Esta é uma história exemplar sobre a infâmia dos vários tipos de jogos que as pessoas compram em tudo quanto é sítio, em vários tipos de papelinhos coloridos, nos quais acabam por gastar umas quantias nada desprezíveis, sendo extremamente raro receberem seja o for em troca. Tudo isto sempre me pareceu extremamente duvidoso. Mas não há como ouvir falar um verdadeiro profissional.
Tenho vindo a animar um clube de leitura numa vilazinha aqui perto, e a primeira coisa que faço, sempre que lá chego, é ir a correr tomar café, muito embora já tenha tomado dois em casa, antes de sair para ir passear o Sebastião e depois de voltar de ir passear o Sebastião. Às vezes ainda tenho que fazer qualquer coisa muito urgente, como por exemplo mandar a minha crónica para o PÁGINA UM, e então lá vai mais um café. Mas não interessa, dê lá por onde der, assim que chego à biblioteca da nossa reunião, vou sempre a tempo de me sentar na esplanadinha do cafezinho local e de tomar o último café antes de começar a trabalhar, enquanto o Sebastião conversa com toda a gente que passa, e que já lhe conhece o nome e retribui o nome, sobretudo os meninos, que querem sempre umas festinhas.
O proprietário desse café minúsculo é um miúdo muito simpático com quem eu troco sempre cinco minutos de conversa se não vier ninguém pedir nada ao balcão entretanto. Normalmente são conversas divertidas, mas no outro dia vi-o tão triste, com um ar tão abatido, e aquilo era tudo – como tem sido para quase todos os portugueses normais – por causa da falta de dinheiro, que eu lhe disse,
“Ó Rui, que não seja por isso. Eu estou tesa, como de costume, mas posso sempre oferecer-lhe uma raspadinha. Quer?”
Tudo a rir, e ele,
“Ah, eu não digo que não a nada, sabe-se lá.”
Memórias de outras Derivas como esta, já lá vão uns bons vinte anos É tão irritante, nunca mais deixarmos de ter razões para nos sentirmos indignados no mais simples bate-papo ao domingo, do outro lado da rua.
Sendo domingo e havendo uma tabacaria aberta na esquina que fica do outro lado da rua, deixei o Sebastião entregue aos seus amigos da esplanada, entretanto já todos a apostarem quanto é que havia de sair ao Rui e o que é que se fazia com essa massa, e fui num pulo “à do Zé”, como as pessoas dizem aqui.
“Bom dia Senhor Zé, é para comprar uma raspadinha, eu nem sei que preços há, mas…”
“Ai, Clarinha!”, respondeu-me logo o Senhor Zé, muito preocupado, “por favor não se meta nisto.”
“Não é para mim, é para o Rui, que está muito em baixo, então eu prometi que vinha cá comprar-lhe uma raspadinha.”
“Pois, está bem, então é um euro, mas oiça, nem ele, nem a doutora, nem ninguém: que ninguém tenha ilusões, isso das raspadinhas é um roubo. Um roubo de luva branca autorizado pelo fisco, e portanto governo, entendeu. Nunca, nunca, nunca, sai nada a ninguém. Eu vejo essas velhotas virem cá logo às oito e meia, assim que eu abro, comprar uma data delas, e até me dói o coração.”
“Então porque é que não lhes diz que não as comprem?”
“Eu? Se fosse eu a dizer às pessoas que não jogassem, fosse no que fosse? Estava desgraçado! Não percebe? Ao fim desse dia já toda a gente, daqui até Estremoz, sabia do que eu tinha dito… e, no dia seguinte, estava cá uma inspecção qualquer a fechar-me a loja por causa de um defeito qualquer que haviam de inventar logo ali.”
“Não pode deixar de vender jogo, então?”
“Uma casa como a minha, que é uma Tabacaria? Então não vê que isso era a fome e a vontade de comer? Valha-me Deus! Olhe, Clarinha, é como sermos protegidos pelas máfias, e essas coisas assim: quanto menos se falar no assunto, melhor.”
Lá fui entregar a raspadinha ao Rui.
Quando saí do Grupo de Leitura, ele mostrou-ma – toda a zeros, exactamente como o bolso do gajo que acaba de ganhar, e perder, e ganhar, e por fim perder tudo, durante as três horas intoxicantes passadas nas slot machines de um casino qualquer, igual a todos os outros.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
Quando estou a acabar os livros que demoraram muitos anos a escrever-se dentro de mim, acontece-me com alguma frequência deixar de controlá-los, porque começam eles a controlar-me a mim. Por exemplo, estou a arrumar a cozinha e sou subitamente atacada por uma frase que teria ficado muito melhor na abertura do terceiro capítulo da segunda parte. Outro exemplo, menos prosaico, é quando nem sequer consigo dormir: as pessoas dos papéis principais podem acordar no meu cérebro, podem entrar no meu quarto, podem invadir-me de imensas maneiras, mas o resultado é sempre o mesmo: estão a ter grandes conversas, zangam-se, riem-se, e eu, feita parva, por muito que não queira sou refém daquilo tudo. Desta vez, enquanto o deus do desejo tentava contar uma lenda à narradora, só espero que fosse mesmo tudo um sonho[1]; e que aquele sonho assinalasse o fim da escrita[2]. Senão só poderei concluir que enlouqueci mesmo[3]; e que, pior ainda, aquela escrita não terá fim[4].
“Sabes”, disse ele, “gostava especialmente que me deixasses contar-te a história do jovem príncipe a quem o Pai, no seu leito de morte, ofereceu um pássaro chamado Angha Kouch, que trazia inscrita nas penas, em arabescos sagrados, toda a sabedoria do mundo.”
“Sabedoria essa que devia ser, então, muitíssimo maior do que a nossa.”
“Miúda, tu és lixada. Até a rapidez do teu raciocínio me dá tesão.”
“Pois, mas também já se percebeu que a ti tudo te dá tesão, o que não é minimamente surpreendente considerando o que fazes na vida. A sabedoria do mundo só podia ser muito maior, uma vez que as pessoas tinham muito mais tempo, muito mais espaço, e é certo que também tinham muito mais servos e escravos, mas isso são contingências culturais. O que interessa é que as pessoas tinham imenso campo aberto para o jogo infinito de tentar vislumbrar o que virá a ser possível. Alguém tem que devorar alguma biblioteca para ser rápido nisto?”
“Não, não tem,” respondeu-me ele mansamente. “Mas olha que tu vês incrivelmente bem no escuro, mulher.”
“E é com esse género de conversas que tu costumas despertar o nosso desejo, grande kizombeiro?”
“Bom, as outras mulheres…”
“Eu não sou as outras mulheres. Conta-me lá a história do Príncipe e do Pássaro, vá. Adoro histórias.”
“Então, depois da morte do Pai, o jovem estudou as penas do Angha Kouch com tanto afinco, durante a vida inteira, na paz dos seus jardins, que chegou à perfeição dos homens realizados.”
“E foi muito feliz?”
Capas de diversas obras de CPC, tando de ficção como de não-ficção Qualquer um destes títulos poderia facilmente ser o nome do sonho que visitou a Autora na última noite, muito embora o diálogo aqui utilizado fosse cuidadosamente limpo do seu impressionante vernáculo.
“Ai que chata. Voltaste a fazer a única pergunta que interessava fazer no fim desta história. E, portanto, calculo que já pressintas a resposta.”
“Eu apenas duvido imenso da felicidade desse puto. Nunca ouvi falar de nenhuma lenda, nem de nenhuma fábula, nem de nenhuma história tradicional, onde a sabedoria levasse à felicidade.”
“Tem calma. Antes de mais nada, assim, de repente, dir-se-ia que tens razão. A lenda do Angha Kouch diz-nos claramente, por repetidas vezes, que o jovem chegou à mais perfeita sabedoria. Mas nunca menciona a sua felicidade ao atingir semelhante perfeição.”
“E portanto eu aposto que esse puto nunca chegou sequer a saber o que era a felicidade.”
“Ai é?”
“Ah pois é, meu, pois é. O meu trabalho já me fez caminhar por vezes ao lado de grandes sábios. E eles tinham todos o mesmo padrão em comum: quando começavam a falar do que sabiam às pessoas que se reuniam para os ouvirem, ficavam imensamente felizes. E essa felicidade vinha-lhes da partilha dos seus conhecimentos. Agora esse rapaz da tua história, se sabe tudo mas nunca partilha nada, epá, tu esquece. Acaba por transformar-se num velhote tão arrogante e tão cheio de manias que as criancinhas fugiam a correr assim que ouvissem a tosse dele ao fundo do corredor. Ai que lá vem o dragão. Coitadinhas.”
“Ai mulher, mas tu não vês que estás a estragar completamente o glamour do momento? Então eu digo não mais do que a primeira frase de uma fábula de um lugar muito distante que tu nunca visitaste e cuja língua desconheces, e a partir daí pões-te tu a contar-me o resto, como se sempre tivesses conhecido todo o imaginário de todo o universo? Achas normal?”
“Podes crer que acho. A vida ensinou-me que nenhum grande sábio é um sábio completo se não souber rir. Não te dei nenhuma explicação para o fenómeno, porque isso, as explicações, meu pináculo da perfeição… como de certeza que sabes muitíssimo melhor do que eu, há imenso tempo que já não existe explicação nenhuma para absolutamente nada.”
“Ah, minha menina, que uma coisa é quando a gente sonha, mas outra coisa é quando a gente prova. E provar isto assim, isto de nós os dois, isto é tudo tão bom…”
“Eu sabia.”
“Grande coisa. Lá saber também eu sabia.”
“E então tu, que és um deus pagão e portanto tens possibilidades que eu não tenho, tu sabes, e então não te lembras de nada melhor do que fazer-me esperar por ti durante dezenas de anos?”
