Etiqueta: A Deriva dos Continentes

  • A coruja

    A coruja

    Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 2


    “A inteligência é uma coisa que todos nós conhecemos bem, como um livro antigo, ou um amigo de há muito tempo. Mas, e o que será a sabedoria? Se a inteligência é a capacidade de falar, a sabedoria é a capacidade de ouvir. Se a inteligência é a capacidade de ver, a sabedoria é a capacidade de ver longe. Se a inteligência é o olho, a sabedoria é o telescópio. Porque a sabedoria representa a nossa capacidade de sairmos da ilhota de nós próprios para começarmos a grande viagem através do mar.

    Richard Wrangham e Dale Peterson

    DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)


    Aos seis meses, o Sebastião está enorme. Continua a ser um cachorrinho com comportamentos de cachorrinho, mas quando quer brincar com um transeunte incauto as patas dele já chegam aos ombros da pessoa. Em metade das vezes, o visado assusta-se seriamente. Na outra metade, o visado já o conhece e diz-me logo que lhe ponha a trela senão ele foge, ele pode causar um acidente de automóvel[1], e além disso ele é um cão tão bonito e tão esperto que alguém mo rouba de certeza[2]. Para um longo passeio sem trela, em que ele possa pular e espinotear tanto quanto lhe apeteça desde que não faça barulho[3], só mesmo esperando pela noite e tomando a direcção das ruazinhas do Castelo, que são tão estreitas e onde é tão problemático estacionar que quase não há carros, e onde àquela hora já quase não se vê ninguém. O homem que depois do Natal se apaixonou pelo meu cão[4] mora mesmo ao meu lado, é pedreiro, e ganhou ultimamente o hábito de vir passear connosco.


    O Rogério é do Norte, e não é nenhum santinho. Já passou uma boa temporada em Pinheiro da Cruz, e ficamos por aqui. Ele tem pena, porque gostaria muito que eu escrevesse um romance sobre a sua vida, dado que a considera excepcionalmente transbordante de erros[5]. Enfim, essa vida seria não mais que uma réplica de milhares de outras, sempre com os mesmos planos, os mesmos erros, e os mesmos crimes e castigos – qualquer coisa talvez mais útil para o progresso da sociologia[6] do que para o florescimento da literatura.

    Nessas noites, que agora parecem ter ocorrido há milhões de anos-luz, o Rogério usou imensas variações erradas sobre adjectivações muito simples, todas elas tão bizarras e inesperadas que nunca mais conseguem esquecer-se. Ainda por cima, em certas alturas até podem dar vontade de rir, o que é extremamente grave porque perdem logo o peso moral que, de facto, carregam consigo[7]. Às tantas até os meus dois ex-namorados de Estremoz foram corridos a patético, ou mesmo a individual completamente patético, nem me lembro porquê nem agora me interessa. Mas não é todas as noites que uma ouvinte atenta apanha com sequências assim tão brilhantes de palavras e coisas[8]. Mesmo que não queira. Já sei que vou guardá-las comigo para o resto da vida.

    A coruja-das-torres, que como tem um nome feminino não fala. No entanto, ouve tudo com muita atenção.

    Entretanto, em estrita obediência às leis imutáveis da Natureza, eu armava-me na coruja da anedota. Aquela que o outro senhor comprou para fazer dela um papagaio, e a seguir respondia a quem lhe perguntasse “então e a tua coruja, já fala?” com um enfático “não, falar ainda não fala… mas  ouve tudo com muita atenção!”.

    Eu não ouvia o Rogério com muita atenção por ser mulher, e muito menos por ser coruja. Era, apenas, porque sou escritora. Sei que das páginas de um qualquer CV pode saltar subitamente aquela agulha que andou perdida por dentro dos palheiros durante dezenas de anos, e era por causa dessa agulha que eu descobria, por exemplo, quem é que matou o JFK[9]

    À medida que foi criando mais confiança, e como, sendo homem,  gosta muito de falar, o Rogério foi entrando em catarses cada vez piores[10] sobre os seus erros do passado. Eu, como sou mulher e gosto muito de ouvir, ouvia-o com muita atenção. Uma semana depois da conversa que se segue, o Rogério vai usar-me como isco para extorquir quase oitocentos euros às minhas irmãs. Mas, na altura, não existindo qualquer antecedente, ninguém podia adivinhar este desenvolvimento trágico. O Rogério estava a contar-me uma das suas múltiplas separações com uma minúcia tão enorme quanto incompreensível.

    Ó Rogério, tu desculpa, mas não entendo. Que mal é que essa senhora te fez para te vires embora para todo o sempre, sem nunca mais voltares sequer a ver os teus filhos sem ser no telemóvel?” – “UMA SENHORA és tu. A outra BEM QUERIA ser uma senhora, mas era apenas uma grandessíssima preguiçosa. Nem sequer me passajava as meias!” – “Então e tu não sabes passajar as tuas próprias meias, como toda a gente?” – “Clarinha, há uma ordem natural  das coisas para o que fazem as mulheres e o que fazem os homens. Se ela quer ser desnaturada, pois saúde e passe bem, que eu esses desrespeitos patéticos[11] não tolero.”

    (continua…)

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Não se percebe se quem sofre com o acidente é o animal ou é a máquina, mais qu’importe. Um acidente é sempre uma desgraça.

    [2] Não é para me gabar, mas o meu cão é, de facto, particularmente bonito. E incrivelmente esperto. Um dia destes conto-vos a história da banana. Está prometido.

    [3] A palavra de ordem para o cachorrinho enorme não fazer barulho é “Sebastião! Queres ir para a rua?”, mesmo quando estamos no meio da rua. História prometida para o dia em que vier ao caso a história da banana.

    [4] Que é como quem diz, mas se não me chateasse tudo bem, e ele nunca me chateou, mesmo.

    [5] Obviamente, este livro seria uma biografia, e nunca um romance. Mas isso eram detalhes que na altura diziam pouco ao Rogério, que só queria contar-me tudo para expor os erros da sociedade, por forma a tornar a sociedade melhor. Nem que fosse só um bocadinho. Valeria a pena. Na versão dele.

    [6] Ou enfim, talvez para a estatística.

    [7] Como veremos mais tarde.

    [8] Ao menos eu não sou patética: sou tão fina que apenas introduzi veladamente no texto uma alusão ao famoso livro de Michel Foucault AS PALAVRAS E AS COISAS – UMA ARQUEOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS, publicado originalmente em 1966 com um grande impacto quase instantâneo sobre todas as áreas de especialidade relacionadas com a História das Ideias. Em vez de inventar palavras, traduzo-as e copio-as com todo o cuidado, sem não zugeben os mínimos enganos. Es ist ganz anders, como diria o outro antes de se virar para o balcão e pedir à refugiada de qualquer sítio islâmico onde correu tudo mal einem hamburger bitte.

    [9] Uma pessoa nunca sabe quando é que, de repente, sem aviso, uma história vai mudar completamente de rumo, já não ser uma banalidade, e então valer a pena passá-la a romance. Nem vale a pena imaginar o que nos pagariam para “contar tudo”.

    [10] Ou melhores, conforme as preferências literárias do ouvinte que escuta o palrante. O pior é que eu detesto psicopatas e filmes de terror. Mas aguentei firme. Aquilo podia, de facto, ter lá um JFK dentro em qualquer próxima frase.

    [11] O Rogério adorava palavras, e, para falar de forma culta, incorria por vezes, repetidamente, em erros crassos como este famoso “patético”. Eu nunca disse nada. Era um fato grunge de alta costura que lhe ficava a matar.

  • O velho

    O velho

    Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 1


    A ligação de cérebros poderosos com o demonismo masculismo parece uma coincidência trágica de cadeias causais independentes; mas esta conexão implica criar problemas extremamente complexos. Os cérebros inteligentes são responsáveis por novas formas de agressão, irrelevantes para os animais sem boas memórias nem relações de longo termo.

    Richard Wrangham e Dale Peterson

    DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)


    Ninguém imagina o que me custou começar a escrever esta série de crónicas. Ando a adiá-la há meses – mesmo depois de ter sido enxameada por uma série de dissabores, sempre em torno do mesmo tema. Não gosto de dizer mal de ninguém. E ainda gosto menos de dizer mal de pessoas que pertencem a um mundo onde, por regra, a vida me faz feliz. Mas isto já se tornou francamente excessivo, portanto deve ser dito. Será uma hipérbole, mas toda a Bíblia é uma hipérbole, e há milhares de anos que funciona. Eu gosto de viver aqui, não é isso que está em causa. Mas viver aqui tem detalhes que, depois de todos somados…  não, não mereceriam nenhum Dilúvio, porque um Dilúvio seria muito conveniente, dada a falta de água no Alentejo.


    A verdade é que, mais provação menos provação, continuei sempre a gostar de viver aqui. Esse bem-estar não mudou nem mesmo depois de eu ter arranjado um stalker. E um stalker, isto sim, parece mesmo uma qualquer punição bíblica, enviada por razão desconhecida. Um stalker é uma sombra neurótica e estranha, e extraordinariamente cansativa, que não creio que nenhuma pessoa imagine que possa vir a ter depois dos sessenta anos, quando se instala para viver calmamente, e dar de si o seu melhor, numa pequena cidade do interior. Ainda por cima, é tão raro ouvirmos as mulheres que nos rodeiam falarem de stalkers, que acabamos por considerá-los personagens de filmes americanos. Nem sequer são pessoas. São mesmo só personagens. O King-Kong, o Dirty Harry, o Mad Max, o Batman: a gente não se cruza com eles na rua.

    CPC armada em Clara Pinto Correia.
    Evidentemente, a culpa é toda dela.

    Este meu stalker é um fraca-figura que tem como profissão ir sentar-se na esplanada do Alentejano para pedir a toda a gente cigarros, cafés,  bagaços, e assim. É tão mirradinho, tão silencioso, tem sempre um ar tão triste, e em consequência ocupa tão pouco espaço, que, até começar a perseguir-me, nunca ninguém tinha dado por ele, nem ninguém lhe reconhecia o nome, o que é curiosamente raro aqui na cidade. Ajudei-o a confirmar online, no portal da Segurança Social, a sua necessidade de transporte para Lisboa na segunda-feira seguinte por causa de uma consulta em Santa Maria[1], e tanto bastou para no dia seguinte ele já estar a entrar no café onde eu costumo ir todas as manhãs para suspirar em alto e bom som, “não sei o que é que aquela mulher fez, que deu comigo em doido.” E toda a gente achou graça. Eu por acaso não achei graça nenhuma porque aquilo era do mais incómodo que imaginar se possa, e, sobretudo, porque a história do nosso louco amor passou a ser um teatro que se repetia todas as manhãs. E as mensagens intermináveis dele no meu telemóvel eram todos os dias entre as dez e as vinte.

