita e nos habituarmos a sermos felizes lá dentro.
É para momentos destes que precisamos de um cérebro sempre atento, e não propriamente de um coração. Ao coração só se pede que bata. Ao cérebro pede-se que urda estratégias para acolher dois jovens bandidos em casa, e que se vá acertando o rumo dessas estratégias para que tudo acabe por correr em paz, sossego, e muito riso
É por isto mesmo que o cérebro, ao contrário do coração, tem uma formação e um funcionamento que são tudo menos simples. Muito pelo contrário, são complicadíssimos. E controlam tudo. A porção do cérebro encaixada dentro da nossa caixa craniana rodeia, no chamado lobo frontal que só existe nos humanos[11], a sede da nossa inteligência. O restante conteúdo da caixa craniana prolonga-se por dentro das vértebras, do pescoço ao cóccix, chama-se sistema nervoso central, e assegura o processamento inteligente de todas as informações que recebemos, para que possamos responder-lhes da forma mais correcta possível.
A partir do momento em que morre toda esta estrutura finíssima, e dificílima de montar (basta pensar na sua subsequente associação a todos os nossos nervos), acabou-se. ACABOU-SE, GAITA. Estamos mortos, mesmo. Um cérebro morto já não volta a acordar, seja por que artes mágicas de que máquina inexistente for. E, quanto mais passarem os dias depois da morte, como no caso de Archie, mais o cérebro degenera.
Agora.
É impressão minha, ou teria sido extremamente importante explicar isto a toda a gente, na sequência daquela morte absurda e perante a nossa condenação a vermos a mãe do menino em lágrimas de meia em meia hora? E não era boa ideia, como eu comecei por dizer, que essas explicações fossem prestadas por óptimos especialistas que são também óptimos comunicadores, com muito mais conhecimento de causa na matéria do que eu? E se neste preciso momento caísse um raio em cima da cabeça de todos os directores de informação portugueses?
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Recorde-se, uma vez mais, que era Agosto. A Comunicação Social costuma entrar em parafuso em Agosto, porque é um mês em que nunca se passa nada. Em Agosto, nunca caem DC9s das Turk Ava Yollari. Em Agosto, ninguém tenta disparar contra o Papa. Então e esta história, com tantos ângulos para estudar – não teria sido um enorme bónus para compensar o restante famoso vazio do mês de Agosto? A sério. Eu pasmo.
[2] Estas pessoas são consensualmente denominadas como “vegetais”, e o termo é duro, mas está perfeitamente correcto. Um vegetal não é um animal. Um vegetal nunca mais fará tudo o que nós fazemos, todos os dias. Se há pessoas que às vezes, miraculosamente, acordam depois de vegetarem depois de dezenas de anos? Há, sim. Mas são milagres. Como tal, são extremamente raros. Significativamente, não chegam a ter expressão.
[3] O excelente músico e cantor Salvador Sobral não tem culpa nenhuma: era o que as revistas e jornais de baixo nível lhe chamavam nesse Verão.
[5] Apesar de todos os esforços do Dick, a verdade é que naqueles dois anos passaram mais tempo enfiados em casas de miúdas que viviam nos projects a fumar muitos charros e a ouvir muito rap e claro que não só; ou então estavam nas esquinas a distribuir E pelos clientes habituais e a ganhar pipas de massa porque à época o ecstasy ainda era uma invenção recente e até as avozinhas a cair da tripeça, que só se lembravam de violência doméstica, de gajos completamente bêbados ou completamente mocados que as fodiam em pé contra a parede a chamar-lhes todos os palavrões deste mundo, e quando chegavam à parte em que elas eram umas gandas putas que ofereciam aquela cona suja a toda a gente, vinham-se logo e toda a cena nem chegava a durar cinco minutos mas doía muito – alguém se surpreendeu quando, depois de uns belíssimos jogos de sedução do meu mais velho que se sentava todo bonito ao lado delas, a cheirar bem, e lhes falava das coisas boas que a vida tem sempre para nos oferecer, se quisermos procurar e arriscar, subitamente quiseram todas ser felizes e desataram todas a consumir com gosto, por vezes em festas só delas, em casa de uma ou de outra, com bolinhos e licores, e tudo? Claro que não. Às vezes convidavam o meu Mike para tirar a T-shirt (ainda não tinha a tal tatuagem, mas tinha uma musculação perfeita), e dançar para elas. O meu filho delirava com tanta atenção. E pronto, no resto do tempo, estavam na prisão de menores, onde se musculavam até não conseguirem encostar os braços ao corpo, e onde às tantas, o Ricky descobriu a Bíblia e ficou fascinado – fascinado com tanta crueldade, tanta violência, tantas guerras, tanta gente a matar tanta gente de formas tão horrorosas. Até metia medo. O seu figurino perfeito. Começou a falar com o padre da cadeia, que era um evangélico qualquer que tratou de aterrorizá-lo ainda mais. Quando chegou a Lisboa, o Ricky ainda vinha com a Bíblia da prisa. Impressionadíssimo. Passou os nossos últimos anos em família a fazer-me perguntas tremendas. Fiz questão de responder sempre em grande detalhe a todas.