“E então, há azar? Não cheguei a tempo?”
“Tu és imortal, meu filho. Assim também eu. Só que eu, sendo humana, por esta altura até já podia muito bem ter batido as botas.”
“Oh, vá lá, não sejas dramática. Eu tive de fazer-te esperar porque, antes de vir ter contigo, precisava de testar o teu próprio pressuposto.”
Despenteei-o à bruta.
“Precisavas de testar o quê?”
E ele despenteou-me mais à bruta ainda.
“Não eras tu a grande megera que estava sempre a dizer aos seus pobres filhinhos, meninos-meninos-saber-esperar-é-uma-grande-virtude”?
“Cabrão.”
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Pertenço aos 15% das pessoas que sonham a cores, e aos 27,2% que se lembram dos sonhos quando acordam.
[2] O diálogo poderia não ter sido exactamente este, até porque me lembro de que ambos os protagonistas usavam e abusavam dos palavrões mais escabrosos da língua portuguesa. Mas o sentido era este, isso de certeza.
[3] Note-se que esta última frase não é necessariamente adversativa da antepenúltima.
[4] Seja como for, o seu fim nunca será o fim da lenda. Já está decidido há bastante tempo que a mulher raramente deixa o deus pagão chegar ao fim dos seus raciocínios.
esses velhos jardineiros enregelados dos canteiros do amor.
Charles Dickens
DAVID COPPERFIELD, ou
The Personal History, Adventures, Experience and Observation of
David Copperfield the Younger of Blunderstone Rookery,
1850
Para grande incredulidade dos meus filhos quando eram pequeninos[1], tive o privilégio de crescer num tempo em que só se escrevia à mão, só se faziam contas utilizando a memorização da tabuada, num mundo em que os gadgets ainda não existiam, e lá em casa nem sequer tínhamos uma mera televisão a preto e branco, daquelas só com dois canais e de horário muito limitado, uma vez que os nossos Pais partilhavam firmemente o credo de que a televisão destruía as famílias, impedindo-as de conversar[2]. O que é que esse MAGICAL MYSTERY TOUR[3] me deu? O gosto pela observação, sem dúvida; e, com ele, deu-me desde logo o prazer de inventar histórias. Mas, se soube inventá-las, foi porque vivi uma infância riquíssima passada a devorar livros atrás de livros. Aos oito anos, numas férias grandes em que estava doente e via da janela ao lado da minha cama as pessoas que iam para a praia todas satisfeitas com os seus chapéus de sol e os seus baldes de plástico, eu estava ainda mais satisfeita do que elas: iam-se todos embora, ninguém me chateava, a coberto de todo aquele sossego tinha começado a ler A MARAVILHOSA VIAGEM DE NILS HOLGERSSON ATRAVÉS DA SUÉCIA, da Selma Lagerlof[4], e agora não conseguia parar. Até soneguei algures uma lanterninha para não parar nem à noite. Estava positivamente enfeitiçada. Já tinha lido imensos livros antes, mas isto era diferente. Naquela cama, sem poder ir àquela praia por intervenção directa de Deus, eu acabava de descobrir o verdadeiro milagre da literatura.
Os verdadeiros livros, quando são verdadeiramente bons, têm a generosidade de não esperarem que as crianças cresçam para se deixarem ler, e, assim fazendo, imprimir nelas a qualidade que fica marcada nos seus passos. Aquele meu excitex do Nils Holgersson continuou a caminhar comigo. Aos dez anos, veio parar-me às mãos[5] um romance pouco conhecido de Erico Veríssimo, CAMINHOS CRUZADOS[6]. Não sei quantas vezes o terei lido, mas foram dezenas, de certeza. Fiquei a conhecer de cor todos os personagens, fiz a lápis folhas inteiras de esquemas de como os caminhos de todos eles se cruzavam ao longo do romance.
CPC e S, O SEMINÁRIO “Estás a ouvir, Sebastião? “Repara bem na pérola do Dickens que pus em epígrafe. David está tão apaixonado por Dora que despreza todos os seus colegas do Tribunal que não amam ninguém. A metáfora é fabulosa, e o humor é irresistível: David está ridiculamente apaixonado, e como os leitores já foram avisados várias vezes de que o caso vai ter um desfecho trágico esse enlevo ainda é mais ridículo. É contra todas as regras do bom inglês usar várias comparações numa única metáfora, e Dickens usa imensas palavras mas nunca abandona os jardineiros e os jardins. Não se é considerado um dos melhores escritores do mundo por acaso.” Note-se a expressão atenta, concentrada, e positivamente maravilhada do canídeo.
Claro que aprendi várias coisas sobre as vicissitudes do comportamento humano, mas o que aprendi de mais importante, já lá vão 53 anos, foi como se constrói em três parágrafos uma proeza literária autêntica, que neste caso assinala o início da história. Já tive muitas décadas para tentar, mas ainda não consegui chegar nem perto da qualidade com que o autor começa a sua narrativa, descrevendo o nevoeiro que cobre a cidade na primeira luz da manhã.
Vivi em Alfama, onde caminhei muitas manhãs por entre esse nevoeiro. Estudei em Monterey, onde de madrugada esse nevoeiro era quase intransponível. Já por várias vezes, nos meus próprios livros, dei o meu melhor para descrever o mundo enfeitiçado das manhãs de nevoeiro. Mas, embora nunca mais tenha lido o CAMINHOS CRUZADOS, sei que o nevoeiro do Erico Veríssimo sempre foi melhor do que os meus.
Deus andava a mandar-me estas revelações de dois em dois anos, sem dúvida para que eu conseguisse digeri-las convenientemente na minha tenra idade. E foi assim que, aos doze anos, durante as férias de Natal, alguém me ofereceu de presente[7]AS VINHAS DA IRA, de John Steinbeck[8]. Dois anos antes do 25 de Abril, toda aquela saga da tenacidade dos pobres e da indiferença dos ricos, com todos aqueles pequenos pormenores de outras histórias constantemente intercalados, deu comigo em doida.
Pela primeira vez na minha vida, sublinhei várias passagens e dobrei os cantinhos dessas páginas[9]. Andei ali uns tempos a escrever à Steinbeck, sempre a meter aquelas pequenas narrativas de circunstância no meio da história principal. Há poucos inícios tão bons como o de CAMINHOS CRUZADOS. Mas há poucos finais mais belos do que o de TORTILLA FLAT[10], quando Danny já morreu, a sua casa já ardeu, e todos os seis amigos que ali partilharam com ele a estranha vida de aventuras dos anos anteriores contemplam os escombros:
“A gente de Tortilla Flat dissolveu-se na escuridão. Os amigos de Danny continuaram a olhar para a ruína fumegante. Olharam de forma estranha uns para os outros e voltaram a olhar para a casa queimada. Instantes depois, voltaram-se e afastaram-se lentamente, sem que, ao lado de um, caminhasse outro.”
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Note-se a importância deste “eram pequeninos”: estavam naquela idade em que os meninos acreditam em tudo o que lhes dizem as Mães. Mas, mesmo assim, um mundo sem PCs, sem calculadoras, sem smartphones, sem TV-Cabo… “Oh, Mãe! Não digas essas coisas que eu fico cheio de medo!” E foram perguntar ao Pai se era verdade, os pestinhas. Based on a true story.
[2] Sempre reconheci que eles tinham uma certa razão, e agora ainda acho mais, sobretudo quando as famílias se sentam à mesa do restaurante, cada um agarra no seu tm, e nunca mais se ouve um pio. Para que conste, nunca dei tms aos meus filhos, quando os brindei com um PC era para fazer os TPCs durante duas horas e “ir a sítios” durante quinze minutos, a televisão esteve seriamente regulada até o mais velho fazer quinze anos, e nunca lhes comprei nenhuma PlayStation nem nenhum outro monstro desses. Resposta a bombardeamentos de solicitações usando a técnica do golpe baixo que se ouvia mais vezes lá em casa: “MAS-EU-NÃO-SOU-A MÃE-DOS-OUTROS-MENINOS!”
[3] Para benefício dos mais novos, o MAGICAL MYSTERY TOUR é o album psicadélico dos Beatles em que John Lennon canta I AM THE WALRUS (letra escrita totalmente em ácido durante dois fins-de-semana diferentes, o que explica ser tão difícil de perceber) e STRAWBERRY FIELDS FOREVER (escrita só de uma vez e baseada na infância de Lennon, portanto de compreensão um pouco mais fácil).
[4] Claro que a ideia não foi minha, que só tinha oito anos, quand mêmme. Foi a minha professora primária, a Madalena, que eu adorava e achava linda, que nos leu umas passagens nas aulas. Oh. Nunca mais larguei a minha Mãe até ela me comprar o livro.
[6] “Então, Clarinha, o que é que a menina está a ler agora?” – “É um romance do Erico Veríssimo.” – “Ah, muito bem! Com que então está a ler o CLARISSA?” – “Não. O CLARISSA é para meninas. Este é mesmo um romance de crescidos, e chama-se CAMINHOS CRUZADOS.” – “Ah, muito bem, muito bem.” E lá ia a puta da velha (que, pensando bem nisso, provavelmente era bastante mais nova do que eu) confabular com a minha Mãe sobre o tal de romance para crescidos.
[7] Ou então, no meio de caos das dezenas de prendas da família, foi Deus que lhe pôs na capa um post-it a dizer CLARINHA e está a andar. Foi assim, aliás, que nasceram os post-its.
[8] Era a tradução portuguesa, claro está. Aos 28 anos, quando estava em Monterey (no meio do nevoeiro) e, ao tentar traduzir o título usei THE RAISINS OF ANGER, toda a gente me percebeu mas fui gozada até mais não. O verdadeiro título original do livro é THE GRAPES OF WRATH. Eu sei que Deus queria facilitar-me a vida com a tradução portuguesa, mas depois também se devem ter divertido imenso à minha custa, lá nos Céus.