    Com todos estes ingredientes, mais o seu lugar cativo no banco fronteiro ao tribunal, onde podia contemplar à vontade a porta da minha casa tal como podia contar histórias fabulosas aos taxistas, o velho transformou-se rapidamente no talk of the town[2]. Toda a gente se ria dos seus expedientes e das suas declarações de amor. No meu café, toda a gente apreciava também a sua pontualidade, pois que o velho aparecia às sete em ponto, ia lá deixar recados para mim, e acto contínuo ia sentar-se no seu banquinho. E eu não sou de ferro. Posso ter sido discreta, mas este sentido de humor mesmo-mesmo-mula dos alentejanos acabou por fazer-me rir a mim também.

    Até acabei por rir[3] mesmo depois de o stalker ter destruído a centralina do meu carro durante a noite[4], depois de lhe fazer uma ligação directa para o tirar do lugar onde estava estacionado[5], mesmo à frente da minha porta[6]. Ainda hoje sorrio vagamente ao rever a cara dos polícias quando lá levei o meu telemóvel encharcado em mensagens dele, umas tristes, outras saudosas, umas quantas a jurar suicídio e outras tantas a declarar apenas que ia partir para nunca mais voltar, e todas elas ou dolorosas[7] ou amorosas[8], como se alguma vez tivéssemos formado um casal – ah, mas nunca houve testemunhas, portanto nunca se pôde fazer nada.

    Até hoje, também nunca se pôde fazer nada em relação a nenhum dos dissabores que se seguiram, e não sou eu quem vai dizer que se passaram especificamente aqui porque no resto do País, ou mesmo no resto do mundo, tanto priapismo seria impossível e impensável. Mas que tem sido uma luta constante para merecer algum sossego por parte destes homens – ah sim. Chegada a esta provecta idade, tem sido uma luta sem precedentes.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Consulta essa a que ele nunca foi, pois que várias testemunhas o viram arrastar-se o dia inteiro entre a minha casa e o banco fronteiro ao tribunal. Algures, em Estremoz ou em Lisboa, os contribuintes hão-de ter pago para estar uma ambulância, ou um carro de bombeiros, à espera de um velho doente que afinal não estava assim tão doente como isso. Não é caso para dar ouvidos às barbaridades do CHEGA contra o SNS, mas é caso para usar de mais firmeza em relação a neuróticos que importunam mulheres.

    [2] Que é como quem diz “a pessoa de quem toda a gente fala na cidade”, o que não seria difícil de dizer em português de forma interessante. Mas desculpem-me e deixem-me passar, estes pecadilhos de inserir amostras cosmopolitas da minha presença de espírito bilingue tomam-me de assalto assim que chego à segunda linha seja de que texto for.

    [3] Sozinha, obviamente. Estas coisas não têm graça absolutamente nenhuma, nem eu quero que ninguém pense que eu lhes acho graça. Acontece apenas que, perante as calamidades, o riso continua a ser a melhor arma de defesa que eu conheço.

    [4] A centralina! Estão a ver as coisas que eu sei? A centralina transformou-se numa daquelas palavras que me fazem dar um salto e olhar para trás para ver quem falou, de tal forma me envenenou a vida. A centralina é a peça que controla todo o circuito electrónico do carro. Sem centralina, um carro bem pode ser das melhores marcas e estar novinho em folha – é um carro morto, dê lá por onde der.

    [5] O piolhoso é deveras entendido em motores, pois que foi motorista de camiões TIR. Aos 52 anos foi trespassado por dois balázios numa batida ao javali, e não teve outro remédio senão reformar-se. Mas continuou a juntar uns cobres, incluindo roupa à senhor importante, desempenhando as funções ilegítimas de um Embaixador qualquer que vivia aqui, viajava muito, e pagava em dinheiro. O pior foi quando esse Embaixador mudou de país, e para o seu lugar veio outro, daqueles que não alinham em futebóis. E é neste mundo que eu vivo. Batidas ao javali, balázios, empregos ilegais de alta roda, e finalmente um stalker que não recua perante nada.

    [6] Só mesmo num dia raríssimo em que a pessoa consegue estacionar à porta sem um único pneu em cima do passeio é que estas coisas acontecem, como toda a gente sabe.

    [7]Nunca mais viverei em paz, tiraste à minha vida todo o seu sentido” – quando, ainda por cima, eu tinha dado à vida dele montes de bicas, de cigarros, e até de tostões para bagaços.

    [8]Clarinha, meu amor, proponho-te uma boa sessão de sexo, vais ver como voltas a gostar de mim depois de voltares a ser minha mulher” – e por acaso valeu a pena ver o olhar interdito do senhor agente que estava a atender-me a olhar para mim, “é melhor guardar essa.”

  • A noite em que eu fui a voz do Sérgio Conceição

    A noite em que eu fui a voz do Sérgio Conceição

    Parece que, um belo dia, antigamente, toda a gente combinou entre si mentir a este respeito, e continua a mentir até hoje. Toda a gente diz que odeia o mal, mas, no fundo, toda a gente o adora.

    “Não tem vergonha de estar a destruir-se a si mesma?

    “Apetece-me destruir-me. Oiça: agora, por exemplo, vão julgar o seu irmão por ter morto o pai, e agrada muito a toda a gente que ele o tenha morto.

    Agrada a toda a gente que ele tenha morto o pai?

    “Sim, agrada a toda a gente! Toda a gente diz que é um acto horrível, mas no fundo toda a gente gosta disso. E eu sou a primeira a gostar.

    “Nisso de toda a gente há uma certa verdade – disse Aliocha baixinho.”

    Fiódor Dostoiévski

    OS IRMÃOS KARAMÁZOV


    Nota inicial sobre o título[1]


    Não sei quando foi, nem como foi, que a corrupção começou a esticar cada vez mais as suas raízes dentro da política portuguesa como o eucalipto faz às dele se andar à procura de água em terrenos áridos. Não sei nem observei, porque estava a trabalhar nos Estados Unidos. sabendo uns factos que pareciam anedotas de mau gosto mas eram factos, e quando voltei com os meus meninos para Lisboa, já o Primeiro-Ministro era José Sócrates. Vivia-se mal, muito pior do que nas minhas recordações do País onde vivi até ir estudar para Buffalo, mas os diferentes membros do governo iam-nos explicando que esse era o preço a pagar pela integração na União Europeia. Às tantas percebi que estavam a rasgar-se na paisagem SEIS auto-estradas paralelas entre Lisboa e Valença do Minho, mas explicaram-me que era “para beneficiar toda a gente por igual[2]” e fazer chegar “os frescos” mais depressa aos supermercados[3]. Construíam-se cidades colossais para albergar aeroportos que depois nunca existiram, assim como se desbastaram áreas enormes de terreno para permitirem a passagem de um TGV que depois nunca passou[4]. E cada vez se percebia melhor, cada vez doía mais, mas não perceber já nem era possível: o dinheiro público andava a passar de mão em mão[5] de forma pouco clara, no mínimo.


    De Sócrates[6], o governo passou para as mãos de Passos Coelho[7], e nessa altura ouvíamos falar cada vez mais em luvas, empresas falidas, particulares insolventes, e jovens acabados de formar pelo Ensino Público a partir, a partir, e a partir. Por essa altura, começa também a estar na moda os Bancos irem ao fundo, os Banqueiros a apropriarem-se com tudo o que podiam e fugirem, ninguém os perseguia, e ninguém mostrava qualquer preocupação com os lesados destas transas porque tudo aquilo voltava a reconstruir-se com mais dinheiro de mais impostos.

    É exactamente neste ponto que se ouvem duas ou três piadas indecorosas, absolutamente destituídas de fundamento, sobre vir aí a falência do BES.

    person holding 20 us dollar bill

    Ora acontece que vivia ainda em Portugal, por esses dias, um jovem comediante que faz hoje stand-up em inglês para as multidões de empresários que esgotam os quartos dos hoteis de cinco estrelas na Arábia Saudita[8]. Formava uma pandilha que tinha um nome qualquer do género FEIOS, PORCOS E MAUS, juntamente com mais dois partenaires, uma idosa cheia de piercings e um total anarquista da caricatura, que reunia todos os sábados à noite para debater os diferentes e desgraçados impactos da pobreza imposta por Passos Coelho com a explicação sumária de estar a ser imposta pela UE. Não diziam nada que fosse especialmente interessante, mas quando os meus alunos de Mestrado vinham trabalhar para minha casa nessas alturas, pediam-me sempre para ver ao menos meia horinha daquilo. E é exactamente nesse sábado, dois dias depois das duas ou três piadas parvas sobre a falência do BES, que de repente, sem vir minimamente a propósito, o jovem comediante diz assim:

    “Epá, devia ser proibido por lei assustar as pessoas desta maneira. Se querem saber, eu, por mim, tenho uma valente conta a prazo no BES. E estou perfeitamente sossegado. Não corremos risco nenhum, por isso eu não tenciono minimamente tirá-la de lá!”

    Eu estava de joelhos no chão a organizar pilhas de fotocópias, e dei um tal salto de raiva que espalhei tudo à minha volta.

    “Cabrão de merda!”, gritei eu para a imagem do comediante na televisão. “Com que então, até tu estavas à venda?” – virei-me para os meus aluninhos perplexos. “Vocês não viram bem este filme de terror? Como aquele menino é o amor de toda a gente, o BES paga-lhe uma fortuna para ele chegar ao debate e aconselhar as pessoas a não tirarem o seu dinheiro do BES, uma vez que até ELE continua a ter o seu dinheiraço do BES! Puta que pariu, isto é perfídia pura. Ai, meninos, tirem-me deste filme. Não aguento continuar a assistir ao espectáculo da corrupção crescente que grassa no meu próprio País!”

    “Ó Professora!”, disseram logo os mestrandos, cada um para seu lado. “A Professora é que devia estar a dizer essas coisas na televisão! Vá para a televisão, por favor, vá dizer essas coisas na televisão!”

