Etiqueta: A Deriva dos Continentes

  • O marido

    O marido

    Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 4


    Inicialmente, poucos biólogos levavam a sério a ideia da violência inter-específica. Existia tão pouca evidência de animais a matarem outros do seu mesmo grupo que se presumia que assassínios destes só ocorriam quando qualquer coisa corria mal – os jardins zoológicos estavam sobrelotados ou mal equipados, ou havia um acidente resultante de erros humanos. A ideia combinava-se perfeitamente com a visão da ordem natural das coisas dominante à época, segundo a qual o comportamento animal era concebido para o bem de todos. A selecção natural darwinista funcionava como um filtro desenhado com o propósito de eliminar a violência assassina. O assassínio, por suposto inexistente no restante mundo vivo, era um produto evidente das guerras humanas, pelo que havia que aceitar que, num dado momento da sua ascensão ao poder, o Homo violara as regras da Natureza ao tornar-se sapiens[1]. Aos olhos dos cientistas, os primatas assassinos, tal como os assassinos em qualquer outro grupo animal[2], não passavam de uma fantasia dos romancistas até à década de 70.

    Richard Wrangham e Dale Peterson

    DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)


    Já ficámos a saber que a violência doméstica entre os chimpanzés é de tal ordem que muitas das fêmeas agredidas chegam a morrer em consequência. Resta acrescentar que o chimpanzé também não se ensaia nada de formar um grupo de comandos que caminha pela savana vários dias até chegar à família mais próxima, a cercar discretamente, esperar pela primeira vítima desprevenida, atacar em massa com grande estridência, gerar o caos e o pânico, matar tantos machos quantos possível e violar todas as fêmeas capturáveis, que depois são arrastadas de volta ao grupo guerreiro e entregues para o resto da vida ao marido que eles lhe escolhem.

    É um cenário bastante familiar, ou não é?

    Os primeiros confrontos entre as primeiras tribos humanas não hão de ter sido muito diferentes disto, incluindo a boçalidade com que cada vencedor trata a fêmea a quem conseguir deitar as unhas.

    Há muito quem argumente que nós não somos mais do que um outro grande primata. E, assim sendo, é evidente que vale mesmo a pena continuar a usar a vida nesta cidadezinha em termos de microcosmos demonstrativo de como o demónio se aloja profundamente dentro da essência masculina.


    Devo dizer que, entre os 16 e os 19 anos, enquanto ainda não tinha idade e depois ainda não tinha dinheiro[3], andei muito à boleia pelo País inteiro. Tudo o que era homem sozinho[4], fosse qual fosse o seu veículo, ao fim de um bocado tentava a sua sorte. Eu dizia “NÃO!”, o homem em causa respondia “Está bem, está bem… mas tens que ver, se eu não tentasse era parvo, não achas?”, e a viagem seguia amena, sem mais sobressaltos.

    Até que cheguei ao Alentejo.

    Nos seis meses da minha primeira experiência corria o ano da glória de 1978, e estávamos todos em pleno PREC – o que quer dizer que, para aquelas bandas, estavam todos em plena Reforma Agrária. Num cenário destes, o que é que espera uma revolucionariazinha de dezoito anos? Oh, aquele seria sem dúvida um povo equalitário e solidário, educado e estudado, enfim: não era certamente dos camionistas daquelas estradas que eu esperava ouvir dizer “a gente damos boleia mas nã damos de graça, óvistes?”, ou “isto pra nós tudo o que tá à beira da estrada é gado”, e outros insultos abertamente insultuosos, e visivelmente perigosos. Não era no Alentejo que eu alguma vez imaginaria que ia acabar ao murro com um motociclista de FAMEL e penico que ficou a bradar impropérios do pior com uma roda torta no caminho de terra por onde tinha tentado desviar-se comigo.

    Mas enfim, tinham passado quarenta anos. Estou no Alto Alentejo, e não no Baixo Alentejo[5], como antes. De certeza que as coisas, agora, já não são assim.

    Família de chimpanzés depois de uma caçada, apanhada a empanturrar-se de carne de gazela.
    É verdade que nós, os Pan troglodytes, temos por hábito ser herbívoros. Mas isso não implica que sejamos necessariamente estúpidos. Sempre que matar não seja dispendioso em termos de energia, e não implique correr grandes riscos pessoais, a caça é uma forma perfeita de garantir quantidades substanciais de comida de alto valor proteico e de grande especial riqueza calórica. Nada que aliás vocês não saibam, ó seus humanos voyeurs que andam sempre a espiar-nos.

    Bastava-me esquecer o motociclista da FAMEL e da luta ao murro. Esse piolhoso era de Estremoz, onde eu estava a pedir boleia para Portalegre.

    O primeiro sinal que, mesmo no Alto Alentejo, tudo continuava a ser assim, veio do gajo do mercado. Eu nunca o tinha visto mais gordo, e vi-o tão pouco que se me cruzasse agora com ele na rua nem o reconheceria. Tinha finalmente conseguido transportar uma boa quantidade dos meus livros cá para casa, e andava obcecada com a questão das estantes. Naquele dia procurava uma estante especial, forte que chegasse para suportar os meus grandes álbuns de História da Biologia, e suficientemente bonita para ficar mesmo ao cimo da escada.

    E não é que encontrei isso mesmo? Era uma estante linda, que parecia um coreto todo feito em ferro forjado. Como acontece com frequência no mercado, comprei-a por tuta-e-meia, feliz da vida.

    O pior foi começar a carregá-la dali para casa num dia de calor vingativo. Eu não transportava outros pesos, mas tinha que parar o tempo todo para limpar o suor dos olhos. Ora, vendo-me fazer todo aquele esforço, um senhor simpático que estava ali à conversa com outros senhores veio oferecer-se para carregar a estante por mim.

    Eu fico-lhe muito agradecida, mas a minha casa ainda é ali no Anónimo[6]. Eu posso é segurar à frente se o senhor segurar atrás, já ajuda muito” – “Ora, menina, eu sei muito bem onde fica a sua casa, ponho-lhe lá a estante num instantinho” – “Mas com este calor...”

    O senhor sorriu, pôs a estante de ferro em cima do ombro, e começou a andar rumo à minha casa. À época ainda me enervava um bocado toda a gente saber onde era a minha casa, mas enfim. Também não deve ser todos os dias que uma menina vem viver para o centro histórico de Estremoz. E, de facto, ainda nem eu tinha acabado de pensar tudo isto e já estávamos à porta de casa.

    Pronto, deixe aqui em baixo que isto ainda são dois andares sem elevador, logo à noite, pela fresquinha, eu peço ajuda às minhas amigas e levamos a estante para cima” – “Ah, não, por favor, eu sei que a menina mora no segundo andar, ponho-lhe já lá a estante e pronto.”

    Bem… se por “e pronto” se entender “e assim que a pousar eu estendo os braços e apalpo-a toda, em todos os sítios onde conseguir apalpá-la”, foi de facto isso mesmo que o senhor simpático tentou fazer. O que quer dizer que, acto contínuo, lhe espetei com um bruto pontapé naquele sítio que faz doer muito aos senhores, ao mesmo tempo que proferia, de forma tranquila mas autoritária, “saia já daqui seu[7]”, enfatizado por um empurrão nos olhos[8], o que acto contínuo fez o senhor simpático cair de costas pela escada abaixo.

    Tinhoso.

    As minhas amigas dizem que estas coisas me acontecem, mesmo com uma idade tão adiantada, porque uma pessoa como eu devia ter um marido, e a ausência dessa entidade representativa do poder na vida em sociedade é tão grave que perturba até os homens mais lutadores.

    Ou seja, e como escreveu o grande Mao Zedong, “O poder cresce sempre no cano de uma arma[9].

    (continua)

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Veja-se a história da serpente, de Eva, da maçã, de Adão, da fúria de Deus, da expulsão do Homo sapiens do Jardim do Paraíso, onde o arcanjo Uriel ficou à porta com uma espada flamejante para que nenhum ser humano pudesse alguma vez voltar a entrar. Não é ciência, como toda a gente sabe. Mas há que admitir que é um pressentimento fantástico.

    [2] Bom… e tal como as plantas carnívoras, ou tal como muitos peixes, incluindo as orcas e os tubarões. Para não falar da raivosa e inolvidável Moby Dick, mas lá está – fantasia de romancista.

    [3] Primeiro para tirar a carta (diga-se em abono do meu estoicismo que passei neste exame uma hora depois de ter passado no exame de Cálculo 2, sem dúvida a mais traumatizante de todas as disciplinas do meu curso, e mesmo no fim do Primeiro Ano, quando a pessoa já se arrastava de cansaço e ainda nem tivera direito de pôr um pé na praia); e depois para comprar o Carocha quatro anos mais velho que eu, onde o nosso colega João Rabaça pintou um noitibó na porta do meu lado, e que, além de fazer toda a Lisboa-Vilar de Mouros com seis pessoas lá dentro à data do primeiro festival, também aguentou dois anos de saídas de campo pelo meio de sapais, e carreiros de terra rumo a praias desconhecidas, até ser trocado por outro ligeiramente mais jovem, exactamente da minha idade e igualmente dado a viajar sem fim. As letras da matrícula eram HB, pelo que o baptizámos com o nome controverso de Herri Batasuna.

    [4] A menos que fosse um gajo porreiro, já com um emprego fixo destinado a ajudar a família e pouco mais velho do que eu. Isso era diferente. Conversávamos imenso, falávamos do que é que gostaríamos de fazer quando pudéssemos, ouvíamos cassettes e era costume gostarmos das mesmas músicas, e nenhum de nós acreditava no casamento porque é o género de vida que mata o amor. Fomos uma geração bestial, na qual ainda hoje tenho muito orgulho.

    [5] Em 1978, eu estava a aproveitar o segundo semestre daquela interessante experiência que antecedeu o 12º ano e se chamou “ano propedêutico” para ganhar umas massinhas a trabalhar em Aljustrel com os miúdos da telescola. Até esses miúdos tinham aquele olhar alentejano que varre as mulheres de alto a baixo. Foi nessa altura, a ouvir confidência atrás de confidência das raparigas da minha idade que não tinham ninguém com quem falar, que comecei a ter umas ideias, ainda vagas, sobre um romance policial que veio a chamar-se ADEUS, PRINCESA.