[9] Haviam de ver os meus livros agora. É cantinhos de página dobrados por todo o lado, e, na ausência de lápis nas proximidades, chego a marcar passagens, e até a gatafunhar notas à margem, a esferográfica vermelha, ou a marcador de ponta de grossa. E o que é que tem? Os livros são meus, ou não são?
[10] Tortilla Flat é um pequeno planalto, cimeiro a Monterey, onde se acolhe a camada populacional incapaz de pagar os custos extravagantes da vida na cidade. Porque é que este título foi traduzido em português como O MILAGRE DE SAN FRANCISCO, sendo que, ainda por cima, o romance não nos fala de milagre absolutamente nenhum – a menos que a amizade entre os homens deva, de facto, considerar-se um milagre? Estamos certos de que as más traduções não provam a existência de Deus. Por outro lado, no entanto, pode ser que provem a existência do Diabo. Já era meio caminho andado para Deus existir mesmo.
Acredito que és inocente, e que és bom. Apenas gostaria que todos fôssemos como tu.
Charles Dickens
DAVID COPPERFIELD, ou
The Personal History, Adventures, Experience and Observation of
David Copperfield the Younger of Blunderstone Rookery,
1850
Para encurtar razões, estive três semanas completamente isolada do mundo, dedicada apenas a beber copos e copos de café, a fumar quantidades de cigarros muitíssimo acima da minha média diária, a andar sempre toda produzida, a sentir-me cada vez mais feliz, e a ouvir cada vez mais piropos matinais sobre a minha incrível beleza[1]. Como é evidente, muito contribuiu para este caminho interior de descoberta de uma nova paz de espírito, que pelos vistos até me dava vontade de me arranjar melhor num sítio onde nem sequer se podia secar devidamente o cabelo, e que me fazia parecer tão bonita logo ao acordar[2], não ser obrigada a saber mais episódios sinistros sobre a Guerra da Ucrânia, nem quaisquer outros episódios sinistros tout court. Se alguém tentasse agredir-me com eles, escorriam-me logo por cima como água por pena de pato.
“Ah, viste aquela que esfaqueou o marido e depois o deixou a esvair-se em sangue até à morte dentro da banheira?”
“Ora, parem mas é de engolir essa versão do País-CMTV.[3]”
E foi assim, feliz e fortificada, com o meu Sebastião cada vez maior e mais armado em cão feroz, que regressei a Estremoz. E cheguei mesmo a tempo de ir comprar fielmente a minha sandes de queijo do pequeno-almoço ao Bruno, e partilhar o grande silêncio que pairava no Zé Russo para ver, em directo e ao vivo, a selecção portuguesa de futebol feminino apurar-se, pela primeira vez, para o torneio da Grande Final da Copa de Mundo jogando contra os Camarões na Nova Zelândia. Ao derrotar as adversárias por 2 a 1 no último play-off, as portuguesas qualificaram-se para disputar o título de Campeãs do Mundo na Austrália e na Nova Zelândia, entre 20 de Julho e 20 de Agosto. Mais, há que notar que, em Estremoz, vemos estes jogos com o frisson acrescido de uma das jogadoras, a Carolina Trindade, ser daqui mesmo da cidade. É tão daqui mesmo que até eu já lhe conheço a cara, só de passar por ela na rua.
“Ai, Bruno,” suspirei eu, depois dos primeiros momentos de euforia. “Queira Deus que essa Final chegue depressa e que os senhores da bola e das direcções de informação não abusem. O que isto agora vai ser de repetição destes golos em câmara lenta, de comentadores a papaguearem banalidades que qualquer curioso papagueava melhor do que eles, de publicidade às marcas dos sponsors, de entrevistas ao treinador… Que sufoco, está a ver?”
Mike e Mãe, 2012 Embora por diferentes razões, ambos apreciamos deveras todos aqueles rabos de cavalo do futebol feminino.
Sou tão parva.
Por junto, houve as imagens obrigatórias da chegada feliz da selecção feminina ao aeroporto[4]. E, logo ali[5], o anúncio de que mais tarde o PR receberia o grupo vencedor em Belém[6].
E depois veio o grande silêncio que se segue às batalhas.
Então aquilo não era só uma gracinha em que umas miúdas jogavam à bola de rabo de cavalo? Uma gracinha não é nenhum jogo de futebol, é um entretenimento com uma grande telenovela de vencedoras lacrimosas no fim. Cenas dos próximos capítulos? Isso não existe. Aquilo não se destina a galvanizar multidões, pessoal, qual é. Aquilo é só para que não se diga que não as deixamos jogar à vontade. Mas elas que não pensem que valem tanto como os homens[7]. Então e os espelhos de vidro, não existem? Não servem para nada? As vitórias destas adolescentes armadas em rapazes não valem pelas vitórias deles. Não valem, não valem, e não valem.
Vamos é voltar à Guerra da Ucrânia, que entretanto já fez um ano.
E tu, ó Clarinha, pára de sonhar acordada, mas é.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Sem segundos sentidos whatsoever. Agora pensem o que quiserem sobre o que foi que eu estive a fazer para andar sempre assim tão feliz e produzida, e de quem é que vinham esses tais piropos matinais. Façam apostas mútuas, se quiserem, que eu ofereço-me já para banco. Acertar é que nunca acertarão, isso de certeza. Ah-ah-ah.
[2] A loucura deste estranho retiro torna-se épica à medida que a descrição continua. Agora nem sequer posso disciplinar todos estes caracóis mas sou bonita logo ao acordar? Desculpem, até parece um conflito de interesses. Ou, no mínimo, uma contradição nos termos
[3] Aprendi esta expressão com os meus sobrinhos. É perfeita para separar o trigo do joio. E é nessas alturas que se repara que há mesmo muito pouco joio
[4] TRÊS MINUTOS de imagens obrigatórias. Contei pelo relógio. E tudo isto aconteceu apenas no dia seguinte. Está bem que a Nova Zelândia fica nos nossos antípodas, mas o que é que aconteceu ao Skype? Ao Zoom? Ou mesmo ao Messenger, para os mais pobrezinhos? Raios vos partam, seus hipócritas.
[6] Não será totalmente cínico sugerir que esta recepção também tem que ser porque é obrigatória.
[7] Até é provável que sejam todas fufas. Há muito quem diga, porque são mesmo muito boas na bola. Ah, mas bem podem ser fufas, que nunca serão homens. Até podem ser LGBTs da bola. Não serão homens à mesma.
Protegida pelo braço caloroso do ZL, a professorinha preocupada com as perguntas dos seus meninos depois de terem assistido ao nosso filme disse que se chamava Lídia Augusta, e ele disse oh mas que nome grandioso, olhe querida, eu sou o ZL, e ela é a C e de certa forma também somos os dois professores, e não vai acreditar mas conhecemo-nos ontem à tarde e apaixonámo-nos durante a noite, enquanto estávamos a jantar, e depois viemos para aqui a conversar e ver nascer a manhã e foi quando demos o nosso primeiro beijo e depois apareceu a menina com todos os seus meninos, não acha bonito? Isto fez a Lídia Augusta, que olhando melhor era assaz boazona, fazer um grande oooooh, abraçar imenso o ZL à laia de parabéns, e a seguir juntar ao abraço a conversa de como sacrificava tudo à oferta do imenso amor que tinha para dar dentro de si mas, pronto, era tudo por causa do marido.
É um bocado chata, esta versão da vida das pessoas em que é sempre tudo muito triste por causa do outro membro do casal.
E então o marido da Lídia Augusta era contabilista, bastaram-lhe sete anos de casamento para ficar tão barrigudo quanto calvo, nunca fora grande espingarda na cama mas agora era mesmo o fim da picada porque eram só cinco minutos semanais na posição do missionário e ela até bebia mais do que a conta ao jantar para que o triste dever marital lhe roesse menos a alma, lia o Wall Street Journal à mesa, nunca queria ir à praia nem a Paris nem a Nova York nem a lado absolutamente nenhum porque em Portugal tudo está enxameado de turistas e para sair de Portugal toda a gente sabe que andam a cair cada vez mais aviões de manutenção mal feita devido à crise, de qualquer maneira a verdade é que só estava bem se pudesse estar a falar de fugas ao fisco e de offshores em águas internacionais o que o levava a literalmente fugir de casa todos os fins-de-semana para andar na farra com outros contabilistas, alguns autarcas, alguns bandidos da PJ, alguns bancários com conhecimentos, o ZL está a ver, não é, tudo péssima gente, e eu sozinha em casa porque ele não quer ter filhos, não quer ter um cão, nem sequer quer ter um gato persa que é uma raça hipo-alergénica, quando lhe falei de um peixe encarnado dentro de um aquário ele desatou a berrar-me se eu queria desequilibrar o Feng-Shui da casa mas quinze dias depois pedi a uma amiga que lhe perguntasse duas ou três coisas desse género e percebeu-se logo que ele me tinha berrado só por berrar, por causa do Feng-Shui é que não foi de certeza porque na realidade ele não faz a menor ideia do que é o Feng-Shui, assim como não faz a menor ideia do que é o karma mas isso não o impede de dizer que se eu for àqueles jantares dele lhe vou dar mau karma, ó ZL, olhe só para as minhas unhas, eu dantes não as roía mas é que estou a um passo do burnout, e o pior é que não quero, bem, é mais que não posso, não sei se o ZL me entende mas eu não posso pedir-lhe o divórcio porque ele percebe bem demais de contas enganosas e de dinheiro sujo e ia deixar-me na miséria, tenho a certeza absoluta. Ah, mas se me entrasse de repente na sala de aulas uma alma gémea, como lhe aconteceu ontem com a C,
Pois foi, ó Lídia Augusta,
Nova demonstração de Clara e Sebastião Vê-se claramente nesta foto que não é a seriedade que afecta a felicidade.
rosnei-lhe eu, que entretanto me tinha sentado na relva com a turma inteira para esclarecer as dúvidas dos meninos, que não paravam de levantar as mãozinhas e eram positivamente hilariantes,
mas olhe, essa de se abrir a porta e entrar por ali dentro a alma gémea, ontem à tarde, assim como lhe aconteceu a ele, também me aconteceu a mim, boa? E vai daí, para todos os efeitos, a partir de agora mesmo esse homem está aí mas é meu. Mande esse atraso de vida da posição do missionário dar uma curva, vá a um banco de esperma e engravide já enquanto pode, diga-lhe que foi o padeiro, vá viver para casa de uma amiga que o gordo desconheça e mande-lhe os papéis do divórcio por correio registado com aviso de recepção, faça qualquer coisa por si, mulher, mas tire as patas de cima do gajo que eu vi primeiro, e muito legitimamente me saiu na rifa.