    “A televisão? A televisão ia querer-me lá a dizer estas coisas?” – e logo a seguir saiu-me de chofre, antes sequer de pensar: “Ai, foda-se. Então os meninos ainda não notaram que já nem sequer há televisão?”

    E pronto, poucos meses mais tarde não estava na televisão: estava antes nos Estados Unidos.

    Espero que ao menos apreciem os meus dotes visionários, e que, não sendo eu o Sérgio Conceição, possam perdoar-me pelo meu vernáculo. A questão é que vocês ainda não me conhecem. O que faz perfeito sentido, porque eu própria ainda não me conheço assim tão bem como isso.


    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] O Presidente do FCP teria certamente feito coro connosco, ou pelo menos aplaudido o nosso arroubo de fusão, mas quando se deu este fenómeno místico o eterno Contra-Almirante não estava lá na casa de Alfama para escutar as minhas palavras – as tais que me saíram por instinto puro, mas que pareciam mesmo saídas de um daqueles comentários que o seu treinador cospe para a relva quando foi posto fora num vermelho directo. Só falei uma única vez com Jorge Nuno num qualquer jogo brutal em que fui convidada de homenagem, aliás de tanta homenagem que me sentaram mesmo ao lado dele, logo ali na fila da frente. Estava um frio de Inverno nortenho que mal se tolerava, eu trazia um casaco de raposa apache de bolsos grandes e franjas enormes, e, parte bem educada parte piedosa, ofereci-lhe o bolso do seu lado para ele aquecer a mão. O Grande Chefe fez o sorriso de Raposa Matreira mais bem esgalhado deste mundo, sem precisar sequer de olhar para mim, e disse apenas, só para eu ouvir, “eheheh – cuidado com as escutas!”.

    [2] É incrível, agora, ao fim de todos estes anos de tangas políticas e financeiras cada vez piores, lembrarmo-nos da energia que ainda gastámos a discutir uns com os outros se o que estava em causa era mesmo o benefício dos eleitores, ou se era outra coisa qualquer ainda mal definida, mas que já não pressagiava nada de bom.

    [3] Nunca ninguém me explicou claramente, no entanto, se os produtores desses “frescos”, que o governo dizia querer “beneficiar”, iriam ter que pagar aquelas portagens chorudas que se pagam nas autoestradas, ou se quê. Nem sabemos bem se essas autoestradas ainda estão funcionais. O Vale da Régua, um dos maiores milagres das nossas paisagens naturais, agora tem por cima uma ponte colossal, feia como cornos (oops, lá saltou outra vez cá de dentro o Sérgio Conceição), posta ali há quase vinte anos como tabuleiro da Autoestrada de Viseu. Passei lá por cima uma vez, para mostrar a paisagem a uns estrangeiros – e bem me lixei porque aquilo era tudo gente concernée, que não queria acreditar que um Governo Europeu, secundado por toda a União Europeia, tivesse admitido erguer-se ali uma tal infâmia. Foi tão penoso que acabei por explicar que a ponte da autoestrada fora paga com as fortunas dos Casinos de Macau, que incluíam muitas vezes nos prémios passeios românticos Douro acima em Barcos Rabelos – e que os primeiros compradores de mais aquela jogatana dançante do Senhor Stanley Ho tinham sido os espanhois, e não os portugueses.

    [4] E boas reportagens sobre tudo isto? Não nos fizeram imensa falta? Não continuam a fazer-nos imensa falta? De que é que os jornalistas têm medo? Dos dois matulões da MOSSAD que andavam aí a desempenhar as funções de guarda-costas de Ricardo Salgado? Ah, por favor, isto ainda não é a faixa de Gaza, quand même. Mandem-me lá a mim, que eu faço. Não tenho filhinhos pequeninos nem paizinhos velhinhos. Escuso de estar aqui a empatar.

    [5] Curiosidade interessante, a recordar algumas regras elementares da taxonomia: o dinheiro passava, de facto de mão em mão – mas essas mãos tinham que ser sempre as mesmas, ou recomendadas por outras iguais.

    [6] Notícias posteriores sobre a vida deste ex- PM: a) as suas férias na Quinta do Lago eram tão pagas pelos contribuintes como o seu apartamento caríssimo em Paris; b) o título de Engº vinha-lhe de um Mestrado feito por medida numa qualquer Universidade Privada, cara mas camarada; e c) ao fim de uns tempos foi preso, mas ninguém explicou aos portugueses porquê.

    [7] Foi um senhor que concorreu às legislativas enquanto social-democrata. Nunca sorria, mas explicava que isso era de ver o País em tão mau estado. Bastaram dois ou três meses para se perceber com toda a evidência deste mundo que, na realidade, o senhor não era nada um social-democrata: era mas era um perigosíssimo neo-liberal, e assim continuou até ao fim do seu mandato. Também não percebo como podem manter-se no poder pessoas que afinal não representam minimamente o que disseram que iam representar. Só me lembro de já estar no desemprego, a cair de fome, sono, e frio, numa fila para o subsídio algures em Sintra, e ouvir o cretino dizer na rádio, todo cheio de si próprio, “temos que fazer cortes substanciais no desemprego, porque há demasiadas pessoas que vivem de expedientes.” Filho da mãe. Houve quem chorasse. Ex-pe-di-en-tes!

    [8] Ou, escrevendo a mesma frase de maneira mais sucinta: “… que faz hoje fortunas obscenas no Médio Oriente.”

  • Pois se até Deus mete água…

    Pois se até Deus mete água…

    De que estás a falar, Mítia?

     “Ideias, ideias, é isso! Ética! Que coisa é essa, a ética?

    Ética? – surpreendeu-se Aliocha.

    “Sim, é uma ciência ou quê?

    “É, existe uma ciência com esse nome… mas…  confesso que não te sei explicar que ciência é essa.”

                    Fiódor Dostoiévski

    OS IRMÃOS KARAMÁZOV


    Clarinha, tu passaste-te mesmo? Então a tua casa de sonho ainda agora acabou de arder, e tu não te lembras de nada melhor do que desperdiçares uma noite inteira do teu precioso tempo a reler OS IRMÃOS KARAMÁZOV, em todas as suas quatro partes mais o epílogo?

    Olhem lá, calma, por  favor, muita calma – eu posso explicar. Estava à procura de um breve discurso proferido, sabia eu lá aonde numa obra tão grande[1], por uma jovenzinha histérica, febril, sedutora, manipuladora, encantadora, e demoníaca, às vezes tão frágil que tem que andar de cadeira de rodas. Com esta descrição é evidente que eu não ia longe em termos de posicionamento geográfico, uma vez que alguém assim dotado poderia  corresponder a uns bons 85% dos personagens Dostoiévski, incluindo Deus-Pai propriamente dito[2].


    Porque é que eu queria tanto encontrar esta menina[3]? Parte era o fascínio da sua revolta contra o mundo, que tem tudo a ver com casas a arderem. E a outra parte, aquela que nunca mudou do século XIX para o século XXI embora os regimes tenham mudado várias vezes no entretanto, era a sua revolta contra toda a corrupção que campeia na Rússia czarista do século XIX, observada e descrita em grande angular pelos poderes do seu olho de lince. Lise já viu tanto que “simplesmente, não quero fazer o bem, quero fazer o mal, e nisso não há doença nenhuma[4]” – “Porquê o mal?[5]” – “Para que não reste nada, em lado nenhum!

    Regresso a esta história para nos recordarmos do poder dos lugares-comuns: é indiscutível que a História se repete. E, por isso mesmo, é inevitável que a gente cultive uma vaga fantasia em que o mundo inteiro fica deserto e nós podemos recomeçar a partir do zero, conscientes dos disparates do passado. Deus estava a dar asas à mesma fantasia quando mandou Noé construir a Arca e enfiar lá dentro toda a sua família disfuncional e todos os animais aos pares[6] e pronto – se fantasias destas correm mal até a Deus, é porque se baseiam em fundações espirituais, quando precisariam de ser materiais. Mas as causas de erros destes aprendem-se depressa, não são fenómenos que se esqueçam, e portanto não nos impediriam de fazermos tudo correctamente da próxima vez[7].

    Para fazermos tudo correctamente bastaria mudar a estratégia em que cada um quer é meter ao bolso tudo quanto pertence aos outros[8], passando antes à táctica da actividade em cooperativa, com comunhão absoluta de bens[9] e de horários de trabalho.

    Alguém se chega à frente para uma aventura destas?

    CPC, aos 32 anos, a falar de trabalho
    O entrevistador bem queria que ela lhe falasse antes dos seus amores, mas aí ela fechou-se sempre em copas. Amar não é nenhum serviço de utilidade pública.

    Antes de se extinguirem, houve dinossauros que parecem ter adoptado a postura bípede e desenvolvido um cérebro anormalmente volumoso, portanto é muito possível que a História já se repetisse na Terciária. Se hoje em dia o mundo está cheio de pobreza, já lá vão muitos séculos em que o mundo esteve cheio de miséria. Se o estilo de vida moderno potenciou a disseminação da COVID pelo mundo[10], ainda há um século atrás morriam portugueses como tordos porque ninguém sabia controlar a chamada “gripe espanhola[11]”. Se a Guerra da Ucrânia é de uma brutalidade e de uma estupidez de deitar as mãos à cabeça, recorde-se que o pesadelo da Guerra do Iémen não deixou de existir só porque desapareceu das notícias.

    Mas, no meio de todo este negrume em que as corujas piam e os mochos arrancam os olhos àqueles que ficaram caídos para trás, honrosamente mortos em combate, a gente costumava ter por Portugal um orgulho merecido, e considerar os nossos Presidentes da República pessoas com verdadeira classe, mesmo depois de o Sarkozy já se ter casado com a Carla Bruni. Boas escolas, bom Serviço Nacional de Saúde, respeito rigoroso pelas regras da Reforma, políticos empenhados, polícias, GNRs, e militares civilizados, bom feitio excepto quando ao volante[12] – quem é que não quer?

    E quem é que notou, ainda antes de mim, que, por qualquer caminho tão ínvio como estes caminhos têm mesmo de ser, de repente toda a fachada portuguesa estava igual – mas que, por trás da fachada, o comportamento das pessoas importantes era cada vez mais uma mentira?