    [6] AHAHAH. Não, não sou minimamente dada a distracções. Nunca direi onde fica a minha casa.

    [7] Parece-me inútil inserir a longa sequência da frase. As escadas são altas, pelo que qualquer vira-lata ainda demora o seu tempo a cair delas abaixo. E eu não me calei enquanto ele não embateu na porta e deu de frosques.

    [8] Isto tem a virtude  de perturbar a visão, fazer chorar, e em consequência assustar imenso os senhores. Quanto mais os anos passam mais nós vamos aprendendo, não é.

    [9] Não, não é nenhuma metáfora de gosto duvidoso. É uma verdadeira ideia de como viver correctamente dentro da colmeia. Resta-nos esperar que o tempo se despache a transformá-la num arquetípico tigre de papel.

  • Os assassinos

    Os assassinos

    Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 3


    O que poderá dizer, nos nossos dias, quem continuar a não gostar da ideia de que os humanos estão mais próximos dos chimpanzés do que os próprios gorilas? Até ao fim do século XIX, a resposta céptica mais ferrenha à descoberta de fósseis era que Deus os pusera nas rochas como uma experiência estética, ou filosófica, para fazer de conta de que a Terra tinha uma História – exactamente como dera um umbigo a Adão para fingir que ele tinha nascido de uma mulher. Para os cépticos criacionistas do fim do século XX, a explicação era mais que um qualquer artifício demoníaco organizara todos aqueles fósseis em série para que caíssemos na tentação evolucionista. Ou seja, as marcas moleculares claríssimas de relação estreita entre grandes primatas seriam um plano ou divino ou diabólico. Para quase toda a gente, no entanto, a ideia de um poder enganoso a funcionar a este nível exige demasiado da nossa imaginação. O Criador pode ser Omnipotente, mas é pouco provável que seja Maluco.”

    Richard Wrangham e Dale Peterson

    DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)


    As minhas citações do DEMONIC MALES estão a ficar cada vez maiores, mas a culpa não é minha, e nem sequer é do livro de onde eu as tiro: a culpa é dos leitores, que todas as semanas me dão os parabéns pela escolha, me revelam que tudo isto lhes pareceu tão interessante que foram ler o trabalho inteiro, e, de vez em quando, me contam que gostaram tanto que até já encomendaram a obra seguinte dos mesmos autores. E claro, são estes pequenos momentos que nos fazem felizes no meio do caos mais ou menos disfarçado da nossa vida quotidiana: se as nossas histórias, e as nossas citações, levaram outras pessoas como nós[1] a ler um bom livro e a querer ler ainda mais – então, e penso que todos os meus colegas sentem o mesmo, já ganhámos o dia e há poucas emoções melhores.


    Antes de passar adiante, vamos já deixar claro o que se pressupõe óbvio mas nunca se sabe: evidentemente, a maldade não é uma característica exclusiva do masculino[2]. E, se afectar o género oposto, não se fica minimamente por aquelas megeras más e vingativas do século XIX, que infestavam os romances do Charles Dickens ou das irmãs Bronte. Podia estar aqui o que ainda nos resta desta estranha e inconstante Primavera a deliciar-vos com casos horrorosos de crueldade feminina, como a das lontras marinhas, ou a das hienas, ou a das leoas quando caçam em bando. Ao contrário do que ainda me diziam quando eu andava na escola[3], o Homo sapiens está longe de ser o único animal que aprecia fazer mal aos outros, incluindo aos da sua própria espécie[4]. Talvez seja o único animal capaz de distinguir a água benta da água normal[5], mas não é, de maneira nenhuma, o único animal que, quando pode, maltrata os outros a título absolutamente desnecessário, assim mesmo, só para se divertir.

    Costumávamos considerar que a crueldade humana, particularmente manifesta nas guerras que os seres humanos travaram entre si desde que temos registo das suas actividades, era de tal forma sofisticada que requeria uma explicação especial. Talvez essa explicação fosse científica, talvez fosse bíblica – ou até talvez fosse, de facto, completamente inacessível à inteligência humana, pois que nos fora trazida por extra-terrestres, tal como Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick imaginaram em 1968, por escrito e em filme, em 2001: ODISSEIA NO ESPAÇO[6].

    Pois, mas se a contarmos só até aqui esta história está coxa e é tudo menos bípede.

    Um dos primeiros Homo sapiens verdadeiramente territoriais prepara a lança para dar guerra à família Neanderthal que vive na gruta que fica do outro lado da montanha, onde, neste preciso momento, sem suspeitar de nada, enche as paredes de pinturas cada vez mais bonitas de bisontes com cada vez mais cores resistentes ao tempo.
    Depois vieram o arco e a flecha, depois os códigos de gritos de batalha, depois as tácticas de cerco, depois…
    … a verdade é que os Neanderthais não estavam a fazer mal a ninguém, até podiam andar por ali em maior número do que os Homos, mas olhem. Eram uns indivíduos suficientemente pacíficos para não só co-existirem connosco como até partilharem connosco alguns dos seus genes,[A] mas nós éramos uns esganados, sempre a precisar de mais território[B]. Fizemos-lhes tantas e tão poucas que eles acabaram por extinguir-se para todo o sempre.

    Falta acrescentar que, há cerca de cinco milhões de anos, houve um grupo inteiro de primatas ainda indiferenciados que desenvolveu alguns comportamentos muito, mas mesmo muito raros. Há pouquíssimos animais que vivam em comunidades patriarcais onde os machos se unem e as fêmeas se esgueiram de um grupo para o outro no sentido de evitarem a consanguinidade. Os tais primatas vieram de um grupo detentor dessa raridade, e também se caracterizavam por manterem uma defesa territorial masculina extremamente agressiva, incluindo ataques letais a comunidades próximas, à procura de inimigos vulneráveis para atacar e matar. Hoje em dia, em quatro mil mamíferos e mais de dez milhões de outras espécies animais, este conjunto de comportamentos é único e específico das duas únicas espécies que derivaram daquela espécie ainda incaracterística que existiu há cinco milhões de anos: os homens… e os chimpanzés.

    E, nestes dois casos, o instinto da violência vem, indiscutivelmente, dos machos.

    Tal como entre os humanos a violência doméstica está geralmente ligada ao homem, que bate na mulher, e pode de igual forma bater nos filhos[7], também entre os chimpanzés são os machos quem parece considerar tudo e mais alguma coisa como um bom pretexto para dar tareias do outro mundo nas suas companheiras. Agora que podemos filmá-las no seu habitat natural com as nossas microcâmaras digitais minúsculas que não levantam suspeitas nem causam inibições, temos que aceitar o chimpanzé tal como ele é: são tareias tamanhas que as fêmeas chegam a morrer em consequência. E, tanto numa espécie como noutra, a comunidade circundante observa… e mesmo que filme, mesmo que relate na rádio, mesmo que faça manchetes de jornais[8], a verdade é que, em termos práticos, reage com tal indiferença que raios nos partam se não for causada por cinco milhões de anos de evolução que continuam a dizer-nos que aquilo é normal e até nos faz bem.

    Com tudo isto em mente, eu estava à espera de quê quando, aos 61 anos, vim viver sozinha para uma cidade pequena no interior profundo, cheia de cafés, que estão cheios de esplanadas, que estão cheias de homens, que estão todo o santo dia a beber ou cervejas ou bagaços ou assim parece? Ai a menina chegou aí e achou que tanto assédio era um bocado estranho? Mas achou mesmo? Então e porquê? Por um lado, não é bióloga? E, por outro lado – nunca ouviu dizer que a ocasião faz o ladrão e depois quem anda à chuva molha-se?

    Ora então.

    Beba mas é mais uma bjeca, senhora, que a malta oferece. E conte lá mais umas historinhas cheias de homens maus.

    (continua)

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Eu, por exemplo: não sou antropóloga, nem paleontóloga, nem propriamente evolucionista: estudei um bocadinho de tudo isto durante os cinco anos do meu Curso de Biologia no antigo Colégio dos Nobres, mas logo a seguir especializei-me na fertilização do mamífero, depois da História da Biologia, e pronto – estas escolhas não se compadecem com andarmos para aí a aprender tudo o que está nas margens dos nossos interesses. Mas deem-nos um bom livro e contem-nos uma boa história, devidamente documentada e seriamente revista pelos pares: é claro que a gente gosta de aprender!

    [2] Na Natureza, linhas divisórias assim tão taxativas são sempre meritórias de muito pouca confiança. O único diferencial que existe mesmo, no caso da crueldade, encontra-se apenas a nível estatístico, só que é um apenas cheio de penas. Os machos tendem a ser maiores, mais fortes, mais vistosos, e mais dominantes. Um veado maduro enorme, cheio de armações, que esteja na brama, ouve-se e vê-se a quilómetros de distância. As vinte e sete fêmeas pequeninas e sem armações que constituem o seu harém… pois, é mais que se confundem com a folhagem.

    [3] Na realidade, quando agora penso nisso em retrospectiva, contaram-me imensas tretas quando eu andava na escola, e não foi só em Ciências Naturais. Também não há de ter sido tudo deliberado. Agora, sempre que dou aulas, ou explicações, interrogo-me com frequência sobre qual será a grande treta que andamos a ensinar aos nossos alunos. E então desde que comecei a ouvir dizer que se calhar não foi nada um asteroide o que causou a Extinção em Massa dos Dinossauros…

    [4]Só o homem é que tortura, etc.” Ai é? Aguentem firme que eu depois hei de falar-vos de uns quantos orangotangos e gorilas, só para mencionar familiares próximos.

    [5] Remeto-me à minha modéstia. Capaz de distinguir a água benta da água normal? Ná. É evidente que eu, sozinha, nunca conseguiria inventar pérolas de cultura assim tão brilhantes. A frase original é do escritor britânico T. H. White (Mumbay, 1906-1964) e foi gravada na memória de muitos portugueses da minha geração pelas crónicas semanais que grande Augusto Abelaira publicou semanalmente no defunto O JORNAL, O ÚNICO ANIMAL QUE, protagonizadas por duas fêmeas de chimpanzé tornadas famosas à época pelos investigadores de primatologia. O quase esquecido Terence Hanbury White, entretanto, tornou-se particularmente notado em vida pela sua série de romances sobre o Rei Artur, coligidos num único volume, THE ONCE AND FUTURE KING, em 1958. Destes, foi especialmente aplaudido o primeiro da série, THE SWORD AND THE STONE, publicado separadamente em 1938.