[6] Todos os que acompanharam a verdadeira loucura da minha vida com os meus queridos leõezinhos que eu adoro, que se foram tornando cada vez mais eficientes na arte de me roubarem tudo o que me restava depois de eu já estar falida e desempregada, quase me imploravam que escrevesse um livro com este título onde descrevesse a minha experiência incrível de viver com dois gangsters do gang da Boavista, considerado (dizem-me os putos com muito orgulho) o mais perigoso de Lisboa. Talvez mais tarde escreva. Mas só se for em colaboração com eles e com o Pai. Na realidade, houve ali umas fases em que se esteve mesmo bué bem. A maternidade foi a experiência mais rica e mais avassaladora da minha vida.
[7] Não é meu: é o Dick que fala assim. Deveras. Mesmo sendo o americano mais porreiro que eu alguma vez conheci em vinte anos de quotidiano em terra alheia.
[9] À época estes raps do Eminem eram tão conspícuos, e, francamente, tão bem construídos, que ATÉ O DICK sabia que o puto gostava de rap a dizer mal da mãe.
[10] Grande cabrão. Até senti um nó na garganta. Era a NOSSA cama e era EU que a tinha comprado num mercado de antiguidades mesmo no meio da floresta. Também era EU quem a tinha montado, com a ajuda de um Prof do meu Departamento que adorava bricolage. E MAIS: era EU, sim o MEU dinheiro, que tinha comprado todos aqueles lençóis, edredons, almofadas, colchas, mantinhas, tudo do bom e do melhor, tudo do mais bonito que existisse onde quer que fosse, para dar bons sonhos ao Rei Leão. Agora “A MINHA CAMA”. Filho da puta. Grandessíssimo filho da puta…
[11] E que foi descoberto por Egas Moniz no início do século XX, embora eu dê explicações e nunca tenha ouvido esta memória da boca de qualquer aluno, nem visto qualquer referência ao nosso Prémio Nobel nos estranhos “Livros de Texto” que agora os obrigam a usar, que eles não conseguem perceber, e que muito provavelmente eu também não conseguiria, se fosse da idade deles.
No dia em que te conheci Rasguei todos os meus mapas (passagem de um antigo poema árabe)
Aqui em Estremoz, morreu uma senhora de 93 anos que esteve óptima de corpo e de cabeça até há cerca de uns dois meses.
Tantos anos, tantos anos.
Provavelmente, viveu a vida inteira à espera do dia em que chegava de muito longe um desconhecido que se detinha à sua frente, a olhava até ao fundo dos olhos, e lhe punha a mão no ombro. E ela saberia logo quem ele era, embora, aqui em Estremoz, nunca o tivesse conhecido. Também nunca teria sonhado com ele. Ou, se tivesse sonhado, de manhã já se teria esquecido. Talvez o cheiro dele lhe fosse familiar. Talvez fosse o toque nítido da pele da palma da mão dele contra a pele do ombro dela. Talvez fosse a cor dos cabelos, ou então talvez fosse a cor da roupa. Ela ficava parada, confiante, a retribuir-lhe o olhar como num sorriso. E era então que ele lhe dizia exactamente o que dizem aqueles dois versos de um poema meio perdido, fragmentado pela erosão do tempo e pela evolução da língua. Era um código oculto, e ela reconhecia-o logo embora não o conhecesse antes. A partir daí, faria finalmente sentido enfrentar todos os desafios, superar todos os medos, levantar todas as amarras, e recomeçar a vida do zero, transformada numa viagem sem fim através do coração de tudo o que há de belo na vida, e que as pessoas sem código, aquelas que andam sempre de olhos postos no chão, nunca conseguem ver.
Ora acontece que esse desconhecido que ela conhecia tão bem, portador dos dois versos antigos com qualquer coisa como poderes mágicos, e que ela esperara ouvir ano após ano após ano, vinha de tão longe que precisava de caminhar sem fim até chegar a Estremoz. E, como em qualquer outra época das civilizações humanas, estava sempre a perder tempo com desvios à sua rota mais rápida, para não morrer de cada vez que atravessasse o território de qualquer uma das guerras que há agora. Sempre foi assim, porque houve sempre muitas guerras. No fundo dos seus segredos, ela nunca deixou de esperar por ele durante os seus 93 anos de vida. E ele estava a caminho, e ela sabia que ele estava. Mas a distância era tão grande que se interpôs entre a vida e o sonho. Ela conseguiu esperar por ele até aos 93 anos. Mas, mesmo assim, ele não conseguiu chegar a tempo.