Disse aquilo num tom brincalhão para a pobre esposa repelida não se sentir ainda mais repelida, mas a verdade é que acabei por vociferar tantos detalhes sobre o nosso namoro que me parti a rir. E o ZL, que estava a ouvir-me com cada vez mais gozo, ainda me piscou o olho mas no fim ainda riu mais do que eu. Podíamos estar os dois a brincar, mas estávamos a brincar com o fogo. Estávamos era os dois a gostar muito de ouvir as nossas declarações crescentes de amor e compromisso.
Aaaaai,
suspirou a pobre Lídia Augusta, lá mesmo do fundo de toda a dor que assolava o seu coração,
vocês têm uma forma tão interessante e tão criativa de utilizar a língua portuguesa, e tudo o que eu digo, e tudo o que eu oiço, é tudo tão baço, tão banal, tão,
e estava na cara que a pobre Lídia Augusta ia desatar a chorar, pelo que o ZL voltou a abraçá-la, e, já que eu tinha montado uma conferenciazinha com os meninos, lá lhe vendeu a conversa da treta de eu ser muito boa a explicar assuntos difíceis às crianças e ao povo. Ela implorou-me que explicasse mesmo porque ela, que não tinha qualquer amor na sua triste vida, nunca conseguiria fazê-lo. Eu deitei a língua de fora ao J, virei-me para a turma e para todas as mãozinhas no ar que apareceram imediatamente, e falei-lhes dos livros do Astérix, onde havia um druida de roda de um grande caldeirão onde preparava a poção mágica que tornava invencíveis todos os gauleses lá da aldeia, sempre à tareia com os pérfidos invasores romanos.
Na segunda fila levantou-se logo a mãozinha de um menino armado em bom.
Todos não, s’tora. O Obélix não pode beber a poção mágica porque caiu dentro do caldeirão quando era pequenino.
Eu já te lixo, pestinha.
Que bom,
Respondi-lhe toda sorridente, como se a interrupção do puto não tivesse sido do pior intencionado carácter provocatório,
parece que temos aqui uma turma de sábios em Astérix. Pois é, meninos. Quem já caiu no caldeirão em pequenino não pode voltar a beber mais poção mágica. Ora acontece que eu e o ZL caímos os dois no caldeirão em pequeninos, mas depois esquecemo-nos. E então ontem à noite, ao jantar, estivémos os dois outra vez a beber poção mágica. Era uma poção mágica muito boa que há cá em Portugal, chamada Tiago Cabaço, e então como era muito boa nós bebemos muita, e foi por isso que ficámos assim como vocês viram, e é por isso que quem já caiu no caldeirão quando era pequenino nunca mais deve beber poção mágica, senão está sempre a fazer filmes e nunca trabalha, e a vida dos crescidos é trabalhar, não é curtir.
E foi com esta explicação, que mereceu pelo menos a concordância tácita de todas as criancinhas, que aliás adoraram o uso da palavra curtir, de onde se prova que já sabiam o que é que isso que queria dizer, que eu e o ZL fizemos finalmente rir a Lídia Augusta.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Estudioso e autor romano considerado o fundador da História Natural, a ciência que veio a dar origem à Biologia. Homenageando a sua natureza de grande cientista, morreu no ano de 76, data que poderá parecer familiar a alguns leitores, e por razões que ninguém pode discutir com a Natureza: Plínio ia de barco, a passar ao largo, quando o Vesúvio explodiu. Pediu ao comandante para se aproximar mais da margem, por forma a observar devidamente o fenómeno, e morreu envenenado pelos gases tóxicos da explosão. Ninguém sabe o que é que aconteceu aos outros tripulantes do barco.
Devemos amar aqueles que tentam alcançar o impossível J. Wolfgang Goethe AS AFINIDADES ELETIVAS, 1809
Se calhar sou um bocado irritante na insistência com que repito isto às pessoas de quem gosto, e claro que, sendo humana, “penso quenada do que é humano me é estranho[1]”, e portanto às vezes também me irrito; mas, de facto, irrito-me pouco. Escrevo estas linhas ao completar 63 anos e não tenho a menor dúvida de que, quanto mais passam os anos, mais a vida me diverte, mais as pessoas me comovem, e mais tudo o que seja minimamente bom é infinitamente precioso. Por isso, hoje, a minha prenda de anos para o mundo é a história verdadeira do que eu e o ZL nos rimos numa madrugada ainda escura, num Inverno distante em que os meus dois filhos se portavam todos os dias como os mais acabados bandidos, e eu acabava de perder não só o emprego como tudo o que ainda pudesse considerar-se um bem material: a casa, o carro, a conta bancária, o cartão de crédito, enfim. Nada disto[2] me parecia uma desgraça assim tão grande como isso, porque ao menos sempre era uma desgraça que, por esses dias, andava a acontecer a metade do País. E, ainda por cima, nessa noite acabava de jantar pela primeira vez com o ZL, que me tinha feito rir o tempo todo, e ainda por cima me deitava uns olhares algo torpes que não deveria estar a deitar, porque, a levarem a algum lado, levariam a um declarado conflito de interesses. Como quando nos puseram na rua ainda ficámos imenso tempo à conversa diante das escadinhas que levariam à minha rua, e depois ainda viemos à beira do rio ver nascer o dia por entre o nevoeiro[3], acabámos por fazer feliz também uma jovem que apareceu ali muito triste. No outro dia esbarrei com ela aqui, em pleno mercado[4]; ela explicou às amigas que eu era aquela pessoa que a tinha ensinado a ser feliz[5]; e foi assim que voltei a lembrar-me de todo este episódio memorável.
O ZL começou a aconchegar-me muito nele por causa do frio da madrugada[6] e eu recordei-lhe que mais um milímetro de proximidade e aquilo já seria conflito de interesses.
Antes conflito de interesses que pecado, patroa, sussurrou-me ele ao ouvido, carregadíssimo de intencionalidade.
Eu resmunguei que, pela maneira como ele olhava para as mulheres, não parecia nada que desgostasse de pecados, o que lhe permitiu esclarecer que nessa noite por acaso tinha reservado esse género de olhares para mim, e acrescentar que a propósito, se eu queria mesmo saber, os tais olhares que me tinham sido destinados, e de que eu estava a queixar-me com a maior ingratidão deste mundo, não eram nem um pecado nem um conflito de interesses, porque esses olhares eram um verdadeiro projecto. E, com esta, abraçou-me pela cintura e puxou-me para si, com toda a leveza e simplicidade que só costumamos sentir nos nossos velhos amantes. Passou um gajo de boina por nós, que devia estar de mal com a vida porque nos mandou ir para a pensão.
Rimo-nos tanto, ficámos tão agarrados, e aquilo era tudo tão bom que, mais conflito de interesse menos conflito de interesse, no fim fui eu quem lhe saltou ao pescoço e lhe aplicou um beijo de ventosa a todo o vapor[7].
Ele reciprocou, e começou a dar um uso de assumido conflito de interesse às mãos, ao mesmo tempo com muita doçura e com imensa avidez.
Clara e Sebastião demonstram uma forma muito simples de ser feliz ZL já não é nem seis nem meia dúzia, mas transformou-se numa espécie de irmão gémeo e assumiu prontamente o papel de padrinho de Sebastião, pelo que continua a integrar activamente o conjunto dessa felicidade.
Passou uma professora do segundo ano com uma expedição de meninos pequeninos que iam em visita de estudo atravessar o Tejo num cacilheiro e percorrer o Cais do Ginjal. Não nos mandou ir para a pensão, mas tossicou, e logo a seguir entoou um delicadíssimo,
por favor, meus senhores,
que nos fez interromper a transgressão, olhar para trás, e ver vinte e oito carinhas lindas e rosadas fixadas em nós, de olhos redondos de espanto, porque quando os filmes dos pais estavam quase a mostrar cenas como a nossa, o raio da cota agarrava no comando e passava a televisão para a porcaria dos bonecos didáticos, e de queixos caídos de emoção porque tinham finalmente conseguido entrar num dos filmes onde os cotas nunca deixam entrar meninos. O nosso conflito de interesses devia ter-se tornado mesmo indecente, porque, além disso, os meninos tinham ar de quem não só apanhou finalmente um dos tais incríveis filmaços proibidos, mas ainda por cima teve a sorte de apanhá-lo em directo e ao vivo, e já em plena luz do dia.
O amor é a coisa mais bonita do planeta e a única que poderá ainda salvar-nos, e ver pessoas assim tão apaixonadas como vocês, e ademais na vossa idade[8], fez-me sentir muito feliz,
continuou a professora, sempre muito delicada.