    A pena que eu tenho de, nessa altura, não ter apostado nada com ninguém.

    Mas enfim, sou contra as apostas – e, ao menos, fui consistente.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] E onde tanta gente faz tantos discursos, todos eles tão “histéricos”, tão “febris”, tão “brilhantes de terrível raiva”, e (o meu preferido) tão “desfigurados”.

    [2] Neste romance, de forma assustadoramente sistemática até para os ateus, o Demónio é muito melhor tratado do que Deus pelo autor.

    [3] De seu nome “Lise”, por causa de “Lise” ser “Lisa” em francês, e a acção decorrer entre a alta burguesia russa.

    [4] Dostoievski não é considerado “uma das figuras de proa na consolidação da Psicologia” por acaso. E escreve exactamente no período histórico em que a própria Psiquiatria começa a organizar-se. Este momento poderoso de mudança de paradigma arrasta consigo, no entanto, um problema nada desprezível: todos os estados de espírito mais agitados de todas as pessoas passam a ser considerados “doenças”. Destas, a mais abundante é a infame “febre nervosa.” Só posso acrescentar que prefiro viver agora.

    [5] O pobre irmão que escuta estas confidências com o voto de sigilo total é Aliocha, o que escolheu a vida de monge.

    [6] Isto sim! Isto é que é NÃO SABER MESMO NADA sobre a fauna do planeta, sobretudo quando comparada com a mísera fauna da bacia do Rio Jordão.

    [7] Nem nós, nem Deus. Mas nota-se que Deus está amuado e ficou farto. Com toda a razão.

    [8] Incluindo a sua mulher, ou mesmo as suas mulheres, comportamento que se percebe depressa que Deus detesta.

    [9] A mulher do próximo não é nenhum “bem”, estamos entendidos?

    [10] E vá, deêm algum crédito à ciência: nunca se tinham desenvolvido tantas vacinas, tão depressa, para uma doença completamente nova.

    [11] Viroses, vacinas, bactérias, antibióticos – são tudo técnicas que começam a florescer no período que rodeia a II Guerra Mundial. É também aqui que aparece o Salvarsan, ou seja, uma forma eficaz de travar a progressão da sífilis depois de quinhentos anos de inferno.

    [12] Aquando da sua primeira visita a Lisboa, o Dick aprendeu logo comigo uma palavra que eu própria nunca antes reparei que usava o tempo todo quando ia a guiar: era qualquer coisa como “canoagem”, o que não fazia sentido nenhum. Ao fim de uns bons dez minutos, lá se esclareceu o mistério: “CABRONAGEM!!!! CABRONAGEM!!!!”, gritava eu, furibunda, para todos os carros de todas as filas que estivessem à minha frente.

  • Ga-jas

    Ga-jas

    Uma luz solar minúscula, que não passa de um de um dos cem mil sóis da nossa galáxia, será dificilmente detectada. E a nossa galáxia é um dos mil milhões de galáxias, rodando a velocidades que excedem a velocidade da luz – até que cada galáxia acaba por arder, para ser substituída pelas novas galáxias que preservam o equilíbrio desta dança.
    Timothy Leary
    THE SEVEN TONGUES OF GOD, 1965


    Deixei-vos, na última semana, prestes a começar a ouvir o monólogo improvisado de um actor com um grave problema oncológico, que veio viver aqui para Estremoz com o filho de quatro anos, Miguel, a quem tenciona dedicar este seu último trabalho. Gonçalo estudou Shakespeare em Londres, especializou-se nos seus monólogos, recebeu críticas entusiásticas e ovações em pé. Quando voltou para Portugal foi devidamente ostracizado, como o País tanto gosta de fazer aos que se destacam no estrangeiro sem a ajuda de ninguém. Nunca se queixou. Aceitou papéis parvos em novelas e participações em reality-shows, continuando a trabalhar na sua arte, mas agora em português, aperfeiçoando cada vez mais o estilo e aguardando a hora certa. Ao saber-se gravemente doente veio viver para uma rua perto da minha, e decidiu começar a falar de Pai para Filho. Convidada a assistir ao primeiro improviso, sentei-me silenciosamente ao lado do Miguel, também ele muito atento na sua cadeirinha, liguei o gravador, e ouvi o monólogo delicioso que aqui partilho convosco.


    “Querido Miguéu,” começou o Gonçalo num tom firme mas carinhoso, sem qualquer teatralidade, “por favor, ouve o teu Pai. Tens mesmo que ouvir o Pai agora, porque a seguir ninguém vai ter tomates para te dizer tudo isto, por muito que tudo isto seja verdade.”

    Embora falasse sem qualquer esforço aparente, havia no seu tom de voz qualquer coisa de tal forma dramática que o Miguel ficou imóvel, de boca aberta, a olhar para o Pai.

    “Quando fores um homem crescido”, continuou o Gonçalo, “por favor, promete-me que vais ter muito cuidado com o pior que pode haver, meu querido filho. Sabes o que é o que pior que pode haver, para um crescido, Miguel? O Pai diz-te. O pior que pode haver é não nos defendermos a tempo e depois sermos vítimas deste Género… deste cerco constante deste Género… sei lá, desta porcaria deste circo deste Género Feminino. Tu vais ver. Juro-te, é que tu vais mesmo ver! Cresce só mais uns aninhos, que vais logo ver! Tem cuidado, Bebé. Nunca oiças nada do que elas te disserem. Se por acaso ouvires mesmo alguma coisa, esquece-te logo do que foi. E, sobretudo, nunca respondas a nada do que elas te perguntarem, porque nunca hás-de conseguir responder-lhes o que elas queriam ouvir, e te garanto que não há ninguém neste mundo que saiba verdadeiramente o que é que elas querem ouvir, assim para cada contexto, para cada momento, até para qualquer porra de qualquer fotografia. Nem se respira. Tu tens é que ser bruto, mas mesmo um ganda bruto, porque, assim como assim, mais cedo ou mais tarde, elas vão TODAS, SEMPRE, acabar por te acusar de seres um ganda bruto. Então olha, goza-te bem disso. Deixa-lhes sempre a puta da cama por fazer. Esquece-te sempre de limpar o raio que o parta do lavatório depois de te barbeares. Vê se consegues deixar sempre a tampa da retrete para cima, porque nunca ninguém disse que elas é que têm o direito de mandar na casa de banho. E, se puderes, deixa todos os dias imensas palavras por dizer. Todos os dias, mesmo. Convictamente. Deliberadamente. Como se fosse uma religião. Não se pode dar qualquer espécie de confiança a uma GA-JA quando se quer passar bem e viver em paz.

    Miguel, animadíssimo com a animação crescente do Pai, deu um murro na mesinha da sua cadeirinha alta de bebé e repetiu, todo enfático,

    “Uma GA-JA!”

    Gonçalo fez-lhe um grande sorriso, muito orgulhoso dos seus ensinamentos e da boa recepção do Miguel. Respirou fundo, bebeu um copo de água, piscou o olho ao Filho, e prosseguiu.

    O meu Pai, José Pinto Correia
    Tinha seis ga-jas lá em casa, portanto imagina-se o que terá sofrido.

    “Então vá, Miguéu. Muita atenção, agora, boa? É importante. Vamos mas é a uma boa CENA DE GAJOS, porque por hoje já tivemos toneladas de paciência para os números delas, e portanto já temos todo o direito de curtir sem ter que dar explicações a ninguém.”

    “Querido filhote, alguma vez te disse qual é a especialidade do teu Pai? O Pai é um actor de Shakespeare. E o seu melhor sempre foram os monólogos. E portanto, como já te dei os meus conselhos mais importantes e depois não sei se depois ainda te volto a ver, aqui vai um Monólogo de Shakespeare, improvisado só para ti.”

    Céus. Afinal nada daquilo, e aquilo já tinha sido do caraças, era ainda o monólogo. Era “apenas” o prólogo do monólogo. Em certa medida, fôra o prólogo porque se notava que Gonçalo ficava cansado com facilidade: não conseguia tirar a mão do fundo das costas, sentou-se ao meu lado para respirar fundo e tomar dois opióides valentes, aproveitou para esvaziar toda a garrafa de água, e só quando eu lhe perguntei se queria que fosse buscar-lhe outra é que se lembrou que eu também estava ali. Riu-se, disse que sim, agarrou avidamente na garrafa de litro e meio que eu lhe trouxe do frigorífico, e entretanto já estava o Miguéu a fazer uma birra porque queria mais.

    “Devias falar sentado”, sugeri eu.

    “Monólogos de Shakespeare sentado? Não, não posso, sentado não consigo. Só preciso de respirar um bocado e esperar que os comprimidos façam efeito. Conta tu uma história qualquer ao puto para ele estar sossegado entretanto, pode ser?”

    Claro que podia ser. Cansado, doente, ignorado pelo seu país, escondido do caos do mundo numa casinha de Estremoz, o Gonçalo tinha ali uma audiência captiva.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora

  • Não me diga que não sabia

    Não me diga que não sabia

    É provável que este todo contenha um significado muito difícil de descodificar, porque Deus trabalha de formas misteriosas.

    Stephen Jay Gould

    QUESTIONING THE MILLENNIUM


    A partir de Fevereiro de 1989, quando Salman Rushdie se refugiou em diversos esconderijos londrinos depois do Ayatollah Khomeini o ter condenado à morte em todo o universo muçulmano[1] pelas infâmias e ofensas contidas no seu livro VERSÍCULOS SATÂNICOS[2], é evidente que um grande número de ingleses bem-intencionados se dispuseram a correr riscos muito sérios para lhe darem, no mínimo, algum apoio moral. Aquele que eu nunca hei-de esquecer foi o do correspondente do THE NEW YORKER que o levou ao cinema numa matiné. Infelizmente, as escolhas do multiplex não eram muitas nem grande coisa, de maneira que acabaram os dois sentados na sala que passava o filme QUATRO CASAMENTOS E UM FUNERAL. Ao fim de quinze minutos, era absolutamente incontornável que estavam rodeados por uma multidão deleitada, constituída por pessoas de todas as idades e feitios que não tinham precisado assim de tanto tempo como isso para se apaixonarem perdidamente pela película – fenómeno que muito indignou o correspondente do THE NEW YORKER, que seleccionara aquele filme convencido pela crítica da sua própria revista que se trataria de um trabalho interessante, no mínimo. “Mas porquê? Já reparou? Como é que é possível que esteja toda a gente a gostar tanto desta chachada?”, sussurrou, furioso, para o seu amigo perseguido e anónimo.