E pronto. Em muito poucas palavras, e mesmo que elas ainda nunca tenham dado por isso, esta é, mais coisa menos coisa, a verdadeira história da vida de todas as mulheres do planeta.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
Continuando, de coração apertado, a catastrófica falta de informação sobre a morte do Archie a tentar suster a respiração mais tempo que todos os outros adolescentes em jogo.
Se ninguém fizer nada em relação aos jogos assassinos do TikTok, já estou a imaginar a próxima catástrofe irresistivelmente apelativa, destinada diretamente e sem vergonha às criancinhas propriamente ditas, que acham sempre muita graça a estas grandes surpresas da História Natural: PUTOS DO MUNDO INTEIRO! Embora fazer um concurso para ver quem é que consegue ultrapassar o recorde do urso polar, que chega a aguentar-se três minutos sem respirar debaixo da água gelada[1], quando fecha as narinas e mergulha atrás das focas!…
… É muito fácil espicaçar as criancinhas para quererem mesmo ganhar um desafio desta envergadura.
Hey, ganhar aos outros rapazes é uma vitória – mas ganhar aos ursos polares, os maiores e mais fortes ursos do mundo, isso não é só uma vitória, meu, isso é mesmo uma puta glória!
E então, enquanto os pais se maravilhavam com esta espantosa nova informação – “três minutos? De narinas fechadas? Honey, estou parvo. Já viste bem o que é o poder da evolução?” – era ver as criancinhas a correrem para a praia mais próxima, tirarem a roupa, e mergulharem na água gelada até ao mais longe possível da costa[2]… e morrerem, claro. Não só por falta terminal de Oxigénio, mas também por hipotermia. E atenção, que para mergulhos em mares gelados não é propriamente preciso ir ao Ártico, onde se pode partilhar com o urso polar o seu habitat natural: a água das praias é gelada em praticamente todo o Norte da Europa, sobretudo para mergulhos de quatro minutos.
Imagina-se facilmente o cenário seguinte, e o que a nossa Comunicação Social nos diria.
Lá teriam os presidentes de todos os países da Alemanha para cima de decretar três dias de bandeiras nacionais a meia haste. Lá ouviríamos nós sempre as mesmas partes dos mesmos discursos. Lá ficariam os espectadores de Agosto, todos repimpados nas suas espreguiçadeiras, a emborcar uns destilados de fim de dia enquanto se gozavam sempre das mesmas imagens de meia dúzia de progenitores chorosos, falantes de diversas línguas, e de dezenas de corpinhos muito branquinhos dados à praia. E, uma vez mais, nunca haveria mais nada para dizer. Os espectadores em férias seriam a banda sonora.
“C’um caraças, Tó! Olha aqueles, olha aqueles, já viste aqueles putos pequeninos ali na rocha, todos completamente mortos?” – “Ai pai, não gosto nada quando tu dizes os putos” – “Filhota, caladinha se fachavor, o pai agora está a falar com o tio sobre os putos todos mortos[3].”
Estas imagens sem debate eram ainda mais parecidas com uma série de aventuras mórbidas porque, ao longe, se viam outros corpinhos que ainda estavam a ser recolhidos por barcos e mergulhadores, antes que chegassem os tubarões, para que as famílias pudessem dar-lhes uma “despedida condigna”. E lá ouviríamos de meia em meia hora, em imagens da Finlândia aparentemente capturadas por um qualquer Smartfone deveras amador, os pais da pequena Aicha, com um ar destroçado, repetir o dia inteiro “ela sempre foi muito competitiva, e na nossa família sempre tivemos a tradição de mergulhar dentro do gelo…”
Mas alguém discutiu a legitimidade do TikTok para propor concursos virais de morte certa às criancinhas?
Desculpem, era só uma pergunta retórica.
Feita apenas porque DEVIA ter sido feita – e, no entanto, NINGUÉM a fez.
Raios me partam, que isto era material com tantas pontas por onde se lhe pegasse. O que a nossa Comunicação Social desperdiça. E, em consequência, o que todos os Portugueses perdem.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Isto já é manipular grosseiramente os dados, porque estamos a falar do mergulho mais longo observado até à data: 3 minutos e 10 segundos. Mas, por regra, o mergulho do urso polar fica-se entre um ou dois minutos, não mais.
[2] Com um bocado de sorte, ainda apanhavam também uma foca…
[3] A esta hora o pai já lhe tinha chegado bem nos destilados. E, como a maior parte da população deste século, tinha uma dificuldade crescente em distinguir entre realidades e filmes quando estava a ver televisão.
Apertem os cintos, que eu vou passar aqui umas boas de umas semaninhas a mandar vir.