    [6] Tanto Clarke como Kubrick tinham personalidades digamos que fortes e difíceis, o que levou à separação pelo meio do seu projecto original de trabalho em conjunto num livro e num filme que haveriam de cair-nos em cima exactamente ao mesmo tempo. Da forma como as coisas correram, o filme, atribuído só a Kubrick, acabou por estrear antes do lançamento do romance, assinado só por Clarke. Mas enfim, sempre aconteceu tudo em 1968. E sem escandaleiras na praça pública, consideradas à época de gosto duvidoso..

    [7]Éramos nove, dormíamos todos em duas camas, e sempre que ele vinha bêbedo acordávamos à noite já com o cinto em cima”: durante todos os anos da minha adolescência em que andei nas vindimas, ouvi variações sobre esta história vezes e vezes sem conta. O resto do pessoal desatava a rir, celebrando o ridículo do homem completamente enfrascado. Ninguém parecia achar nada daquilo estranho, e eu já sabia ficar tão calada como a coruja. Em casa diziam que eu era “uma sonsinha”. Não era nada. Possuía apenas uma deformação profissional que pareceria quiçá aberrante naquela idade.

    [8] E mais sabe-se lá o quê que os chimpanzés fazem para contarem as suas histórias uns aos outros, porque lá porque nós não os percebemos não está necessariamente implícito que eles não se percebam. Estamos a falar de animais capazes de aprender, entender, e utilizar a linguagem dos surdos-mudos. E até de conversar no DOS com os computadores, por muito que possam fazer-lhes pedidos que nós, na nossa eterna sobranceria, consideramos palermas, como por exemplo “vá lá, computador, faz umas festinhas à Kathy!” Animais que atravessam a ponte até este nível mais formas terão de se parecerem connosco – ou sou eu que estou a raciocinar fora do baralho? Eu e todos os primatologistas normais deste ano da graça de 2023?

    [A] E, tanto quanto a gente sabe, entre todos os mamíferos só se trocam genes de uma única maneira.  Por muito que as duas espécies que fazem o amor possam preferir diferentes posições, mudar de posição não é inventar nada nem partilhar nada.
    [B] Porque nós éramos liderados por machos, e os machos que assumiam a liderança eram sempre os mais aguerridos. Em termos de emoções, foram os pioneiros dos gangs dos nossos dias. Não era que precisassem da guerra: era mais que estavam completamente viciados naquela chuva de adrenalina de seguir o chefe, cerrar fileiras, desatar a berrar, e matar o inimigo.

  • A coruja

    A coruja

    Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 2


    “A inteligência é uma coisa que todos nós conhecemos bem, como um livro antigo, ou um amigo de há muito tempo. Mas, e o que será a sabedoria? Se a inteligência é a capacidade de falar, a sabedoria é a capacidade de ouvir. Se a inteligência é a capacidade de ver, a sabedoria é a capacidade de ver longe. Se a inteligência é o olho, a sabedoria é o telescópio. Porque a sabedoria representa a nossa capacidade de sairmos da ilhota de nós próprios para começarmos a grande viagem através do mar.

    Richard Wrangham e Dale Peterson

    DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)


    Aos seis meses, o Sebastião está enorme. Continua a ser um cachorrinho com comportamentos de cachorrinho, mas quando quer brincar com um transeunte incauto as patas dele já chegam aos ombros da pessoa. Em metade das vezes, o visado assusta-se seriamente. Na outra metade, o visado já o conhece e diz-me logo que lhe ponha a trela senão ele foge, ele pode causar um acidente de automóvel[1], e além disso ele é um cão tão bonito e tão esperto que alguém mo rouba de certeza[2]. Para um longo passeio sem trela, em que ele possa pular e espinotear tanto quanto lhe apeteça desde que não faça barulho[3], só mesmo esperando pela noite e tomando a direcção das ruazinhas do Castelo, que são tão estreitas e onde é tão problemático estacionar que quase não há carros, e onde àquela hora já quase não se vê ninguém. O homem que depois do Natal se apaixonou pelo meu cão[4] mora mesmo ao meu lado, é pedreiro, e ganhou ultimamente o hábito de vir passear connosco.


    O Rogério é do Norte, e não é nenhum santinho. Já passou uma boa temporada em Pinheiro da Cruz, e ficamos por aqui. Ele tem pena, porque gostaria muito que eu escrevesse um romance sobre a sua vida, dado que a considera excepcionalmente transbordante de erros[5]. Enfim, essa vida seria não mais que uma réplica de milhares de outras, sempre com os mesmos planos, os mesmos erros, e os mesmos crimes e castigos – qualquer coisa talvez mais útil para o progresso da sociologia[6] do que para o florescimento da literatura.

    Nessas noites, que agora parecem ter ocorrido há milhões de anos-luz, o Rogério usou imensas variações erradas sobre adjectivações muito simples, todas elas tão bizarras e inesperadas que nunca mais conseguem esquecer-se. Ainda por cima, em certas alturas até podem dar vontade de rir, o que é extremamente grave porque perdem logo o peso moral que, de facto, carregam consigo[7]. Às tantas até os meus dois ex-namorados de Estremoz foram corridos a patético, ou mesmo a individual completamente patético, nem me lembro porquê nem agora me interessa. Mas não é todas as noites que uma ouvinte atenta apanha com sequências assim tão brilhantes de palavras e coisas[8]. Mesmo que não queira. Já sei que vou guardá-las comigo para o resto da vida.

    A coruja-das-torres, que como tem um nome feminino não fala. No entanto, ouve tudo com muita atenção.

    Entretanto, em estrita obediência às leis imutáveis da Natureza, eu armava-me na coruja da anedota. Aquela que o outro senhor comprou para fazer dela um papagaio, e a seguir respondia a quem lhe perguntasse “então e a tua coruja, já fala?” com um enfático “não, falar ainda não fala… mas  ouve tudo com muita atenção!”.

    Eu não ouvia o Rogério com muita atenção por ser mulher, e muito menos por ser coruja. Era, apenas, porque sou escritora. Sei que das páginas de um qualquer CV pode saltar subitamente aquela agulha que andou perdida por dentro dos palheiros durante dezenas de anos, e era por causa dessa agulha que eu descobria, por exemplo, quem é que matou o JFK[9]

    À medida que foi criando mais confiança, e como, sendo homem,  gosta muito de falar, o Rogério foi entrando em catarses cada vez piores[10] sobre os seus erros do passado. Eu, como sou mulher e gosto muito de ouvir, ouvia-o com muita atenção. Uma semana depois da conversa que se segue, o Rogério vai usar-me como isco para extorquir quase oitocentos euros às minhas irmãs. Mas, na altura, não existindo qualquer antecedente, ninguém podia adivinhar este desenvolvimento trágico. O Rogério estava a contar-me uma das suas múltiplas separações com uma minúcia tão enorme quanto incompreensível.

    Ó Rogério, tu desculpa, mas não entendo. Que mal é que essa senhora te fez para te vires embora para todo o sempre, sem nunca mais voltares sequer a ver os teus filhos sem ser no telemóvel?” – “UMA SENHORA és tu. A outra BEM QUERIA ser uma senhora, mas era apenas uma grandessíssima preguiçosa. Nem sequer me passajava as meias!” – “Então e tu não sabes passajar as tuas próprias meias, como toda a gente?” – “Clarinha, há uma ordem natural  das coisas para o que fazem as mulheres e o que fazem os homens. Se ela quer ser desnaturada, pois saúde e passe bem, que eu esses desrespeitos patéticos[11] não tolero.”

    (continua…)

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Não se percebe se quem sofre com o acidente é o animal ou é a máquina, mais qu’importe. Um acidente é sempre uma desgraça.

    [2] Não é para me gabar, mas o meu cão é, de facto, particularmente bonito. E incrivelmente esperto. Um dia destes conto-vos a história da banana. Está prometido.

    [3] A palavra de ordem para o cachorrinho enorme não fazer barulho é “Sebastião! Queres ir para a rua?”, mesmo quando estamos no meio da rua. História prometida para o dia em que vier ao caso a história da banana.

    [4] Que é como quem diz, mas se não me chateasse tudo bem, e ele nunca me chateou, mesmo.

    [5] Obviamente, este livro seria uma biografia, e nunca um romance. Mas isso eram detalhes que na altura diziam pouco ao Rogério, que só queria contar-me tudo para expor os erros da sociedade, por forma a tornar a sociedade melhor. Nem que fosse só um bocadinho. Valeria a pena. Na versão dele.

    [6] Ou enfim, talvez para a estatística.

    [7] Como veremos mais tarde.

    [8] Ao menos eu não sou patética: sou tão fina que apenas introduzi veladamente no texto uma alusão ao famoso livro de Michel Foucault AS PALAVRAS E AS COISAS – UMA ARQUEOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS, publicado originalmente em 1966 com um grande impacto quase instantâneo sobre todas as áreas de especialidade relacionadas com a História das Ideias. Em vez de inventar palavras, traduzo-as e copio-as com todo o cuidado, sem não zugeben os mínimos enganos. Es ist ganz anders, como diria o outro antes de se virar para o balcão e pedir à refugiada de qualquer sítio islâmico onde correu tudo mal einem hamburger bitte.

    [9] Uma pessoa nunca sabe quando é que, de repente, sem aviso, uma história vai mudar completamente de rumo, já não ser uma banalidade, e então valer a pena passá-la a romance. Nem vale a pena imaginar o que nos pagariam para “contar tudo”.

    [10] Ou melhores, conforme as preferências literárias do ouvinte que escuta o palrante. O pior é que eu detesto psicopatas e filmes de terror. Mas aguentei firme. Aquilo podia, de facto, ter lá um JFK dentro em qualquer próxima frase.

    [11] O Rogério adorava palavras, e, para falar de forma culta, incorria por vezes, repetidamente, em erros crassos como este famoso “patético”. Eu nunca disse nada. Era um fato grunge de alta costura que lhe ficava a matar.

  • O velho

    O velho

    Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 1


    A ligação de cérebros poderosos com o demonismo masculismo parece uma coincidência trágica de cadeias causais independentes; mas esta conexão implica criar problemas extremamente complexos. Os cérebros inteligentes são responsáveis por novas formas de agressão, irrelevantes para os animais sem boas memórias nem relações de longo termo.