Mas por favor compreendam-me, é pedagogicamente tóxico fazerem tudo isso que estavam a fazer com tanta volúpia à frente destas crianças, que vão estar aqui paradas no cais ainda mais dez minutos, ficarão absolutamente confusas, acabarão a fazer-me perguntas que eu própria terei dúvidas sobre qual a melhor estratégia de resposta, chegarão a casa a falar aos Pais do que viram e a fazer ainda mais perguntas, e se eu não vou saber como responder, bem, imaginem os pobres encarregados de educação.
Já se tinha percebido que o ZL era um grande engatatão, mas a rapidez com que ele me largou a cintura e passou o braço pelos ombros da jovem triste foi impressionante.
Ó minha querida, mas por que é que se lembra de continuações tão tristes para inícios tão felizes, numa manhã tão bonita, rodeada de tantos meninos lindos? Então conte-me lá, como é que se chama?
Eu posso ter contribuído para ensinar esta jovem a ser feliz. Mas o primeiro passo, honra lhe seja – este truque do braço e do nome, eu aprendi com o ZL,
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Citando o dramaturgo romano do século II AC Publius Terentius Afer, mais conhecido como Terêncio, sendo a forma original da frase “Homo sum, humani nihil a me alienum puto“, utilizada na sua peça HEAUTON TIMORUMENOS. Estando Portugal pejado de parolos, já ouvi esta citação ser atribuída a tout le monde et son père (Ha! Kulturens Skonhed!), incluindo Fernando Pessoa. Nem se percebe para que é que os parolos pensam que serve a Wikipedia.
[2] À excepção da bandidagem dos meus filhos, bem entendido. Mas mesmo essa não era minimamente tão triste como as histórias que eu ouvia muitos outros pais contarem, porque os meus filhos, mesmo nos seus piores momentos, sempre foram muito meus amigos – e eu deles.
[3] É verdade que foi numa madrugada de mais um Inverno, quando são sete da manhã e ainda está escuro, pelo que podemos assistir ao espectáculo do dia a nascer por entre o nevoeiro do rio. Mas claro que não era um Inverno gélido como este. Se fosse, talvez nunca tivéssemos chegado a passar tantos anos divertidos a desobedecer às questões de princípios mais básicas de uma sociedade decente. Enfim, nesses anos ISTO também não era uma sociedade assim tão decente como isso.
[4] Nem sei como é que ainda não esbarrei com a minha vida inteira no mercado de Estremoz. É impressionante.
[6] Não era este frio, mas era suficientemente frio para fazer sentido que as pessoas se aconchegassem. Eu não ia meter aquele gajo, assim sem mais nem menos, numa casa onde só existia a minha cama; e ele não podia ir com o carro para lado nenhum, porque tínhamos bebido como se o branco fosse água gelada e a BT estava estacionada mesmo ali diante da Alfândega.
[8] O ZL não achou grande graça àquela do “na vossa idade”, mas enfim. A professora era mesmo uma jovenzinha, e ele próprio era uns aninhos de nada mais jovenzinho do que eu, que agora, quando me lembro do nosso conflito de interesses, acho que era uma jovenzinha nessa altura.
[9] Camões, OK? Sai no exame do 12º ano. É uma questão de serviço público, em benefício dos supracitados pobres encarregados de educação.
“Hoje em dia as pessoas sabem cada vez mais, e entendem cada vez menos.”
Oscar Wilde (1890)
Concluo hoje a minha série sobre a forma como as grandes ditaduras mantêm os seus povos reprimidos pelo isolamento e pela ignorância recorrendo ao golpe baixo de não lhes permitirem a aprendizagem do inglês – e de, assim fazendo, os impedirem de comunicar com o mundo. Faço-o no dia em que o grande Valete vai subir de novo ao palco do Coliseu de Lisboa para voltar a oferecer aos portugueses a qualidade incomparável da sua noção de métrica, a perfeição inventiva da sua criação de rima, e sim, no caso do Valete podemos mesmo afirmar isto sem ter medo de ninguém[1] – Valete vai, uma vez mais, oferecer-nos a urgência da sua mensagem. Mas, se não for por mais nada então que seja por uma questão de homenagem ao povo da Ucrânia, peço-vos que não se esqueçam de um pormenor nada despiciendo: Valete faz isto tudo porque é um grande artista, sem dúvida, mas também faz isto tudo porque pode. E é por isso que vos conto aqui a história de um outro artista, um amigo de há uns bons trinta anos, que uma noite subiu ao palco do mundo e quis cantar mas não pôde. Chamava-se André. A gente tratava-o por Andrushka.
Estive em Petrozavodsk no final de 1991, quando as estátuas derrubadas de Estaline ainda jaziam aos pés dos seus pedestais, e, por cima das fábricas de aço agora fechadas onde os grandes letreiros em cirílico ainda anunciavam “ESTAMOS A CONSTRUIR O SOCIALISMO”, os artistas de rua do fim do mundo tinham pintado a vermelho, num inglês sempre com alguns erros como se tentassem acertar na ortografia certa sem conseguirem superar ao certo as suas próprias dúvidas, a palavra única “CUIDADO!”. Petrozavodsk não tinha muito mais de trezentos mil habitantes, e hoje ainda tem menos.
É uma cidadezinha industrial encostada à fronteira com a Finlândia, onde na altura toda a indústria estava parada. Quando lá cheguei era indisfarçável estarem todos a viver o momento mais difícial das suas vidas de eternos servos de um regime cruel ou de outro. Nos dois primeiros dias, arroz muito empastado que se comia em três rações diárias ainda tinha misturados uns bocadinhos de carne; mas depois já era só mesmo arroz, seguido de arroz, seguido de cada vez menos arroz.
Se alguém precisasse lá em casa dos serviços de um canalizador ou de um electricista, eles exigiam logo serem pagos à chegada em divisas líquidas ou nada feito – e por “divisas líquidas”, bem entendido, subentendia-se[2] o infame vodka de beterraba da Ucrânia, mais barato e mais rasca do que todos os outros mas mesmo assim vodka à mesma, que até eu já me tinha habituado a beber para não morrer de frio. E, quando eu lhes perguntava “e agora?”, os meus novos amigos respondiam-me, num tom absolutamente neutro de fazer gelar ainda mais o sangue nas veias, “agora em breve será sempre noite… e depois, em Março, se ainda cá estivermos, há de ficar tudo bem.”
CPC, mascarada de John Lennon na medida do possível, de partida para a fronteira com a Finlândia, com o seu parceiro S já disfarçado de Cão Vermelho. Se apanharem o comboio para Norte em Moscovo e durante os dois seguintes não virem mais nada que não seja florestas de bétulas, sempre todas iguais, estejam descansados que vão ter ao destino dos nossos intrépidos repórteres. Não se esqueçam é das vossas preciosas garrafas de litro de Vodka de Beterraba da Ucrânia, porque se pensam que está frio em Portugal, imaginem como está na Rússia, e nem sonhem que existe outra forma de aquecimento, pelo menos durante a viagem.
A União Soviética acabou exactamente uma semana depois de me ter vindo embora, e nunca mais soube deles.
Tinham todos, como eu, cerca de trinta anos. Embora naqueles dias inflamatórios do reinado de Boris Yeltsin já não corressem os riscos que corriam dantes, as caves afogadas em tabaco, com Músicas Ocidentais e bebidas escaldantes, onde queimavam as noites num tronco nu muito Freddie Mercury[3], entre miúdas de cara de anjo e pernas de dois metros, continuavam a ser todas clandestinas.
Fui levada até esse submundo estranho[4] pelos dois únicos guias do burgo que falavam um certo inglês, aprendido em escolas da Finlândia com autorizações seladas do Politburo, destinado a ser arranhado o necessário e suficiente para mostrar a maquinaria saída de Petrozavods às delegações estrangeiras amigas da URSS, o Miska e o Andrushka.
O Miska abandonara há cerca de um ano o seu posto de dirigente da Juventude Comunista, logo a seguir deixara mesmo de ser militante, e era um homem triste, mais dado a confirmar as palavras dos outros com os seus silêncios do que a fazer ele próprio qualquer tipo de discurso a favor ou contra tudo o que se passava naquela mudança vertiginosa de tempos russos. Limitava-se a ouvi-los e a, por vezes, segredar-me em conclusão “e eu, enquanto fui capaz, fiz o que pude para não ver nada disto.”
O Andrushka, pelo contrário, era um rebelde de longa data, com um romance acabado de escrever que já versava a corrupção na corte moderna onde Putin jogava às cartas com Yeltsin, e um historial bastante respeitável de guitarra-baixo em várias bandas “decadentes[5]” que nunca duravam muito tempo depois de uma série de eventos sinistros. Contou-me, obviamente, muitos filmes de terror. Mas, para mim, nenhuma história poderia ter sido pior do que a da noite em que, quando ele ainda vivia em Moscovo e ainda não tinha feito o seu curso finlandês destinado à propaganda, correu na cidade inteira a total consternação da notícia do assassinato de John Lennon.
“Primeiro pensámos que era mais um daqueles boatos comunistas que eram postos a correr de propósito para nos assustarem”, contou-me ele, com o rosto subitamente muito endurecido. “Depois acabámos por perceber que era mesmo verdade. Ficámos desfeitos. Morrer um de nós, em Moscovo, era uma coisa. Estava sempre a acontecer. Mas morrer o John Lennon, aos quarenta anos, em Nova York, isso era intorelável. Fomos todos para a Praça Vermelha, tu viste o tamanho daquilo mas eu garanto-te que não cabia lá nem mais uma pessoa, e estávamos todos lá para lhe fazermos uma vigília à luz das velas. E, depois de acendermos as velas todas, queríamos cantar o IMAGINE. Queríamos mesmo, mas não podíamos. Nenhum de nós sabia a letra. Tu sabes o que é, quereres cantar e não poderes, e tu sabes cantar, mas nunca pudeste aprender a língua daquela canção, que, no entanto, é a língua de todas as canções? Cantámos em lalala, pronto, e estávamos a cantar e estávamos a chorar porque não podíamos cantar. E depois veio a polícia, e veio o Exército Vermelho, e em meia hora a Praça Vermelha estava deserta, e foi presa muita gente. E eu jurei que havia de mentir tudo o que tivesse que mentir – mas havia de aprender inglês.”