    Rushdie nem moveu um músculo da cara.

    “Porque as pessoas têm mau gosto,” respondeu, tranquilamente, ao seu benfeitor. “Ah, por favor, vamos lá – não me diga que não sabia!”


    Esta historinha de perfeito tiro ao alvo vem, ainda, a propósito do tal já mencionado comediante português sem escrúpulos sobre quem nunca ninguém lançou uma fatwa[3] mas que bem a merecia. De cada vez que alguém mete ao bolso rios de dinheiro para mentir aos portugueses[4], que são tão crédulos como qualquer outro povo ocidental e portanto acreditam mesmo na publicidade[5], está a aceitar comprometer-se com um crime tão vil que merece certamente um castigo duro, mesmo que não seja uma pena de morte.

    CPC em 1998, completamente a fazer-se ao mau gosto
    Ai isso é assim? Então depois não te queixes, minha filha.

    Quando falo de casos como este costumo nunca mencionar os nomes das pessoas, nem da “chachada” falante a que pertenciam quando disseram a sua frase ofensiva, nem da localização geográfica em que esse grupo reunia. Faço isto por uma razão muito simples: o que me interessa é o caso em que si, e não a distracção dos leitores com o nome próprio dos protagonistas, que não é, de todo, o que interessa para o que a história nos oferece de mais revoltante, de mais louvável, ou passível de mais perturbação. Desta vez, no entanto, vários colegas do PÁGINA UM insistiram para que eu falasse do comediante por nome e apelido[6], desmistificando a suposta piada da criatura, e rematando, com curiosa frequência,

    Detesto esse gajo!

    É boa, também eu. Mas tu detestas o gajo porquê?

    Porque ele não tem qualquer espécie de graça! Só diz piadas destinadas a chincalhar outras pessoas. Isso nem sequer é humor, é mau gosto puro e simples!

    Pois é. E então, como nos ensinou Salman Rushdie, batam no peito e reconheçam as vossas culpas: as piadas deste senhor correm-lhe bem, e as pessoas acreditam nele tal como acreditam na publicidade, porque as pessoas têm mau gosto. A culpa não é dele: é das vastas maiorias que lhe acham graça. E, enquanto não sairmos deste atoleiro, bem podemos dizer uns aos outros que “detestamos o gajo”, bem podemos lançar-lhe fatwas intelectuais[7], que nada sairá do seu lugar. O nosso verdadeiro desafio é este: como é que podemos ajudar na cruzada para que que as pessoas não tenham mau gosto – e, por decorrência, não acreditem na publicidade?

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Os editores do livro também foram condenados por ajudarem a difundir uma mensagem herética, mas com muito menos alarde. Se um castigo deste tipo, que se mantém em vigor nos nossos dias, é ou não um exemplo de fatwa, bom – isso tem sido debatido de forma muito aguerrida pelos académicos do islamismo desde 1989, e continua a sê-lo.

    [2] A propósito, vocês leram o livro? É que eu, por acaso, li – naqueles seis meses que decorreram ainda antes de a obra se transformar numa moda que era um exemplo de coragem depois da condenação à morte do seu autor. Confesso que foi uma desilusão, levada até ao fim só mesmo por teimosia, e talvez por qualquer esperança pateta de que a luz surgiria precisaria no fundo do túnel. Quer dizer, se é pela sua literatura que um homem vai ser universalmente condenado à morte, então que seja por um trabalho verdadeiramente grandioso. Não é minimamente o caso. Perturbantes, estranhos, dignos de serem lidos e relidos, só mesmo os versículos propriamente ditos. Mas esses, ao que nos dizem, são da autoria do Profeta. Tudo o resto fica muito aquém. E é pena.

    [3] Nem todas as fatwas são penas de morte, mas todas são penas severas.

    [4] E aqui a mentira era extremamente grave, porque se destinava a garantir aos portugueses que não havia que ter medo de manter contas a prazo no BES, que afinal veio a falir uns quantos meses mais tarde. Milhares de portugueses ficaram depauperados de um dia para o outro sem a menor compaixão nem do Estado nem do Banco de Portugal. E o director desta trama infeliz, que entretanto tinha desviado centenas de milhares de euros que não lhe pertenciam para uma conta em Singapura onde ninguém pode tocar-lhes, continuou a passear-se por aí, protegido por dois guarda-costas com todo o ar de terem acabado de sair das fileiras da MOSSAD, e com um ar que era de tudo menos de compaixão. 

    [5] Porque é que as pessoas acreditam na publicidade? Bom, isso é tema para psicanalistas e eu remeto-me à minha insignificância. Mas nunca hei-de esquecer o fascínio com que os portugueses acompanhavam as aventuras da vida de uma tal Raquel, uma jovem e bonita grande profissional com marido e filhos, que conseguia resolver todos os seus problemas quando o país sufocava nas garras da troika porque fazia todas as suas compras no Continente. Isto é pérfido. Muito pérfido. O Continente sabe, tal como sabia quem quer que fosse que pagou ao comediante para dizer num falso debate televisivo que tinha uma conta a prazo no BES e estava descansado da vida. Se fôssemos inspeccionar o caso agora, provavelmente nem nunca teve lá conta nenhuma.

    [6] Depois de muita reflexão, não, não, e não! Tenho um estilo, e vou respeitá-lo.

    [7] Bastava nenhuma editora aceitar os livros dele, com aquelas fotos tipo Adam Sandler na capa. Já era um favor enorme.

  • O penetra imbecil

    O penetra imbecil

    Bem-aventurados os que choram.

    Jesus


    O meu vizinho Gonçalo, o grande especialista em monólogos de Shakespeare que não se deixou abater nem pelas dores das metástases acabadas de remover do pâncreas, deixou-se ficar sentado, a beber mais uma garrafa de água, obviamente a poupar energias e a esperar que as duas Vicodins de dose máxima acabadas de engolir começassem a fazer aquele seu efeito mágico de limpar dali as dores, como se lhes passassem uma esfregona por cima. Fumou tranquilamente um cigarro, e quando chegou ao fim era evidente que já estava a sentir-se melhor. Levantou-se, respirou fundo, cravou os olhos no filho, aclarou a voz, e foi-se vendo ao espelho até encontrar o seu melhor ângulo. Depois de tudo isto, segurou no queixinho de Miguel com toda a ternura do mundo, pôs-lhe em cima da mesinha um balde de pipocas, e começou a debitar, mesmo só para ele conforme prometido, a última parte do seu monólogo de Shakespeare para crianças improvisado ali na hora.


    “Ouve bem o teu Pai, meu querido filhote,” disse Gonçalo ao menino, muito baixinho, como se estivesse a revelar-lhe um plano secreto. “Eu dantes todas as noites pedia ao destino que te deixasse chegares a conhecer o teu Pai, que te deixasse chegares a ter verdadeiras aventuras de gajos com o teu Pai, entendes? Coitadinho do meu bebé, um menino tão feliz, e a gente quer contar-lhe uma história tão complicada… E esta história complicada nem sequer interessa, nem a ti nem a ninguém. O que interessa é que, depois de tantos esforços para me fazer feliz, a tua Mãe há-de fartar-se de esperar por um marido desaparecido. Nessa altura, a tua Mãe há de querer voltar a gozar-se da companhia de tudo o que eu não fui para ela nos últimos anos, a companhia assim de um Homem Mesmo Homem …”

    Quando disse isto, por muito que quisesse mostrar-se compreensível e maduro, Gonçalo não conseguiu deixar de fazer uma careta – assim como se tivesse provado uma qualquer comida de paladar insuportável.

    “E então, como isso não pode deixar de acontecer e eu não posso deixar de detestar a ideia, preciso que entendas que nada disso tem mal nenhum, onde quer que eu tenha ido parar na minha longa viagem, eu continuo a gostar da tua Mãe. E, sobretudo, continuo a gostar muito de ti. Só não tenho é a obrigação de gostar da outra besta que a tua Mãe escolher para pôr no meu sítio. Mas tu, filhote, vê se respeitas esse penetra imbecil, porque só fazer a tua Mãe feliz já é uma grande magia. És muito pequenino. Mas serás capaz de prometer isto ao Pai?”

    O Miguel estava, evidentemente, todo orgulhoso de todas as palavras novas que já tinha aprendido nesse dia. Pôs-se a olhar para o pai com um sorriso rasgado.

    “Esse Penetra Imbecil. Pai! Penetra Imbecil, Penetra Imbecil que quer fazer mal ao Pai. Penetra imbecil. Mata-se!”

    O Gonçalo não conseguiu deixar de rir.

    silhouette of man standing in dark room

    “Tu nunca mais ouvirás falar deste Penetra Imbecil, meu Principezinho,” explicou ele ao filho, ainda dentro desse riso.

    “Porquê?”, perguntou logo o Miguel, naquele tom imperioso de complexidade epistémica tão própria das crianças[1].

    “Porque não,” respondeu-lhe o pai, muito sério e muito terno. “Porque eu sou uma pessoa muito civilizada[2], portanto não vais ter autorização nem do Pai nem da Mãe para falares do Penetra Imbecil. Entendeste, meu pestinha? Não vais falar dele porque eu não vou deixar, e a tua Mãe também não vai deixar, porque queremos os dois que tu sejas muito feliz, mesmo quando eu já não estiver cá para te fazer rir. E a tua Mãe há-de contar-te que eu te amava muito e te fazia rir muito, assim como a fazia rir a ela, para ela ter mais coragem para tomar melhor conta de ti. Queres uma história nova muito gira, daquelas histórias que só o Pai é que sabe?”

    Olhou outra vez para o bebé com um sorriso, mas este, agora, era meio comovido e meio contristado. Em resposta, o Miguel desatou aos berros que não queria que o Pai se fosse embora, e não demorou nada até já estar a fazer uma birra tremenda de menino assustado. O Gonçalo desistiu logo de falar mais com ele.

    “Tenho aí centenas de truques para acabar imediatamente com estas situações,” sussurrou-me ele com um rápido piscar de olhos. “Enquanto a Catarina não souber deles e não decidir logo que sou um péssimo pai, tá-se bem.”