Vamos lá ver, pobre também tem direito. E eu posso ser indigente, mas não deixo, por isso, de saber ler e escrever. E, além disso, mesmo sem um tusto e um carro com vinte anos, nada me impede de ser filha de Deus. Além disso, sei observar. Há já muitos anos que a mediocridade da nossa Comunicação Social me exaspera. Quando a pessoa esbarra num perfeito caso-limite, uma autêntica hipérbole para tudo o que é feito com os pés, já que escreve crónicas, o melhor que tem a fazer é usá-las para partilhar a sua indignação com os outros, e explicá-la devidamente, porque o caso não é nada simples.
Vamos, então, recuar até ao passado mês de Agosto…
… Um rapazinho chamado Archie morreu a jogar um jogo viral no infame TikTok, que só se lembra de brincadeiras potencialmente nocivas para a vida das pessoas, e que nem se percebe como é que ainda não foi riscado do mapa. Ou então sou só eu que não percebo. Estou perfeitamente consciente de que sou uma autêntica relíquia medieval num mundo que não tem nada a ver comigo, nem eu quero que tenha.
Mais ainda alguém se lembra?
Olha que ideia tão gira, e sobretudo tão reveladora e tão educativa: malta, vamos fazer um concurso, e ganha quem aguentar sem respirar durante mais tempo. Este perigo público aparece no TikTok a seduzir os adolescentes com a mesma eficácia com que a serpente seduziu Eva, e todos os pais, mas mesmo todos, parecem achar normal que os seus filhos fiquem sozinhos a brincar com gadgets de toda a sorte que lhes dão acesso a loucuras desta dimensão obscena.
Resultado: um belo dia, em Inglaterra, os pais de Archie, que tinha doze anos, encontram-no em casa comatoso, já em plena morte cerebral. O que não passa de um eufemismo simpático para dizer simplesmente M-O-R-T-E, com todas as letras, porque se o cérebro de uma pessoa está morto, então a pessoa está morta sem volta a dar ao texto, continue ou não o coração a bater.
Depois foram semanas, e semanas, e semanas, de notícias piedosas, repetidas de meia em meia hora em todos os nossos canais informativos, sobre o sofrimento dos pais da criança. Usavam-se basicamente sempre as mesmas palavras, sempre com as mesmas imagens. Ou era um dos pais a chorar[1], ou eram os dois a pedir misericórdia aos médicos que tinham decidido por consenso geral desligar as máquinas, ou era alguém por eles a implorar ao Boris Jonhson que impedisse os médicos de prosseguirem a sua rota assassina, ou eram fotos recentes do menino, ainda vivinho da costa, a fazer poses para a câmara, ou a dar beijinhos à mãe.
E nunca, em canal informativo nenhum, em linguagem acessível e por maioria de razão a horas acessíveis, obrigatoriamente protagonizado por pessoas entendidas na matéria, se ouviu um único bom debate sobre a legitimidade de se proporem a crianças e adolescentes “jogos” destes em redes sociais de facílimo acesso. Ainda por cima, como todos os jornalistas papagueavam, o desafio de suster a respiração era “VIRAL”. Ou seja, toda a gente o conhecia. Não era propriamente um desafio de tal forma escondido e encriptado que seria preciso a ajuda do Ed Snowden para se conseguir encontrá-lo.
Então e o TikTok não é automaticamente fechado porque mata meninos de doze anos?
Ao menos não paga uma multa vingativa?
Ninguém vai preso?
Não é obrigado a barrar conteúdos destes, como, por exemplo, o Facebook acabou por barrar o excesso de palermices postadas sobre as vacinas durante os primeiros meses da Pandemia COVID, ou o Twitter acabou por barrar alguns dos piores insultos do Trump durante a primeira campanha?
E ninguém discute estas questões na nossa Comunicação Social, se bem que se arranjem sempre duas horinhas para discutir o futebol?
Mas o que vem a ser isto?
É da vaga de calor? Está tudo a dormir? E ninguém se preocupa com a inteligência dos espectadores portugueses? Ou será que já se decidiu em conluio secreto que a missão dos media é mesmo esta, é estupidificá-los brutalmente enquanto eles bebem umas jolas com os pés ainda cheios de areia, porque é isso mesmo que se faz às pessoas quando, finalmente, chega o facilitismo do tão aguardado mês de Agosto?
Epá.
Não, a sério.
Valha-me Deus.
Uma desinformação combinada como esta é positivamente criminosa.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Sobretudo a Mãe, que era muito mais faladora, e sobretudo muitíssimo mais “camera-friendly” do que o esposo.