    Richard Wrangham e Dale Peterson

    DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)


    Ninguém imagina o que me custou começar a escrever esta série de crónicas. Ando a adiá-la há meses – mesmo depois de ter sido enxameada por uma série de dissabores, sempre em torno do mesmo tema. Não gosto de dizer mal de ninguém. E ainda gosto menos de dizer mal de pessoas que pertencem a um mundo onde, por regra, a vida me faz feliz. Mas isto já se tornou francamente excessivo, portanto deve ser dito. Será uma hipérbole, mas toda a Bíblia é uma hipérbole, e há milhares de anos que funciona. Eu gosto de viver aqui, não é isso que está em causa. Mas viver aqui tem detalhes que, depois de todos somados…  não, não mereceriam nenhum Dilúvio, porque um Dilúvio seria muito conveniente, dada a falta de água no Alentejo.


    A verdade é que, mais provação menos provação, continuei sempre a gostar de viver aqui. Esse bem-estar não mudou nem mesmo depois de eu ter arranjado um stalker. E um stalker, isto sim, parece mesmo uma qualquer punição bíblica, enviada por razão desconhecida. Um stalker é uma sombra neurótica e estranha, e extraordinariamente cansativa, que não creio que nenhuma pessoa imagine que possa vir a ter depois dos sessenta anos, quando se instala para viver calmamente, e dar de si o seu melhor, numa pequena cidade do interior. Ainda por cima, é tão raro ouvirmos as mulheres que nos rodeiam falarem de stalkers, que acabamos por considerá-los personagens de filmes americanos. Nem sequer são pessoas. São mesmo só personagens. O King-Kong, o Dirty Harry, o Mad Max, o Batman: a gente não se cruza com eles na rua.

    CPC armada em Clara Pinto Correia.
    Evidentemente, a culpa é toda dela.

    Este meu stalker é um fraca-figura que tem como profissão ir sentar-se na esplanada do Alentejano para pedir a toda a gente cigarros, cafés,  bagaços, e assim. É tão mirradinho, tão silencioso, tem sempre um ar tão triste, e em consequência ocupa tão pouco espaço, que, até começar a perseguir-me, nunca ninguém tinha dado por ele, nem ninguém lhe reconhecia o nome, o que é curiosamente raro aqui na cidade. Ajudei-o a confirmar online, no portal da Segurança Social, a sua necessidade de transporte para Lisboa na segunda-feira seguinte por causa de uma consulta em Santa Maria[1], e tanto bastou para no dia seguinte ele já estar a entrar no café onde eu costumo ir todas as manhãs para suspirar em alto e bom som, “não sei o que é que aquela mulher fez, que deu comigo em doido.” E toda a gente achou graça. Eu por acaso não achei graça nenhuma porque aquilo era do mais incómodo que imaginar se possa, e, sobretudo, porque a história do nosso louco amor passou a ser um teatro que se repetia todas as manhãs. E as mensagens intermináveis dele no meu telemóvel eram todos os dias entre as dez e as vinte.

    Com todos estes ingredientes, mais o seu lugar cativo no banco fronteiro ao tribunal, onde podia contemplar à vontade a porta da minha casa tal como podia contar histórias fabulosas aos taxistas, o velho transformou-se rapidamente no talk of the town[2]. Toda a gente se ria dos seus expedientes e das suas declarações de amor. No meu café, toda a gente apreciava também a sua pontualidade, pois que o velho aparecia às sete em ponto, ia lá deixar recados para mim, e acto contínuo ia sentar-se no seu banquinho. E eu não sou de ferro. Posso ter sido discreta, mas este sentido de humor mesmo-mesmo-mula dos alentejanos acabou por fazer-me rir a mim também.

    Até acabei por rir[3] mesmo depois de o stalker ter destruído a centralina do meu carro durante a noite[4], depois de lhe fazer uma ligação directa para o tirar do lugar onde estava estacionado[5], mesmo à frente da minha porta[6]. Ainda hoje sorrio vagamente ao rever a cara dos polícias quando lá levei o meu telemóvel encharcado em mensagens dele, umas tristes, outras saudosas, umas quantas a jurar suicídio e outras tantas a declarar apenas que ia partir para nunca mais voltar, e todas elas ou dolorosas[7] ou amorosas[8], como se alguma vez tivéssemos formado um casal – ah, mas nunca houve testemunhas, portanto nunca se pôde fazer nada.

    Até hoje, também nunca se pôde fazer nada em relação a nenhum dos dissabores que se seguiram, e não sou eu quem vai dizer que se passaram especificamente aqui porque no resto do País, ou mesmo no resto do mundo, tanto priapismo seria impossível e impensável. Mas que tem sido uma luta constante para merecer algum sossego por parte destes homens – ah sim. Chegada a esta provecta idade, tem sido uma luta sem precedentes.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Consulta essa a que ele nunca foi, pois que várias testemunhas o viram arrastar-se o dia inteiro entre a minha casa e o banco fronteiro ao tribunal. Algures, em Estremoz ou em Lisboa, os contribuintes hão-de ter pago para estar uma ambulância, ou um carro de bombeiros, à espera de um velho doente que afinal não estava assim tão doente como isso. Não é caso para dar ouvidos às barbaridades do CHEGA contra o SNS, mas é caso para usar de mais firmeza em relação a neuróticos que importunam mulheres.

    [2] Que é como quem diz “a pessoa de quem toda a gente fala na cidade”, o que não seria difícil de dizer em português de forma interessante. Mas desculpem-me e deixem-me passar, estes pecadilhos de inserir amostras cosmopolitas da minha presença de espírito bilingue tomam-me de assalto assim que chego à segunda linha seja de que texto for.

    [3] Sozinha, obviamente. Estas coisas não têm graça absolutamente nenhuma, nem eu quero que ninguém pense que eu lhes acho graça. Acontece apenas que, perante as calamidades, o riso continua a ser a melhor arma de defesa que eu conheço.

    [4] A centralina! Estão a ver as coisas que eu sei? A centralina transformou-se numa daquelas palavras que me fazem dar um salto e olhar para trás para ver quem falou, de tal forma me envenenou a vida. A centralina é a peça que controla todo o circuito electrónico do carro. Sem centralina, um carro bem pode ser das melhores marcas e estar novinho em folha – é um carro morto, dê lá por onde der.

    [5] O piolhoso é deveras entendido em motores, pois que foi motorista de camiões TIR. Aos 52 anos foi trespassado por dois balázios numa batida ao javali, e não teve outro remédio senão reformar-se. Mas continuou a juntar uns cobres, incluindo roupa à senhor importante, desempenhando as funções ilegítimas de um Embaixador qualquer que vivia aqui, viajava muito, e pagava em dinheiro. O pior foi quando esse Embaixador mudou de país, e para o seu lugar veio outro, daqueles que não alinham em futebóis. E é neste mundo que eu vivo. Batidas ao javali, balázios, empregos ilegais de alta roda, e finalmente um stalker que não recua perante nada.

    [6] Só mesmo num dia raríssimo em que a pessoa consegue estacionar à porta sem um único pneu em cima do passeio é que estas coisas acontecem, como toda a gente sabe.

    [7]Nunca mais viverei em paz, tiraste à minha vida todo o seu sentido” – quando, ainda por cima, eu tinha dado à vida dele montes de bicas, de cigarros, e até de tostões para bagaços.

    [8]Clarinha, meu amor, proponho-te uma boa sessão de sexo, vais ver como voltas a gostar de mim depois de voltares a ser minha mulher” – e por acaso valeu a pena ver o olhar interdito do senhor agente que estava a atender-me a olhar para mim, “é melhor guardar essa.”

  • A noite em que eu fui a voz do Sérgio Conceição

    A noite em que eu fui a voz do Sérgio Conceição

    Parece que, um belo dia, antigamente, toda a gente combinou entre si mentir a este respeito, e continua a mentir até hoje. Toda a gente diz que odeia o mal, mas, no fundo, toda a gente o adora.

    “Não tem vergonha de estar a destruir-se a si mesma?

    “Apetece-me destruir-me. Oiça: agora, por exemplo, vão julgar o seu irmão por ter morto o pai, e agrada muito a toda a gente que ele o tenha morto.

    Agrada a toda a gente que ele tenha morto o pai?

    “Sim, agrada a toda a gente! Toda a gente diz que é um acto horrível, mas no fundo toda a gente gosta disso. E eu sou a primeira a gostar.

    “Nisso de toda a gente há uma certa verdade – disse Aliocha baixinho.”

    Fiódor Dostoiévski

    OS IRMÃOS KARAMÁZOV


    Nota inicial sobre o título[1]


    Não sei quando foi, nem como foi, que a corrupção começou a esticar cada vez mais as suas raízes dentro da política portuguesa como o eucalipto faz às dele se andar à procura de água em terrenos áridos. Não sei nem observei, porque estava a trabalhar nos Estados Unidos. sabendo uns factos que pareciam anedotas de mau gosto mas eram factos, e quando voltei com os meus meninos para Lisboa, já o Primeiro-Ministro era José Sócrates. Vivia-se mal, muito pior do que nas minhas recordações do País onde vivi até ir estudar para Buffalo, mas os diferentes membros do governo iam-nos explicando que esse era o preço a pagar pela integração na União Europeia. Às tantas percebi que estavam a rasgar-se na paisagem SEIS auto-estradas paralelas entre Lisboa e Valença do Minho, mas explicaram-me que era “para beneficiar toda a gente por igual[2]” e fazer chegar “os frescos” mais depressa aos supermercados[3]. Construíam-se cidades colossais para albergar aeroportos que depois nunca existiram, assim como se desbastaram áreas enormes de terreno para permitirem a passagem de um TGV que depois nunca passou[4]. E cada vez se percebia melhor, cada vez doía mais, mas não perceber já nem era possível: o dinheiro público andava a passar de mão em mão[5] de forma pouco clara, no mínimo.


    De Sócrates[6], o governo passou para as mãos de Passos Coelho[7], e nessa altura ouvíamos falar cada vez mais em luvas, empresas falidas, particulares insolventes, e jovens acabados de formar pelo Ensino Público a partir, a partir, e a partir. Por essa altura, começa também a estar na moda os Bancos irem ao fundo, os Banqueiros a apropriarem-se com tudo o que podiam e fugirem, ninguém os perseguia, e ninguém mostrava qualquer preocupação com os lesados destas transas porque tudo aquilo voltava a reconstruir-se com mais dinheiro de mais impostos.