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Lá estou eu outra vez, não é? E ainda agora comecei.
[2] Hã? Hã? “bem entendido”, vírgula, “subentendia-se”? Meu Deus, sou fixe e não tenho qualquer vergonha!
[3] Eram lixados, aqueles russos. Não conseguiam aceder a nada, pois não, mas conseguiam conhecer muitíssimo bem o número de tronco nu à Freddie Mercury. E também tinham a escola toda na arte do bem disfarçar. Freddie Mercury? Quem é esse, o Freddie Mercury? Sonsinhos.
[4] Mais uma redundância do mais fino estilo, não acharam? Claro que um submundo, por decorrência, é estranho. Eu-sou-boa-nisto, amigos. Enfim, para quem gosta do género.
[5] Leia-se “de hard-rock”, o que não era nada de fácil de montar, e muito menos de manter, num regime onde as guitarras eléctricas e as baterias eram sistematicamente apreendidas – e dizia-se oficialmente que destruídas, embora também se murmurasse que o Aparelho as levava para as suas datchas a título de entretenimento para os mais jovens, que ao menos assim tendiam a recusar-se menos a acompanhar os pais.
“A educação é uma coisa maravilhosa, mas infelizmente ninguém
pode ensinar-nos as lições mais importantes da vida”
Oscar Wilde
Isto só visto. Então agora o grandecíssimo filho da polícia[1] do mais cruel e mais sádico czar de todos os tempos[2] ameaça-nos com “catástrofes globais” se ousarmos continuar a apoiar a Ucrânia? Olha filho, caso ainda não saibas, o Trump também jurou desfazer em pó a Coreia do Norte com “fire and fury the likes of which the world has never seen[3]”; e o Saddam Hussein, depois de invadir o Kuwait, avisou os americanos que, se abrissem contra o país dele qualquer espécie de hostilidades, lançaria contra as suas tropas “the mother of all batles[4]”, e deixaria entregues aos abutres todos aqueles corpos de imperialistas derrotados. Quando tudo isto falhou, tu estavas onde e entretido com quê, para não estares sequer a olhar, mesmo que sejas incapaz de ler legendas? Just checking[5]. Mas OK, OK, OK, whatever[6], ninguém aqui é parvo. Desde que começaram os seus discursos bombásticos a propósito desta tragédia, a malta já percebeu que para aquele tinhoso vale tudo para conseguir restaurar a grandeza da antiga União Soviética – mas “catástrofes globais”, ó Vladimir? E nessas catástrofes globais, achas que acontecia o quê, morríamos nós e ao mesmo tempo também morrias tu, se é que estamos todos entendidos quanto às catástrofes que tens em mente? E o teu povo, o que é que o teu povo pensa destas tuas ameaças bombásticas? Ora, tu vives descansado porque sabes muito bem que o teu povo não pensa nada, pura e simplesmente porque o teu povo não sabe nada. O teu povo não acede à internet, não vê televisão por cabo, chega à escola e só aprende o alfabeto cirílico para ficar logo ali impedido de alguma vez vir a ler as notícias do mundo. E, ainda por cima, demonstrando tu uma curiosa devoção aos métodos implementados pela mão-de-ferro estalinista, proibes os teus servos de aprenderem inglês[7] para poderem entender o planeta em primeira mão.
E ainda há mais uma coisa, maldito carroceiro. A mim, pelo menos, escusas de vir com conversas tipo nada disto é bem assim. Tudo o que eu já disse, e também tudo o que ainda vou dizer, são pormenores que eu sei que são verdadeiros com toda a certeza – porque são pormenores que me aconteceram a mim, que estive na URSS há mais de trinta anos, quando as pessoas já sabiam que tu existias, e a maioria dessas pessoas já tinha medo de ti. Ouviste? Toma e embrulha. Ainda Boris Yeltsin fazia aqueles discursos de que os russos tanto gostavam, encharcado em vodka e na terminologia mais profana que pode arrancar-se à língua de Tolstoi[8], e já os amigos que fiz nessa altura tinham medo de um gajo que muitas vezes não conheciam de rosto nem de nome. Era o Director do Serviço Federal de Segurança, e sabia-se que Boris Nikolayevich, cansado da guerra, já o convidara para assumir o cargo de Secretário do Conselho de Segurança, a estrutura que coordena as agências de segurança a nível político em nome do presidente. E então, se tudo isto fosse verdade…
Aqui era costume os meus interlocutores fazerem uma pausa, enrolarem na mortalha um tabaco muito escuro, voltarem a medir-me dos pés à cabeça obviamente a pensar se poderiam mesmo confiar em mim, acabarem por encolher os ombros naquele gesto inconfundível que significa sempre, no mundo inteiro, “ah, epá, olhem lá, que se foda, por favor, quer dizer, que se lixe mas aqui vai disto que vendo bem as coisas lixado já eu estou de qualquer maneira”, e, depois de assim pensarem, continuarem a contar-me o que constava nas ruelas escuras do medo e nos becos clandestinos do boato.
Se aquele mesmo gajo que entrava a altas horas no Kremlin sem se dar sequer ao trabalho de parar no checkpoint da segurança, para a seguir passar horas perdidas a jogar com o chefe um poker onde circulavam pilhas obscenas de muitíssimo dinheiro…
Clara e Sebastião preparados para enfrentar o Grande Norte da Mãe Rússia, onde os espera mais uma delicada missão de espionagem. “Quem aqui entrar pela espada, pela espada sairá,” declara Alexandre Nevski no filme que o apresenta como um grande herói, libertador amável dos seus súbditos oprimidos, perseguidor incansável dos pérfidos cavaleiros teutões que em nome de Deus queimam os bebés russos em grandes fogueiras, e consolidador inquebrantável das enormes fronteiras da Pátria. E ah, sim, isto também é de uma importância crucial no que diz respeito a transformar um homem num herói: o filme de Eisenstein põe no papel de Nevski um borracho de perder a cabeça. Ai se eu e o Sebastião o encontrássemos no meio de tanta neve. Que grande espionagem eu não faria.
… se esse gajo viesse a tornar-se ele próprio o chefe seguinte, as pessoas da Rússia iam sofrer na pele o castigo que lhes seria inflingido pelo seu infame pecado de serem russas. E, pior ainda, por nunca terem tomado a iniciativa de…
Mais uma pausa, mais um segundo pensamento a meu respeito, mais um suspiro de “que se lixe.”
… por nunca terem tomado a iniciativa de recorrerem a qualquer um dos seus subordinados, que depois lhe passaria para as mãos metade do lucro, para fugirem a salto para a Finlândia. Ou mesmo para Portugal, porque não, o que é que custa, é um país barato e cheio de sol e com praias, claro que a fuga a salto é mais cara e a percentagem sobre os lucros da operação mais elevada, mas compensa, acreditem que compensa. O povo russo é apático. Não consegue tomar iniciativas.
Esse amiguinho discreto que o Yeltsin pescara do KGB, certamente com os bolsos cheios de garrafas de vodka de beterraba da Ucrânia[9] já vazias às oito da manhã, gostava de “métodos de espionagem”[10], tais como ir buscar criancinhas à escola, levá-las para sítios bonitos, deslumbrá-las com prazeres exclusivamente destinados a ricos, tais como carreiras de tiro para ganhar ursos de peluche enormes, rodas gigantes todas cheias de luzes a acenderem e a apagarem, passeios de gaivota em lagos magníficos seguidos de pic-nics na relva a ver os patos de todas as cores correrem entre os juncos da margem, e toda a sorte de guloseimas deliciosas em oferta inesgotável, para que finalmente os putos acusassem os pais de crimes que eles nunca na puta da vida tinham cometido.
Dentro de uma semana, dias 3 em Lisboa e dia 4 no Porto, canta nos Coliseus o meu Incomparável Herói da Música Portuguesa Actual, o grande Valete. Em sua homenagem, vou então contar-vos a história de um rebelde russo que queria cantar e não podia. Mas, mesmo sob proibição governamental extremamente rigorosa de se meter nestas práticas dúbias, este rebelde cheio de garra não teve medo de me contar muitas das coisas que eu aprendi no extremo Norte do seu país durante aquele Dezembro gélido, uma semana precisa antes de a URSS chegar ao fim.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Belíssimo jogo de palavras, não é? Além do insulto mais difamatório subentendido na primeira sílaba da palavra “polícia”, o Putin, na sua qualidade de Grande Confessor do KGB, também já foi mesmo um polícia do pior género. Ha! E esta do “Grande Confessor”, acabadinha de meter extremamente a propósito, por acaso também está muito bem esgalhada, porque este gajo podia perfeitamente ser o Torquemada e andar pelo mundo a infernizar toda a gente com os seus autos-da-fé. “Infernizar”, topam? A propósito de queimar o pessoal na fogueira. Vá lá, confessem. Sou boa nisto ou quê?
[2] Antes de mais nada, recorde-se que a História da Grande Mãe Rússia está literalmente pejada de czares, sendo que está bem que alguns eram sádicos e cruéis por se terem tornado completamente mongos depois de tantos casamentos entre primos, mas na sua esmagadora maioria estes detentores de enormes poderes absolutos eram figuras tais como Ivan o Terrível, Alexandre Nevski, e outros grandes heróis dos filmes magníficos do Eisenstein, daqueles que passavam o tempo a mandar os seus pobres súbditos esfomeados, gelados, e mal treinados, morrer e matar desse lá por onde desse, apenas porque “quem aqui entrar pela espada, pela espada sairá: assim foi e sempre será em Terra Russa”. Esta tirada podia ser do Putin, mas por acaso foi do seu ilustre predecessor Alexandre Nevski. E reparem que constitui, só por si, aquilo a que se chama tout un programe. Um programa catastrófico, bem entendido. Para os russos e para nós.