[2] Uma das características desta criança insuportável é andar sempre descalça. Pudera. Como nasceu prematura tem os dedinhos do pé terrivelmente deformados, e não há sapato que não a magoe. Mas algum adulto se chega à frente para a ouvir? Ora. É mais que qualquer adulto se chega à frente para lhe dar um par de estalos. [3] Mais uma razão para as freiras a considerarem um diabinho. [4] Tomara eu ser esperta como esse romano, mas só tenho seis anos e a pessoa não nasce com o estilo já todo aprendido. Pelo meio destas minhas dúvidas teológicas, já sei que vou ouvir das boas porque não estou mesmo a conseguir calçar os sapatinhos. [5] O Zé tinha dezoito anos, e os nossos familiares mais conservadores diziam que ele era o “boy” das meninas. Para nós, ele era o Zé, mais nada. Chegava de manhã cedo do moceque da CuCa, supervisiona-nos o dia inteiro com muito humor e ainda mais carinho, e só voltava para casa depois de já estarmos na cama. Se fosse preciso ficar até mais tarde devido à agenda dos nossos Pais, contava-nos histórias de terror verdadeiramente terríveis, com tribos em que os homens eram iguais aos outros durante o dia mas à meia-noite se transformavam em leopardos e podia ir um, ainda homem, a passar diante da nossa casa naquele preciso momento. Eu devorava aquilo tudo, e depois, claro – ficava com tanto medo do escuro que já nem conseguia dormir.
Para concluir dignamente a triste história do grande romance que eu passei 23 anos a incubar e mais quatro anos a escrever, e da sua morte às mãos daqueles que fazem a opinião dos portugueses, resta-me revelar porque é que foi que nunca houve uma boa estratégia de divulgação e promoção por parte da editora, capaz de romper um mínimo da muralha de aço erguida em torno de tudo o que me dizia respeito. O resto seria um castelo de cartas. Todas as pessoas da minha geração se lembram da comoção com que assistimos, dia após dia, à destruição do Muro de Berlim, que acabou por ficar de rastos como um verdadeiro tigre de papel, incapaz de conter mais boicote algum. Depois do livro americano, este romance, que ainda por cima logo a seguir até ganhou um legítimo prémio literário, podia ter o mesmo efeito. Mas, para isso, era preciso que o editor se esforçasse…
… O problema foi que o editor estava furioso comigo.
Porque eu, pérfida, em vez de um best-seller tinha-lhe impinjido um mono que ninguém comprava.
Inicialmente, quando recebeu e leu o manuscrito, disse à minha frente, em altas vozes, e a quem o queria ouvir, que ninguém escrevia com aquela pujança desde a morte do Zé Cardoso Pires. Eu quase que morri, porque não é possível comparar ninguém com o Zé Cardoso Pires. Mas ele estava entusiasmadíssimo, e absolutamente convencido de ter nas mãos uma daquelas obras-primas que enchem as editoras de dinheiro. Eu fartei-me de o alertar para a existência da muralha de aço, mas ele só dizia que, com um romance daqueles, isso ia desvanecer-se em névoas cada vez mais ténues. Durante todo esse tempo, sempre que eu tinha que ir à editora, que ficava algures nos arredores da Parede, pagava-me gentilmente o táxi que me levava lá a partir da estação (eu não tinha um tuste, mas tinha o passe), e pagava-me o táxi de volta.
Eu bem tentei explicar que era impossível que as pessoas se interessassem pelo livro se não sabiam que ele existia.
“Como não sabem!,” gritou-me logo a esposa e secretária do editor, uma brasileira gorda de metade da idade dele e com ar de tanque Panzer. “O seu romance está em todas as montras!”
“Não basta um livro estar nas montras para se reparar nele,” respondi eu docemente. “Estive com o Tolentino Mendonça. Ele sabia, desde antes de eu ir para a América, tanto do projecto do livro científico como do projecto do romance. Quando eu lhe disse que já tinham saído os dois, ficou a olhar para mim com um ar aterrorizado, e só conseguia repetir Ó Clara… Ó Clara…”
“Olha que esse Tolentino Mendonça tem que ser um grande imbecil!,” gritou outra vez o Panzer. “ Pois se o livro está em todas as montras…”
Claro que a reunião ficou por aqui.
O problema é que o editor não me reembolsou pelo táxi da estação à editora, embora eu lhe tivesse dado a factura logo à chegada; e também não deu quaisquer sinais de estar em vias de puxar de uma notinha de cinco euros para o regresso. Telefonaram a chamar-me um táxi e já gozas. Os bons tempos tinham declaradamente chegado ao fim.
Entrei no táxi sem aflições, porque aquelas corridas costumavam ser quatro euros e meio, e isso eu ainda tinha na carteira. Ia ficar sem cigarros, mas ao menos regressava de cabeça erguida.
Só que, na estação, o taxímetro marcava cinco euros e meio.
Paga-se um euro a mais pela chamada telefónica.
“Oiça,” disse eu ao taxista, um jovem todo bonito e bronzeado, com umas belíssimas tatuagens nos braços musculados. “Eu não vinha preparada para ser eu a pagar. Tenho quatro euros e meio, mas não tenho mais. Se quiser, podemos ir à polícia. Ou podemos voltar à editora. Veja lá…”
“Só tem quatro euros e meio?,” rosnou o miúdo.
“Só. Mas, se quiser…”
“Passe-me mas é todo o dinheiro que tem aí.”