    É exactamente neste ponto que se ouvem duas ou três piadas indecorosas, absolutamente destituídas de fundamento, sobre vir aí a falência do BES.

    person holding 20 us dollar bill

    Ora acontece que vivia ainda em Portugal, por esses dias, um jovem comediante que faz hoje stand-up em inglês para as multidões de empresários que esgotam os quartos dos hoteis de cinco estrelas na Arábia Saudita[8]. Formava uma pandilha que tinha um nome qualquer do género FEIOS, PORCOS E MAUS, juntamente com mais dois partenaires, uma idosa cheia de piercings e um total anarquista da caricatura, que reunia todos os sábados à noite para debater os diferentes e desgraçados impactos da pobreza imposta por Passos Coelho com a explicação sumária de estar a ser imposta pela UE. Não diziam nada que fosse especialmente interessante, mas quando os meus alunos de Mestrado vinham trabalhar para minha casa nessas alturas, pediam-me sempre para ver ao menos meia horinha daquilo. E é exactamente nesse sábado, dois dias depois das duas ou três piadas parvas sobre a falência do BES, que de repente, sem vir minimamente a propósito, o jovem comediante diz assim:

    “Epá, devia ser proibido por lei assustar as pessoas desta maneira. Se querem saber, eu, por mim, tenho uma valente conta a prazo no BES. E estou perfeitamente sossegado. Não corremos risco nenhum, por isso eu não tenciono minimamente tirá-la de lá!”

    Eu estava de joelhos no chão a organizar pilhas de fotocópias, e dei um tal salto de raiva que espalhei tudo à minha volta.

    “Cabrão de merda!”, gritei eu para a imagem do comediante na televisão. “Com que então, até tu estavas à venda?” – virei-me para os meus aluninhos perplexos. “Vocês não viram bem este filme de terror? Como aquele menino é o amor de toda a gente, o BES paga-lhe uma fortuna para ele chegar ao debate e aconselhar as pessoas a não tirarem o seu dinheiro do BES, uma vez que até ELE continua a ter o seu dinheiraço do BES! Puta que pariu, isto é perfídia pura. Ai, meninos, tirem-me deste filme. Não aguento continuar a assistir ao espectáculo da corrupção crescente que grassa no meu próprio País!”

    “Ó Professora!”, disseram logo os mestrandos, cada um para seu lado. “A Professora é que devia estar a dizer essas coisas na televisão! Vá para a televisão, por favor, vá dizer essas coisas na televisão!”

    “A televisão? A televisão ia querer-me lá a dizer estas coisas?” – e logo a seguir saiu-me de chofre, antes sequer de pensar: “Ai, foda-se. Então os meninos ainda não notaram que já nem sequer há televisão?”

    E pronto, poucos meses mais tarde não estava na televisão: estava antes nos Estados Unidos.

    Espero que ao menos apreciem os meus dotes visionários, e que, não sendo eu o Sérgio Conceição, possam perdoar-me pelo meu vernáculo. A questão é que vocês ainda não me conhecem. O que faz perfeito sentido, porque eu própria ainda não me conheço assim tão bem como isso.


    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] O Presidente do FCP teria certamente feito coro connosco, ou pelo menos aplaudido o nosso arroubo de fusão, mas quando se deu este fenómeno místico o eterno Contra-Almirante não estava lá na casa de Alfama para escutar as minhas palavras – as tais que me saíram por instinto puro, mas que pareciam mesmo saídas de um daqueles comentários que o seu treinador cospe para a relva quando foi posto fora num vermelho directo. Só falei uma única vez com Jorge Nuno num qualquer jogo brutal em que fui convidada de homenagem, aliás de tanta homenagem que me sentaram mesmo ao lado dele, logo ali na fila da frente. Estava um frio de Inverno nortenho que mal se tolerava, eu trazia um casaco de raposa apache de bolsos grandes e franjas enormes, e, parte bem educada parte piedosa, ofereci-lhe o bolso do seu lado para ele aquecer a mão. O Grande Chefe fez o sorriso de Raposa Matreira mais bem esgalhado deste mundo, sem precisar sequer de olhar para mim, e disse apenas, só para eu ouvir, “eheheh – cuidado com as escutas!”.

    [2] É incrível, agora, ao fim de todos estes anos de tangas políticas e financeiras cada vez piores, lembrarmo-nos da energia que ainda gastámos a discutir uns com os outros se o que estava em causa era mesmo o benefício dos eleitores, ou se era outra coisa qualquer ainda mal definida, mas que já não pressagiava nada de bom.

    [3] Nunca ninguém me explicou claramente, no entanto, se os produtores desses “frescos”, que o governo dizia querer “beneficiar”, iriam ter que pagar aquelas portagens chorudas que se pagam nas autoestradas, ou se quê. Nem sabemos bem se essas autoestradas ainda estão funcionais. O Vale da Régua, um dos maiores milagres das nossas paisagens naturais, agora tem por cima uma ponte colossal, feia como cornos (oops, lá saltou outra vez cá de dentro o Sérgio Conceição), posta ali há quase vinte anos como tabuleiro da Autoestrada de Viseu. Passei lá por cima uma vez, para mostrar a paisagem a uns estrangeiros – e bem me lixei porque aquilo era tudo gente concernée, que não queria acreditar que um Governo Europeu, secundado por toda a União Europeia, tivesse admitido erguer-se ali uma tal infâmia. Foi tão penoso que acabei por explicar que a ponte da autoestrada fora paga com as fortunas dos Casinos de Macau, que incluíam muitas vezes nos prémios passeios românticos Douro acima em Barcos Rabelos – e que os primeiros compradores de mais aquela jogatana dançante do Senhor Stanley Ho tinham sido os espanhois, e não os portugueses.

    [4] E boas reportagens sobre tudo isto? Não nos fizeram imensa falta? Não continuam a fazer-nos imensa falta? De que é que os jornalistas têm medo? Dos dois matulões da MOSSAD que andavam aí a desempenhar as funções de guarda-costas de Ricardo Salgado? Ah, por favor, isto ainda não é a faixa de Gaza, quand même. Mandem-me lá a mim, que eu faço. Não tenho filhinhos pequeninos nem paizinhos velhinhos. Escuso de estar aqui a empatar.

    [5] Curiosidade interessante, a recordar algumas regras elementares da taxonomia: o dinheiro passava, de facto de mão em mão – mas essas mãos tinham que ser sempre as mesmas, ou recomendadas por outras iguais.

    [6] Notícias posteriores sobre a vida deste ex- PM: a) as suas férias na Quinta do Lago eram tão pagas pelos contribuintes como o seu apartamento caríssimo em Paris; b) o título de Engº vinha-lhe de um Mestrado feito por medida numa qualquer Universidade Privada, cara mas camarada; e c) ao fim de uns tempos foi preso, mas ninguém explicou aos portugueses porquê.

    [7] Foi um senhor que concorreu às legislativas enquanto social-democrata. Nunca sorria, mas explicava que isso era de ver o País em tão mau estado. Bastaram dois ou três meses para se perceber com toda a evidência deste mundo que, na realidade, o senhor não era nada um social-democrata: era mas era um perigosíssimo neo-liberal, e assim continuou até ao fim do seu mandato. Também não percebo como podem manter-se no poder pessoas que afinal não representam minimamente o que disseram que iam representar. Só me lembro de já estar no desemprego, a cair de fome, sono, e frio, numa fila para o subsídio algures em Sintra, e ouvir o cretino dizer na rádio, todo cheio de si próprio, “temos que fazer cortes substanciais no desemprego, porque há demasiadas pessoas que vivem de expedientes.” Filho da mãe. Houve quem chorasse. Ex-pe-di-en-tes!

    [8] Ou, escrevendo a mesma frase de maneira mais sucinta: “… que faz hoje fortunas obscenas no Médio Oriente.”

  • Pois se até Deus mete água…

    Pois se até Deus mete água…

    De que estás a falar, Mítia?

     “Ideias, ideias, é isso! Ética! Que coisa é essa, a ética?

    Ética? – surpreendeu-se Aliocha.

    “Sim, é uma ciência ou quê?

    “É, existe uma ciência com esse nome… mas…  confesso que não te sei explicar que ciência é essa.”

                    Fiódor Dostoiévski

    OS IRMÃOS KARAMÁZOV


    Clarinha, tu passaste-te mesmo? Então a tua casa de sonho ainda agora acabou de arder, e tu não te lembras de nada melhor do que desperdiçares uma noite inteira do teu precioso tempo a reler OS IRMÃOS KARAMÁZOV, em todas as suas quatro partes mais o epílogo?

    Olhem lá, calma, por  favor, muita calma – eu posso explicar. Estava à procura de um breve discurso proferido, sabia eu lá aonde numa obra tão grande[1], por uma jovenzinha histérica, febril, sedutora, manipuladora, encantadora, e demoníaca, às vezes tão frágil que tem que andar de cadeira de rodas. Com esta descrição é evidente que eu não ia longe em termos de posicionamento geográfico, uma vez que alguém assim dotado poderia  corresponder a uns bons 85% dos personagens Dostoiévski, incluindo Deus-Pai propriamente dito[2].


    Porque é que eu queria tanto encontrar esta menina[3]? Parte era o fascínio da sua revolta contra o mundo, que tem tudo a ver com casas a arderem. E a outra parte, aquela que nunca mudou do século XIX para o século XXI embora os regimes tenham mudado várias vezes no entretanto, era a sua revolta contra toda a corrupção que campeia na Rússia czarista do século XIX, observada e descrita em grande angular pelos poderes do seu olho de lince. Lise já viu tanto que “simplesmente, não quero fazer o bem, quero fazer o mal, e nisso não há doença nenhuma[4]” – “Porquê o mal?[5]” – “Para que não reste nada, em lado nenhum!

    Regresso a esta história para nos recordarmos do poder dos lugares-comuns: é indiscutível que a História se repete. E, por isso mesmo, é inevitável que a gente cultive uma vaga fantasia em que o mundo inteiro fica deserto e nós podemos recomeçar a partir do zero, conscientes dos disparates do passado. Deus estava a dar asas à mesma fantasia quando mandou Noé construir a Arca e enfiar lá dentro toda a sua família disfuncional e todos os animais aos pares[6] e pronto – se fantasias destas correm mal até a Deus, é porque se baseiam em fundações espirituais, quando precisariam de ser materiais. Mas as causas de erros destes aprendem-se depressa, não são fenómenos que se esqueçam, e portanto não nos impediriam de fazermos tudo correctamente da próxima vez[7].