    Então subiu tranquilamente o volume do plasma, mudou de canal, e apareceu subitamente a jovem Angelina Jolie num dos seus antigos filmes de Lara Croft. O Miguel deu um salto tal na cadeirinha, com uma expressão de assombro tão grande, que deixou cair ao chão o baldinho das pipocas. Depois, já sem ligar nenhuma a nenhum de nós, começou a tentar virar sozinho a sua cadeirinha, para ficar mais perto do monitor onde decorriam as aventuras de Lara Croft.

    “Estás a ver?”, sorriu-me o Gonçalo, enquanto eu me preparava para sair. “Gajos!”

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Claro que há formas muitíssimo mais simples de dizer “complexidade epistémica”, mas e então? Numa história como esta, onde é que eu havia de exibir a minha cultura?

    [2] Aqui Gonçalo fala exactamente com aquele tipo de humor com que eu escreveria, pelo que admito que possa ter havido um erro nas minhas notas.

  • Domingo de Páscoa

    Domingo de Páscoa

    A analogia pode então erguer-se aos nossos olhos enquanto melhor instrumento de análise que possuímos – porque Deus trabalha de formas misteriosas. E de que outra forma nos seria possível ligarmos os grãos de areia no deserto às estrelas no céu?
    Stephen Jay Gould
    QUESTIONING THE MILLENNIUM, 1997


    Domingo de Páscoa, aqui em Estremoz, é hoje, segunda-feira. Ainda ontem a cidade fervilhava de vida e de alegria, passavam leitões e cabritos inteiros rumos aos fornos de lenha, o pessoal ia e vinha para os montes para deixar tudo pronto quando chegasse a família, as famílias que iam chegando iam enchendo cada vez mais as esplanadas – mas nada daquilo era a Páscoa. Era só o prelúdio da Páscoa. Ao fim do dia tomei café com uns amigos muito dados a artes e a trabalhos manuais[1]. Foram eles que, quando souberam que eu ia passar a Páscoa[2] aqui em casa a trabalhar, insistiram com imensa veemência que, desta vez, é que eu não tinha mesmo desculpa para não ir visitar o Gonçalo, que é de Lisboa como eu, se mudou para Estremoz há oito meses, vive aqui mesmo ao pé de mim, é um verdadeiro solitário, parece infeliz, e eu bem podia ir mostrar-lhe todas as minhas cenas.


    Mas eu não tenho nem o telefone do Gonçalo! Sei quem é, toda a gente sabe quem é, Portugal nunca teve nenhum grande profissional de monólogos de Shakespeare antes, mas eu nem sei se ele está em casa…” – “Meu, Clarinha, toda a gente sabe que o Gonçalo nunca sai de casa!” – “Então é porque não quer ver ninguém, certo? – “Mas tu és diferente. Vamos apostar. A mulher foi de férias para o Sudoeste e ele está sozinho com o puto, que é um mulatinho bué fixe de quatro anos chamado Miguel. Eu faço-lhes o catering…” – “O catering?” – “E então? Os monólogos de Shakespeare não chegam? O gajo também precisava de cozinhar?” – “Se fosse uma gaja, precisava[3]” – “Ah, vamos mas é apostar. Eu ligo. Se ele atender, e se disser que quer que tu vás lá, tu vais?” – “Vou” – “Juras?” – “Juro:”

    Está-se mesmo a ver. Um gajo que não sai de casa nem atende o telefone, o que mais vai querer é visitas da Clara Pinto Correia.

    Só que o caterer levanta o polegar quando esse Gonçalo atende, diz-lhe que está a ali a Clara Pinto Correia que o admira, e se ela pode ir visitá-lo. E põe aquela merda no alta-voz mesmo a tempo de ouvirmos um gajo responder, mesmo à rádio,

    “Sim!”

    E pronto, lá vou eu até à porta do actor dos monólogos, com a juventude toda a espiar para ter a certeza de que eu entro mesmo, o que faz o dito cujo actor puxar-me para dentro com força, atirar comigo ao chão, trancar a porta quatro vezes, e depois fechar também a corrente. Foi tanta manobra que deu tempo para voltar a levantar-me, recompor-me, e sentar-me numa poltrona super-confortável estrategicamente colocada mesmo ao lado do tal Miguel, que é, de facto, um amor de mulatinho. Ora, sabendo eu que a mulher dele é loura, de olhos azuis…

    Eu sei que este título é meu, mas…
    Que mais poderia dizer hoje, “Domingo de Páscoa” em Estremoz, depois de ouvir os segredos do Gonçalo, e o belíssimo monólogo que se lhes seguiu?

    “Fizeram muito bem em adoptar o puto,” digo-lhe eu com um sorriso comovido. “Sabes, os meus dois putos também são adoptados. Já têm 31 e trinta anos, e eu já tenho cinco netos, e…”

    O gajo abanou-me tanto o ombro que quase voltou a atirar-me ao chão.

    “Antes de mais nada, cala-te já, enquanto vais a tempo. E sai já daí, porque estás na minha poltrona de improvisar monólogos para o Miguel e acabaste de interromper um!”

    “Mas um actor não faz um monólogo de Shakespeare sentado. Tens que estar em pé, a fazer gestos, e a passear pelo palco, não é?”

    “Pois é! Pois é. Mas eu, com estas dores, não me aguento em pé durante um monólogo inteiro” – esticou a mão para uma série de rolinhos que estavam na bancada dentro de um frasco de vidro fosco, tirou um charro, e começou a fumar – “Se queres que eu fale em pé, eu falo em pé assim, ou então não aguento. Mas então é melhor fumares também, senão és capaz de achar esta última parte do meu improviso muito estranha. Bora lá! Fuma! Eu pedi para tu vires cá para saber a tua opinião. O pior que te pode acontecer é teres que voltar cá amanhã, eu fico sentado, e ninguém fuma.”

    “Ó Gonçalo, tu desculpa… antes de começares o teu monólogo, para eu depois nunca te interromper… que dores horríveis são essas, para dizeres que nem te aguentas em pé sem fumares charros… aliás, para nunca saires sequer à rua?”

    Gajas,” ponderou o Gonçalo com a mão no queixo – e de repente desatou a rir tanto, tanto, tanto, que me fez rir a mim também. “Não aguentam não perguntar tudo. Olha, minha filha, isto é assim. Tenho imensas dores porque tenho um cancro do testículo, e foi por causa desse cancro que não tivemos filhos biológicos. Tinha dores, tinha cada vez mais dores, mas achei que haviam de passar, e quando a minha mulher me levou ao hospital já não saí de lá. Recuperei bem do cancro. O problema é que já tinha metásteses. Portanto estou para aqui sem saber quanto tempo duro. Vim viver para Estremoz para conseguir ter calma, para legar ao Miguel os monólogos de Shakespeare que serei eu próprio a escrever, e porque assim, também, não tenho as gajas lá de casa a entrarem e a saírem e a mandarem palpites e eu adoro-as mas tu nem imaginas o que aquelas gajas todas proactivas fazem da cabeça de um gajo desactivo” – “Desactivo não existe em Português, tem que ser desactivado” – “Ora bolas, mas desactivado não rima com proactivo e isto tem que rimar tudo porque é um monólogo de Shakespeare” – “Então usa inactivo, em vez de desactivo” – “Vai-te lixar, inactivas são as amibas, e isto ainda não está assim tão mal, meu.”

    De tudo o que se seguiu neste meu estranho “Domingo de Páscoa” darei contas para a semana. Mas – se admirei a coragem do homem? Claro que admirei.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] As intenções não eram boas. Tratava-se de arrombar um portão – pelos melhores dos motivos, mas é sempre arrombrar a entrada para propriedade alheia. Ninguém foi na conversa, mas entretanto enredei-me eu na converva do Gonçalo.

    [2] Ou seja, o dia de hoje, 2ª feira, em que tudo está fechado e nunca vi tanto lugar para arrumar.

    [3] Esta mudaria habilmente o tema da conversa, não era? Noutro planeta que não Estremoz, talvez.

  • Uns bons comprimidos cor-de-rosa

    Uns bons comprimidos cor-de-rosa

    Este homem[1] é um herói da consciência nacional[2]

    Allen Ginsberg

    Contracapa de THE POLITICS OF ECSTASY, 1965


    Querido Zé Duarte, soube na quinta feira, dia 30 de Março, que fizeste 84 anos e pronto, encostaste à box. Provavelmente estavas farto, mas é uma grande chatice, sabes. Temos todos de morrer, mas os que nos vão fazer muita falta deviam ser obrigados a segurar a barra por pelo menos mais um século. Foste uma das figuras mais marcantes, mais criativas, mais inovadoras, do século XX português. Foste absolutamente incontornável, e agora, sem ti, torna-se complicado entender por onde é que realmente passarão mais caminhos. Isso viu-se logo na noite da tua morte. Fui sentar-me a correr diante da televisão, à espera de ouvir contar todas as invenções multifacetadas que eu sei que te devemos, porque trabalhei contigo, dei contigo em doido, andei contigo ao murro, e ri contigo como com poucas outras pessoas. Epá Zé, mas, olha, não. Não, imagina. Tanto espaço novo que tu desbastaste para o sorriso inteligente de um país que inventaste sempre à beira de uma ou outra neurose feliz, e sabes o que é que eles diziam?



    José Duarte foi durante 40 anos o autor do programa diário CINCO MINUTOS DE JAZZ, que apresentou na Renascença, Comercial, e Antena 1.”

    Ouve lá. Eu não aguento estas vistas curtas. A puta que os pariu, Zé. Entendes? Nunca te ouviram, sequer, a passear pelo estúdio da Comercial enquanto fazias sermões louquíssimos com o sotaque de um padre de Viseu. Não sabem nada de ti. Desconhecem por completo a tua arte mágica do improviso – como daquela vez em que me atiraste à cara, assim mesmo completamente lixado, “a tua felicidade ofende-me!”. Lembras-te? Só tu, Zé. Só tu é que gritavas uma frase destas enquanto te punhas em pé de um salto, com toda a gente a ver, no meio do Café de São Bento.

    Este filme que ninguém que lá estava esqueceu quer dizer muitas coisas boas, infelizmente todas elas extintas algures durante os anos 90. Passava da uma da manhã, a meio de uma semana de imenso trabalho. Na minha mesa éramos quatro miúdas, todas entre os trinta e os quarenta anos, produzidas, giras, descascadas, a comer bifes e a beber Moet Chandon, o que implica que, na altura, desde que se trabalhasse muito e o resultado fosse bom, havia dinheiro para festas como estas. Assim sendo andávamos atraentes e contentes, pelo que o estrago de dormir pouco, desde que repetido com moderação, era o menor dos nossos males.