Passei-lhe a minha bolsa, de onde ainda saíram mais umas moedinhas pretas para ajudar à festa.
“Se quiser…”
“Não quero nada. Vá lá à sua vida e não me chateie mais.”
“Sabe, eu tinha…”
Ele virou-se para trás, olhou-me de frente nos olhos, e encerrou assim o assunto, de uma vez por todas:
“A senhora já tinha era idade para ter juízo!”
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
Falei-vos da importância que tiveram para mim os três últimos anos que passei nos Estados Unidos, mergulhada na emoção da voltar a escrever livros científicos e na alegria de voltar a dar aulas, ainda por cima a alunos selecionados para estarem ali por terem sido identificados como sobredotados. Comecei a sentir-me tão feliz e tão útil, tão leve, tão cheia de Força, que, logo na véspera de Natal de 2014, acordei às seis da manhã com o dia a romper, a neve a cair suavemente lá fora, e o primeiro parágrafo do meu novo romance a escrever-se sozinho na minha cabeça. Ainda lutei contra a investida daquelas frases todas, mas já não havia retrocesso possível. Levantei-me, fiz café, encharquei a cara em água fria, e comecei a escrever…
Há que ver que eu tinha acordado a pensar naquele mesmo romance algures durante o Inverno de 1991. A mesma primeira frase do livro, a mesma última frase do primeiro capítulo. Sentei-me na cama entusiasmadíssima, com muito cuidado porque ainda era cedíssimo e o Dick continuava a dormir ao meu lado. Tenho sempre um bloco de apontamentos e uma caneta na cabeceira, para escrever tudo o que me vem à cabeça durante a noite, ou enquanto estou a ler. Já ia agarrar neles e desatar a escrevinhar furiosamente quando de repente me vieram as lágrimas aos olhos, deixei cair os braços, me encostei nas almofadas e acendi um cigarro para sofrer melhor[1].
É que, em 1991, eu ia nos meus 31 anos. Era uma miúda. Não tinha, de maneira nenhuma, a maturidade, a capacidade de ver através das coisas e das pessoas, a sabedoria para ler sinais, que escrever um romance daqueles ia exigir de mim. Passei-o todo a pente fino na cabeça, ainda verti uma lagriminha, e deixei-o guardado para mais tarde.
Para quando fosse capaz.
E era agora, malta.
Agora, 23 anos mais tarde, eu já ia nos 54. Já tinha comido o pão que o diabo amassou umas dez ou vinte vezes. Este diferencial tão acentuado era porque não sabia se deveria incluir as cirurgias ou não; e, se incluísse, se seriam mesmo todas, ou só as de anestesia geral[2].
Aos 54 anos, eu já tinha corrido o mundo inteiro. Já tinha sido incrivelmente feliz, e também já tinha sofrido de forma assaz indescritível. Já me tinha portado muito mal, mas também já tinha feito os impossíveis para trazer a felicidade aos outros. Mentira, e tinham-me mentido. Tinham-me insultado uma vez, duas vezes, três vezes – e depois tinham-me assassinado.
Vivera rodeada de amigos, e depois ficara completamente sozinha. Agora estava insolvente, a sobreviver sabe Deus como com uma pequena bolsa da Fulbright numa das regiões mais caras dos EUA. Agora, agora sim.
Agora eu estava mais do que pronta para escrever o meu romance.
As memórias inventadas de uma gaja que nunca existiu, escritas à velocidade do seu pensamento.
Escrevi com um prazer enorme, fiz milhares de revisões, de adições, de subtracções, de novas estruturas e outras tantas figuras – e, durante todo este tempo, acreditava sinceramente, nesta minha ingenuidade que não se resolve nem a estalo, que um romance daqueles, do alto do imenso poderio das suas oitocentas páginas, publicado logo a seguir à publicação de um livro científico feito em co-autoria com o Grande Papa[3] da Biologia do Desenvolvimento e dado à estampa por uma das melhores editoras académicas do mundo, ia de certeza reabilitar-me aos olhos dos portugueses e dar-me o direito a voltar a estar viva.
Coitadinha da Clarinha, que até acredita em Deus.
Cheguei à sessão de lançamento na FNAC/Chiado toda fresquinha, acabada de vir de fora, e a primeira coisa que notei foi que não estava lá um único membro da Comunicação Social.
“Céus,” pensei eu, “isto ainda vai ser mais duro do que aquilo que eu previa.” E, por acaso, foi pior ainda.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] É verdade, é. O que as coisas mudaram na América. Nos anos 90 ainda se fumava em casa, mesmo na cama, e os nossos companheiros nem se lembravam de nos xingar o juízo.
[2] A pior coisa que um médico que eu não conheço pode perguntar-me, assim de chofre, é “quantas cirurgias fez?”. Tenho sempre que pedir-lhe que espere um bocadinho para contar pelos dedos. E, mesmo sabendo que o número bate algures nos vinte, também tenho que fazer a fatídica pergunta de contar só a anestesia geral, ou se também vale a anestesia local, que inflacciona logo os valores básicos. Sou uma doente profissional, o que é que querem? E, como é evidente, não fui eu quem escolheu nascer assim.