    Para fazermos tudo correctamente bastaria mudar a estratégia em que cada um quer é meter ao bolso tudo quanto pertence aos outros[8], passando antes à táctica da actividade em cooperativa, com comunhão absoluta de bens[9] e de horários de trabalho.

    Alguém se chega à frente para uma aventura destas?

    CPC, aos 32 anos, a falar de trabalho
    O entrevistador bem queria que ela lhe falasse antes dos seus amores, mas aí ela fechou-se sempre em copas. Amar não é nenhum serviço de utilidade pública.

    Antes de se extinguirem, houve dinossauros que parecem ter adoptado a postura bípede e desenvolvido um cérebro anormalmente volumoso, portanto é muito possível que a História já se repetisse na Terciária. Se hoje em dia o mundo está cheio de pobreza, já lá vão muitos séculos em que o mundo esteve cheio de miséria. Se o estilo de vida moderno potenciou a disseminação da COVID pelo mundo[10], ainda há um século atrás morriam portugueses como tordos porque ninguém sabia controlar a chamada “gripe espanhola[11]”. Se a Guerra da Ucrânia é de uma brutalidade e de uma estupidez de deitar as mãos à cabeça, recorde-se que o pesadelo da Guerra do Iémen não deixou de existir só porque desapareceu das notícias.

    Mas, no meio de todo este negrume em que as corujas piam e os mochos arrancam os olhos àqueles que ficaram caídos para trás, honrosamente mortos em combate, a gente costumava ter por Portugal um orgulho merecido, e considerar os nossos Presidentes da República pessoas com verdadeira classe, mesmo depois de o Sarkozy já se ter casado com a Carla Bruni. Boas escolas, bom Serviço Nacional de Saúde, respeito rigoroso pelas regras da Reforma, políticos empenhados, polícias, GNRs, e militares civilizados, bom feitio excepto quando ao volante[12] – quem é que não quer?

    E quem é que notou, ainda antes de mim, que, por qualquer caminho tão ínvio como estes caminhos têm mesmo de ser, de repente toda a fachada portuguesa estava igual – mas que, por trás da fachada, o comportamento das pessoas importantes era cada vez mais uma mentira?

    A pena que eu tenho de, nessa altura, não ter apostado nada com ninguém.

    Mas enfim, sou contra as apostas – e, ao menos, fui consistente.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] E onde tanta gente faz tantos discursos, todos eles tão “histéricos”, tão “febris”, tão “brilhantes de terrível raiva”, e (o meu preferido) tão “desfigurados”.

    [2] Neste romance, de forma assustadoramente sistemática até para os ateus, o Demónio é muito melhor tratado do que Deus pelo autor.

    [3] De seu nome “Lise”, por causa de “Lise” ser “Lisa” em francês, e a acção decorrer entre a alta burguesia russa.

    [4] Dostoievski não é considerado “uma das figuras de proa na consolidação da Psicologia” por acaso. E escreve exactamente no período histórico em que a própria Psiquiatria começa a organizar-se. Este momento poderoso de mudança de paradigma arrasta consigo, no entanto, um problema nada desprezível: todos os estados de espírito mais agitados de todas as pessoas passam a ser considerados “doenças”. Destas, a mais abundante é a infame “febre nervosa.” Só posso acrescentar que prefiro viver agora.

    [5] O pobre irmão que escuta estas confidências com o voto de sigilo total é Aliocha, o que escolheu a vida de monge.

    [6] Isto sim! Isto é que é NÃO SABER MESMO NADA sobre a fauna do planeta, sobretudo quando comparada com a mísera fauna da bacia do Rio Jordão.

    [7] Nem nós, nem Deus. Mas nota-se que Deus está amuado e ficou farto. Com toda a razão.

    [8] Incluindo a sua mulher, ou mesmo as suas mulheres, comportamento que se percebe depressa que Deus detesta.

    [9] A mulher do próximo não é nenhum “bem”, estamos entendidos?

    [10] E vá, deêm algum crédito à ciência: nunca se tinham desenvolvido tantas vacinas, tão depressa, para uma doença completamente nova.

    [11] Viroses, vacinas, bactérias, antibióticos – são tudo técnicas que começam a florescer no período que rodeia a II Guerra Mundial. É também aqui que aparece o Salvarsan, ou seja, uma forma eficaz de travar a progressão da sífilis depois de quinhentos anos de inferno.

    [12] Aquando da sua primeira visita a Lisboa, o Dick aprendeu logo comigo uma palavra que eu própria nunca antes reparei que usava o tempo todo quando ia a guiar: era qualquer coisa como “canoagem”, o que não fazia sentido nenhum. Ao fim de uns bons dez minutos, lá se esclareceu o mistério: “CABRONAGEM!!!! CABRONAGEM!!!!”, gritava eu, furibunda, para todos os carros de todas as filas que estivessem à minha frente.

  • Ga-jas

    Ga-jas

    Uma luz solar minúscula, que não passa de um de um dos cem mil sóis da nossa galáxia, será dificilmente detectada. E a nossa galáxia é um dos mil milhões de galáxias, rodando a velocidades que excedem a velocidade da luz – até que cada galáxia acaba por arder, para ser substituída pelas novas galáxias que preservam o equilíbrio desta dança.
    Timothy Leary
    THE SEVEN TONGUES OF GOD, 1965


    Deixei-vos, na última semana, prestes a começar a ouvir o monólogo improvisado de um actor com um grave problema oncológico, que veio viver aqui para Estremoz com o filho de quatro anos, Miguel, a quem tenciona dedicar este seu último trabalho. Gonçalo estudou Shakespeare em Londres, especializou-se nos seus monólogos, recebeu críticas entusiásticas e ovações em pé. Quando voltou para Portugal foi devidamente ostracizado, como o País tanto gosta de fazer aos que se destacam no estrangeiro sem a ajuda de ninguém. Nunca se queixou. Aceitou papéis parvos em novelas e participações em reality-shows, continuando a trabalhar na sua arte, mas agora em português, aperfeiçoando cada vez mais o estilo e aguardando a hora certa. Ao saber-se gravemente doente veio viver para uma rua perto da minha, e decidiu começar a falar de Pai para Filho. Convidada a assistir ao primeiro improviso, sentei-me silenciosamente ao lado do Miguel, também ele muito atento na sua cadeirinha, liguei o gravador, e ouvi o monólogo delicioso que aqui partilho convosco.


    “Querido Miguéu,” começou o Gonçalo num tom firme mas carinhoso, sem qualquer teatralidade, “por favor, ouve o teu Pai. Tens mesmo que ouvir o Pai agora, porque a seguir ninguém vai ter tomates para te dizer tudo isto, por muito que tudo isto seja verdade.”

    Embora falasse sem qualquer esforço aparente, havia no seu tom de voz qualquer coisa de tal forma dramática que o Miguel ficou imóvel, de boca aberta, a olhar para o Pai.

    “Quando fores um homem crescido”, continuou o Gonçalo, “por favor, promete-me que vais ter muito cuidado com o pior que pode haver, meu querido filho. Sabes o que é o que pior que pode haver, para um crescido, Miguel? O Pai diz-te. O pior que pode haver é não nos defendermos a tempo e depois sermos vítimas deste Género… deste cerco constante deste Género… sei lá, desta porcaria deste circo deste Género Feminino. Tu vais ver. Juro-te, é que tu vais mesmo ver! Cresce só mais uns aninhos, que vais logo ver! Tem cuidado, Bebé. Nunca oiças nada do que elas te disserem. Se por acaso ouvires mesmo alguma coisa, esquece-te logo do que foi. E, sobretudo, nunca respondas a nada do que elas te perguntarem, porque nunca hás-de conseguir responder-lhes o que elas queriam ouvir, e te garanto que não há ninguém neste mundo que saiba verdadeiramente o que é que elas querem ouvir, assim para cada contexto, para cada momento, até para qualquer porra de qualquer fotografia. Nem se respira. Tu tens é que ser bruto, mas mesmo um ganda bruto, porque, assim como assim, mais cedo ou mais tarde, elas vão TODAS, SEMPRE, acabar por te acusar de seres um ganda bruto. Então olha, goza-te bem disso. Deixa-lhes sempre a puta da cama por fazer. Esquece-te sempre de limpar o raio que o parta do lavatório depois de te barbeares. Vê se consegues deixar sempre a tampa da retrete para cima, porque nunca ninguém disse que elas é que têm o direito de mandar na casa de banho. E, se puderes, deixa todos os dias imensas palavras por dizer. Todos os dias, mesmo. Convictamente. Deliberadamente. Como se fosse uma religião. Não se pode dar qualquer espécie de confiança a uma GA-JA quando se quer passar bem e viver em paz.

    Miguel, animadíssimo com a animação crescente do Pai, deu um murro na mesinha da sua cadeirinha alta de bebé e repetiu, todo enfático,

    “Uma GA-JA!”

    Gonçalo fez-lhe um grande sorriso, muito orgulhoso dos seus ensinamentos e da boa recepção do Miguel. Respirou fundo, bebeu um copo de água, piscou o olho ao Filho, e prosseguiu.

    O meu Pai, José Pinto Correia
    Tinha seis ga-jas lá em casa, portanto imagina-se o que terá sofrido.

    “Então vá, Miguéu. Muita atenção, agora, boa? É importante. Vamos mas é a uma boa CENA DE GAJOS, porque por hoje já tivemos toneladas de paciência para os números delas, e portanto já temos todo o direito de curtir sem ter que dar explicações a ninguém.”

    “Querido filhote, alguma vez te disse qual é a especialidade do teu Pai? O Pai é um actor de Shakespeare. E o seu melhor sempre foram os monólogos. E portanto, como já te dei os meus conselhos mais importantes e depois não sei se depois ainda te volto a ver, aqui vai um Monólogo de Shakespeare, improvisado só para ti.”