    S observa atentamente o cuidado com que CPC embala o seu novo afilhado, a quem acaba de dar o nome de Panzer, já que os Leões da Rodésia não crescem tanto como os Rafeiros Alentejanos mas quase.
    Sempre que as piadas em quadrinhas de pé quebrado que eu escrevia para o PÃO COM MANTEIGA sobre os dilemas dos animais eram perdidamente cruéis, sobretudo para uma jovem bióloga que tinha a obrigação de gostar muito deles, o Zé Duarte olhava para mim sem esconder a sua perturbação e rosnava-me “You’re sick!
    E eu, que só tinha 25 aninhos, ficava tããão orgulhosa…

    Acontece que, nessa noite em particular, o Zé Duarte entrou quando os nossos bifes iam a meio e foi sentar-se na mesa ao lado da nossa, na companhia de mais dois indivíduos incaracterísticos. Fez-nos os devidos acenos de cabeça. Deu à situação a sua devida pausa romântica. Por fim, iniciou as manobras de aproximação com base numa razão perfeitamente aceitável: conhecia-me do PÃO COM MANTEIGA, já lá iam muitos anos, aqueles anos daquela vida que eu tive antes de ir para a América.

    Reparem, isto também quer dizer que, nesse nosso mundo, nesse nosso País, uma pessoa descontente com o curso que a sua vida estava a seguir podia agarrar em si e mudar tudo de uma só vez, assim mesmo completamente, de todo em todo radicalmente. Aliás, nessa noite estávamos ali todas de encher o olho porque eu acabava de defender as minhas provas de doutoramento em Portugal[3]. E isto quer dizer que, nessa altura, estas coisas não eram fáceis, mas eram uma questão de teimosia e de qualidade, e faziam-se. E mais, e faziam-se bem[4]. Os outros dois indivíduos não tinham ponta por onde se lhes pegasse, portanto a mais alta e imponente de nós todas começou a mandá-los desamparar a loja, porque se era para cenas canalhas a gente preferia uma cena canalha em que só entrasse o Zé. O Zé começou a puxá-los pelas mangas e a ordenar-lhes que pagassem tudo antes de sair.

    Foi quanto bastou para a minha melhor amiga, linda de morrer, os olhos azuis a atravessar os pobres homens como espadas, os cabelos loiros a enfeitiçá-los como os olhos caleidoscópicos da serpente, o minivestido de licra amarela a revelar-lhe todas as belíssimas curvas e todas as arrojadíssimas ausências de fios dentais e wonderbras, ir ter com os dois inexistentes a bambolear as ancas em cima da vertigem dos seus saltos agulha, agarrar no maço de Dunhill que eles tinham na mesa, levar um cigarro aos lábios, beber do copo de um deles, depois beber do copo do outro, e depois pedir aos dois ao mesmo tempo sem fixar a atenção em nenhum deles em especial,

    “Meu Baby, tu, ou tu, meu Baby. Dá lume à mãe e dá lume à mãe, please,”

    de onde resultaram acto contínuo dois isqueiros acesos logo ali, o que me fez abrir a minha caixa dos medicamentos e dizer aos dois que tomassem um cor de rosa que ia fazer-lhes bem, e a seguir que hit the road Jack, a malta queria era ficar com as partes todas do Zé Duarte e não tinha interesse em partes transparentes de mais ninguém.

    Como o empregado vinha a aproximar-se para nos trazer outra garrafa que era oferta de dois senhores do balcão, a nossa amiga New Age, com os seus olhos verdes enormes e os seus dedos como algas, disse-lhe em voz comandante e cristalina,

    “Ó Octávio, amoroso, és capaz de pôr estas duas criaturas inexistentes na rua, para pararem de bloquear o nosso acesso ao Zé Duarte?”

    O que quer dizer que nessa altura nós sabíamos o nome dos empregados e estávamo-nos bem nas tintas para os senhores do balcão, mas começámos a encher uma flute para o Zé e eu ofereci-lhe um pratinho quentinho cheio de batatas fritas enquanto o Octávio tratava de pôr os transparentes a milhas depois de os ter obrigado a pagarem as contas de toda a gente, incluindo as nossas.

    “A mãe é má, Baby”, disse a minha melhor amiga para o Octávio, com uma piscadela de olho que ou eu me engano muito ou assustou um bocado o Zé Duarte.

    “E já agora toma quatro destes cor-de-rosa, Zé,” acrescentei eu, decidida a tranquilizá-lo mas um bocado perdida de riso. “Fazem o quádruplo do efeito com batatas fritas e Moet de senhores do balcão.”

    “Mas eu tenho que ir para casa!”, gritou o Zé.

    “Come, bebe, toma os cor-de-rosa, relaxa, que depois vamos todas contigo,” prometi-lhe eu. “Assim enquanto eu guio elas tiram-te a roupa pelo caminho.”

    “Tiram-me a roupa?”, protestou o Zé.

    “Sim!”, garantiram as miúdas, a despachar Moet e batatas fritas. “Toda a gente te tira a roupa, menos a Clarinha, que vai a guiar.”

    “Clarinha!”, gritou-me o Zé, como se a culpa fosse minha. “Para que é que elas querem tirar-me a roupa pelo caminho?”

    “Para sermos todos muito felizes, querido Zé!”

    E foi esta resposta tão doce que fez o Zé levantar-se como que impelido por uma mola, apontar para mim de dedo em riste, começar a recuar para a porta, e bradar o já famoso,

    CLARINHA! DESAPARECE! A TUA FELICIDADE OFENDE-ME!”

    Saímos as quatro a correr atrás dele, e o Café de São Bento brindou-nos com uma grande salva de palmas.

    Quando a porta se fechou por completo e já ninguém podia ver o verdadeiro desfecho, metemos o Zé Duarte num taxi que ia a passar e mandámos o motorista seguir para o Vá-Vá. Era o super-poder incomparável daquele homem. Para onde quer que fosse, estava constantemente a potenciar o acontecimento de coisas impossíveis como esta. Depois fomos andando para o meu Toyota amarelo alugado, empandeirado algures em cima do passeio. Sabíamos as quatro, perfeitamente, que o Audi cintilante do Zé Duarte estava estacionado na esquina, do outro lado da rua, mesmo em frente ao Parlamento, onde o reboque entra em acção logo às sete da manhã. Mas nisso é que nunca poderíamos interferir, mesmo que quiséssemos. Toda aquela aventura inesquecível era dele. Não era nossa.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Ginsberg referia-se aqui a Timothy Leary, e não ao Zé Duarte, que obviamente nunca conheceu. Mas o efeito é o mesmo e a heroicidade aplica-se da mesma forma a ambos os homens.

    [2] Ginsberg referia-se aqui à consciência americana, que Leary sacudiu vivamente nos anos 60. Mas, exactamente no mesmo acto deliberado de assalto à psique, com a mesma vivacidade, poderia estar a referir-se à consciência portuguesa. O Zé Duarte guiou-nos durante dezenas e dezenas de anos num MAGICAL MYSTERY TOUR absolutamente fantástico. Se o consumíssemos, sabíamos que a viagem nunca seria má. É extremamente raro podermos dizer isto de alguém. Nos tempos que correm, então, já não há praticamente mais nenhuma personalidade que nos ofereça garantias semelhantes. Talvez o Papa Francisco. Mas, infelizmente, tudo indica que também ele está prestes a ir-se embora. Ficaremos, então, radicalmente órfãos de todo e qualquer bom gosto.

    [3] Isso contribuiu, em grande medida, para a tal felicidade que ofendeu o Zé.

    [4] Para encurtar razões, aquilo foi um castigo: além da prova normal do primeiro dia, no dia seguinte ainda tive que defender mais uma prova, consistente em apresentar e argumentar um projecto de investigação. No primeiro dia o material era muito menos interessante, mas o anfiteatro estava a deitar por fora. No segundo dia só estavam os familiares e amigos, o que me entristeceu, porque neste caso sim, o material era apaixonante. “A audiência veio toda no dia errado,” comentei com um amigo que dava lá aulas ao terceiro ano. “Hoje é que era giro ouvir as novidades.” O meu amigo riu com carinho, na constatação óbvia de que eu já começara a esquecer o meu próprio País. “Clarinha, então?”, disse-me ele. “O pessoal não veio ouvir as tuas provas. O pessoal veio ver-te chumbar, porque era isso que toda a gente dizia que ia acontecer. Quando perceberam que não chumbavas coisa nenhuma deram à sola. Não estamos todos fartos de te avisar que as pessoas são más?” Mas não, eu não conseguia ouvir. Passava demasiado tempo na América para me cair a ficha de que as pessoas são más. Nem com a acusação de plágio caiu como deve ser, uma vez que eu também estava na América quando me fizeram essa baixaria. Foi mesmo preciso toda aquela ordinarice do orgasmo, o desemprego, o abandono – ou seja, só me caiu a ficha quando fiz cinquenta anos, caraças! Tinhas toda a razão, Zé: I WAS SICK”!

  • Por quem os sinos dobram

    Por quem os sinos dobram

    Agora, todos os meus sonhos são de pessoas mortas.

    Jorge Luis Borges

    DOCTOR BRODY’S REPORT


    Em Portugal, fala-se muito, muito, muito, do aumento da velhice e do desaparecimento da infância. Acrescenta-se que a resolução deste drama[1] é complicada, senão mesmo muitíssimo delicada[2]. E ponto final parágrafo. À falta de soluções, espera-se que os velhos morram e que as crianças comecem a crescer nas árvores. E é verdade, há muitos velhos em Estremoz, como se choraminga que acontece enquanto parte integrante da “desertificação do interior[3].” Só que os velhos não morrem suficientemente depressa, exactamente como as crianças que viriam substituí-los não conseguem sequer ajudar os pais no trabalho[4] nem horas que cheguem nem dias que compensem. Mas então e os senhores não vão mesmo fazer nada? Hey! Está aí alguém?