[3] A expressão adequada talvez seja antes Grande Rabino, uma vez que o Scott é Judeu. Para as pessoas da nossa área de especialidade, este homem é, apenas, o Judeu que escreveu a Bíblia.
Já vos contei que, depois de descobrir que o meu País fazia questão de me dar por morta; e que, sendo assim, nunca mais me daria qualquer nova oportunidade, fiz a única coisa que me restava fazer, e voltei a emigrar para os Estados Unidos. Não era isso que eu queria, mas recusava-me a morrer, ponto final parágrafo.
Durante os três anos desse período que acabou por ser extremamente emocionante, estive a estudar até mesmo ao fundo para o nosso livro[1] tudo o que acontecia às pessoas que se metiam nas rodas dentadas das mais de quarenta técnicas existentes à época de Reprodução Medicamente Assistida[2], e a dar aulas fantásticas a alunos sobredotados.
E, ao mesmo tempo, voltei outra vez a guiar debaixo do grande silêncio da neve, e depois a curtir as noites mornas, encharcadas em pirilampos gigantescos, que assinalavam a passagem do Verão. A verdade é que, sozinha nesta grande aventura, subi de nível, me tornei completamente bilingue, deixei de precisar da ajuda fosse de quem fosse, e essa sensação de liberdade e qualidade tornou a minha pesquisa absolutamente maravilhosa…
… A minha nova capacidade profissional começou a funcionar cada vez melhor. Os nossos avaliadores, que inicialmente me criticavam porque eu lhes parecia demasiado irónica, ficaram absolutamente boquiabertos quando eu integrei no texto um parágrafo simples e divertido, onde se explicava que também eu era estéril, também eu tinha feito quatro tentativas de fecundação in vitro (FIV) em quatro meses seguidos, também eu depois naufragara numa enorme depressão que incluiu duas tentativas de suicídio, portanto podia escrever com toda a segurança e todo o conhecimento de causa de quem conhece muito bem o terreno, e depois do que lhe aconteceu passou a vida a ajudar outras mulheres a recomporem-se através da terapia do riso[3].
De maneira que, às tantas, o Scott já nem se preocupava com as críticas e os comentários deles, porque aquilo era quase tudo para mim; tal como não se preocupava em reler o que eu escrevia de volta. E eu sentia-me cada vez mais fluida, cada vez mais em uníssono com o que os nossos colegas que nos avaliavam nos pediam.
Ganda ping-pong intelectual e eu no centro, topam?
Caraças.
Foi muito bom.
Finalmente, em 2018 o livro foi publicado pela Columbia University Press[4] com o título[5]FEAR, WONDER, AND SCIENCE in the new age of biotechnology. Recebeu logo várias críticas muito positivas, umas de colegas nossos e outras de espontâneos frequentadores da Amazon ou outros espaços desses[6].
Os japoneses gostaram tanto dele que acto contínuo o compraram e o publicaram, sendo que, pelo meio, nos convidaram aos dois para uma semana de conferências em várias grandes universidades japonesas.
Mas em Portugal não se ouviu nem um pio, e eu fiquei logo toda arrepiadinha.
Em Portugal, onde seria tão importante um bom manual de informação séria mas legível, e até divertida, sobre todos estes temas.
Em Portugal, onde as pessoas são de tal forma ignorantes que continuam a usar o arcaico e insultuoso “barriga de aluguer”, em vez do estipulado “mãe hospedeira[7]”.
Quer dizer, era impossível ser eu que estava a inventar mais assassinatos.
Ainda mandei dez dos vinte exemplares a que tive direito para algumas pessoas muito importantes que costumavam ter muita consideração por mim, com dedicatórias de página inteira, todas elas muito bonitas e terminalmente metafóricas; e essas pessoas não mandaram dizer nem obrigadinho ó peste negra.
Que chata, esta gaja.
Epá, ouça lá, de uma vez por todas…
A senhora faça o favor de meter na cabeça que está morta, está morta, está morta.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] O meu parceiro era o Scott Gilbert, consensualmente considerado o Grande Papa da Biologia do Desenvolvimento, com um livro de texto universal que, à época, já ia na 11ª edição [N.R. A obra em causa, Develpment Biology em co-autoria com Michael Baresi, vai agora na 12ª edição]
[2] A gente diz RMA, e a coisa parece logo mais fina.
[3] Esta especialidade psicológica existe mesmo. Procurem Helena Águeda Marujo no browser.
[4] Em termos académicos, e só para dar uma ideia, é consensualmente considerada uma das melhores editoras do mundo.
[5] Da autoria do Scott, que é muito bom nestas coisas de títulos, subtítulos, capítulos, e até poemas inteiros sobre proteínas e genes.