[3] “Fogo e fúria de uma dimensão que o mundo nunca antes viu”, numa versão portuguesa que melhora indecentemente as capacidades oratórias de Trump.
[4] “A mãe de todas as batalhas.” Sempre gostei especialmente desta, e da sua doce toada romântica, tão evocativa do nascer do sol num oásis. E tem, ainda, o valor acrescentado de ser o pré-aviso de guerra mais feminista de todos os tempos.
[5] “Era só para saber”. A pessoa começa com gracinhas em inglês e às tantas já está ela própria a fazer figura de parva.
[6] Qualquer coisa como “quero lá saber”. Dá imenso jeito para acabar conversas sem ofender ninguém.
[7] Trotsky dominava tão bem o inglês que até foi actor secundário em alguns filmes americanos, representando geralmente aquele tipo de papel em que um niilista russo era dotado de tal bondade que resolvia tudo a cinco minutos do fim. Durante o seu período mexicano, lia e sublinhava diariamente o NEW YORK TIMES logo pela manhã, para pôr o dedo na pulsação do mundo. Só para vos dizer: viu-se o que o Estaline fez ao único dirigente marxista-leninista que falava inglês..
[8] Quando o tom da conversa pertence à categoria taxonómica pessoal da estiva, poucas outras línguas terão a pujança e a criatividade da língua russa. E a ordinarice, então, é de comprimir o estômago até a pessoas como eu, que qualquer leitor destas crónicas já percebeu certamente que não faço o género toca piano e fala francês (falo francês, mas qual é? – há azar?), mas o que é que querem, padeço de sindroma vertiginoso – e aquele nojo do russo ordinário, quando bate em cheio no verdadeiro ordinário, é mau de digerir, mas é que mesmo muito mau.
[9] Este vodka não foi criado pela minha imaginação doentia, nem é mais um subentendido para descrever Yeltsin como um tal alcoólico que em breve estaria a beber o álcool dos frascos dos perfumes. É um vodka que existe mesmo, com uma cor preocupante entre o castanho e o cor-de-laranja; e, obviamente, é o mais barato de todo o infinito mercado soviético dos vodkas. Sem dinheiro para os aquecimentos nem lenha para as lareiras, os russos mantiveram-se quentes durante todo aquele Inverno a bebê-lo. E eu também, portanto suspendam o vosso julgamento se fazem favor. Viviam-se dias difíceis. Pelo menos naquela altura, o caos resultante da rapidez compulsiva da mudança, e a balda total instaurada no país exactamente pela velocidade dessa mudança, eram de tal ordem que tinham criado uma miséria extrema. Tão extrema que os meus amigos lá trataram das coisas um bocado a contragosto, e uma bela manhã bateram-me à porta do quarto do hotel, dito de luxo, mas com rachas nos vidros das janelas, uns jovens soldados e um jovem polícia. Vinham vender-me um uniforme do Exército Vermelho por quinze dólares, e um casaco de gala da Polícia Soviética por sete dólares e meio. Além desta transa, traziam-me ainda uma grande profusão de barretes de pele de urso ou de bonés de matéria dura, com uma estrela vermelha a encimar a foice e martelo dourados que cintilavam nas palas que desciam até aos olhos. Tudo isto enrolado dentro de folhas soltas de PRAVDAS, por seu turno enrolados dentro de sacos de plástico opaco. Quando o soldado saiu, o agente da autoridade ainda se lembrou de me vender um outro bem de consumo que só custaria vinte dólares, e que podia ficar disponível imediatamente caso eu tivesse interesse pela mercadoria. Tratava-se de um produto natural muito bem cuidado, e que fazia bem a tudo. Grande parte de tudo isto foi-me explicado por gestos e desenhos. O rapazinho estava podre de bêbado, e queria desesperadamente vender-me o seu próprio corpo.
Depois de várias semanas de protestos e manifestações, André Ventura convoca um debate parlamentar sobre a Educação em Portugal para dar ao CHEGA um destaque da mais absoluta infâmia[1]. E a seguir aproveita os holofotes e os microfones para espicaçar o povo contra a investigação da PJ às contas da Câmara Municipal de Lisboa, que, segundo ele, põem em causa o presente cargo do Ministro das Finanças. O que, mais tarde, leva a uma explicação em directo do dito ministro e ex-autarca este respeito[2]. Que nojo. Não tenho qualquer simpatia pela maioria socialista cheia de ligações perigosas, mas claro que ainda tenho menos pela minoria fundamentalista cheia de demagogias vergonhosas. Mas, mesmo assim, estou consciente de que, perante todos os sintomas de podridão política que possam incomodá-los, os cidadãos portugueses retêm o seu direito sagrado ao protesto. Todos temos livre acesso às notícias e aos debates políticos transmitidos ao vivo, por isso podemos estar fartos, podemos estar desiludidos, podemos estar que já não podemos, mas a verdade é que nunca somos nem silenciados nem enganados. Podemos saber tudo o que quisermos saber, porque vivemos em democracia, e portanto fazemos parte de um vasto banco de doação universal. Se vivêssemos sob qualquer espécie de pata ditatorial, a nossa capacidade de pertencermos a este grande banco estava seriamente restrita. E atenção, que talvez nunca déssemos por isso, mas essa restrição teria sido mais que deliberada pelo regime no poder desde os nossos dias na escola primária: nunca teríamos podido aprender inglês. Seria terminantemente proibido.
Estive em Praga em 2002, num encontro de estudantes de Letras e Literaturas da Europa com escritores portugueses. Nessa altura, já Vaclav Havel tinha presidido, com toda a sua atenção de grande intelectual, sobre a Revolução de Veludo, que libertou de vez o seu país da presença armada da URSS e depois separou sem uma única lágrima a República Checa da Eslováquia. Notava-se o regresso de Praga à abertura do mundo nos menus em inglês dos bares e restaurantes, nos anúncios das colecções expostas nos museus, nos dizeres impressos nas T-shirts com Golems, na comunicação fluente dos guias que nos passeavam pelas alas fantásticas do Hradcany[3]. Na sala onde fiz a minha conferência principal estavam agentes literários dos dois novos países, que se falavam cordialmente sabe-se lá em que língua. Pedia-se que falasse em Português, suficientemente devagar para o préstimos do senhor da tradução simultânea. O Português não é uma língua lenta[4], o meu ainda o é menos, comecei rapidamente a ter a sensação incómoda de que ficavam para trás lacunas cada vez maiores do que eu dizia, os alunos eram vivaços e interessados, de maneira que as perguntas deles derivaram muito depressa para o debate, enfim – o que interessa é que acabou por haver ali um momento em que me passou pela cabeça um grande,
– Ora, que se lixe!
CPC, incógnito Já imaginaram o que seria termos que viver na clandestinidade a vida inteira para podermos dar-nos ao luxo de continuarmos a falar alto sobre as nossas opiniões?
O Muro já caiu há onze anos. Desde pelo menos o Século XV que Praga é a capital europeia da arte, da cultura, e da ciência; e, passeando descontraidamente pelas ruas, vê-se logo que manteve até hoje o seu power de séculos.
E mais!
Eu era criança, mas ainda me lembro do entusiasmo dos meus Pais quando voltaram de uma semana passada nesta mesma cidade em 1968, gozando a liberdade da “Primavera de Praga” dois meses antes de duzentas mil tropas do Pacto de Varsóvia e cinco mil tanques soviéticos invadirem a Checoslováquia e a fecharem ao mundo.
Ou seja, se Praga sofreu o castigo de todas as cidades do Leste, onde as pessoas se viram brutalmente impedidas de aprender mecanismos universais de comunicação, há de ter sido, com toda a certeza, a cidade onde foi mais difícil implantar esse bloqueio, e onde esse bloqueio esteve implantado durante menos tempo. Vamos lá ver, concluí eu em pensamento, doida para conseguir comunicar em directo com os estudantes interessantíssimos da minha audiência – de certeza que, num contexto destes, muitos deles falam inglês, certo? A Revolução de Veludo ficou lá para trás, em 1989. Estes meninos, que nasceram e cresceram depois dela, e que ainda por cima gostam de letras e de literatura – Santo Deus, será mesmo possível que estes meninos não falem inglês?
E falei-lhes então em inglês, devagar, com calma, com entusiasmo, malta, como é, não podemos nós prescindir da tradução simultânea e comunicar directamente uns com os outros?
Foi horrível.
Fez-se na sala um silêncio gelado. Os alunos, até ali tão cooperantes, olharam para mim com um ar pasmado e não disseram uma palavra. O senhor da tradução simultânea ainda fez um ar mais pasmado. Finalmente, uma das agentes literárias da Eslováquia presentes na sala veio até à mesa e segredou-me baixinho, em inglês, muito depressa, numa espécie de aflição mal contida, “fale português. fale português, que eles não entendem inglês!”
Era a grande mão da besta que continuava a reinar muito depois da sua morte. Tinham passado 21 anos entre a entrada dos tanques soviéticos na Checoslováquia e a Revolução de Veludo; e 24 anos entre a Revolução de Veludo e aquela conferência. A segunda distância era maior do que a primeira, mas o estrago não estava consertado. Seria um bom tema para uma daquelas belíssimas canções das PUSSY RIOT, traduzidas por algum apoiante bilingue do russo em cirílico para o inglês no nosso alfabeto. Elas, sozinhas, também não podem ser dadoras universais. Estamos em 2023, mas a Rússia continua subjugada por um ditador sem escrúpulos. A luta continua.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Sim, claro, parece fazer algum sentido porque eram protestos e manifestações de professores. Mas Ventura, o mais acabado dos nossos demagogos com assento parlamentar, teria sacado este coelho da cartola a propósito de quaisquer protestos e manifestações que dessem nas vistas e agradassem ao povo. Não é propriamente a primeira vez.