    Há inúmeros factores que complicam a tomada de políticas que equilibrassem a velhice com a infância. Em Economia, em Gestão, em Cálculo, em Direito, desculpem mas é que até em Biologia, a gente aprende que quando um problema é composto por vários problemas diferentes, todos igualmente complexos e todos igualmente concorrentes para resolver a equação, não tem nada que enganar: separam-se os diferentes problemas uns dos outros, e resolvem-se separadamente um por um. Se até eu sei fazer isto, como é que é possível que quem manda em nós não saiba? Sabem o que é que parece? Parece que o desequilíbrio populacional é um problema de tal forma espinhoso que “eles” olham para aquilo e amuam. Enfrentar aquilo? Eu não. Mandem vir outro que trate disto, se é que ainda anda por aí algum.

    Antes de mais nada, atendendo à Guerra na Ucrânia[5], não se deseja de todo que os casais recomecem a ter uma dúzia de filhos por cabeça[6]. Nem seria fácil implementar agora nenhum programa social de apoio a famílias numerosas como estas. Trata-se de um País que está tão falido, e onde o dinheiro dos contribuintes já foi tão roubado por quem conseguiu deitar-lhe a mão[7], que o próprio Serviço Nacional de Saúde ainda anda a meter mais água do que uma antiga Grande Nau da Carreira das Índias, que, por via da ganância, foi completamente sobrecarregada de bens, e destituída de qualquer manutenção, quando voltava de Goa para Lisboa[8]. Mas, tal como à época ninguém ligou nem um bocadinho a nenhuma Ordem da Coroa[9] para limites de peso e de passageiros, ou para obrigatoriedades de manutenção, também no século XXI não se ouve ninguém anunciar que encontrou uma solução razoável e exequível para mais esta História Trágico-Marítima[10].

    CPC, aos 63 anos, contrastando com S, aos três meses.
    Ela aceita sem protestos que já está com os pés para a cova – mas depois quem é que vai cuidar do pequenino?

    E temos também o pesadelo do Ensino, claro está. Considerando que os professores já andam a ter que dar aulas a mais de vinte alunos[11] com a escassa miudagem de que o País dispõe[12], quantos meninos teria cada turma se a natalidade aumentasse? Trinta e sete? Quarenta e dois[13]? Para não falar dos pais desses meninos, que já estiveram de tal forma à beira do desemprego por ficarem vezes demais em casa a cuidar dos filhos durante a greve dos professores[14], que mais filhos é que não quererão ter de certeza – e falar disso muito menos, porque não, de forma nenhuma, não se fala de um trauma como se fala de um frigorífico avariado[15].

    E assim passam os dias, na doce inanição do aprés moi le déluge[16] como se nada fosse. Até ao momento em que paramos mesmo, porque desta vez os sinos dobraram por alguém da nossa afeição.

    A minha casa em Estremoz é como Jerusalém nos antigos mapa-roda que nos restam, de entre todos os que foram desenhados durante a Alta Idade Média[17]: fica exactamente no centro preciso de tudo. Não se trata aqui de qualquer espécie de sentido figurado: o Passeio de Santiago[18] marca a organização do crescimento da cidade para fora de portas, de tal forma que, da janela do meu quarto, tenho o privilégio de poder olhar de vez em quando para o Torreão-Mór[19] das primeiras muralhas, todo iluminado entre as estrelas, enquanto estou a ler na cama durante a noite. Desta posição central resulta o facto, que para mim é encantador, de poder ir contando o passar das horas pelos sinos sucessivos das três grandes igrejas: primeiro a de São Francisco, depois a de Santo André, e, finalmente, lá muito ao fundo, a de Santa Maria. Habituei-me a ouvir os sinos de São Francisco tocarem no fim-de-semana a assinalar as várias missas, e a celebrar com eles os Dias Santos.

    É mesmo verdade: as minhas noites sabiam a bençãos, tudo era verdadeiramente encantador, até eu notar que… e não era fantasia minha, porque comecei a estudar o fenómeno com muita atenção… e aquele tipo de repicar de sinos só há mesmo na Igreja de São Francisco… até notar que, Santo Deus, que sufoco. Se os sinos de São Francisco não dobravam a finados dia sim-dia não, no mínimo andavam lá perto.

    E claro que era verdade, quando comecei a perguntar toda a gente me disse que claro que era verdade: os sinos estão sempre a dobrar a finados porque estão sempre a morrer pessoas. “Mas a pessoa morreu de quê?” – “Então, coitada, foi da idade.” E, de repente, é como a tripulação descobrir que o leme da Grande Nau está podre à primeira tempestade que se aproxima, ou que todos os canhões ficaram em Goa para desimpedir espaço no convés ao primeiro aviso de piratas ou de holandeses na distância. O tocar dos sinos passa logo a ter outro peso, e o seu dobre a finados começa a doer-nos também a nós, assim que participamos do funeral da pessoa que, também ela, morreu da idade. “Mas ainda a semana passada estava tão bem disposta…” – “Então, coitada, antes assim, seja como fôr a gente tem que ir, nem que mais não seja para dar lugar aos novos.

    Pois com certeza, mas cadê os novos – e cadê o seu direito à felicidade?

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Eu é que digo “drama”, porque não há outra palavra que realmente defina o que tem vindo a acontecer nas últimas décadas. Claro que nenhum político, ou comentador, ou alguma pessoa ilustre chamada a participar num debate, ou até algum humorista politicamente incorrecto, se dá ao trabalho de dizer “drama”. Em, boa companhia, o envelhecimento nacional é aquilo a que se chama “um problema”. E, escusado será dizer, ninguém promete que vai lutar contra ele em nenhuma campanha eleitoral.

    [2] Por acaso, e pensando bem depois de ter escrito “muitíssimo delicada”, ocorreu-me que é possível que eu seja a única pessoa que diz isto — e que, de estar sempre a ouvir a minha própria voz a dizê-lo aos outros, já imagine que ouvi muita gente a dizer “delicada”. Wishful thinking. A expressão existe porque todos os dias faz sentido.

    [3] “Eles” dizem isto com especial prazer. Estão aqui estão a escrever umas éclogas sobre o assunto.

    [4] Que se lixe ir à escola. Descarregam-se os sacos todos primeiro, a seguir há que caiar estes muros todos, alguém tem que ir depressa apanhar as batatas, e depois logo se vê.

    [5] Como é evidente, quando deixar de haver guerra na Ucrânia, a culpa continuará a ser da Guerra na Ucrânia.

    [6] Marido e mulher formam uma unidade, supostamente indivisível salvo prova do contrário. Infelizmente, o que há mais por aí, na nossa sociedade, são provas do contrário. O que, por seu turno, cria ainda mais um outro problema (palavra que neste caso é utilizada correctamente) no apoio às famílias numerosas.

    [7] Uma vez mais: não só assumo total responsabilidade pelo que acabo de escrever, como até esclareço que atenuei para “deitar-lhe a mão” o predicado que realmente me apetecia oferecer a esta frase, que era “apropincuar-se com”.  Mas, ao menos aqui, e pelo menos em privado, ouço imensa gente dizer o mesmo que eu. É sempre reconfortante, isto de não estarmos sós.

    [8] Ou “tenta voltar”, que foi mais o caso. Perderam-se milhares de naus nesta loucura. À primeira tempestade, descobria-se que a Nau já não tinha nem bombas para drenagem da água, deixadas em Goa, como tudo o resto, para carregar ainda mais brocados, mais especiarias, e mais drogas. O provérbio “Se queres rezar vai para o mar” aparece no século XVI, e claro que não aparece por acaso.

    [9] Houve várias. A Coroa perdia fortunas indescritíveis em cada naufrágio. E os monarcas não são necessariamente parvos.

    [10] Leram as TRÁGICO-MARÍTIMAS, porventura? É que eu li. Com muita atenção. São só três histórias, de três naufrágios diferentes. Mas percebe-se logo, até pelos comentários indignados dos cronistas da época, porque é que os naufrágios no trecho Goa-Lisboa foram tão frequentes, e tão estupidamente evitáveis, na História supostamente gloriosa da Carreira das Índias.

    [11] Ou seja, anda a pedir-se-lhes que todos os dias descubram a quadratura do círculo, e o aproveitamento dos alunos ressente-se de missões impossíveis.

    [12] E o País Real anda a ter imenso cuidado com a redução da miudagem. Se quiserem digam que a culpa é da Guerra da Ucrânia, quero lá saber – a verdade é que o pessoal está teso. Mesmo numa cidade tão calma e aprazível como esta, os meus alunos das explicações são frequentemente filhos únicos E eu acabo por fazer imenso pro bono, porque ninguém tem dinheiro, pronto.

    [13] Ou seja, aqui já não se trata de mais quadraturas do círculo ou de mais missões impossíveis: trata-se, pura e simplesmente, de atirar a toalha e desistir de todo o alfabetismo nacional. Todo. Em benefício dos pais, a Escola passa a funcionar enquanto cantina e ATL, e acabou-se a conversa. Mas acabou-se mesmo, ouviram? Epá, mas então calem-se. Calem-se, meu.

    [14] Se é que não foram mesmo para o desemprego. Ou, no mínimo, nas entrevistas de emprego tiveram que enfrentar o fatídico “então e deseja ter filhos?” com ainda mais cuidado.

    [15] Pelo menos “não se fala de um trauma assim de um dia para o outro”, ou “não se fala de um trauma sem ser em terapia.” Um trauma é um caso sério. Demora tempo a instalar-se. E, uma vez instalado, consegue esconder-se tão bem que só alguns dos melhores profissionais da coisa é que conseguem puxá-lo cá para fora à força. Mas olhem bem para “eles”: alguém parece honestamente preocupado com a saúde mental dos portugueses?

    [16] Sou culta, sou. “Depois de mim que venha o Dilúvio” era o que dizia desdenhosamente o Rei de França Louis XV quando os seus conselheiros aludiam aos gastos disparatados na Nobreza perante a fome crescente do Povo.

    [17] São cerca de seiscentos mapas, sobreviventes em diversos países europeus, portanto sabemos que o conceito de Jerusalém marcar o centro preciso da circunferência representativa da Terra não foi uma fantasia: foi mesmo a primeira semelhança do mundo que organizou a inteligência medieval. A culpa deste mal-entendido terá sido de Santo Agostinho, que terá escrito, não sabemos onde, que “a virtude de todas as coisas está no centro.”

    [18] Nome inventado a bem da privacidade, ou queriam mais o quê?  O número da porta e o andar?

    [19] Idem.