[6] Experimentem pôr o título no vosso motor de busca!
[7] Esta mudança de terminologia foi universalmente adoptada nos anos 90 num grande congresso na África do Sul, precisamente por ser por demais insultuosa para as mulheres que asseguram a gestação de filhos de outros. Alguém chama às prostitutas “vaginas de aluguer”? E desde quando é que o útero da mulher pode ser separado do resto do seu corpo?
Só percebi que já tinha morrido há cerca de uns nove anos. Até aí, fui suficientemente ingénua para continuar a considerar-me deveras viva. Está bem que César foi apunhalado no Senado, mas eram meia dúzia de políticos todos eles invejosos e medíocres, exatamente como também nós acabamos por nos habituar a pensar nos políticos. No meu caso, eram dez milhões de portugueses. E ninguém me tinha apunhalado com punhais propriamente ditos. Não há nada mais estranho do que uma pessoa então de cinquenta e três anos, que se sente cheia de saúde e pronta a entrar em acção, ser obrigada a aceitar que já morreu. Mas não somos propriamente nós quem escolhe grande parte do que nos acontece. E quem sou eu para contrariar a vontade de todo o meu País, certo?…
… Quando tudo isto aconteceu, eu tinha lançado o meu último romance, Não podemos ver o vento, dois anos antes. Tinha recebido boas críticas. Tinha dado várias entrevistas.
Mas, já nessa altura, é claro que nem tudo brilhava à maneira indicativa da Estrela Polar.
Por exemplo, quando chegava às rádios, às televisões, ou aos sítios onde as revistas queriam fazer mais uma daquelas suas “produções” que a editora insistia serem uma óptima ideia, ouvia frequentemente comentários como,
“Ah! Mas afinal a Clara não está nada gorda!”;
ou
“Oh! Está tão bonita! E dizem que anda para aí a meter para a veia e a cair da boca aos cães[1]…”
ou
“Enfim… para quem não está bem da cabeça… o seu raciocínio é interessantíssimo.”
Tinha-me habituado facilmente a estas figuras de estilo e a várias outras, e portava-me sempre muito bem nas conversas, como se nada daquilo me doesse, tendo em conta o terrível maremoto de maledicência e a incrível destilaria de destruição que acompanharam “o escândalo das fotografias”; só que – enfim. Estava desempregada, estava silenciada, mas estava viva e a roda havia de voltar a subir.
Tenho uma fé a bem dizer insuportável na gentileza das pessoas. Pior ainda, confio no sentido de solidariedade dos portugueses[2]. O que ganhava com isso era estar permanentemente a ser desiludida, mas ao menos saltava todos os dias da cama às sete da manhã cheia de confiança no destino. De cada vez que ia falar com alguém por motivos de trabalho, ia sinceramente convencida de que, dessa vez, o plano resultava e eu voltava, no mínimo, a ser útil.
Como isso nunca aconteceu, acabei por voltar para os Estados Unidos a convite do grande Scott Gilbert, para escrevermos em co-autoria um projecto muito arrojado sobre os efeitos colaterais das técnicas de Reprodução Medicamente Assistida.
É verdade que já lá iam três anos de desemprego, e eu bem tentava, bem tentava, bem tentava, e nunca ninguém me dava trabalho. Mas, sobretudo, aceitei o convite do Scott porque percebi que o meu próprio país me tinha dado por morta e não ia, de todo em todo, tolerar que eu continuasse viva.
Foi no dia em que entrei numa farmácia ao pé de Santa Apolónia, e não estava lá mais ninguém a não ser a menina do balcão.
Assim que me viu, a menina deu um gritinho.
Eu fiquei a olhar para ela, à espera de melhor explicação.
A menina deu uma série de outros gritinhos, de tal forma sentidos que eu acabei por perguntar,
“Está tudo bem?”
“É que a senhora… a senhora… a senhora era uma escritora!”
“Era???? Então a que vem esse era? Era e ainda sou! Quer dizer, tanto quanto sei, ainda não morri.”
“Está bem, mas a senhora nunca mais voltou a aparecer… dantes a senhora aparecia sempre… a senhora era uma pessoa que aparecia muito… e… e… como nunca mais apareceu…”
“Não me diga que acha que eu morri só porque não voltei a aparecer.”
“Ah! E garanto-lhe que não sou só eu!Tem a certeza de que é mesmo a senhora que era aquela escritora?”
E eu respondi-lhe exatamente o que senti, pela primeira vez de muitas vezes que haviam de vir depois:
“Não, minha querida. Não tenho qualquer certeza de ser seja quem for. Agora, se faz favor, pode arranjar-me uma caixa de microlax?”
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora.
[1] Adoro esta expressão dos cães. Era só ouvi-la e ficava logo bem disposta.
[2] Sou parva, e então? O que é que eu ganhava em ser raivosa?