    Céus. Afinal nada daquilo, e aquilo já tinha sido do caraças, era ainda o monólogo. Era “apenas” o prólogo do monólogo. Em certa medida, fôra o prólogo porque se notava que Gonçalo ficava cansado com facilidade: não conseguia tirar a mão do fundo das costas, sentou-se ao meu lado para respirar fundo e tomar dois opióides valentes, aproveitou para esvaziar toda a garrafa de água, e só quando eu lhe perguntei se queria que fosse buscar-lhe outra é que se lembrou que eu também estava ali. Riu-se, disse que sim, agarrou avidamente na garrafa de litro e meio que eu lhe trouxe do frigorífico, e entretanto já estava o Miguéu a fazer uma birra porque queria mais.

    “Devias falar sentado”, sugeri eu.

    “Monólogos de Shakespeare sentado? Não, não posso, sentado não consigo. Só preciso de respirar um bocado e esperar que os comprimidos façam efeito. Conta tu uma história qualquer ao puto para ele estar sossegado entretanto, pode ser?”

    Claro que podia ser. Cansado, doente, ignorado pelo seu país, escondido do caos do mundo numa casinha de Estremoz, o Gonçalo tinha ali uma audiência captiva.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora

  • Não me diga que não sabia

    Não me diga que não sabia

    É provável que este todo contenha um significado muito difícil de descodificar, porque Deus trabalha de formas misteriosas.

    Stephen Jay Gould

    QUESTIONING THE MILLENNIUM


    A partir de Fevereiro de 1989, quando Salman Rushdie se refugiou em diversos esconderijos londrinos depois do Ayatollah Khomeini o ter condenado à morte em todo o universo muçulmano[1] pelas infâmias e ofensas contidas no seu livro VERSÍCULOS SATÂNICOS[2], é evidente que um grande número de ingleses bem-intencionados se dispuseram a correr riscos muito sérios para lhe darem, no mínimo, algum apoio moral. Aquele que eu nunca hei-de esquecer foi o do correspondente do THE NEW YORKER que o levou ao cinema numa matiné. Infelizmente, as escolhas do multiplex não eram muitas nem grande coisa, de maneira que acabaram os dois sentados na sala que passava o filme QUATRO CASAMENTOS E UM FUNERAL. Ao fim de quinze minutos, era absolutamente incontornável que estavam rodeados por uma multidão deleitada, constituída por pessoas de todas as idades e feitios que não tinham precisado assim de tanto tempo como isso para se apaixonarem perdidamente pela película – fenómeno que muito indignou o correspondente do THE NEW YORKER, que seleccionara aquele filme convencido pela crítica da sua própria revista que se trataria de um trabalho interessante, no mínimo. “Mas porquê? Já reparou? Como é que é possível que esteja toda a gente a gostar tanto desta chachada?”, sussurrou, furioso, para o seu amigo perseguido e anónimo.

    Rushdie nem moveu um músculo da cara.

    “Porque as pessoas têm mau gosto,” respondeu, tranquilamente, ao seu benfeitor. “Ah, por favor, vamos lá – não me diga que não sabia!”


    Esta historinha de perfeito tiro ao alvo vem, ainda, a propósito do tal já mencionado comediante português sem escrúpulos sobre quem nunca ninguém lançou uma fatwa[3] mas que bem a merecia. De cada vez que alguém mete ao bolso rios de dinheiro para mentir aos portugueses[4], que são tão crédulos como qualquer outro povo ocidental e portanto acreditam mesmo na publicidade[5], está a aceitar comprometer-se com um crime tão vil que merece certamente um castigo duro, mesmo que não seja uma pena de morte.

    CPC em 1998, completamente a fazer-se ao mau gosto
    Ai isso é assim? Então depois não te queixes, minha filha.

    Quando falo de casos como este costumo nunca mencionar os nomes das pessoas, nem da “chachada” falante a que pertenciam quando disseram a sua frase ofensiva, nem da localização geográfica em que esse grupo reunia. Faço isto por uma razão muito simples: o que me interessa é o caso em que si, e não a distracção dos leitores com o nome próprio dos protagonistas, que não é, de todo, o que interessa para o que a história nos oferece de mais revoltante, de mais louvável, ou passível de mais perturbação. Desta vez, no entanto, vários colegas do PÁGINA UM insistiram para que eu falasse do comediante por nome e apelido[6], desmistificando a suposta piada da criatura, e rematando, com curiosa frequência,

    Detesto esse gajo!

    É boa, também eu. Mas tu detestas o gajo porquê?

    Porque ele não tem qualquer espécie de graça! Só diz piadas destinadas a chincalhar outras pessoas. Isso nem sequer é humor, é mau gosto puro e simples!

    Pois é. E então, como nos ensinou Salman Rushdie, batam no peito e reconheçam as vossas culpas: as piadas deste senhor correm-lhe bem, e as pessoas acreditam nele tal como acreditam na publicidade, porque as pessoas têm mau gosto. A culpa não é dele: é das vastas maiorias que lhe acham graça. E, enquanto não sairmos deste atoleiro, bem podemos dizer uns aos outros que “detestamos o gajo”, bem podemos lançar-lhe fatwas intelectuais[7], que nada sairá do seu lugar. O nosso verdadeiro desafio é este: como é que podemos ajudar na cruzada para que que as pessoas não tenham mau gosto – e, por decorrência, não acreditem na publicidade?

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Os editores do livro também foram condenados por ajudarem a difundir uma mensagem herética, mas com muito menos alarde. Se um castigo deste tipo, que se mantém em vigor nos nossos dias, é ou não um exemplo de fatwa, bom – isso tem sido debatido de forma muito aguerrida pelos académicos do islamismo desde 1989, e continua a sê-lo.

    [2] A propósito, vocês leram o livro? É que eu, por acaso, li – naqueles seis meses que decorreram ainda antes de a obra se transformar numa moda que era um exemplo de coragem depois da condenação à morte do seu autor. Confesso que foi uma desilusão, levada até ao fim só mesmo por teimosia, e talvez por qualquer esperança pateta de que a luz surgiria precisaria no fundo do túnel. Quer dizer, se é pela sua literatura que um homem vai ser universalmente condenado à morte, então que seja por um trabalho verdadeiramente grandioso. Não é minimamente o caso. Perturbantes, estranhos, dignos de serem lidos e relidos, só mesmo os versículos propriamente ditos. Mas esses, ao que nos dizem, são da autoria do Profeta. Tudo o resto fica muito aquém. E é pena.

    [3] Nem todas as fatwas são penas de morte, mas todas são penas severas.

    [4] E aqui a mentira era extremamente grave, porque se destinava a garantir aos portugueses que não havia que ter medo de manter contas a prazo no BES, que afinal veio a falir uns quantos meses mais tarde. Milhares de portugueses ficaram depauperados de um dia para o outro sem a menor compaixão nem do Estado nem do Banco de Portugal. E o director desta trama infeliz, que entretanto tinha desviado centenas de milhares de euros que não lhe pertenciam para uma conta em Singapura onde ninguém pode tocar-lhes, continuou a passear-se por aí, protegido por dois guarda-costas com todo o ar de terem acabado de sair das fileiras da MOSSAD, e com um ar que era de tudo menos de compaixão. 

    [5] Porque é que as pessoas acreditam na publicidade? Bom, isso é tema para psicanalistas e eu remeto-me à minha insignificância. Mas nunca hei-de esquecer o fascínio com que os portugueses acompanhavam as aventuras da vida de uma tal Raquel, uma jovem e bonita grande profissional com marido e filhos, que conseguia resolver todos os seus problemas quando o país sufocava nas garras da troika porque fazia todas as suas compras no Continente. Isto é pérfido. Muito pérfido. O Continente sabe, tal como sabia quem quer que fosse que pagou ao comediante para dizer num falso debate televisivo que tinha uma conta a prazo no BES e estava descansado da vida. Se fôssemos inspeccionar o caso agora, provavelmente nem nunca teve lá conta nenhuma.

    [6] Depois de muita reflexão, não, não, e não! Tenho um estilo, e vou respeitá-lo.

    [7] Bastava nenhuma editora aceitar os livros dele, com aquelas fotos tipo Adam Sandler na capa. Já era um favor enorme.

  • O penetra imbecil

    O penetra imbecil

    Bem-aventurados os que choram.

    Jesus


    O meu vizinho Gonçalo, o grande especialista em monólogos de Shakespeare que não se deixou abater nem pelas dores das metástases acabadas de remover do pâncreas, deixou-se ficar sentado, a beber mais uma garrafa de água, obviamente a poupar energias e a esperar que as duas Vicodins de dose máxima acabadas de engolir começassem a fazer aquele seu efeito mágico de limpar dali as dores, como se lhes passassem uma esfregona por cima. Fumou tranquilamente um cigarro, e quando chegou ao fim era evidente que já estava a sentir-se melhor. Levantou-se, respirou fundo, cravou os olhos no filho, aclarou a voz, e foi-se vendo ao espelho até encontrar o seu melhor ângulo. Depois de tudo isto, segurou no queixinho de Miguel com toda a ternura do mundo, pôs-lhe em cima da mesinha um balde de pipocas, e começou a debitar, mesmo só para ele conforme prometido, a última parte do seu monólogo de Shakespeare para crianças improvisado ali na hora.


    “Ouve bem o teu Pai, meu querido filhote,” disse Gonçalo ao menino, muito baixinho, como se estivesse a revelar-lhe um plano secreto. “Eu dantes todas as noites pedia ao destino que te deixasse chegares a conhecer o teu Pai, que te deixasse chegares a ter verdadeiras aventuras de gajos com o teu Pai, entendes? Coitadinho do meu bebé, um menino tão feliz, e a gente quer contar-lhe uma história tão complicada… E esta história complicada nem sequer interessa, nem a ti nem a ninguém. O que interessa é que, depois de tantos esforços para me fazer feliz, a tua Mãe há-de fartar-se de esperar por um marido desaparecido. Nessa altura, a tua Mãe há de querer voltar a gozar-se da companhia de tudo o que eu não fui para ela nos últimos anos, a companhia assim de um Homem Mesmo Homem …”

    Quando disse isto, por muito que quisesse mostrar-se compreensível e maduro, Gonçalo não conseguiu deixar de fazer uma careta – assim como se tivesse provado uma qualquer comida de paladar insuportável.