[2] Dizendo ao País que, basicamente, que agora é o Ministro das Finanças, e que, enquanto tal, não tem absolutamente nada a dizer a esse respeito – mas leva uns bons vinte minutos a oferecer esta explicação, o que parece dar por cumprido o seu dever perante o eleitorado.
[3] Palácio fantástico onde Rodolfo II da Baviera instalou no século XV a corte do Sacro Império Romano, onde todos os conhecimentos, artes, e colecções, foram apadrinhados com faustosa generosidade.
[4] Numa breve confabulação com o senhor enquanto estava a beber água, percebi que ele estava à espera que eu falasse brasileiro, conforme explicou. Desconhecia por completo “a minha língua”. Pois é, que desgraça, mas eu não ia pôr-me para ali a falar brasileiro, nem que fosse capaz de uma impostura dessas. Estava a representar as letras de Portugal, e a pessoa tem o seu orgulho, por muito que a maltratem.
Aforisma de Jesse James antes do seu último assalto ao comboio
1879
Hoje vou prestar uma homenagem contente aos leitores despertos que conseguem ler as minhas notas de rodapé até ao fim[1]. E, de caminho, espero estar também a prestar algum serviço público, revelando sinais de vida aos que ainda são vítimas da tirania das palavras. Vamos lá ver, Pussy Riot[2]? Mas o que é que me deu, certo – Pussy Riot? Nem o tradutor do Office se atreve a oferecer uma proposta estúpida que seja[3]. Como aconteceu em tantas outras obras que produzem desde 2011 na sua impenitente luta artística contra Putin, estas feministas russas tiveram quem inventasse com elas o nome da banda, e têm sempre quem lhes traduza para inglês os títulos das canções que postam no YouTube, tais como PUTIN WILL TEACH YOU HOW TO LOVE. Às vezes, como acontece em POLICE STATE, conseguem cantar uma tradução do refrão – um polícia de choque começa por bater nas meninas da banda e depois bate-lhes no ursinho de peluche porque ainda não está satisfeito, acendem-se imensos vídeos e finalmente o zoom mostra Trump a apertar a mão a Putin, e entretanto elas cantam, num coro infantil perverso, “everybody’s happy, makes me happy”. Podem variar entre dez e vinte membros, e convidam todas as performers de protesto russas a entrar no barco. Conseguem nunca desistir, escapar, escorregar, entrar e sair da prisão sem desanimar, mudar de pele, reaparecer, sobreviver. Têm muitíssimo para nos dizer. Mas não conseguem falar connosco, porque nunca conseguiram aprender inglês.
Quem não gostar de termos de usar o inglês, enquanto veículo de comunicação universal, que não goste[4], mas a realidade é o que é. Plenamente conscientes dessa mesma realidade, todos os ditadores que vieram à superfície para lá da Cortina de Ferro fizeram toda a gente que escravizaram viver meio século sem nunca aprender inglês. E bastou as pessoas desconhecerem as palavras do Oeste para todas as coisas que floresciam para lá do Muro ficarem profundamente enevoadas. Agora que a União Soviética já não existe, no seu lugar existe a Grande Mãe Rússia, e no papel de Estaline está instalado o impensável ditador Vladimir Putin. Putin é uma daquelas pessoas que nos foram enviadas pelo Demónio para não podermos acreditar na bondade humana[5], e nesse sentido pérfido é obviamente muito sério no que toca a assegurar-se de que ninguém na sua terra fala inglês – o mesmo inglês que ele próprio, ostensivamente, não fala. O inglês, que o mundo inteiro fala mas por acaso também não se fala na China nem na Coreia do Norte, embora se fale fluentemente na Coreia do Sul, é uma arma de acesso à cultura que todos os maiores ditadores mantêm sabiamente afastada dos seus povos.
Eu estava a trabalhar na UMass of Amherst em 2014, quando quatro das Pussy Riot conseguiram escapulir-se de Moscovo para uma série de gigs em salas de espectáculos americanas, acompanhadas pela sua Grande Mestra de tradução simultânea. Era uma miúda de Nova York ainda mais novinha do que as cantoras, ela própria de origem russa e apaixonada pela sua missão. A banda, notava-se logo, absorvera com avidez toda a grande qualidade que se aprende nas academias russas quando se tem uma autêntica veia artística. A sua presença em palco revelava uma imaginação cheia de arrojo e bom-gosto, com grandes jogos de cores, um sentido plástico magnífico e uma óptima música servida por grandes vozes bem trabalhadas, com arranjos que podem não ser os mais criativos mas não cometem nenhum erro[6]. Sozinhas à nossa frente, com a adolescente nova-iorquina aos pulos num canto agarrada ao microfone, as cinco felizes da vida e boas em tudo, transmitiam uma segurança que transbordava para a plateia e punha toda a gente ao rubro[7].
No dia seguinte, no entanto, deram uma entrevista em directo na NPR[8] e aquela segurança contagiosa desapareceu, porque a adolescente entusiástica que as traduzia no gig também tinha desaparecido. Só estava em estúdio um funcionário público[9] que por junto arranhava umas coisas de russo. Elas conseguem cantar o refrão ou outro em inglês, mas isso não quer dizer que falem inglês. Não falam mesmo. Tentar entrevistá-las nestas condições precárias é apenas um jogo de enervar toda a gente e aquilo foi para lá de penoso. Repetiram várias vezes que não tinham medo. Eram quatro crianças assustadas. E a apresentadora, toda completamente cosmopolita de cima da sua uma longa carreira laureada, era uma burguesa paternalista e ignorante que não fora capaz de contratar a outra menina que falava russo para dar voz a quatro grandes artistas que têm imensa coragem e rios de talento mas só sabem ler e escrever em cirílico. Não percebes que estás perante todo o power de um outro alfabeto, you bitch?
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Hey, “poucos serão os eleitos”, certo? Não fui eu que disse isto.
[2] Termo cuidadosamente enterrado dentro de uma notinha de rodapé na crónica sobre a boçalidade de Putin e a visita do nosso PR à Ucrânia, anunciada para este ano.
[3] Pois, temos pena. Neste caso específico, nem eu vou traduzir. As jovens performers russas não podiam ter irritado mais o regime policial do seu país ao evocar em inglês uma grande revolta de partes privadas femininas, mas em 2011 eram mesmo jovens, não pretendiam ser mais que hard punk de protesto, e quanto mais cru fosse o nome da banda melhor. Entretanto o seu som sofisticou-se, os seus vídeos também, e até a sua linguagem se tornou muito mais metafórica. E, aliás, eu já nem sequer tinha idade para traduzir directamente o nome da banda na altura em que ela apareceu.
[4] Dantes usava-se o latim para estes mesmíssimos efeitos, e o inglês tem a grande vantagem de ser muito mais simples. Foi exactamente esta simplicidade, e não a extensão do seu Império, que o levou a ganhar a taça da Comunicação Universal ao Francês e ao Alemão durante as batalhas coloniais e românticas do século XIX. E pronto. Já passaram dois séculos, e o esperanto foi um falhanço crasso. Querem espadeirar contra os moinhos? Eu tenho mais que fazer.
[5] O último post das Pussy Riot no YOUTUBE chama-se PUTIN’S ASHES, e é um tributo ao povo da Ucrânia. O arranque, extremamente conseguido tanto do ponto de vista plástico como do ponto de vista musical, mostra-nos só um sudário com um botão vermelho onde poderemos neutralizar Putin se lá conseguirmos carregar. Está cortado a seguir, mas promete-se a versão integral para Janeiro. Estamos em Janeiro. Estas coisas metem nervos, a sério que metem.
[6] Veja-se no YOUTUBE a canção PLASTIC, com um vídeo todo elaborado em torno do tema do conceito da boneca Barbie e plasticamente soberbo.
[7] E há que ver: as audiências americanas são extremamente segregadas, e não é nada fácil pôr os brancos “ao rubro”: tendem a ficar sentados e sem movimentos nem ruídos, as faces imóveis, apenas uns gestos de dedos, uns sussurros para o lado, ou umas batidas de pés para mostrarem a sua alegria. Conseguem ser a companhia mais deprimente deste mundo. Naquela noite, no entanto, passaram-se todos dos carretos. Bom, OK, nem todos. Mas bastantes. Suficientes. Houve ali um calorzinho. É raro a pessoa sentir calorzinho no meio dos americanos brancos. Estou a falar a sério, e de experiência própria. Vivi com brancos, e vivi com pretos, porque na América sirvo para ambas as categorias, sobretudo quando acabo de chegar da praia e desde que comecei a cantar no coro de Gospel da Igreja Africana. Estou em condições de jurar que os dois grupos não se misturam, e que a vida de uns não tem nada a ver com a vida de outros. Os pretos são sempre mais solidários, têm sempre menos dinheiro, vivem sempre em bairros mais pobres, acolhem sempre muito mais pessoas em cada uma das suas casas, recebem salários inferiores para trabalhos idênticos exercidos com as mesmas qualificações, e sim, claro – é muito mais divertido ir aos concertos com eles.
[8] Sigla da National Public Radio, de longe a melhor, mais intelectual, e mais ambiciosa de todas as rádios americanas.
[9] Sem ofensa para os nossos funcionários públicos, nomeadamente médicos, professores, e bombeiros. A palavra esconde uma atitude assaz insultuosa por parte da maioria dos americanos.