    “E então, como isso não pode deixar de acontecer e eu não posso deixar de detestar a ideia, preciso que entendas que nada disso tem mal nenhum, onde quer que eu tenha ido parar na minha longa viagem, eu continuo a gostar da tua Mãe. E, sobretudo, continuo a gostar muito de ti. Só não tenho é a obrigação de gostar da outra besta que a tua Mãe escolher para pôr no meu sítio. Mas tu, filhote, vê se respeitas esse penetra imbecil, porque só fazer a tua Mãe feliz já é uma grande magia. És muito pequenino. Mas serás capaz de prometer isto ao Pai?”

    O Miguel estava, evidentemente, todo orgulhoso de todas as palavras novas que já tinha aprendido nesse dia. Pôs-se a olhar para o pai com um sorriso rasgado.

    “Esse Penetra Imbecil. Pai! Penetra Imbecil, Penetra Imbecil que quer fazer mal ao Pai. Penetra imbecil. Mata-se!”

    O Gonçalo não conseguiu deixar de rir.

    silhouette of man standing in dark room

    “Tu nunca mais ouvirás falar deste Penetra Imbecil, meu Principezinho,” explicou ele ao filho, ainda dentro desse riso.

    “Porquê?”, perguntou logo o Miguel, naquele tom imperioso de complexidade epistémica tão própria das crianças[1].

    “Porque não,” respondeu-lhe o pai, muito sério e muito terno. “Porque eu sou uma pessoa muito civilizada[2], portanto não vais ter autorização nem do Pai nem da Mãe para falares do Penetra Imbecil. Entendeste, meu pestinha? Não vais falar dele porque eu não vou deixar, e a tua Mãe também não vai deixar, porque queremos os dois que tu sejas muito feliz, mesmo quando eu já não estiver cá para te fazer rir. E a tua Mãe há-de contar-te que eu te amava muito e te fazia rir muito, assim como a fazia rir a ela, para ela ter mais coragem para tomar melhor conta de ti. Queres uma história nova muito gira, daquelas histórias que só o Pai é que sabe?”

    Olhou outra vez para o bebé com um sorriso, mas este, agora, era meio comovido e meio contristado. Em resposta, o Miguel desatou aos berros que não queria que o Pai se fosse embora, e não demorou nada até já estar a fazer uma birra tremenda de menino assustado. O Gonçalo desistiu logo de falar mais com ele.

    “Tenho aí centenas de truques para acabar imediatamente com estas situações,” sussurrou-me ele com um rápido piscar de olhos. “Enquanto a Catarina não souber deles e não decidir logo que sou um péssimo pai, tá-se bem.”

    Então subiu tranquilamente o volume do plasma, mudou de canal, e apareceu subitamente a jovem Angelina Jolie num dos seus antigos filmes de Lara Croft. O Miguel deu um salto tal na cadeirinha, com uma expressão de assombro tão grande, que deixou cair ao chão o baldinho das pipocas. Depois, já sem ligar nenhuma a nenhum de nós, começou a tentar virar sozinho a sua cadeirinha, para ficar mais perto do monitor onde decorriam as aventuras de Lara Croft.

    “Estás a ver?”, sorriu-me o Gonçalo, enquanto eu me preparava para sair. “Gajos!”

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Claro que há formas muitíssimo mais simples de dizer “complexidade epistémica”, mas e então? Numa história como esta, onde é que eu havia de exibir a minha cultura?

    [2] Aqui Gonçalo fala exactamente com aquele tipo de humor com que eu escreveria, pelo que admito que possa ter havido um erro nas minhas notas.

  • Domingo de Páscoa

    Domingo de Páscoa

    A analogia pode então erguer-se aos nossos olhos enquanto melhor instrumento de análise que possuímos – porque Deus trabalha de formas misteriosas. E de que outra forma nos seria possível ligarmos os grãos de areia no deserto às estrelas no céu?
    Stephen Jay Gould
    QUESTIONING THE MILLENNIUM, 1997


    Domingo de Páscoa, aqui em Estremoz, é hoje, segunda-feira. Ainda ontem a cidade fervilhava de vida e de alegria, passavam leitões e cabritos inteiros rumos aos fornos de lenha, o pessoal ia e vinha para os montes para deixar tudo pronto quando chegasse a família, as famílias que iam chegando iam enchendo cada vez mais as esplanadas – mas nada daquilo era a Páscoa. Era só o prelúdio da Páscoa. Ao fim do dia tomei café com uns amigos muito dados a artes e a trabalhos manuais[1]. Foram eles que, quando souberam que eu ia passar a Páscoa[2] aqui em casa a trabalhar, insistiram com imensa veemência que, desta vez, é que eu não tinha mesmo desculpa para não ir visitar o Gonçalo, que é de Lisboa como eu, se mudou para Estremoz há oito meses, vive aqui mesmo ao pé de mim, é um verdadeiro solitário, parece infeliz, e eu bem podia ir mostrar-lhe todas as minhas cenas.


    Mas eu não tenho nem o telefone do Gonçalo! Sei quem é, toda a gente sabe quem é, Portugal nunca teve nenhum grande profissional de monólogos de Shakespeare antes, mas eu nem sei se ele está em casa…” – “Meu, Clarinha, toda a gente sabe que o Gonçalo nunca sai de casa!” – “Então é porque não quer ver ninguém, certo? – “Mas tu és diferente. Vamos apostar. A mulher foi de férias para o Sudoeste e ele está sozinho com o puto, que é um mulatinho bué fixe de quatro anos chamado Miguel. Eu faço-lhes o catering…” – “O catering?” – “E então? Os monólogos de Shakespeare não chegam? O gajo também precisava de cozinhar?” – “Se fosse uma gaja, precisava[3]” – “Ah, vamos mas é apostar. Eu ligo. Se ele atender, e se disser que quer que tu vás lá, tu vais?” – “Vou” – “Juras?” – “Juro:”

    Está-se mesmo a ver. Um gajo que não sai de casa nem atende o telefone, o que mais vai querer é visitas da Clara Pinto Correia.

    Só que o caterer levanta o polegar quando esse Gonçalo atende, diz-lhe que está a ali a Clara Pinto Correia que o admira, e se ela pode ir visitá-lo. E põe aquela merda no alta-voz mesmo a tempo de ouvirmos um gajo responder, mesmo à rádio,

    “Sim!”

    E pronto, lá vou eu até à porta do actor dos monólogos, com a juventude toda a espiar para ter a certeza de que eu entro mesmo, o que faz o dito cujo actor puxar-me para dentro com força, atirar comigo ao chão, trancar a porta quatro vezes, e depois fechar também a corrente. Foi tanta manobra que deu tempo para voltar a levantar-me, recompor-me, e sentar-me numa poltrona super-confortável estrategicamente colocada mesmo ao lado do tal Miguel, que é, de facto, um amor de mulatinho. Ora, sabendo eu que a mulher dele é loura, de olhos azuis…

    Eu sei que este título é meu, mas…
    Que mais poderia dizer hoje, “Domingo de Páscoa” em Estremoz, depois de ouvir os segredos do Gonçalo, e o belíssimo monólogo que se lhes seguiu?

    “Fizeram muito bem em adoptar o puto,” digo-lhe eu com um sorriso comovido. “Sabes, os meus dois putos também são adoptados. Já têm 31 e trinta anos, e eu já tenho cinco netos, e…”

    O gajo abanou-me tanto o ombro que quase voltou a atirar-me ao chão.

    “Antes de mais nada, cala-te já, enquanto vais a tempo. E sai já daí, porque estás na minha poltrona de improvisar monólogos para o Miguel e acabaste de interromper um!”

    “Mas um actor não faz um monólogo de Shakespeare sentado. Tens que estar em pé, a fazer gestos, e a passear pelo palco, não é?”

    “Pois é! Pois é. Mas eu, com estas dores, não me aguento em pé durante um monólogo inteiro” – esticou a mão para uma série de rolinhos que estavam na bancada dentro de um frasco de vidro fosco, tirou um charro, e começou a fumar – “Se queres que eu fale em pé, eu falo em pé assim, ou então não aguento. Mas então é melhor fumares também, senão és capaz de achar esta última parte do meu improviso muito estranha. Bora lá! Fuma! Eu pedi para tu vires cá para saber a tua opinião. O pior que te pode acontecer é teres que voltar cá amanhã, eu fico sentado, e ninguém fuma.”

    “Ó Gonçalo, tu desculpa… antes de começares o teu monólogo, para eu depois nunca te interromper… que dores horríveis são essas, para dizeres que nem te aguentas em pé sem fumares charros… aliás, para nunca saires sequer à rua?”

    Gajas,” ponderou o Gonçalo com a mão no queixo – e de repente desatou a rir tanto, tanto, tanto, que me fez rir a mim também. “Não aguentam não perguntar tudo. Olha, minha filha, isto é assim. Tenho imensas dores porque tenho um cancro do testículo, e foi por causa desse cancro que não tivemos filhos biológicos. Tinha dores, tinha cada vez mais dores, mas achei que haviam de passar, e quando a minha mulher me levou ao hospital já não saí de lá. Recuperei bem do cancro. O problema é que já tinha metásteses. Portanto estou para aqui sem saber quanto tempo duro. Vim viver para Estremoz para conseguir ter calma, para legar ao Miguel os monólogos de Shakespeare que serei eu próprio a escrever, e porque assim, também, não tenho as gajas lá de casa a entrarem e a saírem e a mandarem palpites e eu adoro-as mas tu nem imaginas o que aquelas gajas todas proactivas fazem da cabeça de um gajo desactivo” – “Desactivo não existe em Português, tem que ser desactivado” – “Ora bolas, mas desactivado não rima com proactivo e isto tem que rimar tudo porque é um monólogo de Shakespeare” – “Então usa inactivo, em vez de desactivo” – “Vai-te lixar, inactivas são as amibas, e isto ainda não está assim tão mal, meu.”

    De tudo o que se seguiu neste meu estranho “Domingo de Páscoa” darei contas para a semana. Mas – se admirei a coragem do homem? Claro que admirei.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] As intenções não eram boas. Tratava-se de arrombar um portão – pelos melhores dos motivos, mas é sempre arrombrar a entrada para propriedade alheia. Ninguém foi na conversa, mas entretanto enredei-me eu na converva do Gonçalo.

    [2] Ou seja, o dia de hoje, 2ª feira, em que tudo está fechado e nunca vi tanto lugar para arrumar.

    [3] Esta mudaria habilmente o tema da conversa, não era? Noutro planeta que não Estremoz, talvez.